Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
50182-D/2000.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: TELES PEREIRA
Descritores: EXECUÇÃO
TAXA DE JURO
CASO JULGADO MATERIAL
LIQUIDAÇÃO
ERRO
Data do Acordão: 11/30/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: VARAS DE COMPETÊNCIA MISTA DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 802º, 805º, 813º, Nº 1, E 814º, AL. E), DO CPC.
Sumário: I – A obrigação exequenda (o direito) carece de ser certa, exigível e líquida, devendo estes elementos, quando ainda não resultarem directamente do título executivo, ser alcançados preliminarmente à execução ou no início desta (artº 802º CPC).

II – Estando em causa o atributo da liquidez, este é determinado, na fase preliminar da execução, no esquema processual criado pelo DL nº 38/2003, de 8/03, pelos processamentos caracterizados no artº 805º do CPC.

III – Uma sentença condenatória confere força de caso julgado (material) à expressão de determinada obrigação, nos termos em que condena.

IV – Na alínea e) do artº 814º do CPC fala-se em “incerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda”, não supridas na fase introdutória da execução, mas “tal iliquidez persistente” não corresponde exactamente à liquidação atentatória da definição propiciada pelo caso julgado, na qual a liquidez é uma “liquidez errada” por desconformidade ao caso julgado formada na acção declarativa.

V – Esta situação – enquanto desvalor da liquidação dos juros vencidos, com deficiência de cálculo no requerimento inicial -, a verificar-se, pode constituir um fundamento lógico de oposição à execução, por extensão interpretativa da alínea e) do artº 814º do CPC.

VI – Porém, não deve entender-se que a não observância desse mecanismo apresenta um efeito cominatório, o que a letra da lei quis excluir relativamente a títulos executivos formados por sentenças condenatórias – artº 805º, nº 4, CPC.

Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

I – A Causa


            1. Em 20 de Novembro de 2003, através do Requerimento Executivo de fls. 2/6 (corresponde ele ao modelo aprovado pelo Decreto-Lei nº 200/2003, de 10 de Setembro), foi instaurada a “execução comum (solicitador de execução)”[1] da qual emerge o presente agravo, nela figurando como Exequente A..., Lda. (doravante designada Exequente e Agravante) e como Executado B... (doravante designado Executado e Agravado).

Tratando-se de execução de sentença, foi anexado ao requerimento executivo o Acórdão desta Relação que constitui fls. 7/17 (referir-nos-emos doravante, salvo indicação em contrário, à paginação da própria execução que subiu em conjunto com o presente agravo), Acórdão esse no qual o Executado foi condenado a satisfazer à Exequente a quantia de €10.372,15, sendo que da leitura do mesmo se depreende – e a posterior tramitação confirmou tal asserção – que a essa condenação acrescem juros de mora desde a citação do Executado na correspondente acção declarativa[2].

No referido requerimento executivo, no campo documental respeitante à “liquidação da obrigação” indicou a Exequente tratar-se de “valor dependente de simples cálculo aritmético”, indicando como tal €15.619,27 e explicitando resultar esta importância “do somatório da quantia indicada no título executivo com o valor dos juros até à presente data e que ascendem ao montante de €4.487,59” (todas as transcrições são de fls. 6)[3].

1.1. Iniciando-se as diligências executivas, sob o impulso da solicitadora de execução indicada pela Exequente [artigo 808º, nº 1 do Código de Processo Civil (CPC)], procedeu-se à penhora (incidiu esta à partida sobre dois veículos) e, subsequentemente a tal diligência (v. artigo 812º-B, nº 1 do CPC), à citação do Executado para os termos da execução (fls. 57)[4], depreendendo-se dos termos subsequentes terem-se iniciado, visando a satisfação do crédito, descontos no salário do executado (v. fls. 78) e penhora de saldos bancários diversos (v. fls. 91/98 e 99 parte final do despacho).

1.1.1. Depreende-se igualmente dos autos que o Executado não deduziu, nos vinte dias subsequentes à citação (artigo 813º, nº 1 do CPC) oposição à execução, por referência aos fundamentos previstos no artigo 814º do CPC (elenca este, como é sabido, os fundamentos próprios da oposição à execução baseada em sentença).

1.2. Entretanto, tendo prosseguido a execução, designadamente com a sucessiva acumulação dos descontos no vencimento do Executado (dispensamo-nos aqui de relatar outras vicissitudes do processo sem relevância para o presente agravo), deu entrada nos autos o requerimento do Executado de fls. 177/178 no qual este anuncia ter pedido à Solicitadora de Execução, visando proceder ao pagamento da quantia exequenda, “[…] que lhe fossem liquidadas e discriminadas as quantias ainda em dívida, bem como os montantes já pagos” (v. documento de fls. 179), tendo recebido da Senhora Solicitadora a resposta que constitui fls. 180/181. Todavia, acrescenta o Executado, resultaria desta resposta a incorrecção da quantificação da obrigação de juros, designadamente por lhe estarem a ser liquidados, contrariando o teor da condenação que determinou a formação do título executivo, “juros comerciais”, e não, como seria correcto, “juros civis”, formulando o Executado ao Tribunal, em função do exposto, a seguinte pretensão:


“[…]
[R]equer […] que [se] ordene à Exma. Senhora Solicitadora de Execução que proceda à correcta liquidação da quantia exequenda em dívida, nomeadamente, considerando os juros devidos abrangidos pela sentença (à taxa de juros civis) e, em conformidade, se proceda à devolução das quantias pagas que eventualmente excedam as quantias devidas, com a subsequente extinção dos presentes autos.
[…]”
            [transcrição de fls. 178]

            1.2.1. A fls. 195 (num despacho datado de 21/11/2008) determinou o Tribunal que os juros devidos “[…] são os juros civis à taxa vigente à data da citação para a acção, com as consequentes alterações até ao pagamento […]”, sendo tal despacho notificado à Exequente, ao Executado e à Senhora Solicitadora (fls. 196, 197 e 198) – situação que viria a propiciar o trânsito de tal asserção decisória –, elaborando a Solicitadora a “nota discriminativa provisória” (a liquidação) de fls. 200/207, segundo a qual persistiria em dívida pelo Executado o valor de €4.319,71 (cfr. fls. 200, sendo isto após o desconto dos valores acumulados na execução, respeitantes aos descontos no vencimento do Executado e a outros valores alcançados através de penhora: €18.207,15).

            1.2.2. Prosseguindo tais descontos no vencimento, atravessou o Executado nos autos o requerimento de fls. 234/235 no qual formula a pretensão – fundada no entendimento de já estar satisfeita inteiramente a dívida exequenda – de que se ordene a cessação da “penhora do vencimento”.

            1.2.3. Reagiu o Exequente a esta pretensão a fls. 243/244, objectando o seguinte:


“[…]
À data da propositura da acção executiva, a exequente contabilizou o valor dos juros moratórios vencidos até à data da apresentação da mesma no montante de €4.487,59.
Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 813º do CPC, foi o executado citado em 01/02/2005.
O executado não reagiu à liquidação dos juros feita pela exequente, no prazo legal que lhe foi assinalado.
Em consequência, não pode procurar contornar a natureza peremptória daquele prazo, que não usou, para através do expediente de reclamação contra a conta final elaborada nos presentes autos de execução, vir atacar uma liquidação já transitada em julgado.
[D]eve ordenar-se à Sra. Solicitadora de Execução que proceda à cobrança de todas as quantias legalmente devidas nos presentes autos conforme conta por si elaborada a fls…, só após devendo ordenar-se a suspensão da penhora do vencimento do executado.
[…]”
            [transcrição de fls. 243/244]

            1.2.4. Então, a fls. 254/263, apresentou a Senhora Solicitadora uma “nota discriminativa e justificativa”, na qual, depois de anunciar encontrar-se (então) a dívida exequenda liquidada (fls. 254), indica ter sido obtido na execução, designadamente através dos sucessivos descontos no vencimento do Executado, a quantia total de €19.748,67 (v. fls. 255).

            1.2.5. Reagiu o Executado a esta nota discriminativa através da “reclamação” de fls. 265/268. Nesta expôs ao Tribunal o seguinte:


“[…]

[À] revelia do douto despacho de 21/11/2008, que esclarece que os juros aplicáveis à dívida exequenda são civis, continua-se a considerar uma liquidação de juros à taxa comercial desde a data da citação para a acção declarativa (30/04/2003), até à data da instauração do requerimento executivo (20/11/2003).
Assim, a execução parte erradamente de uma quantia exequenda de €15.619,27, quando, calculado o referido período de tempo à taxa de juros civis aplicáveis, a quantia exequenda deveria ser de apenas €12.776,21 (correspondente a €10.372,15 de capital em dívida, acrescidos de juros à taxa de 7% vencidos entre 04/05/2000 e 30/04/2003 no montante de €2.172,18 e à taxa de 4%, vencidos entre 01/05/2003 e 20/11/2003 – data da entrada do requerimento executivo).
Ou seja, a Sra. S.E., desde que confrontada com a quantia exequenda resultante da liquidação operada pela exequente no requerimento executivo, entendeu tal liquidação como inatacável […] o que não tem qualquer respaldo na ordem jurídica que nos rege […].
Assim, segundo se crê, se os juros se haverão de liquidar à taxa de juros civis, conforme doutamente ordenado, não se podem aplicar duas taxas de natureza diferente.
Mas é exactamente isso que se está a fazer nos presentes autos, na prática, ao considerar, por um lado, a errada e abusiva liquidação operada pela exequente no seu requerimento executivo e, por outro, liquidando os juros à taxa civil, entre a data da instauração da execução, até ao efectivo e integral pagamento.
[…]
[C]aso os juros fossem liquidados à taxa civil, o executado deveria ter pago a quantia de €14.016,60.
10º
Ora, como resulta da liquidação junta pela Sra. S.E., o executado pagou, por via das penhoras efectuadas, a quantia de €19.748,67.
11º
Ou seja, penhorou-se em excesso ao executado a quantia de €5.732,07, que lhe deve ser restituída, sob pena de se verificar um enriquecimento sem causa da exequente.
[…]”
            [transcrição de fls. 265/267]

            E concluiu o Executado, no que interessa ao presente recurso, requerendo que, na procedência de tal reclamação:


“[…]
a) [fosse ordenado] à Exma. Sra. S.E. a rectificação da liquidação da dívida exequenda, dos respectivos honorários em conformidade com a correcta quantia exequenda e juros à taxa confirmada pelo douto despacho de 21/11/2008;
b) [fosse ordenada] a restituição ao executado de todos os montantes excessivamente penhorados e não devidos.
[…]
            [transcrição de fls. 268]

           

1.2.6. Reiterou o Tribunal no despacho de fls. 280 ter a questão dos juros já sido decidida com trânsito em julgado, solicitando o Exequente a fls. 284/286 o esclarecimento desse despacho no sentido de saber “[…] se a liquidação dos juros efectuada em sede de requerimento executivo tem ou não que ser alterada em função do trânsito em julgado do douto despacho de 21/11/2008 e, por conseguinte, se há ou não que se proceder à restituição ao exequente das quantias penhoradas em excesso […]” (transcrição de fls. 285/286).

1.2.6.1. Recaiu sobre este requerimento o despacho de fls. 288 (trata-se este do despacho de 16/09/2009), esclarecendo a Senhora Juíza “[…] que os juros terão de ser contabilizados à taxa legal para os juros civis, em conformidade com o despacho proferido em 21/11/2008. Nessa medida a Sra. Solicitadora terá de reformular o cálculo dos juros desde a data da citação, ainda que para esse efeito tenha que alterar a liquidação efectuada no requerimento executivo”.

Realizou a Sra. Solicitadora a liquidação de fls. 289, a qual mereceu a discordância do Executado, expressa a fls. 299/301[5].

A Exequente, por sua vez, reiterou a fls. 309/311 ser seu entendimento ter-se fixado, por não dedução de oposição pelo Executado, o montante dos juros liquidados no requerimento executivo, não podendo tal valor ser posteriormente alterado pela Sra. Solicitadora da Execução.    

           

1.3. É nesta sequência que aparece o despacho de fls. 313/314este constitui a decisão objecto do presente agravo – cujo teor aqui se transcreve:


“[…]
Nos autos persiste o litígio relativo ao modo como os juros foram contabilizados, bem como a consequência que esse facto reveste para a fixação dos honorários devidos à Sra. Solicitadora de Execução e para o cálculo do imposto de selo.
Por despacho proferido em 21.11.2008 foi determinado que a taxa de juros a aplicar seria a taxa de juros civis (fls. 195), tendo tal despacho transitado em julgado.
Por despacho proferido em 16.9.2009 (fls. 288) foi determinado que os juros deveriam ser contabilizados desde a data da citação, ainda que para esse efeito a Sra. Solicitadora tivesse que alterar a liquidação efectuada no âmbito do requerimento executivo […].
Após a Sra. Solicitadora veio apresentar o requerimento de fls. 289, relativamente ao qual o executado continua a sustentar que se mantêm as incorrecções apontadas.
Atento todo o exposto, é seguro que da liquidação ora efectuada não se pode retirar que a mesma esteja incorrectamente elaborada, sendo necessário que a Sra. Solicitadora apresente uma liquidação onde apresente/descrimine o cálculo de juros mensais, fazendo também mensalmente as imputações de pagamento.
Assim, deverá a Sra. Solicitadora de Execução apresentar tal nota discriminativa, na qual deverá ter em consideração:
- que o capital ascende à quantia de €10.372,15 (e não a €15.619,27, pois este valor já engloba os juros liquidados no requerimento executivo), sendo que os juros só poderão ser contabilizados sobre este valor;
- os juros terão que ser contabilizados à taxa legal para os juros civis;
- os pagamentos deverão ser imputados em primeiro lugar nos juros vencidos até à data desse mesmo pagamento;
- quando os juros assim contabilizados já se encontrarem pagos, o pagamento deverá ser imputado aos juros que entretanto se vencerem e depois ao capital, sendo que a partir desse momento, os juros passarão a recair apenas sobre o capital ainda em dívida.
A nota discriminativa que terá que apresentar deverá apresentar os cálculos de forma totalmente perceptível (quer quanto ao cálculo dos juros, quer quanto às imputações de pagamento, quer ainda quanto ao valor do capital que vai permanecendo em dívida), razão pela qual tal contabilidade terá que respeitar os momentos em que foram efectuados os pagamentos.
Os honorários calculados e o imposto de selo deverão ter em consideração o valor assim obtido.
Notifique as partes, bem como o Sr. AE.
[…]”
            [transcrição de fls. 313/314]

            1.4. Inconformada, agravou a Exequente de tal despacho, sendo a impugnação recebida nos termos constantes do despacho de fls. 2 da paginação do agravo. Foi o recurso motivado a fls. 4/11, aí sendo formuladas as conclusões que aqui se transcrevem:


“[…]”

            [transcrição de fls. 7/10 do agravo]

            O Executado/Agravado respondeu a fls. 15/26 deste agravo, pugnando pela manutenção do despacho recorrido.


II – Fundamentação  


           

2. Relatada nos seus traços essenciais a complexa marcha da execução até à presente instância de recurso – relato algo extenso mas que a necessidade de compreender o exacto alcance do recurso impôs –, importa consignar que o âmbito objectivo do agravo se define, como sucede com todos os recursos, através do teor das conclusões com as quais o Agravante rematou a motivação acima transcrita (cfr. artigos 684º, nº 3 e 690º, nº 1 do CPC).

Os elementos relevantes para a apreciação do recurso – os factos, se quisermos, que aqui correspondem, fundamentalmente, a factos processuais – resultam do antecedente relato, correspondendo a actos processuais e ao conteúdo destes, estando documentalmente comprovados ao longo dos autos.

Ora, tendo presente o teor das conclusões da Agravante, verifica-se, como bem salientou a Exma. Juíza a quo, que o subsistente problema a decidir se resume, transitada que está a questão da taxa de juros aplicável (formou-se neste processo executivo, para além do que adiante será dito, caso julgado quanto a serem devidos juros calculados à designada “taxa civil”[6]), a questão a decidir resume-se, dizíamos, ao entendimento da não dedução de oposição pelo Executado à execução, nos termos do artigo 813º, nº 1 do CPC, como consolidação da liquidação por simples cálculo aritmético operada pela Exequente no requerimento inicial. O Agravante entende que sim – que a não oposição dá “força de caso julgado” a essa liquidação (v. conclusão 1.), mesmo que errada –, sendo que o entendimento contrário subjaz logicamente ao despacho agravado. É que, de facto, quando se diz – e isso é dito directamente no despacho de fls. 288 e, implicitamente, no despacho ora recorrido – que a Sra. Solicitadora de Execução poderá ter que alterar a liquidação efectuada pela Exequente no requerimento executivo, está-se a assumir o entendimento interpretativo contrário ao que o Agravante defendeu no processo e reitera aqui no recurso, a saber: mesmo mal calculados os juros liquidados no requerimento executivo fixam-se por não dedução de oposição.

Esta questão, como acabamos de demonstrar, é relevante por ter integrado, desde logo, o elemento decisório expresso nesse despacho de fls. 288[7] e por ter sido particularizada, suscitada que foi pelo Executado a fls. 299/301, no despacho de fls. 313/314 aqui directamente recorrido.

Tenha-se presente que, assumindo como adequado o entendimento da Agravante, um errado cálculo aritmético liquidatório da obrigação exequenda, feito no requerimento inicial, se consolidará – terá “força de caso julgado”, diz o Agravante logo na primeira conclusão do recurso – se não for impugnado pelo Executado em sede de oposição à execução.

É esta, pois, a questão que o presente recurso terá de resolver.

2.1. Como ponto de partida argumentativo no percurso visando fornecer uma resposta a tal questão, importa considerar o que normalmente se caracteriza como acertamento do direito, enquanto elemento pressuposto mas exterior, no sentido de prévio, à acção executiva[8]. Visa esta, com efeito, a realização efectiva de um determinado direito, assume a não realização deste, por persistência da sua violação, sendo que a existência e a identidade desse direito, embora passível de uma ulterior modelação quantitativa no próprio processo executivo – a esta modelação se refere a questão da liquidação[9] – constitui um facto adquirido e prévio ao processo executivo. O direito – a obrigação exequenda, como lhe chama o artigo 802º do CPC – é certa, exigível e líquida, devendo estes elementos, quanto ainda não resultarem directamente do título executivo, serem alcançados preliminarmente à execução (é o que sucede com a condenação genérica nos termos do artigo 661º, nº 2 do CPC) ou no início desta[10], sendo que, estando em causa o atributo da liquidez, este é determinado, na fase preliminar da execução, no esquema processual criado pelo DL nº 38/2003 (v. nota 2, supra), pelos processamentos caracterizados no artigo 805º do CPC.

Note-se que – e sempre restringindo-nos aqui à caracterização das situações que, por efectiva pertinência ou proximidade, o caso concreto é susceptível de convocar –, no âmbito preambular da própria execução a liquidação na fase liminar se “[circunscreve] à liquidação dos títulos extra-judiciais que não impliquem liquidação por árbitros ou de sentenças que contenham uma condenação genérica cuja liquidação dependa de simples operação aritmética”[11].

É aqui relevante, nessa função de acertamento, o título executivo, enquanto verdadeiro pressuposto genético e identitário da execução[12], sublinhando-se a circunstância de este (do título executivo aqui em causa) se consubstanciar numa sentença condenatória. Esta, nos termos em que condenou, conferiu a força de caso julgado à expressão de determinada obrigação, sendo que esta corresponde aqui à própria obrigação exequenda e deve ser entendida, até como projecção dessa força própria do caso julgado material em que assenta, como imune a elementos de acertamento (de definição ou de identificação do objecto correspondente) que actuem sobre a substancialidade do título, por ocorrência de um mero efeito processual verificado no domínio da acção executiva, como inquestionavelmente sucede com um efeito cominatório (processualmente preclusivo ou aparentado a este, ou seja, um efeito que tenha a virtualidade de modelar o direito já “modelado” noutro sentido). De facto, opera o caso julgado – e estas situações não constituem excepção à essência identitária deste – por exclusão do que é incompatível com a definição do direito por ele determinada, tornando “[…] indiscutível o resultado da aplicação do direito ao caso concreto que é realizada pelo tribunal, ou seja o conteúdo da decisão […]”[13].

Vale isto para sublinhar a relevância – se quisermos, a especificidade – traduzida na circunstância de o título executivo ser aqui uma sentença condenatória, cujos elementos que vieram a induzir a discussão em torno dos juros, discussão esta que foi transportada para este recurso, decorrerem de uma definição abrangida pelo caso julgado. Este, com efeito, fixou o capital através do qual se “produzem” esses juros (estamos a falar de frutos civis: de juros) e os restantes elementos relevantes para a determinação deles (desde quando eles se produzem e através da aplicação de que taxa, cfr. nota 7, supra).

Ora, neste quadro, a consagração do entendimento da Agravante – corresponde ele, fundamentalmente, à consideração de um suposto efeito cominatório, mesmo contra o título, decorrente da falta de oposição à execução –, a consagração de tal entendimento, dizíamos, possibilitaria uma ultrapassagem sui generis do caso julgado, por simples actuação de efeitos processuais, através da consideração de um valor, no caso da condenação numa prestação pecuniária, que alterasse (violasse, portanto) os elementos definidores da obrigação contidos na sentença. Basta pensar na apresentação de uma sentença contendo determinado modo de contagem dos juros seguida de uma execução, referida a essa sentença, em que os juros liquidados no requerimento executivo divergissem do modo judicialmente estabelecido através dessa sentença enquanto título executivo[14]. Esta possibilidade, ninguém pretenderá dizer o contrário, significava – quer aqui a Agravante que signifique – a alteração do acertamento do direito operado na sentença através do efeito do caso julgado material, a posteriori, fora do quadro próprio de actuação relevante sobre o caso julgado: que é o recurso (ou acção) de revisão.

2.1.1. Note-se que é neste sentido que os fundamentos de oposição à sentença se restringem a um leque de situações específicas, elencadas no artigo 814º do CPC – “[…] a oposição só pode ter algum dos fundamentos seguintes […]”, diz o corpo do artigo –, sem uma cláusula aberta de fundamentação da oposição do tipo da constante do artigo 816º in fine do CPC, relativa aos outros títulos não revestidos da força do pronunciamento judicial (do caso julgado).

É certo, que na alínea e) do citado artigo 814º se fala em “[i]ncerteza, inexigibilidade ou iliquidez da obrigação exequenda, não supridas na fase introdutória da execução”, mas, quer-nos parecer, que a iliquidez persistente (a situação prevista no trecho normativo citado) não corresponde exactamente à liquidação atentatória da definição propiciada pelo caso julgado, na qual há liquidez, mas uma “liquidez errada” por desconformidade ao caso julgado. Esta situação, com efeito, embora possa, enquanto desvalor da liquidação dos juros vencidos, (deficientemente) “calculada” no requerimento inicial, constituir um fundamento lógico de oposição à execução, porventura interpretativamente abrangido, por extensão, na indicada alínea e)[15], não deve entender-se que a não observância desse mecanismo apresenta um efeito cominatório que a letra da lei quis excluir, relativamente aos títulos executivos formados pelas sentenças, quando o estabeleceu no nº 4 do artigo 805º do CPC: “[q]uando, não sendo o título executivo uma sentença […] o executado é logo citado para a contestar, em oposição à execução, com a advertência de que, na falta de contestação, a obrigação se considera fixada nos termos do requerimento executivo […]”.

É neste sentido, aliás, se bem vimos as coisas, que se aceita, subsistentemente no regime actual, a chamada “oposição por requerimento” – que não é a oposição prevista no artigo 813º do CPC – dentro de pressupostos que, não se reconduzindo aos fundamentos da oposição à execução se baseiem em matéria de direito (aqui será a força ou eficácia do caso julgado documentalmente provado)[16].

É, enfim, esta linha argumentativa que subjaz ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20/04/2009 (Barateiro Martins)[17], o qual, embora numa situação não exactamente coincidente com esta, apresenta sugestivos elementos de identidade de razão (desde logo, também se refere a um errado cálculo dos juros não suscitado em sede de oposição à execução) com o caso vertente. Diz-se, com efeito, no sumário do citado Acórdão: “[a] não dedução de oposição à execução apenas preclude, no âmbito de tal execução, o exercício do direito processual (em que a oposição se traduz), não impedindo a invocação do que podia ter sido fundamento de oposição, noutro processo, visando a restituição do indevido”.

Estamos na presente situação, face às específicas incidências do processo induzidas pela actividade liquidatória do agente de execução, perante uma espécie de mecanismo antecipatório ou de evitação de uma deslocação patrimonial indevida, que ulteriormente, se concretizada, suportará a obrigação de restituir nos termos do artigo 473º do Código Civil, aqui manifestado no quadro de uma situação de enriquecimento sem causa, não por prestação, mas por intervenção no património[18]. Com efeito, o processo executivo constitui, paradigmaticamente, uma modalidade de intervenção coactiva no património de alguém (num património alheio, o do executado). A errada deslocação patrimonial – designadamente a não suportada pelo título executivo – aí gerada, determinará a obrigação de restituir.

Aqui evita-se a obrigação de restituir, reduzindo a intervenção, nas suas consequências, à exacta medida que é devida, no quadro de realização da garantia patrimonial.   

2.1.1. De qualquer forma, a isto sempre acrescerá, no sentido de excluir a actuação do entendimento propugnado pela Agravante neste caso concreto, a circunstância, já sublinhada na nota 5 supra, e expressivamente decorrente da certidão de citação de fls. 57, de a citação do Executado, aqui realizada pela Sra. Solicitadora da Execução, ter omitido qualquer referência à liquidação e à contestação desta como portadora de algum efeito cominatório. Note-se que a necessidade dessa advertência vale para as situações previstas no nº 4 do Artigo 805º do CPC, quando não está em causa como título executivo uma sentença[19] e deverá valer – deveria valer seguindo o entendimento da Agravante quanto ao efeito cominatório –, por identidade de razão, para situações do tipo da aqui em causa.

Também por isto, estamos convictos de que não assiste razão à Agravante e, consequentemente, do total acerto do despacho agravado.

Resta-nos, pois, confirmá-lo.


III – Decisão


            3. Assim, em função do exposto, negando-se provimento ao agravo, mantém-se o despacho recorrido (o de fls. 313/314), devendo a Sra. Solicitadora de Execução proceder em estrita obediência a este, elaborando liquidação nos termos nele indicados.

            Custas pela Agravante.


Teles Pereira (Relator)
Manuel Capelo
Jacinto Meca


[1] A indicação da data da propositura da execução (20/11/2003) visa sublinhar duas questões de aplicação da lei no tempo que aqui se colocam.
A primeira delas refere-se ao regime dos recursos, traduzindo-se na não aplicação da reforma introduzida pelo Decreto-Lei nº 303/2007, de 24 de Agosto (v. os respectivos artigos 9º, alínea a). 11º, nº 1 e 12º, nº 1). Assim, qualquer disposição do Código de Processo Civil citada no presente Acórdão pressuporá a versão anterior ao DL nº 303/2007.
A segunda questão, traduz-se na aplicação da redacção introduzida em várias disposições do Código de Processo Civil, designadamente nas respeitantes à instância executiva aqui em causa, pelo Decreto-Lei nº 38/2003, de 8 de Março, isto por se ter pressuposto estar em causa uma execução instaurada depois de 15/09/2003 (v. o respectivo artigo 21º, nº 1). A este respeito, note-se que foi tomada como instauração posterior a 15/09/2003 o marco temporal correspondente ao início da instância executiva, não obstante esta decorrer, tratando-se de execução de sentença, por apenso a uma acção declarativa (na qual foi gerado o título executivo) iniciada anteriormente ao DL nº 38/2003. Foi este, com efeito, o processamento da execução aqui consensualmente observado ao longo da tramitação na primeira instância e que aqui pressuporemos.
[2] Nesse aspecto (a questão dos juros) o Acórdão confirmou a Sentença da primeira instância, cfr., no texto do Acórdão, os trechos pertinentes a fls. 8 e 16/17.
Com efeito, tem o seguinte teor o trecho decisório do Acórdão:
“[…]
Face a todo o exposto, acorda-se nesta Relação em:
1º julgar procedente a apelação da A. [a aqui Exequente] e, em consequência, revoga-se a sentença recorrida na parte em que condenou o R. [o aqui Executado] a pagar à mesma a quantia de 1.484.430$00, ficando antes condenado ao pagamento da quantia global de 2.079.430$00 (500.000$00 + 595.000$00 * 984.430$00), à qual correspondem, na actualidade, €10.372,15. Mantendo-se a mesma quanto ao mais nela decidido.
[…]”
                [transcrição de fls. 16/17]
Neste Acórdão, no relatório, a decisão da primeira instância aí recorrida era descrita nos seguintes termos:
“[…]
Proferiu a senhora Juíza a sua sentença, na qual, julgando a acção parcialmente procedente, condenou o R. [o aqui Executado] a pagar à A. [a aqui Exequente] a quantia de 1.484.430$00, a que acrescem juros de mora a contar da citação.
[…]”
                [transcrição de fls. 8]
[3] Embora, sendo a quantia exequenda (o valor da condenação do Executado) de €10.372,15, a soma de €4.487,59 de juros, como se diz no requerimento, correspondesse a €14.859,74 e não aos €15.619,27 indicados como valor da execução.
[4] Note-se – e desde já se sublinha por ser significativo este dado – que a “certidão de citação pessoal” de fls. 57 não contém qualquer indicação cominatória quanto à liquidação – aqui “liquidação” arvorada de cálculo aritmético – feita no requerimento inicial.
[5] “[A] Sra. S.E. continua sem imputar os pagamentos sucessivamente efectuados aos juros entretanto vencidos, liquidando apenas os juros como se o executado nunca tivesse amortizado qualquer capital em dívida ao longo das sucessivas penhoras de vencimento, o que é completamente contrário ao disposto no artigo 785º do Código Civil” (transcrição de fls. 299/300).
[6] Para sermos rigorosos – e esta questão será adiante tratada com mais detalhe – tal caso julgado (material) formou-se com a condenação do ora Executado na acção declarativa, já que foi aí que os juros foram designados à “taxa civil”. A asserção de trânsito dessa questão reportada a esta acção executiva visa, tão-só, sublinhar que esse elemento foi afirmado num despacho proferido nesta acção (o de fls. 195) e esse despacho, notificado às partes, não foi aqui atacado em sede de recurso.
[7] No qual se disse que a contabilização dos juros à taxa legal dos juros civis implicaria que a Sra. Solicitadora “[…] reformula[sse] o cálculo dos juros desde a data da citação, ainda que para esse efeito [tivesse] que alterar a liquidação efectuada no requerimento executivo” (fls. 288).
[8] “[A] acção executiva logicamente pressupõe a prévia solução da dúvida sobre a existência e a configuração do direito exequendo. A declaração ou acertamento (dum direito ou de outra situação jurídica; dum facto), que é o ponto de chegada da acção declarativa, constitui na acção executiva, o ponto de partida. Esta constatação leva a concluir que o processo executivo, embora sempre estruturalmente autónomo, se coordena com o processo declarativo no ponto de vista funcional, sempre que por ele é precedido”. Assim – e sublinha-se a particular relevância deste trecho da citação no caso concreto –, “[o] escopo final do autor não diverge, na sua essência, quando se passa da acção de condenação para a de execução: quando o credor pede a condenação do devedor, perante a verificação ou a eminência da violação duma norma de pretensão […], a finalidade última por ele prosseguida é a realização ou reparação efectiva do direito, perante a qual o acto de acertamento é instrumental. A acção de condenação aparece assim como uma etapa no caminho que conduz à efectivação da garantia […], etapa essa em que o prévio acertamento do direito tem como consequência a vinculação do conteúdo da posterior pretensão executiva” [José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma, 4ª ed. (trata-se da edição correspondente ao enquadramento legal aqui em causa, v. nota 2, supra), Coimbra, 2004, pp. 20/21 e nota 35-A, sublinhado acrescentado]. 
[9] Por não interessarem ao presente recurso vamos aqui deixar de lado modelações qualitativas do direito – também possíveis –, coma as decorrentes dos artigos 803º (escolha da prestação na obrigação alternativa) e 804º (obrigação condicional ou dependente de prestação) ambos do CPC.
[10] Diz-se no artigo 802º do CPC que “[a] execução principia pelas diligências, a requerer pelo exequente, destinadas a tornar a obrigação certa, exigível e líquida, se o não for em face do título”.
[11] Carlos Lopes do Rego, “Requisitos da Obrigação Exequenda”, in Themis – Revista de Direito, IV.7 (2003), p. 71.
[12] “O título executivo contém [o] acertamento; daí que se diga que constitui a base da execução, por ele se determinando «o fim e os limites da acção executiva» (artigo 45º/1), isto é, o tipo de acção […] e o seu objecto, assim como a legitimidade activa e passiva para ela (artigo 55º/1), e, sem prejuízo de poder ter que ser complementado (artigos 803º a 805º), em face dele se verificando se a obrigação é certa líquida e exigível” (José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma, cit., pp. 35/37).
[13] Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª ed., Lisboa, 1997, p. 567.
[14] Poderá, de facto, corresponder esta situação, aqui apresentada como hipótese argumentativa, ao caso concreto. Só não o podemos afirmar com segurança absoluta neste momento, porque a Sra. Solicitadora ainda não cumpriu o despacho aqui impugnado e, portanto, não sabemos se haverá que alterar o valor constante do requerimento inicial, sendo que aqui apenas se discute – daí a operatividade deste recurso – se tal valor se fixou como efeito cominatório decorrente da não oposição, independentemente da circunstância de estar bem ou mal fixado.
[15] V. José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da Reforma, cit., pp. 96/97.
[16] É – quer-nos parecer – a posição de Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, 10ª ed., Coimbra, 2007, pp. 183/186 (184).
[17] Proferido no processo nº 2842/06.4TBVLG.P1, disponível no sítio do ITIJ nestes campos ou, directamente, em http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/c3fb530030ea1c61802568d9005cd5bb/265ee7d58cbca300.
[18] V. António Menezes Cordeiro, Tratado de Direito Civil Português, II, Direito das obrigações, Tomo III, Coimbra, 2010, pp. 207/213.
[19] Carlos Lopes do Rego, “Requisitos da Obrigação Exequenda”, cit., p. 75.