Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
364/1999.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERREIRA DE BARROS
Descritores: CAMINHO PÚBLICO
UTILIDADE PÚBLICA
ATRAVESSADOURO
DOMÍNIO PÚBLICO
Data do Acordão: 03/04/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SERTÃ
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Legislação Nacional: ARTIGOS 84º DA CONSTITUIÇÃO E ARTIGOS 1383º E 1384º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. Os bens são do domínio público - para além dos casos de domínio directo e imediato do público - quando assim são classificados pela Constituição ou pela lei ordinária, por deferência daquela.
2. Nos termos do Assento do STJ, de 19.04.1989, “são públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público”.
3. É imprescindível a afectação dos caminhos à utilidade pública, de tal forma que cessando essa utilidade cessa a dominialidade pública.
4. A posse imemorial verifica-se quando um determinado estado de facto teve uma permanência uniforme por um espaço de tempo que excede a memória de todos os homens.
5. Sendo construída uma nova via que passa a ser mais utilizada pelo público que o caminho que atravessa um prédio particular, convertido este caminho em mero atravessadouro deve considerar-se abolido.
Decisão Texto Integral: I)- RELATÓRIO

A....intentou, no Tribunal Judicial da Sertã, acção declarativa, sob a forma de processo sumário, contra B...., pedindo a condenação deste a

a) reconhecer que o prédio rústico inscrito na matriz predial da Sertã sob o art. 5224º lhe pertence na proporção de metade indivisa;
b) abster-se de invadir e entrar em tal prédio ou de o atravessar ou passar pela rodeira ou caminho que descreve no art. 10º da sua petição inicial, e
c) reconstituir e repor o mesmo prédio rústico no estado em que o mesmo se encontrava antes de ter executado obras que identifica nos artigos 10º e 11º do mesmo articulado.

Para tanto, a Autora alegou, em síntese, ter adquirido o aludido prédio rústico por sucessão e que por si e seus antepossuidores, há mais de 20, 30 e 40 anos que vem ocupando, limpando, cultivando e recolhendo madeiras, lenhas e arbustos do mesmo prédio, na convicção de exercer um direito próprio de proprietária na proporção de metade indivisa, ininterruptamente, sem oposição de quem quer que seja. Em finais do mês de Outubro de 1996, o R., utilizando os serviços de uma máquina retroescavadora e respectivo operador que para o efeito contratou, arrancou diversos pinheiros, arbustos e mato e escavou terras no prédio em questão, abrindo assim uma rodeira ou caminho com cerca de 4 metros de largura e cerca de 95 metros de comprimento, ao longo de todo o prédio e no sentido nascente-poente.
Mais acrescentou que o R. passou a utilizar essa rodeira ou caminho que abriu, a pé, de tractor e de camioneta, transportando troncos de árvores e outras madeira que comercializa, de modo continuado e ininterrupto desde Outubro de 1996, sem qualquer autorização ou consentimento da A. e da outra comproprietária C….

Regularmente citado, o R. contestou, por excepção e por impugnação. Arguiu a prescrição do direito, mais sustentando que a C....é tida como única proprietária do prédio e que a mesma concordou com a limpeza, tendo a Junta de Freguesia da Sertã fornecido a máquina para proceder à mesma limpeza e pago as despesas da sua utilização. Mais refere que o caminho que a A. identifica já existia, tratando-se de um caminho público, pelo que também o R. ali transita. Concluiu pela improcedência da acção.

A A. respondeu, impugnando a versão plasmada na contestação e suscitando a intervenção principal provocada da Junta de Freguesia da Sertã, nos termos do art. 325º do C.P.C., a fim de se associar à Ré, uma vez que o articulado da contestação lhe suscitou dúvidas acerca do sujeito passivo da relação material controvertida que configurou no seu articulado, alegando o Réu que a referida Junta de Freguesia é a responsável pela execução das obras de abertura do caminho no terreno da Autora.

Admitido o incidente, a Chamada Junta de Freguesia não contestou.


Prosseguindo os autos a sua normal tramitação, foi, por fim proferida sentença a julgar a acção apenas procedente e provada no que tange ao pedido constante da alínea a) supra, sendo o R. e Junta de Freguesia absolvidos dos demais pedidos.

A Autora não se conformou com a sentença, dela apelando, pugnando pela sua revogação e rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:

1ª-O presente recurso versa sobre matéria de facto e sobre matéria de direito;
2ª-Relativamente à matéria de facto, os concretos pontos de facto da base instrutória que a Recorrente considere incorrectamente julgados são os pontos n.ºs 8 e 10, pelo que se impugna a decisão que sobre os mesmos recaiu, já que aos mesmos deveriam ter sido dadas as respostas que especifica no corpo da alegação, sendo os concretos meios probatórios que impunham tais respostas a própria confissão do R. na sua contestação art. 690º-a, n.º1 do CPC;
3ª-A decisão sobre tal matéria de facto deverá ser alterada nos termos que o R. confessou nos arts. 17,18,19, 21, 24, 44 e 45 da contestação;
4ª-Na presente acção a causa de pedir e o pedido não é a existência de um caminho público e o R. ou a junta de Freguesia da Sertã não deduziram ao Tribunal pedido de declaração de qualquer caminho público;
5ª- Consequentemente está vedado ao Tribunal declarar expressamente, como fez a sentença, que determinado caminho - que não especifica, não concretiza, não delimita e não localiza - é público e com isso fundamentar a improcedência de certos pedidos;
6ª-Ao ter declarado a existência de uma caminho público sem que qualquer das partes lho tivesse requerido e com base nisso, ter julgado os pedidos improcedentes, o Tribunal cometeu a nulidade prevista no art. 668º, n.º1, alínea d) do CPC, sendo nula a sentença;
7ª-O conteúdo do quesito 25 consiste em matéria conclusiva e ou de direito e a expressão “há mais de 70 anos” da resposta aos quesitos 25 e 26 não foi alegada pelas partes pelo que deve tal matéria considera-se como não escrita nos termos dos arts. 511º e 664º do CPC;
8ª-A Junta de Freguesia, estando nos autos, não tomou posição inequívoca quanto à existência do “tal” caminho público, nomeadamente requerendo ao Tribunal que expressamente o declarasse;
9ª-Tendo-se provado a compropriedade da A. sobre o prédio em questão, tendo-se provado que o R. fez obras nele e vem utilizando tal prédio sem autorização da A-. e não havendo causa ou fundamento jurídico para tal, o Tribunal deveria ter julgado procedente todos os pedidos e consequentemente condenar o R. e Junta de Freguesia.
10-Foram violados os arts. 511º, 559º, 660º-2, 664º, 668º, n.º1, alínea d), do CPC.


O Réu contra-alegou em defesa do decidido.

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.


II)- OS FACTOS

Na sentença impugnada foi dada por assente a seguinte factualidade:

1-Encontra-se inscrito na matriz sob o artigo 5224º o prédio rústico denominado terra de pinhal e cultura, com a área de 4.150m2, sito em Vilar de Carga, freguesia e concelho da Sertã, que confronta de norte com B…., sul com Abílio....., nascente com caminho e outros e poente com caminho.

2. Em 05.11.96, o Mandatário da A., e a seu pedido, enviou ao R. a carta na qual lhe comunicou que lhe proibia a entrada no seu terreno , exigindo-lhe que o repusesse no estado em que se encontrava antes da execução das aludidas obras, carta que foi recebida pelo R. em 06.11.96.

3. A A. adquiriu a propriedade e posse do prédio referido em 1, na proporção de metade indivisa, por sucessão hereditária aberta por morte de António Francisco, ocorrida em 25.01.62.

4. Foi adjudicado à Autora e a C…., na proporção de metade indivisa para cada uma, tendo a respectiva partilha sido homologada por Sentença de 7 de Julho de 1977 a qual foi devidamente notificada e transitou em julgado (cfr. certidão junta com a P.I. como doc. nº 2).

5. O mesmo prédio, na Descrição de Bens no citado Inventário, encontra-se descrito sob a verba nº 9 a qual inclui, quer esse mesmo prédio rústico, que então se encontrava inscrito na matriz sob o artigo 15.416, quer um prédio urbano nele edificado composto de casa de habitação que então se encontrava inscrito na matriz sob o artigo 2.781.

6. Após novas avaliações dos prédios rústicos realizadas no Concelho da Sertã, esse mesmo prédio rústico (artigo 15.416) passou a ter nova descrição matricial que é a que se refere em 1. e passou a estar inscrito na matriz sob o artigo 5224º.

7. A A. por si e antepossuidores desde há mais de 20, 30 e 40 anos que vem detendo e possuindo o prédio identificado em 1., ocupando-o, cultivando-o, limpando-o, recolhendo dele madeiras, lenhas e arbustos, e pagando os respectivos impostos, o que fez e vem fazendo na convicção de exercer sobre tal prédio um direito próprio de proprietária e na proporção de metade indivisa, à vista de toda a gente, sem oposição de quem quer que seja, na convicção de não lesar direitos de outrem, ininterrupta e continuadamente.

8. No decurso do ano de 1996, uma máquina retroescavadora e respectivo operador arrancaram mato e remexeram terras no terreno identificado em 1. sob a orientação do R., B.....

9. Os trabalhos mencionados em 10. concretizaram-se numa largura de cerca de 3,50 metros e 95 metros de cumprimento, ao longo de todo o prédio e no sentido nascente-poente.

10. A utilização da máquina em tais obras foi paga pela Junta de Freguesia da Sertã.

11. A pedido de C…, a máquina alisou e arranjou um pequeno largo situado junto da sua casa.

12. Desde há mais de setenta anos que as pessoas atravessam o terreno referido em 1º, de pé, com animais e com carros de tracção animal, utilizando-o de uma para outra povoação ou para as suas propriedades, convictas de que o podiam fazer.

13. Até há cerca de 30 anos, a passagem pelo prédio referido em 1º era o caminho mais utilizado de pé, com animais e carros de tracção animal para ligação de Vilar da Carga aos lugares de Ribeiro do Vilar, Corga Longa, Cabeço Macieiro, Vale da Artéria e Ribeira da Cilha.

III)- MÉRITO DO RECURSO

Como se sabe, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões da Recorrente, importando, pois, resolver apenas as questões aí suscitadas e conhecidas na 1ª instância, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras ou cujo conhecimento oficioso se imponha (arts. 690º, n.º1, 84º, n.º3 e 660º, n.º2, todos do CPC).

Em face do exposto, a Autora/Recorrente pretende pronúncia sobre as seguintes questões:

1ª- Modificabilidade da decisão de facto;

2ª- Nulidade da sentença e qualificação jurídica dos factos.

III-1)- Vejamos a 1ª questão.

Considera a Recorrente incorrectamente julgados os pontos de facto n,ºs 8 e 10 da base instrutória, bem como o ponto de facto n.º25.

Não tendo sido gravados os depoimentos prestados na audiência de julgamento, argumenta a Recorrente, no que concerne aos pontos n,ºs 8 e 10, com a confissão do Réu, ou seja, com factos alegados na contestação. Defende, ainda, ser conclusiva e de direito a matéria vertida no ponto de facto n.º 25, considerando-se não escrita (art. 646º, n.º 4 do CPC).

O ponto n.º 8 base instrutória é do seguinte teor:

“Em finais do mês de Outubro de 1996, o Réu utilizando serviços de uma máquina retroescavadora e respectivo operador arrancou diversos pinheiros, arbustos e mato escavou terras no terreno identificado na alínea A)?

A tal ponto de facto respondeu-se restritivamente, ou seja, provado apenas que no decurso do ano de 1996, uma máquina retroescavadora e respectivo operador arrancaram mato e remexeram terras no terreno identificado em A).

Ora sobre essa matéria o Réu, nos arts. 17 a 21 da contestação, diz o seguinte:

“Na primeira quinzena de Setembro de 1996, com a utilização de uma máquina, o Réu orientou a regularização, alisamento e limpeza do leito do caminho público ou estrada que, em parte, atravessa o prédio que a Autora diz ser seu, não sendo verdade que tenha contratado essa máquina para fazer esse trabalho, pois que ela lhe foi fornecida para o efeito pela Junta de Freguesia da Sertã”.

Assim alegando, o Réu aceita ter utilizado os serviços de uma máquina retroescavadora, estando tal facto plenamente provado por confissão, porque desfavorável (art. 352º do CC).

Justifica-se, nessa conformidade, alterar a resposta ao ponto de facto n.º 8, pela seguinte forma:

“No decurso do ano de 1996, o Réu com a utilização de uma máquina retroescavadora, e respectivo operador que orientava, arrancou mato e remexeu terras no terreno identificado em A)

Pelo que respeita ao ponto de facto n.º 10º da base instrutória, verifica-se estar assim redigido:

“Após isso o R. passou a utilizar essa rodeira ou caminho que abriu a pé, de tractor e de camioneta, transportando troncos de árvores e outras madeiras que comercializa, o que vem fazendo continuada e ininterruptamente desde Outubro de 1996 até à data de entrada em juízo da petição inicial?

A resposta foi negativa.

Mas o Réu confessa tal factualidade?

No art. 45º da contestação, alega o Réu “é exacto que o Réu, como quaisquer outras pessoas, entre as quais a própria C…., utilizaram aquele caminho também para transporte de madeiras, com tractores e veículos pesados, o que foi feito antes e depois da realização daquelas obras de limpeza e regularização do caminho”.

Ou seja, o Réu reconhece expressamente utilizar o caminho para o transporte de madeiras, com tractores e veículos pesados, depois das obras efectuadas no caminho.

Sendo assim, deve ser alterada a resposta ao quesito 10º, pela seguinte forma:

Após isso, o Réu passou a utilizar esse caminho onde arrancou mato e remexeu terras, transportando madeiras com tractores e camionetas”.

No que toca ao ponto de facto n.º 25 da base instrutória, está este assim redigido:

“Desde tempos imemoriais que dele tem sido feito pelo público um uso directo e imediato?”

A resposta dada em conjunto à matéria do ponto de facto n.º 26, foi a seguinte:

“Provado apenas que desde há mais de 70 anos as pessoas atravessam o terreno referido em A) de pé, com animais e com carros de tracção animal, utilizando-o de uma para outra povoação ou para as suas propriedades, convictas de que o podiam fazer”.

Salvo o devido respeito pela tese da Recorrente, sendo embora certo que “uso “directo e imediato pelo público” constitui matéria conclusiva, todavia a resposta englobando a matéria do ponto de facto n.º 26, reporta já a factos concretos. Consequentemente, tal matéria não é de considerar não escrita ao abrigo do n.º4 do art. 646º do CPC.

III-2)- Analisemos, agora, a 2ª questão.

a)- A sentença está ferida de nulidade porque o Julgador conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento?

Na tese da Recorrente, “o Tribunal não pode oficiosamente declarar a existência de um caminho público, sem ter havido um pedido formal nesse sentido e, como tal, ao declarar tal dominialidade, o Tribunal a quo cometeu uma nulidade, a qual se invoca para todos os efeitos legais, nos termos do art. 668º, n.º1 alínea c) do CPC”.

Mesmo a existir a apontada nulidade, diga-se, este Tribunal não deixaria de conhecer do objecto da apelação (n.º1 do art. 715º do CPC). Mas afinal verifica-se a nulidade da sentença por excesso de pronúncia?

Como acima se relatou, o Réu, na contestação, negou ter violado o direito de compropriedade da Autora ou praticado acto ilícito, porque efectuou as obras em caminho público que atravessa o prédio da Autora. E nos arts. 39 a 46º aduziu factualidade a consubstanciar a dominialidade pública que foi vertida nos pontos de facto 24º a 27º da base instrutória.

Tal factualidade constitui matéria de excepção, como, aliás, correctamente a Autora qualifica na sua resposta à contestação (cfr. art. 7º), impugnando a dominialidade pública do caminho.

Trata-se de factualidade que impede o direito invocado pela Autora (n.º2 do art. 341º do CC), e obviamente de questão a ser conhecida pelo Tribunal porque submetida a apreciação. E também evidente que o Réu não era obrigado a formular em reconvenção o pedido de condenação da Autora a reconhecer o caminho como público, bastando excepcionar com a pertinente factualidade. Se deduzisse reconvenção então sim a existência do caminho público constituiria causa de pedir e teria de ser declarada ou não a sua existência contra a Autora (cfr. conclusão 4ª. E por isso ao reconhecer o caminho como público, julgando procedente a excepção, o Tribunal a quo não conheceu de questão de que não podia tomar conhecimento, bem pelo contrário era obrigado por lei a conhecê-la ( n.º2 do art. 660º do CPC). Se não conhecesse de tal questão estaria, sim, a cometer uma nulidade por omissão de pronúncia.

Sem necessidade de mais considerações, por inúteis, é de concluir que a sentença não padece da apontada nulidade.

b)- Curemos, agora, de saber se o Réu logrou provar o substrato fáctico a preencher a noção de caminho público.

A este respeito, provou-se o que consta dos n.ºs 12 e 13 da factualidade assente, ou seja,

Desde há mais de setenta anos que as pessoas atravessam o terreno referido em 1º, de pé, com animais e com carros de tracção animal, utilizando-o de uma para outra povoação ou para as suas propriedades, convictas de que o podiam fazer;

E

Até há cerca de 30 anos, a passagem pelo prédio referido em 1º era o caminho mais utilizado de pé, com animais e carros de tracção animal para ligação de Vilar da Carga aos lugares de Ribeira do Vilar, Corga Longa, Cabeço Macieiro, Vale da Artéria e Ribeira da Cilha”.

No tocante à fundamentação teórica da publicidade das coisas, o direito positivo adoptou o critério da classificação ou enumeração específica, complementado, quanto aos bens do Estado, com um índice de evidência de dominialidade assente no uso directo e imediato do público Cfr. acórdãos do STJ, publicado no BMJ n.º 453º, p. 211, na CJ 1993, 1º, p. 115, . Coisas públicas são as expressamente submetidas por lei ao domínio público de uma pessoa colectiva de direito público e subtraídas ao comércio jurídico privado em razão da sua primacial utilidade colectiva. Assim, os bens são dominiais - para além dos casos de domínio directo e imediato do público- por declaração da Constituição Art. 84º da CRP ou da lei ordinária, por deferência daquela.

Procurando pôr cobro a divergências jurisprudenciais, e fora dos casos em que a lei catalogava ou definia expressamente a dominialidade pública dos bens, por acórdão do STJ, com a data de 19.04.1989, publicado no DR, I, de 2.6.1989 Também publicado no BMJ n.º 386º, p. 121., foi proferido o seguinte Assento Hodiernamente com o valor de Acórdão de Uniformização de Jurisprudência (arts. 732º-A e 732º-B do CPC) ex vi do art. 17º, n.º2 do DL n.º 329-A/95, de 12 de Dezembro. :

“São públicos os caminhos que, desde tempos imemoriais, estão no uso directo e imediato do público” Nos termos desse Assento, tornou-se desnecessária a aquisição ou produção, a administração ou conservação pelos órgãos públicos, para que um caminho seja considerado público. .

Posteriormente, a jurisprudência conhecida do STJ passou a perfilhar, sem discrepância, uma interpretação restritiva de tal Assento, no sentido de a publicidade dos caminhos exigir ainda a sua afectação à utilidade pública Cfr., entre outros, os acórdãos do STJ, publicados na CJ 2004, 1º, p. 19, na CJ 1993, 3º, p. 135, na CJ 2002, 3º, p. 139, na CJ 2000, 2º, p. 117, na CJ 2002, 3º, p. 140, de 14.10.2004, acessível em www.dgsi.pt Cfr. ainda, acórdãos desta Relação, publicados na CJ 2003, 2º, p. 5 e na CJ 1997, 4º, p. 37. , ou seja, o uso dos caminhos visar a satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância. Assim quando se destinem apenas a fazer a ligação entre caminhos públicos por prédio particular, com vista ao encurtamento não significativo de distâncias, os caminhos devem classificar-se como atravessadouros. Com efeito, a afectação à utilidade pública, que consiste na aptidão das coisas para satisfizer necessidades colectivas, traduz o verdadeiro fundamento da sua publicidade ou é requisito essencial da dominialidade. Ou toda a dominialidade pública pressupõe um índice evidente de utilidade pública, sendo legitimada pelo objectivo de satisfação de interesses colectivos de certo grau ou relevância Cfr. Manual de Direito Administrativo, vol. 2º, 9ª edição, p. 864, de Marcelo Caetano; acórdãos do STJ, no BMJ n.º 453º, p. 211 e na CJ 1993, 3º, p. 137.. Daí que cessando a utilidade pública que um caminho visava prosseguir cessa a dominialidade pública, caracterizando uma desafectação tácita da utilidade pública Cfr. acórdão do STJ, publicado na CJ 2004, 1º, p. 22 e acórdão do STJ, de 14.10.2004, acessível em www. dgsi. pt e Parecer de Freitas do Amaral, publicado na CJ 1989, 1º, p. 9. . Não se interpretando restritivamente tal Assento, tal significaria que os atravessadouros com longa duração teriam de ser qualificados como dominiais, em manifesta violação do preceituado nos arts. 1383º e 1384º do CC, que apenas ressalvam os que se dirijam a ponte ou fonte de manifesta utilidade, enquanto não existirem vias públicas destinadas à utilização de uma ou outra. Naqueles casos os atravessadouros consideram-se abolidos por não satisfazerem um interesse público relevante, apenas encurtando distâncias entre vias públicas.

A afectação é o acto ou prática que consagra a coisa à produção efectiva de utilidade pública, havendo uso directo quando o indivíduo pode tirar proveito pessoal da coisa pública, e o uso imediato ocorre faz-se quando os indivíduos, sem discriminação, o público em geral, aproveitam os bens sem ser por intermédio dos agentes de um serviço público Obra citada de Marcelo Caetano, p. 897, , 898 e 904. .

A posse ou tempo imemorial é o período de tempo cujo início é tão antigo que as pessoas já não se recordam, por ter desaparecido da memória dos homens pela sua antiguidade. É imemorial a posse, se os vivos não sabem quando começou, quer por observação directa, quer por informações que lhes chegaram dos seus antecessores. Ela verifica-se quando um determinado estado de facto teve uma permanência uniforme por um espaço de tempo que excede a memória de todos os homens Cfr., a este respeito, Código Civil Anotado, vol. 3º, 1972, p. 254, de Pires de Lima e Antunes Varela; acórdãos do STJ publicados na CJ 2002, 3º, p. 142, na CJ 2004, 1º, p. 21, no BMJ n.º 422º, p. 355, de 08.05.2007, acessível em www.dgsi.pt; desta Relação na CJ 2003, 2º, p. 8 e da Relação do Porto, sumariado no BMJ n.º 212º, p. 291;“A Posse”, 1996, p. 297, de Manuel Rodrigues. .

Após este breve excurso jurídico e jurisprudencial sobre a qualificação de um caminho como público, revertendo, agora, ao caso dos autos, sendo embora certo o trânsito das pessoas, de pé, com animais e carros de tracção animal, falha, desde logo, o carácter imemorial da posse, ao considerar-se provado que “desde há mais de setenta anos que as pessoas atravessam o terreno referido em 1º”, ou seja, o prédio rústico de que a Autora é comproprietária Cfr. acórdãos do STJ, publicados no BMJ n.º 422º, p. 355 e na CJ 2002, 3º, p. 142 e da Relação do Porto, na CJ 2000, 2º, p. 203. . E quando se perguntava no ponto n.ºs 25º e 26º da base instrutória se “desde tempos imemoriais”. Contrariamente à tese da Ré, não sendo conclusiva ou de direito tal resposta, significa claramente, porém, que o início da posse não se perde na memória dos homens pela sua antiguidade, e era isso que importava provar.

Além do mais, está também provado que até há cerca de 30 anos a passagem pelo prédio da Autora era o caminho mais utilizado de pé, com animais e carros de tracção animal, tal significando que a sua utilidade pública perdeu relevância. Assim se compreende ter o Réu alegado na contestação que o caminho estava com piso irregular e invadido de vegetação. Alegou mesmo que até há cerca de 40 anos era o único caminho que existia para fazer a ligação entre povoações. Ocorreu, pois, uma alteração nessa área geográfica, uma mudança de situações, porque outra via, desde há cerca de 30 anos, passou a satisfazer com vantagem os interesses do público, porque mais utilizada, estando o caminho que atravessa o prédio rústico da Autora convertido em mero atalho ou atravessadouro destinado apenas a encurtar distâncias, só admitido pela lei em casos muito limitados. A satisfação do interesse colectivo transferiu-se assim para uma outra via. Cfr.acórdão desta Relação, publicado na CJ 1997, 4º, p. 37. Significativamente está provado que as obras foram efectuadas no prédio da Autora ao longo de todo o prédio no sentido nascente-poente, as pessoas atravessam o terreno da Autora e a passagem pelo prédio referido era o caminho mais utilizado até há cerca de 30 anos (cfr. n.ºs 8, 9, 12 e 13 da factualidade assente). Não deixa, aliás, de ser estranho, defendendo o Réu a dominialidade pública do caminho, ter alegado na contestação que obteve a prévia concordância de uma das comproprietárias (C….) para efectuar as obras no caminho, como é de estranhar a falta de intervenção no processo da Junta de Freguesia da Sertã, uma vez provocado o seu chamamento perante a dúvida, suscitada na contestação, sobre o sujeito passivo da relação controvertida e estando em causa matéria relacionada com a dominialidade pública de um caminho.

Em suma, porque não apuradas quer a posse imemorial, quer a satisfação de um interesse colectivo de certo grau ou relevância a partir de uma certa data, não é de qualificar como público o caminho que atravessa o prédio rústico de que a Autora é comproprietária. O leito do caminho integra, pois, este prédio rústico e é uma ligação de menor interesse, sendo de qualificar como atravessadouro. A principal característica dum atravessadouro ou atalho é o da passagem do público se fazer através de prédios particulares com vista ao simples encurtamento de distâncias.

E uma vez apurado ter sido o Réu o autor das obras, passando ainda a utilizar o caminho transportando madeiras com tractores e camionetas, a sua conduta qualifica ofensa ou perturbação do direito de propriedade da Autora, porque o proprietário goza de modo pleno e exclusivo dos direitos de uso, fruição e disposição das coisas que lhe pertencem, dentro dos limites da lei e observância das restrições por ela impostas (art. 1305º do CC). Sendo exclusivo o direito de propriedade, o seu titular pode exigir que os terceiros se abstenham de invadir a sua esfera jurídica, quer usando ou fruindo a coisa, quer praticando actos que afectem o seu exercício. Assiste, pois, direito à Autora a peticionar a condenação do Réu pela forma que o faz.

Pugnando a Recorrente pela também condenação da Chamada Junta de Freguesia da Sertã, a factualidade assente apenas demonstra que a utilização da máquina nas obras foi paga por essa Junta, insuficiente para lhe imputar a autoria dos factos ilícitos ou concluir que tivesse ordenado a feitura das obras.

Procedem, pois, só em parte as conclusões da alegação.

IV)- DECISÃO

Nos termos e pelos fundamentos exposto, acorda-se em:

1-Conceder parcial provimento ao recurso.

2-Revogar em parte a sentença impugnada, indo o Réu também condenado a abster-se de invadir e de entrar no prédio rústico acima identificado ou de o atravessar pelo caminho referido no art. 10º d petição, e ainda a repor e reconstituir o mesmo prédio rústico no estado em que o mesmo se encontrava antes de ter executado as obras acima referidas.

3-As custas na 1ª instância ficam a cargo do Réu, sendo as custas do recurso suportadas pela Autora e Réu, na proporção, 1/5 e 4/5, respectivamente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido ao Réu.

COIMBRA,

(Relator- Ferreira de Barros)

(1º Adj.- Des. Helder Roque)

(2º Adj.- Des. Távora Victor)