Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
112/08.2GAPNC.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOSÉ GOMES DE SOUSA
Descritores: CONDUÇÃO SEM HABILITAÇÃO LEGAL
INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
Data do Acordão: 11/11/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE PENAMACOR
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 69º E 292º CP
Sumário: É de aplicar pena de inibição da faculdade de conduzir a arguido condutor não provido de carta de condução.
Decisão Texto Integral: A - Relatório
No Tribunal Judicial da Comarca de Penamacor correu termos o processo comum singular supra numerado no qual o arguido J..., solteiro, reformado por invalidez, residente na Rua do R…, Salvador, por sentença lavrada a 08 de Maio de 2009, foi condenado pela prática, em autoria material e concurso real efectivo de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigos 292º, n.º1 do Código Penal na pena de 90 (noventa) dias de multa e pela prática de um crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo artigo art. 3.º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros); e na pena única de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros).

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Inconformado, interpôs recurso o Ministério Público, apresentando as seguintes conclusões:

1 ° - O arguido J... foi condenado, em processo comum, pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez p. e p. no art. 292° do Código Penal, na pena de 90 dias de multa e pela prática de um crime de condução sem habilitação legal p. e p. pelo art 3°, n° 1 do DL n° 2/98, de 3 de Janeiro na pena de 110 dias de multa, tendo sido condenado na pena única de 140 dias de multa à taxa diária de € 5,00:

2° Porém, a Mma Juíza afastou, in casu, a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir prevista no art. 69°, n° 1, al a) do Código Penal "uma vez que o arguido não é, neste momento, titular de carta e/ou licença de condução válida que o habilite ao exercício da condução, pelo que aplicação da aludida sanção acessória seria inexequível e constituiria, pois, uma condenação condicional", acrescentando-se ainda na douta sentença recorrida que "o arguido está legalmente proibido de conduzir veículos motorizados na via pública sendo certo que, em caso de condução de veículo na via publica, incorre na prática de um crime de condução sem habilitação legal".

3° Ora, em primeiro lugar, e conforme se refere na douta sentença recorrida, o crime de condução em estado de embriaguez, para além de ser sancionado, nos termos do disposto no art. 292° do Código Penal, numa pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias. é ainda sancionado com a pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis, por força do disposto no citado art. 69°, nº 1 al. a).

4° Assim sendo, não podia a Mmª Juíza deixar de aplicar tal pena acessória, uma vez que não existe qualquer previsão legal que exclua essa aplicação, distinguindo as situações em que o condutor não seja titular de carta/licença de condução;

5° Em segundo lugar, não se diga ainda como na douta decisão recorrida que a pena acessória seria inexequível e constituiria uma condenação condicional, pois uma vez aplicada tal proibição por douta sentença transitada em julgado, ela produziria os seus inevitáveis efeitos legais cfr. a propósito do cumprimento de tal proibição em casos semelhantes Acórdão da Relação do Porto de 20-12-2006 in www.dgsi.pt. ;

6°Finalmente, entendemos que ao excluir a aplicação da referida pena acessória, em caso de condenação pela prática de crime de condução de veículo em estado de embriaguez, conforme ocorreu na douta sentença recorrida, poderia levar a consequências inaceitáveis, beneficiando os condutores não titulares de carta/licença de condução relativamente aos condutores legalmente habilitados a conduzir:

7° Com efeito, de acordo com tal entendimento, enquanto os primeiros, ao conduzir na via pública posteriormente a tal condenação, ficariam eventualmente apenas incursos na prática de um crime p. e p. pelo art. 3°, n" 1 do DL nº 2/98, de 3 de Janeiro (punível com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias), os condutores legalmente habilitados, caso conduzissem no período da proibição de conduzir aplicada, ficariam incursos necessariamente na prática de um crime de violação de proibições p. e p. pelo art. 353° do Código Penal (punível com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.)

8° No sentido contrário ao perfilhado na douta sentença recorrida pronuncia-se Germano Marques da Silva, in Crimes Rodoviários, Universidade Católica Editora, p. 32, quando escreve que: "A pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pode ser aplicada a agente que não seja titular de licença para o exercício legal da condução;" E o mesmo autor esclarece em nota de rodapé, na página citada, que: "Diferentemente quando for aplicada a medida de segurança de cassação e o agente não seja titular de licença, caso em que ao agente não pode ser concedida licença durante o período de interdição. É que a proibição de conduzir veículo motorizado não pressupõe habilitação legal.";

9° Acresce que, o entendimento por nós defendido foi o perfilhado, entre outros, pelos doutos Acórdãos da Relação do Porto de 17-04-2002 e da Relação de Lisboa de 26-09-2007, bem como nos mais recentes Acórdãos da Relação do Porto de 9-7-2008 e do Acórdão da Relação de Coimbra de 10-12-2008, disponíveis em www.dgsi.pt.- onde ainda se refere, para além do mais e de forma impressiva, que é a própria lei que admite a possibilidade de aplicação da medida a quem não esteja habilitado ao impedir no artigo 126°, nº 1, al. d) do Código da Estrada, a obtenção de tal título a quem esteja a cumprir inibição de conduzir;

10° Por todo o exposto, impunha-se, no caso em apreço, a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados e ao não fazer tal aplicação, a douta sentença proferida nos autos violou o disposto no art. 69°, nº 1, al. a) do Código Penal e, consequentemente, deverá a sentença recorrida (ser) substituída por outra em que, para além da multa, se aplique a sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados.


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O Exmº Procurador-geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido do provimento do recurso.

Foi cumprido o disposto no artigo 417º n.º 2 do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais.


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B - Fundamentação

B.1 - O Tribunal recorrido deu como provados os seguintes factos:

1. No dia 31 de Julho de 2008, pelas 16h50m, na Estrada Nacional, nº 332, ao Km 156,15, área desta comarca, o arguido conduzia o ciclomotor de matrícula 00-DB-00.

2. O arguido conduziu o referido ciclomotor sem ser titular de licença de condução ou qualquer outro documento que legalmente que permitisse conduzir o mesmo na via publica.

3. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido conduziu ainda o ciclomotor descrito em 1), com uma TAS de 2,05 g/l.

4. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que não podia conduzir o aludido ciclomotor por não estar legalmente habilitado para o efeito, bem como tinha plena consciência de que havia ingerido bebidas alcoólicas e que tal ingestão lhe poderia determinar, como determinou, a referida taxa de álcool no sangue, e ainda assim quis conduzi-lo na via pública.

5. O arguido sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei e tinha a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.

6. O arguido foi interveniente num acidente de viação/despiste.

7. O arguido confessou integralmente os factos que lhe vinham imputados.

8. O arguido é reformado por invalidez e recebe mensalmente a quantia € 200,00.

9. Reside com a mãe em casa desta.

10. Sofre do coração e, por isso, despende mensalmente a quantia de € 50/€60 mensais em medicação e € 55,00 no Centro de Dia.

11. Por Sentença proferida pelo Tribunal Judicial de Idanha-a-Nova, transitada em julgado em 10.02.2003, nos autos de processo sumaríssimo o n.º 38/02.3TAIDN, foi o arguido condenado pela prática, em 04.08.2002, de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, na pena de 120 dias de multa à taxa diária de € 4,00.


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O tribunal recorrido considerou que não existiam nenhuns outros factos provados ou não provados.

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E apresentou como motivação da decisão de facto os seguintes considerandos:

A convicção do Tribunal relativamente aos factos, alicerçou-se na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, segundo juízos de experiência comum e de acordo com o princípio da livre apreciação, plasmado no artigo 127º do Código Penal, bem como, nos documentos juntos aos autos.

No que concerne aos factos dados como provados, o Tribunal atendeu essencialmente ao que foi relatado pelo arguido que confessou integralmente e, sem reservas, os factos constantes do libelo acusatório. Esclareceu que nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação exercia condução de veículo automóvel após ter ingerido bebidas alcoólicas e sem ser possuidor de carta de condução.

O Tribunal valorou, ainda, a participação de acidente de viação de fls. 4 e 5 e, bem como o relatório de exame de álcool no sangue de fls. 12.

Relativamente às condições pessoais, sociais e económicas, o Tribunal alicerçou-se nas declarações do arguido.

No tocante aos antecedentes criminais, tomou-se em consideração o CRC junto aos autos a fls.17-18”.


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Cumpre decidir.

B.2 - A motivação do recurso enuncia especificamente os fundamentos do mesmo e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do seu pedido (artigo 412º do Código de Processo Penal), de forma a permitir que o tribunal superior conheça das razões de discordância do recorrente em relação à decisão recorrida e que delimitam o âmbito do recurso.

Mas não está o tribunal de recurso impedido de conhecer dos vícios referidos no art. 410º, nº 2 do Código de Processo Penal, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum.

O recurso pode ainda ter como fundamento, mesmo que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – nº 3 do referido preceito.

Nenhuma destas circunstâncias se encontra verificada no caso dos autos.

É, assim, questão a abordar na presente decisão, a aplicabilidade da pena de inibição da faculdade de conduzir a arguido não provido de carta de condução.


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B.3 - O arguido foi condenado nos presentes autos pela prática, em autoria material e concurso real efectivo de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigos 292º, n.º1 do Código Penal na pena de 90 (noventa) dias de multa e pela pratica de um crime de condução sem habilitação legal previsto e punido pelo artigo art. 3.º, n.º 1 do Decreto-lei n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de 110 (cento e dez) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros); e na pena única de 140 (cento e quarenta) dias de multa, à taxa diária de €5,00 (cinco euros).

A situação colocada nos autos sub judicio, já habitual, recentra-se doutrinal e jurisprudencialmente desde 2001, vista a entrada em vigor da Lei n.º 77/2001, de 13/07 que alterou a previsão do artigo 69º do Código Penal.
Esta Lei n.º 77/2001, de 13/07 (Sexta alteração ao Código Penal) alterou a redacção dos artigos 69.º, 101.º, 291.º, 292.º e 294.º do Código Penal mas em pouco alterou, de substancial, a matéria em apreciação, que já fora, anteriormente, objecto de dissídio jurisprudencial.
De facto, já anteriormente a polémica jurisprudencial existia e foi solucionada pelo Assento nº 5/99 (D.R. 1ª s. A, nº 167 de 20-7-1999) que, não obstante não vigente actualmente, vista a alteração legislativa ocorrida, mantém a actualidade da sua doutrina: «O agente do crime de condução em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292º do Código Penal, deve ser sancionado, a título de pena acessória, com a proibição de conduzir prevista no artigo 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal.»
Para tal concluir devemos recordar que a proibição de conduzir veículos com motor está definida pelo legislador, no artigo 69º, nº 1, al. a) do Código Penal, como uma pena acessória – não obstante o seu regime se venha a consubstanciar numa natureza de “efeitos penais não automáticos da condenação - Prof. Fig. Dias, in “Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime”, Lisboa, Editorial Notícias, 1993, pag. 177. - e sempre terá como pressuposto formal a condenação do arguido numa pena por crime cometido no exercício da condução – no caso concreto a pena de multa pela prática do rime de condução em estado de embriaguez – e como pressuposto material “que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável”, dessa forma se elevando “o limite da culpa pelo facto”. - Idem, pag. 165.
Mantém-se, pois, tal pena acessória intimamente conexionada com o facto cometido, visando objectivos de prevenção geral e especial.

Ora, desde logo convém realçar que a conduta do agente que conduz sob a influência do álcool e sem estar habilitado a conduzir é mais grave (acréscimo dos perigos inerentes às duas condutas) do que a conduta de um agente que conduza sob a influência do álcool mas devidamente habilitado a conduzir.

Se a conduta deste é punível com a pena acessória e a daquele não, frustrados ficam, desde logo, os objectivos de prevenção geral e especial.

E estes objectivos são essenciais nos casos concretos, como o dos autos, em que o agente com uma só conduta preenche dois tipos legais e revela um desprezo total pelos bens jurídicos tutelados, com a prática de crimes que incidem sobre a mesma área de protecção social – os riscos abstractos inerentes à condução estradal - área que exige especiais cuidados de tutela e acrescidas preocupações de prevenção, considerando os graves danos pessoais e sociais deles resultantes.

Como se afirma na fundamentação do acórdão de 19 Setembro 1995 do Tribunal da Relação de Lisboa - Processo: 377/95, sendo relator ARAGÃO BARROS, in “Colectânea de Juriprudência”, 1995, Tomo IV, pp 147-148; também em “Colectânea de Jurisprudência” on line, Wolters Kluwer Portugal, Ref. 6324/1995: “I - A proibição de conduzir a que se refere o artº 69º do CP não é um “efeito necessário”, mecânico ou automático da condenação pela prática do crime do artº 292º do CP, mas antes e sim uma pena acessória daquela que a este corresponde. II - Tal proibição é aplicável mesmo a quem não tenha habilitação para tal”.: “será um contra-senso que o condutor não habilitado legalmente a conduzir, podendo vir a obter a licença ou carta de condução logo pouco depois da sentença condenatória, não se visse inibido de conduzir, quando o já habilitado fica sujeito a tal sanção. …..

Tal redundaria num benefício injustificado que, não tendo cobertura na letra da lei, é de presumir não perfilhado pelo legislador - art. 9º, nº 3, do Cód. Civil”.

Tal contra-senso perverte os ditos objectivos de prevenção, quer geral, quer especial.

E, como se refere no acórdão da Relação de Lisboa de 26-09-2007, - Proc. nº 5103/2007-3, sendo relator o Desemb. VARGES GOMES, in www.dgsi/pt (http://www.dgsi.pt/jtrl.nsf/33182fc732316039802565fa00497eec/c9b78939d33f78de8025738300614a4c?OpenDocument). essa é a posição de Mir Puig considerando que “a nova denominação da pena no actual Código Penal (espanhol) - privación del derecho a conducir - resolve a questão, abrangendo tanto aquele que tenha título de condução como aquele que o não possui: em qualquer caso ocorre privação do direito de conduzir (Santiago Mir Puig, Derecho Penal, Parte General, 6ª Edición, pág. 692, Editorial 92, Editorial Reppertor, ali citado).

Vai também no mesmo sentido o Supremo Tribunal de Espanha - justificando esta orientação dizendo que, “en caso contrario se produciria un beneficio para las personas que no poseyeran autorización para conducir, frente a los que cometiesen un delito contra la seguridad del tráfico teniendo permiso de conducción” (Apud Francisco Martín Uclés, Aspectos Jurídicos Y Policiales de la Alcoholemia, pág. 51, Tirant lo Blanch, ali citado)

Expendendo idêntica opinião os acórdãos da Relação de Évora de 26-05-2009, - Sendo relator o Desemb. FERNANDO CARDOSO, ainda inédito. de Coimbra de 10-12-2008 - Proc. nº 17/07.4PANZR, sendo relatora a Desemb. ISABEL VALONGO: “II. – A proibição de conduzir deve ser aplicada quer aquele que possui título que o habilite ao exercício da condução quer aquele que o não possui, ocorrendo em ambas as situações a privação do direito de conduzir”. e de 24-05-2006, - Proc. nº 19/06, sendo relator o Desemb. ORLANDO GONÇALVES: “2- A inibição do direito de conduzir, na sequência de condenação por crime de condução em estado de embriaguez, deve ser imposta mesmo que o arguido não tenha carta ou licença de condução”. ambos em www.dgsi/pt (em 24.10.2009).

Mas estas ideias assentam, sobretudo, em considerações de prevenção geral e especial.

Mas entendemos que a solução a dar ao caso em apreço – que deve atender, numa segunda linha, a essas necessidades de prevenção – deve partir, ter a sua fonte, numa realidade prévia às ideias de prevenção.

A inibição da faculdade de conduzir é uma pena acessória. Ela corresponde a uma privação temporária de um direito: o direito de conduzir. Direito esse especialmente valorado pelos agentes do facto ilícito, o que já suscita apetites utilitaristas de aproveitamento dessa especial valoração para guindar tal pena à dignidade de pena principal. - Neste sentido o acórdão da Relação de Évora de 12-02-2008, sendo relator o Desemb. ANTÓNIO JOÃO LATAS no proc. nº 2213/07-1: “III. - As virtualidades preventivas da pena acessória radicam, essencialmente, na dissuasão inerente à privação de direito especialmente valorizado pela generalidade dos cidadãos, o direito de conduzir, só excepcionalmente visando fins - residuais no nosso direito penal - de mera inocuização ou prevenção especial negativa, ……….. .IV. - São aquelas virtualidades da sanção penal de proibição de conduzir que permitem compreender, de lege data, que o art. 69° n° 1 b) C. Penal preveja a sua aplicação a condenado por crime cometido com utilização de veiculo, em que não está em causa a conduta estradal do arguido, passada ou futura (a qual pode ser mesmo irrepreensível), tal como permitem compreender, de iure condendo, que sector relevante da doutrina penal preconize a sua consagração como pena principal, aplicável mesmo a crimes que nada tenham que ver com a circulação rodoviária.

Independentemente dos considerandos de iure condendo, aquém destes, de iure condito, a actual pena acessória de “proibição de conduzir” (assim é designada pelo prémio do artigo 69º do Código Penal) é a imposição de proibição de exercício de um direito. È a imposição de uma privação, temporária embora.

E privação de um direito que, numa análise sistemática e teleológica das normas aplicáveis, tem duas vertentes: (1) privação de um direito já existente na esfera do titular (o cidadão já possuidor de licença de condução); (2) privação de um direito existente apenas enquanto expectativa jurídica de exercício (o cidadão ainda não titular de título válido para conduzir, mas com a expectativa de o poder vir a ter).

Ora o legislador não distingue quanto a essas duas vertentes da privação do direito e o intérprete também o não deve fazer por a isso se opor uma correcta interpretação sistemática e teleológica do ordenamento jurídico.

E, enquanto privação de um direito, não faria sentido que dele ficasse privado o cidadão que procura cumprir, em parte, as normas (fazendo-se titular do exercício do direito à condução) e o não ficasse o cidadão que demonstra um total desprezo pelas mesmas e que conduz, para além de embriagado, sem título bastante.

A este respeito convém não olvidar duas normas relevantes que demonstram o acerto de uma tal interpretação.

A primeira está contida na al. d) do nº 1 do artigo 126º do Código da Estrada (norma ainda não declarada inconstitucional) que priva o cidadão de se munir de título válido de condução enquanto durar a condenação. Não estar condenado é requisito para a obtenção de título válido para a condução.

A segunda está na origem da existência de um registo de infracções de não condutores, com origem no artigo 10º do Dec-Lei nº 44/2005, de 23-02 (que aprova o Código da Estrada), artigo 144º do CE e Decreto-Lei nº 98/2006, de 6 de Junho que cria o regime de infracções de não condutores (norma ainda não declarada inconstitucional).

De facto, o artigo 1º, al. a) deste diploma estabelece que a Direcção-Geral de Viação (DGV) dispõe de uma base de dados contendo o registo de infracções de não condutores (RIO) cometidas por “indivíduos não habilitados com carta de condução” e tal registo de infracções [artigo 4º, al. e) do diploma] é um ficheiro constituído por dados relativos “à condenação por crime praticado em território nacional, no exercício da condução por pessoa não habilitada para a condução”.

Ambas as normas ou conjunto de normas pressupõem a condenação de agentes condenados e não possuidores de título válido de condução. Pressuposto de existência e eficácia de tais normativos é a prévia condenação em privação do direito a conduzir, logo na condenação à inibição de conduzir.

Por isso que a condenação não é condicional, como afirma a sentença recorrida. A condenação é efectiva e imediata. É uma condenação à privação de um direito, seja um direito já existente, seja a privação da expectativa de ter o direito exercitável na sua esfera jurídica.

Uma tal interpretação aponta para a necessidade de dar conteúdo útil à plenitude do ordenamento jurídico, não fazendo sentido anular, numa correcta interpretação, a previsão de tais normas através de uma interpretação restritiva da norma incriminadora que o elemento literal de interpretação não permite e os elementos lógico, sistemático e teleológico desaconselham.

Assim se conclui ser procedente o recurso interposto.


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Haverá, portanto, que condenar o arguido numa pena acessória de inibição de condução.

Deve fazê-lo este tribunal na estrita medida em que o princípio da plenitude do conhecimento jurisdicional o permite, o qual não deve ceder o passo ao direito de recurso de arguido e Ministério Público, pois que já assegurado a ambos um duplo grau de jurisdição – artigo 2º, nº 2 do Protocolo 7º à Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

Considerando o grau de ilicitude da conduta expresso quantitativamente na taxa de álcool apurada, o dolo directo, a confissão e o comportamento anterior do arguido, vai o mesmo condenado na pena acessória de 5 (cinco) meses de inibição de conduzir.


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C - Dispositivo

Assim, em face do exposto, acordam os Juízes que compõem a Secção Criminal deste tribunal em conceder provimento ao recurso interposto e, consequentemente, revogam parcialmente a sentença recorrida e condenam o arguido na pena acessória de 5 (cinco) meses de inibição de conduzir.

Sem custas.

(elaborado e revisto pelo relator antes de assinado).

Coimbra, 11 de Novembro de 2009

João Gomes de Sousa

Calvário Antunes