Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
158/19.5GABBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE JACOB
Descritores: VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
ESTRUTURA TÍPICA
RELAÇÃO DE DEPENDÊNCIA OU DE DOMÍNIO
RELAÇÃO PRESENTE OU PRETÉRITA
Data do Acordão: 09/22/2021
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA – J1)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART. 152.º DO CP
Sumário: I – O crime de violência doméstica é uma forma especial de crime de maus-tratos e que se encontra também numa relação de especialidade com os crimes de ofensa à integridade física, de ameaça, de coacção, de sequestro, de importunação sexual, de coacção sexual, de abuso sexual de menores dependentes e ainda com os crimes contra a honra.

II - A estrutura típica do crime p. e p. no artigo 152.º do CP não exige a verificação de qualquer relação de dependência ou de domínio exercida pelo autor desse ilícito sobre a vítima.

III – A opção pelo tipo do artigo 152.º, em detrimento da opção por um dos crimes que tutelam singularmente bens jurídicos por aquele atingidos, impõe a ocorrência de um aliud, que consiste precisamente na circunstância de a prática do crime de violência doméstica ser indissociável da relação presente ou passada prevista no normativo indicado. Se é possível estabelecer o nexo entre os maus tratos e a relação presente ou pretérita, ocorre violência doméstica; se, pelo contrário, esse nexo não pode ser estabelecido, a imputação deverá fazer-se pelo tipo de crime que a factualidade objectivamente representa.

Decisão Texto Integral:




Acordam em conferência no Tribunal da Relação de Coimbra:

I – RELATÓRIO:

Nos autos de processo comum (juiz singular) supra referenciados, que correram termos pelo Juízo Local Criminal das Caldas da Rainha – Juiz 1, no final da audiência de discussão e julgamento foi proferido despacho alterando a qualificação jurídica do crime de que vinha acusado o arguido H…

           

Inconformado, recorre o Ministério Publico, retirando da motivação do recurso as seguintes conclusões:

A - Nos presentes autos, foi realizada Audiência de Discussão e Julgamento, conforme consta da “Ata” de fls. 213 e finda a produção de prova, pela Mma Juiz foi proferido despacho em que se considerou não existir uma relação de domínio do arguido sobre a vítima ou de subjugação da vítima sobre o arguido, pelo que alterou a qualificação jurídica para dois crimes de ofensa à integridade física simples p. e p. pelo art.º 143º, nº1 do C.P., ameaça agravada p. e p. pelos art.º 153º e 155º nº1 alínea a) do C.P. e injúria p. e p. pelo art.º. 181º nº1 do C.P.

Discorda-se da argumentação aduzida no despacho descrito, por duas ordens de razões:

B - A alteração da qualificação jurídica encontra-se prevista no artigo 358º nº 3 do CPP e consiste numa reapreciação dos factos constantes da acusação, sem que lhes seja feita qualquer alteração, subsumindo-os a novos tipos de ilícito, diferentes daqueles que constavam da acusação.

C - É ainda necessário:

            a) que ela seja verificada pelo juiz, quer de instrução quer de Julgamento, é necessário que exista produção de prova - Acórdão do STJ n.º 11/2013 de Fixação de Jurisprudência in DR de 19.07.2013 ;

            b) que ela opere para um crime menos grave, se a pena que resultar da nova qualificação for, abstratamente, mais grave para o arguido, já não poderá ter lugar a aplicação do nº3 do artigo citado- in Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do CPP, em anotação ao artigo 358º;

            c) que o crime que resulta da nova qualificação jurídica deve estar fora da hierarquia do crime base, ou seja uma simples desqualificação do crime não integra o conceito em causa.

D - Não concordamos com a alteração efectuada no despacho recorrido, porquanto os crimes resultantes da alteração da qualificação jurídica são um minus em relação ao crime de Violência Doméstica, pelo que esta “desqualificação” não careceria de qualquer comunicação.

E - Nos termos do disposto pelo artigo 152º do C.P., o crime de violência Doméstica tem dois elementos objectivos: a existência de maus-tratos e a qualidade da vítima.

F - Os maus tratos poderão ser físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais, pode-se tratar de um acto isolado, que assuma gravidade bastante, ou de várias actuações reiteradas, iguais ou diversas entre si, de maior ou menor gravidade. Os factos praticados pelo agente podem integrar a prática de outro tipo de ilícito, (quer sejam ofensas à integridade física, injúrias, ameaças, etc,) ou podem não integrar, sendo factos que isolados não preencham outro tipo de ilícito, (como actos de humilhação por ex.)

G - Depois, é necessário que a vítima seja:

            a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

            b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

            c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

            d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

H - Existe ainda um elemento subjetivo, que não estando previsto na letra da lei, se retira do seu espírito: Agir com intenção de maltratar uma das pessoas mencionada.

I – [1]

J - Pelo exposto, concluímos que sempre que alguém inflige maus tratos a uma das pessoas mencionas no artigo 152º C.P., querendo fazê-lo e agindo de forma livre voluntária e consciente comete o crime de violência doméstica.

K - Nestes termos, discordamos de qualquer entendimento ou construção que exija algum elemento do tipo, objectivo ou subjectivo, além dos já mencionados e previstos na lei, tal como a subjugação da vítima ou uma relação de domínio e do arguido para com a vítima.

L - O crime de Violência Doméstica é um crime complexo, que absorve muitas realidades e diversos níveis de gravidade. Podendo existir a tal relação de domínio, a subjugação ou, simplesmente, não existir.

M - Entendemos que o bem jurídico aqui protegido é a dignidade humana. Ou seja, se a vítima está numa posição de vulnerabilidade, quer seja devido à idade, às suas condições físicas ou psíquicas ou até pelo amor ou paixão que sente por outra pessoa e se esta pessoa, consciente dessa posição vulnerável a maltrata, atinge de forma grave a sua dignidade e comete um crime de Violência Doméstica.

N - Nestes termos, discorda-se do douto despacho ora recorrido, por duas ordens de razões, caso se considere que não se verifica o conceito de maus-tratos, deverá afastar-se o crime de Violência Doméstica, verificando-se então se existem, ou não, outros tipos de crimes, sem que exista necessidade de alterar a qualificação jurídica dos factos.

O - Se existem maus-tratos e a vitima assuma uma das qualidades referidas no artigo em causa, terá então de se apurar da existência do elemento subjetivo, para concluir pela condenação, ou não do arguido.

P - Pelo exposto deve o presente despacho ser declarado nulo e, em consequência, serem os factos e a qualificação jurídica observados, em sede de Sentença, tal como constam da Acusação.

Nesta instância, o Exm.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer pronunciando-se pela procedência do recurso.

Foram colhidos os vistos legais e teve lugar a conferência.

O âmbito do recurso, segundo jurisprudência constante, afere-se e delimita-se pelas conclusões formuladas na respectiva motivação, sem prejuízo do que deva ser oficiosamente conhecido, donde se segue que no caso vertente são as seguintes, as questões a conhecer:

- Os crimes resultantes da alteração da qualificação jurídica são um minus relativamente ao crime de violência doméstica, constituindo uma mera desqualificação deste crime?

- Sempre que alguém inflige maus tratos a uma das pessoas mencionadas no art. 152º do Código Penal, querendo fazê-lo e agindo de forma livre, voluntária e consciente, comete o crime de violência doméstica, não se exigindo, para a verificação deste crime, qualquer outro elemento, nomeadamente, uma relação de subjugação ou de domínio?

II – FUNDAMENTAÇÃO:

O despacho recorrido tem o seguinte teor:

Nos presentes autos, o arguido H. vem acusado da prática em autoria material e na forma consumada de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152º, nº1 al. d) do C.P.

Da audiência de julgamento, e das declarações que o arguido aqui prestou na presente audiência de julgamento verifica-se que, efetivamente, arguido e ofendida terão vivido em condições análogas às dos cônjuges durante vários anos, estando separados há pelos menos 12 anos e sendo que nestes últimos anos têm mantido um relacionamento cordial entre si no âmbito do qual existe até algum auxilio quer por parte do arguido à ofendida a titulo financeiro, quer por parte da ofendida ao arguido a titulo de ajuda no tratamento das suas roupas, uma vez que o mesmo vive sozinho e sem qualquer companhia no momento presente.

Há cerca de 2 anos a esta parte terá ocorrido um desentendimento entre ambos o qual terá levado a desentendimentos e a discussões mantidas e que se encontram aqui em análise dos autos no âmbito das quais a ofendida imputa ao arguido a prática dos factos que se encontram narrados na acusação e o arguido vem a negar a prática destes mesmo factos.

O crime pelo qual o arguido vem acusado, concretamente o crime de violência doméstica que se encontra previsto no artº 152º nº1 al. d) do C.P. pressupõe a existência de um comportamento de maus tratos físicos ou psíquicos, designadamente a pessoa com a qual o arguido tenha mantido uma relação análoga à dos cônjuges, nos termos das condições ali descritas.

Tendo em conta que arguido e vitima mantiveram uma relação análoga à dos cônjuges dos factos que constam do presente processo, poderiam caber no enquadramento jurídico que vem descrito na acusação, porém para que estejamos em face de um crime de violência doméstica e não dos outros crimes que o mesmo abrange exige que existam uma especial relação entre arguido e vitima que esteja diretamente relacionados com uma relação familiar ou para-familiar entre ambos e diretamente direcionada a esta, designadamente é necessário que o ofendido esteja numa concreta missão de subjugação relativamente ao seu agressor que seja arguido no processo.

Ora nos presentes autos e do conjunto da prova produzida afigura-se-nos que os factos que se encontram narrados na acusação, cuja verificação ou não cumpre proceder em sede de sentença, tendo em conta a descrição factual que foi efetuada pelo arguido, pela ofendida e pelas testemunhas arroladas pela acusação nada têm que ver quer com uma relação análoga à dos cônjuges que os mesmos mantiveram quer com a situação de eventual subjugação da ofendida relativamente ao arguido. Afigura-se-nos que efetivamente há um desentendimento, um desentendimento que comporta alguns comportamentos de parte a parte que terão de ser analisados nos presentes autos mas que estes desentendimentos não atingem a gravidade nem a dimensão que lhes permita a sua caraterização como um crime de violência doméstica.

Nesta conformidade e analisando os factos que se encontram narrados no ponto 2 da acusação são em abstrato suscetíveis de configurar a prática de um crime de ameaça e os factos que se encontram narrados nos pontos 3 e 5 da acusação pública são suscetíveis de configurar a prática de um crime de injúria, e os factos que se encontram narrados no ponto 4 da acusação, são suscetíveis de configurar a prática de um crime de ofensa à integridade física ainda que na forma tentada, decido proceder à alteração da qualifica jurídica dos factos ali descritos para os efeitos do disposto no art.º 358º nº1 e nº3 do C.P.P., passando os autos a correr termos sobre a qualificação jurídica agora efetuada, um crime de ameaça p. e p. pelo art.º 153º, do C.P., um crime de ofensa à integridade física na forma tentada, p. e p. pelo art.º 143º, nº 1 do C.P. e ainda um crime de injúria p. e p. artigo 181º, nº1 do C.P., alterada a qualificação jurídica, concede-se neste momento à defesa a palavra, para querendo requerer prazo adicional para a preparação da defesa.

Vejamos então as questões suscitadas, ainda que invertendo, por comodidade de exposição, a ordem por que foram alegadas pelo recorrente.

A posição sustentada no recurso assenta no pressuposto de que sempre que alguém inflige deliberadamente maus tratos a uma das pessoas mencionadas no art. 152º do Código Penal, verificados que sejam os requisitos do dolo e a autonomia da vontade, comete o crime de violência doméstica, não se exigindo qualquer outro requisito para a verificação do tipo legal.

Esta concepção é, no entanto, redutora, no que concerne ao alcance da própria letra da lei, como se verá:

O art. 152º, nº 1, do Código Penal, na redacção vigente à data da prática dos factos, dispunha da forma seguinte:

Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:

a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;

b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;

c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou

d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite;

é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.

A redacção deste tipo legal evidencia um crime complexo, abrangendo uma multiplicidade de situações que têm como fio condutor a verificação de uma relação de grande proximidade, presente ou pretérita, entre o agente e a vítima. A prática do crime pressupõe uma actuação do agente, que poderá ou não ser reiterada, infligindo maus tratos físicos ou psíquicos, aí abrangidos castigos corporais, privações da liberdade ou ofensas sexuais a qualquer das pessoas referidas nas alíneas a) a d) supra transcritas.

É notório que este crime tutela uma pluralidade de bens jurídicos, que encontram autónoma protecção noutros tipos legais. A subsunção dos factos terá lugar em relação ao crime de violência doméstica quando houver lugar a um agravamento do juízo de censura referente à violação de pelo menos um dos bens jurídicos a que a norma alude, pela circunstância de esses bens serem ofendidos no âmbito de uma relação de coabitação ou de uma relação familiar, ou análoga, ainda que sem coabitação, ou após o termo dessa relação, mas como consequência dela. É em função dessa circunstância que se determina a relação de especialidade entre cada um daqueles tipos legais e o tipo de violência doméstica, aceitando-se, pois, que o crime de violência doméstica é uma forma especial do crime de maus-tratos e que se encontra também numa relação de especialidade com os crimes de ofensas à integridade física, de ameaças, de coacção, de sequestro, de importunação sexual, de coacção sexual, de abuso sexual de menores dependentes e ainda com os crimes contra a honra [2].

A opção do legislador na tipificação do ilícito actualmente constante do art. 152º do Código Penal terá decorrido essencialmente da generalização da percepção de que as condutas hoje integradas naquele tipo legal constituíam um grave problema social e familiar, transversal à generalidade das ordens jurídicas, carecido de urgente atenção legislativa. Não terá sido alheio ao pensamento legislativo o reconhecimento de que o tipo de relações em causa tem a potencialidade de gerar situações de dominação e de sujeição ou dependência, criando uma vulnerabilidade que pode propiciar um tratamento humilhante, de amesquinhamento, ou mesmo degradante. Porventura por força dessa constatação sectores consideráveis da doutrina, como da jurisprudência, acentuaram a relação de domínio ou de dependência e as vulnerabilidades daí resultantes. A evolução doutrinal e jurisprudencial veio apontar novos caminhos, afastando a necessidade de verificação de qualquer relação de dependência, esgrimindo, entre outros argumentos, a ausência de referência, na formulação legal, de semelhante requisito.

O desenvolvimento da elaboração jurídica relacionada com o tema conduziu-nos à alteração de posição que anteriormente sustentámos, essencialmente no que respeita à necessidade de verificação de uma relação de domínio que, aceitamos agora, não terá necessariamente que existir. Não se segue, porém, que como consequência se possa aceitar um generalizado recurso ao tipo legal em apreço como decorrência do simples facto de a ofensa de um dos bens jurídicos abrangidos pela tutela proporcionada pelo tipo legal do art. 152º ocorrer no âmbito de uma relação presente ou passada entre o agente e uma das pessoas mencionadas nas alíneas daquele normativo. O elemento objectivo do tipo legal de crime em apreço, na formulação a que nos reportamos (o tipo legal sofreu recentíssima alteração, introduzida pela lei nº 57/2021, de 16 de Agosto) consiste em infligir maus tratos físicos ou psicológicos a uma das pessoas indicadas nas várias alíneas do nº 1 do art. 152º. Este conceito de mus tratos físicos ou psíquicos é preenchido por recurso aos elementos integradores dos tipos-de-crime que integram os maus tratos, aí abrangidos todos os tipos que tutelem a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra. Ocorre, relativamente a tais ilícitos, uma relação de especialidade que conduz a que uma vez verificados os elementos de um tipo de crime que tutele um dos bens jurídicos apontados e sendo o crime praticado no âmbito de uma das relações que acima se indicaram, na sua pendência ou depois de finda, mas desde que por causa dela, a factualidade em causa será subsumível ao crime de violência doméstica.

Poderia objectar-se que o último elemento que indicámos, a exigência de que a ofensa ocorra por causa da relação presente ou passada, à semelhança do que sucede com a exigência de uma relação de dependência ou de domínio, não consta do tipo legal. Contudo, apenas aparentemente assim sucede.  A análise do tipo legal deverá fazer-se sem desconsiderar os elementos vertidos no texto da norma, mas fazendo apelo, também, a todo o conteúdo útil resultante do seu (con)texto. Explicitando mais detalhadamente esta linha de raciocínio e a essência da nossa mudança de posição, diremos que os elementos de um tipo legal de crime deverão resultar com clareza da norma, sendo de verificação necessária (é essa a essência do tipo legal, sob pena de não haver crime), ainda que possam concorrer elementos de verificação disjuntiva, como sucede sempre que a norma aponta diversas modalidades de execução ou diversos resultados, exigindo tão-só a verificação de uma das hipóteses para que o crime se tenha como consumado. A exigência da verificação de uma relação de domínio por parte do autor do crime deixaria de fora múltiplas situações que em bom rigor deveriam considerar-se abrangidas pela norma. A título de exemplo, suponha-se que no âmbito do relacionamento de um casal se criou uma acentuada relação de dependência por parte de um dos cônjuges relativamente ao outro, com manifestações evidentes em diversas situações da vida do casal e que, no entanto, o cônjuge mais fragilizado sistematicamente destrata publica e provocatoriamente o outro elemento do casal, causando-lhe acentuado sofrimento psicológico. Numa tal situação, a exigência de uma relação de dependência como condição de preenchimento do tipo, levada ao extremo, obstaria à verificação do crime, o que evidencia o desajustamento da exigência desse elemento que, na verdade, não tem apoio na letra do tipo legal de crime, ainda que porventura o tenha no seu espírito e que esteja presente, do lado do agente do crime, na esmagadora maioria das situações que chegam à barra dos tribunais.

Diversamente se passam as coisas com a exigência de que a ofensa tenha lugar por causa da relação. Aqui, já não estaremos perante um requisito estranho à descrição do tipo legal, mas sim perante uma interpretação restritiva exigida pela própria coerência do sistema. Veja-se o exemplo de escola apontado pela doutrina: um casal divorciado há mais de uma década e que não mais se encontrou, envolve-se num acidente de trânsito com duas viaturas, cada uma delas conduzida por um dos ex-cônjuges. Na sequência da discussão que se desencadeia por causa do acidente, um deles ofende verbalmente a honra do outro e desfere-lhe uma bofetada. Violência doméstica? Seria um absurdo, não contemplado na intenção do legislador, mas a que se chegaria se se levasse ao extremo a tese que vem sustentada pelo recorrente.

Entre esta situação limite e o crime que linearmente se oferece como subsumível ao tipo de violência doméstica será sempre possível encontrar situações que verdadeiramente não caem sobre a alçada do tipo legal previsto no art. 152º, independentemente da verificação de uma relação presente ou pretérita entre o agente e a vítima. O elemento distintivo resultará necessariamente da imbricação entre o crime cometido e a relação existente entre o seu autor e a vítima e, nessa medida, o enquadramento será sempre casuístico. Sempre que as circunstâncias do caso evidenciarem que, apesar da relação conjugal, familiar ou análoga, contemporânea da infracção ou anterior a ela, a prática do crime se oferece como estranha a essa relação, poderemos estar perante um dos tipos de crime que tutelam a integridade física ou psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a honra, mas não já perante um crime de violência doméstica. Na verdade, este último crime não traduz um tipo legal qualificado ou, sequer, agravado, pela relação pessoal intercorrente entre o autor e a vítima, mas sim um crime autónomo que, como já referimos, se encontra numa relação de especialidade e que visa responder a uma impactante realidade social, multifacetada, é certo, mas suficientemente identificada, de frequente verificação, geradora de consideráveis danos físicos, psíquicos e sociais, carecida de uma específica tutela jurídico-criminal. A opção pelo tipo do art. 152º em detrimento da opção por um dos crimes que tutelam singularmente os bens jurídicos por aquele abrangidos exige a verificação de um aliud, que consiste precisamente na circunstância de a prática do crime ser indissociável da relação presente ou passada. É possível estabelecer o nexo entre os maus tratos e a relação presente ou pretérita? ocorre violência doméstica; esse nexo não pode ser estabelecido? a imputação deverá fazer-se pelo tipo de crime que a factualidade objectivamente considerada representa.

Nesta medida, no que para o caso releva, o despacho recorrido não é merecedor de censura, o que não contende, obviamente, com o juízo que sobre a matéria de facto fixada em sede de sentença e a respectiva subsunção jurídica se possa vir a fazer, nomeadamente, em sede de recurso.

III – DISPOSITIVO:

Nos termos apontados, acordam nesta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso.

Sem taxa de justiça, por dela estar isento o recorrente.



Coimbra, 22 de Setembro de 2021

(texto processado pelo relator, revisto por ambos os signatários e assinado electronicamente)

(Jorge Miranda Jacob - relator)

(Maria Pilar Oliveira - adjunta)


[1] - (em branco no original)
[2] - Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, 4ª Edição actualizada, pág. 646/647.