Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
112/05.4GAMGL-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: FALSIFICAÇÃO DE NOTAÇÃO TÉCNICA
VICIAÇÃO DE CONTA QUILÓMETROS
PERDA DE INSTRUMENTOS E PRODUTOS
Data do Acordão: 07/09/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE NELAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 109º, 258, N.º 1, ALÍNEA B) E 255, ALÍNEA B), DO CP
Sumário: 1. O artº 109º do CP contempla dois grupos de objectos susceptíveis de perdimento em favor do Estado: aqueles que tiverem servido ou estiverem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico (instrumenta sceleris) e os que tiverem sido produzidos pelo facto ilícito típico (producta sceleris).
2. A viciação do conta-quilómetros não se integra em nenhum destes grupos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado foi proferido despacho que declarou perdido a favor do Estado o veículo automóvel matrícula XX-XX-XX.
Inconformado interpôs recurso o arguido A....
São do seguinte teor as conclusões, formuladas na motivação do seu recurso, e que delimitam o objecto do mesmo:
I. Não se retira da interpretação do disposto no art. 109/1 e 2 do C.P. que qualquer viciação do conta quilómetros de um veículo automóvel de que seja seu proprietário actual um vendedor de veículos automóveis tenha como consequência automática a sua perda a favor do Estado.
II. Para que tal suceda, em análise da sua natureza e das circunstâncias do caso, não é suficiente apelar-se à importância do conta quilómetros como instrumento indispensável à utilização, estado, valor e desgaste da viatura ou à actividade profissional do seu proprietário.
III. Tanto mais que nada se apurou nos autos de qualquer participação do Arguido na viciação do conta quilómetros nem que o mesmo não se disponha ou tenha disposto a colaborar com a justiça, bem pelo contrário tendo o mesmo ressarcido todos os lesados e dispondo-se a inscrever nos documentos do carro (livrete e registo de propriedade) que o mesmo tinha na data antes da alegada viciação o número de quilómetros efectivamente apurado.
IV. Tal anotação nos documentos, como resulta da experiência comum, salvaguardaria terceiros face ao estado da viatura atento o estado avançado da técnica mecânica e a necessidade de inspecção periódica a que tem que sujeitar-se.
V. De outra forma e com os mesmos argumentos se inutilizaria uma viatura sempre que por avaria ou acidente se danificasse o seu conta-quilómetros.
VI. Há, pois, na decisão recorrida flagrante violação do disposto no art. 109/1 e 2 do CP.
Termos em que deve revogar-se a decisão recorrida substituindo-a por outra que mande devolver ao Recorrente o supra referido veículo automóvel.
Responde o Magistrado do Mº Pº, concluindo:
1. Resulta do art. 109 do C. Penal que podem ser declarados perdidos a favor do Estado os objectos que se encontrem numa relação de causa ou efeito com a prática de crime, por se tratarem, por um lado, de instrumentos da sua prática, ou, por outro, de produtos da prática de um ilícito criminal.
2. Por outro lado, a perda de objectos encontra-se dependente da sua perigosidade ou do risco de os mesmos poderem vir a ser utilizados para a prática de novos crimes, não dependendo sequer de efectiva condenação do arguido.
3. Assim, e não obstante não terem sido recolhidos, nestes autos de inquérito, indícios suficientes de que o arguido A… falsificou a quilometragem da viatura Ford Focus, demonstrou-se que o mesmo foi objecto de viciação de quilómetros, facto esse que integra, em abstracto, a prática de um crime de falsificação de notação técnica, previsto e punido pelo Art. 258, nº 1 , alínea b), do Código Penal.
4. Na verdade, da documentação que se encontra junta, aos autos, resulta que o veículo automóvel apreendido e declarado perdido a favor do Estado, ostentava, no dia 12 de Fevereiro 2003, no seu conta-quilómetros, 113.385 Km, e que, em 7 de Fevereiro de 2005 apresentava a quilometragem de 31.695 Km.
5. Por outro lado e segundo consta de fls. 261 e 262, o veículo em causa encontrava-se, até à data da sua apreensão, em 5 de Julho de 2007, no stand de propriedade do arguido A....
6. Daí que, se tal viatura fosse restituída ao seu legítimo proprietário, grave seria o risco de a mesma poder ser, novamente, exposta, no stand de automóveis do arguido e de voltar a ser vendida a um particular que poderia ser iludido pelo valor constante do seu conta-quilómetros, como, aliás, aconteceu, com os ofendidos nos presentes autos.
7. Acresce que, tendo sido encetadas várias diligências, junto da "Ford", no sentido de apurar a possibilidade de vir a ser alterado o valor constante do seu conta­quilómetros, a fim de tal valor apresentar correspondência com o valor dos quilómetros, efectivamente, percorridos, apurou-se não ser, tecnicamente, exequível, proceder a tal operação, nem mesmo através da total substituição do painel.
8. Assim, e uma vez se encontrar vedada tal intervenção, o perigo de tal veículo voltar a entrar no circuito comercial e de voltar a iludir um seu possível adquirente, não se encontra minimamente salvaguardado com o facto de se fazer constar no livrete de tal viatura que a mesma tinha, em 12.02.2003, 113.385 Km.
9. Na verdade, tal actuação não seria adequada nem suficiente para invalidar a viciação da quilometragem existente, até porque o conta-quilómetros nunca passaria a traduzir o número dos quilómetros efectivamente percorridos pela viatura apreendida, desde 12.02.2003 até à presente data, os quais se desconhecem.
10. Posto isto, a inscrição nos documentos do veículo, livrete registo de propriedade, de que o mesmo tinha, em data anterior à alegada viciação, o número de quilómetros conhecido, não retiraria o carácter falso do conta-quilómetros existente em tal viatura, nem salvaguardaria, de forma plena e segura, a confiança de terceiros face ao seu estado, sendo de prever, por isso, a continuidade da actividade delituosa e criminosa.
11. Assim sendo, e não obstante não se ter conseguido apurar quem, em concreto, procedeu à viciação de tal quilometragem, pelo que nenhuma pessoa determinada poderá vir a ser punida por tal facto, a verdade é que a entrega do veículo ao seu actual proprietário ofereceria sério risco de o mesmo vir a ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
12. De onde resulta que, no caso, atentas as razões de ordem preventiva previstas no art. 109, n.º 2, do Código Penal, impõe-se a perda do veículo apreendido a favor do Estado.
Concluindo, dir-se-á, pois, que se nos afigura que o recurso do arguido não merece provimento em qualquer das suas vertentes, pelo que deverá manter-se a douta decisão recorrida.
Nesta Instância, o Ex.mº Procurador Geral Adjunto apôs o visto.
Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre decidir.
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É do seguinte teor o despacho recorrido:
O veículo automóvel com a matrícula XX-XX-XX, da marca "Ford", modelo "Focus" encontra-se apreendido à ordem dos presentes autos, por se ter constatado que a quilometragem exibida no conta quilómetros de tal viatura não tinha correspondência com a realidade, ou seja, o número de quilómetros visionado no conta-quilómetros era inferior ao número de quilómetros que efectivamente tal veículo automóvel tinha percorrido (cfr. fls. 266/267).
Findo inquérito, promoveu a Digna Magistrada do Ministério Público, que tal objecto fosse declarado perdido a favor do Estado, aduzindo, em síntese, que não obstante não se ter conseguido apurar quem, em concreto, procedeu à viciação da quilometragem, a verdade é que a entrega de tal veículo ao seu actual proprietário, stand de automóveis pertencente a A…, oferece sério risco de o mesmo vir a ser utilizado para cometimento de novos factos ilícitos típicos (cfr. fls. 391/392).
Pronunciou-se A…, alegando, em súmula, no sentido de ser injustificada e desproporcional a perda de tal viatura a favor do Estado, devendo a mesma ser devolvida ao seu legítimo proprietário, propondo, todavia, que conste uma anotação com os Km que a viatura tinha em 12.02.2003, ou seja 113.385 Km, alertando-se assim, deste modo, definitivamente os posteriores proprietários ou seus detentores a qualquer título (cfr. fls. 402).
Reiterou o Digno Ministério Público a sua posição (cfr. fls. 404).
Cumpre apreciar e decidir.
Compulsados os autos, infere-se que o veículo automóvel no dia 12 de Fevereiro 2003 ostentava no conta-quilómetros 113.385 Km, sendo que essa mesma viatura em momento posterior, em 07.02.2005 apresentava a quilometragem de 31.695 Km.
Desta feita, dúvidas não subsistem que a viatura em causa foi objecto de viciação de quilómetros, só tendo soçobrado por determinar, com o rigor que o Direito Penal exige, mesmo em sede de inquérito, a autoria de tal viciação, que irrefutavelmente integra a previsão do crime de falsificação de notação técnica, previsto e punido pelo Art. 258, n.º1 , alínea b), do Código Penal
Na verdade, dúvidas não existem que tal veículo automóvel em Fevereiro de 2005 tinha menos quilómetros do que em Fevereiro de 2003, como resulta cristalinamente da documentação junta aos autos.
Ora, tal veículo encontrava-se exposto para venda do stand de venda de automóveis "B... - Comércio de Automóveis Novos e Usados", sito em N, e sendo tal viatura restituída ao seu legítimo proprietário comporta necessariamente o seu retorno ao stand de automóveis.
Encetaram-se igualmente várias diligências junto da "Ford" no sentido de apurar sobre a viabilidade de alterar os quilómetros, a fim de que o conta-quilómetros espelhasse a realidade de quilómetros percorridos, e não obstante as diversas tentativas para tanto, as mesmas revelaram-se infrutíferas, visto que a "Ford" (entidade tecnicamente competente e habilitada para apreciar tal virtualidade) reitera e cristalinamente conclui não ser possível, nem tecnicamente exequível proceder a tal operação, nem através da total substituição do painel (o que também se procurou indagar), conforme resulta de fls. 374 e 381.
No que concerne à sugestão do ora requerente de se fazer constar no livrete da viatura que a mesma em 12.02.2003 tinha 113.385 Km, apesar de ser um contributo idóneo, a verdade é que não invalida a inerente e incontornável viciação da quilometragem, como também não traduz a real quilometragem que essa viatura percorreu desde 12.02.2003 até à presente data e portanto, mesmo se apondo tal menção, a verdade é que tal medida não permite que o conta-quilómetros espelhe o verdadeiro número de quilómetros percorridos por aquele veículo, o que, aliás, se desconhece, apenas se sabe que em 12.02.2003 tinha 113.385 km e em 07.02.2005 tinha 31.695 km, e portanto, subsiste a viciação (a alteração da notação técnica), sendo certo que, tal viatura permaneceria na disponibilidade de ser vendida a terceiros (stand de usados).
E, não se pode olvidar, o que decorre, além do mais das regras da experiência comum, que o número de quilómetros percorridos reveste uma natureza crucial no valor de uma viatura usada, bem como tal só se mostra conforme à legalidade vigente quando, e somente quando, o conta-quilómetros espelha a totalidade de quilómetros efectivamente percorridos por aquela viatura - pois essa numeração é fundamental para se aferir da utilização da viatura, do valor da mesma, do desgaste sofrido, pela deterioração dos componentes, sendo, aliás, factor determinante para as revisões a efectuar, peças a substituir e testes a realizar na vida de um veículo, que são determinados pelos quilómetros que a viatura possui - e assim, a aposição em causa não evita a viciação, que persiste e se mantém constante.
Sem descurar que, não fica a precludida a possibilidade de o requerente demandar aqueles a quem adquiriu tal veículo.
Ora, estatui o Art. 109, do Código Penal que, "são declarados perdidos a favor do estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para cometimento de novos factos ilícitos típicos”.
Nos termos do n.º 2 do mesmo preceito legal, verificados os respectivos pressupostos, são declarados perdidos a favor do estado os objectos, ainda que nenhuma pessoa determinada venha a ser, ou possa ser, punida pelo facto.
A norma contempla, pois, dois grupos de objectos susceptíveis de perdimento em favor do Estado: aqueles que tiverem servido ou estiverem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico (instrumenta sceleris) e os que tiverem sido produzidos pelo facto ilícito típico (producta sceleris).
O decretamento da perda depende da verificação cumulativa de dois requisitos:
a) que os objectos em causa se enquadrem numa daquelas categorias (instrumenta sceleris ou producta sceleris); e
b) que, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, ponham em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou ofereçam sério risco de ser utilizados para o cometimento de novos factos ilícitos típicos.
No caso em apreço, o objecto em causa é o veículo automóvel acima aludido, cuja quilometragem se mostra viciada, consubstanciando tal situação o crime de falsificação de notação técnica (cfr. Arts. 258, n.º 1, alínea b) e 255, alínea b), ambos do Código Penal), uma vez que, é inequívoco, o que, aliás, o próprio requerente não nega, nem põe crise, que a viatura exibe uma medida quilométrica que não tem correspondência com a realidade, que é apurada através de um aparelho técnico, que actua totalmente de forma automática (pelo circular do veículo) através do qual permite reconhecer à generalidade das pessoas os seus resultados e se destina à prova de facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua realização quer posteriormente.
Pelo que, um elemento vital da finalidade do citado veículo e indissociável do seu funcionamento, como é o conta-quilómetros, visto que uma viatura não pode circular sem conta-quilómetros, mostra-se alterado, viciado e por isso falsificado, na medida em que tal conta-quilómetros não reflecte, nem vai nunca reflectir os quilómetros percorridos por aquele veículo automóvel, uma vez que foi viciado, não sendo tecnicamente possível apurar quais os quilómetros que genuinamente tal veículo percorreu, nem se mostra fisicamente possível alcançar tal desiderato, de forma legal, como resulta de reiteradas e fundamentadas respostas fornecidas pela "Ford", de cujo teor resulta que “os sistemas de diagnóstico e de comunicação com os sistemas de controlo de veículos Ford não permitem efectuar manipulações do conta-quilómetros, excepto na substituição integral do painel de instrumentos, em caso de avaria. Nesta situação, o sistema de diagnóstico transfere a informação de um painel para outro.
Cumpre ainda trazer à colação que estamos perante interesses conflituantes, por um lado temos o interesse do Estado e por outro lado temos o interesse do ora requerente, proprietário do objecto.
Na verdade, o interesse do Estado prende-se com o obstar que circule e que esteja disponível para a circulação um objecto que serve e se encontra destinado a servir para a prática de um facto ilícito típico e que põe em causa a ordem pública, visto que cria uma imagem deturpada da realidade, de uma notação técnica juridicamente relevante, e ainda oferece sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, na medida em que essa alteração persiste.
E, perante interesses conflituantes a compressão de um perante o outro rege-se pela legalidade de obliteração (cfr. Art. 109, do Código Penal} e mediante o respeito dos princípios de necessidade, adequação e proporcionalidade (cfr. Art. 18, n.º 2, da Lei Fundamental).
Efectivamente, a declaração de perda a favor do Estado afigura-se como o único meio legítimo, razoável e idóneo para evitar que tal viatura seja utilizada para o cometimento de novos factos ilícitos típicos e que deixe de consubstanciar um perigo para a ordem pública, e não se revela a mesma nem desproporcionada, nem injustificada, antes sim é necessária para os fins que se visam alcançar e é proporcional ao risco que se pretende obstar, bem como inexiste outra via mecanicamente exequível para tanto, e como já se referiu a sugestão preconizada pelo requerente, apesar de válida, não é idónea para cessar a alteração da quilometragem, uma vez que não obsta à alteração da notação técnica, dado que os quilómetros que a viatura ostenta não correspondem aos verdadeiramente percorridos e mesmo apondo-se de maneira publicitável que tal viatura em 12.02.2003 tinha 113.385 km, ainda assim desconhece-se quais os quilómetros que percorreu desde então. Ora, atenta a natureza do objecto em causa, a qual se pode considerar intrinsecamente ilícita e desconforme à legalidade vigente, e tanto mais que o requerente se dedica ao comércio de viaturas usadas, considera-se que o mesmo pode ser utilizado na prática de futuros ilícitos jurídico-penais, atentas as características específicas inerentes ao próprio objecto apreendido nos autos, como também não se pode olvidar as circunstâncias concretas em que tal apreensão ocorreu, e já citadas, pondo em causa a ordem pública.
Sem ignorar que tal objecto comporta em si mesmo características que se podem considerar objectiva e intrinsecamente perigosas para a ordem pública, e a confiança de que as notações técnicas gozam no seio da nossa comunidade jurídica, criando no cidadão a convicção legítima que o número de quilómetros que uma viatura ostenta no seu conta-quilómetros corresponde ao número de quilómetros percorridos por essa mesma viatura, e afigura-se que o mesmo, voltando ao comércio e ao tráfego jurídico, pode pôr em perigo essa mesma ordem pública e não evita que a falsificação se mantenha, verificando-se assim o mesmo ilícito.
Assim, ao abrigo do preceito legal supra transcrito, e conforme promovido, e pelos fundamentos acima expostos, declara-se tal objecto, o veículo automóvel com a matrícula XX-XX-XX, da marca "Ford", modelo "Focus" perdido a favor do Estado (cfr. Art. 109, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal).
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Conhecendo:
A questão única suscitada no recurso respeita à declaração de perda de objecto, in casu o veículo automóvel matricula XX-XX-XX.
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Declaração de perda de objectos:
In casu, a perda de objectos a favor do Estado, só poderá ocorrer, por força do disposto no art. 109 do CP.
Refere este preceito que, são declarados perdidos a favor do estado os objectos que tiverem servido ou estivessem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico, ou que por este tiverem sido produzidos, quando, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, puserem em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem públicas, ou oferecerem sério risco de ser utilizados para cometimento de novos factos ilícitos típicos.
É certo e como se refere no despacho recorrido que, “a norma contempla, pois, dois grupos de objectos susceptíveis de perdimento em favor do Estado: aqueles que tiverem servido ou estiverem destinados a servir para a prática de um facto ilícito típico (instrumenta sceleris) e os que tiverem sido produzidos pelo facto ilícito típico (producta sceleris)”.
Já não é tão certo que a viciação do conta-quilómetros se integre num destes grupos. Será esta viciação causa ou efeito do crime?
Refere o Ac. do SRJ de 23-01-1997, in www.dgsi.pt que, “deixou de haver perda a favor do Estado dos objectos sobre os quais incidiu a actuação ilícita e que não tenham a natureza de instrumentos do crime, como seja o automóvel que tenha sido objecto de viciação dos seus elementos identificadores”.
Mas, se em relação aos elementos identificadores do veículo (numero do quadro, número do motor, chapa de matrícula –considerados documentos porque transcritos como tal nos registos oficiais), temos dúvidas que não deva ser assim, haver perdimento, veja-se, neste sentido, o Ac. desta Relação de 18-12-1996, in Col. Jurisp. tomo V, pág. 64, tal não sucede quando o elemento falsificado não é identificador do veículo, como no caso dos autos, de viciação do conta-quilómetros.
Mas, quer se trate de instrumenta sceleris quer se trate de producta sceleris (quer seja instrumento do crime ou produto do crime), para a declaração de perdimento a favor do Estado, é necessário que o bem seja susceptível, por sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, de pôr em perigo a segurança das pessoas, a moral ou a ordem pública ou oferecer sério risco de ser utilizado para o cometimento de novos factos ilícitos típicos –Ac. do STJ de 3-07-1996, in Col. Jurisp. (S) tomo II, pág. 211.
E, não se vislumbra que tal venha a acontecer, utilização para o cometimento de novos factos ilícitos típicos, tendo em conta até a idade do veículo.
Sendo que o veículo automóvel não é instrumento nem produto do crime, mas apenas, mas sim o objecto sobre o qual incidiu a actuação. Não se falsifica com o veículo e este não é resultado da falsificação. É no veículo que se falsifica.
Refere Maia Gonçalves no seu Código Penal Português que, o fundamento da perda dos instrumentos que servem para a prática de factos ilícitos típicos é a sua perigosidade, e esta afere-se pela natureza dos mesmos instrumentos e pelas circunstâncias do caso.
Figueiredo Dias, in Direito Penal português- As consequências jurídicas do crime, pág. 616 aponta para a perigosidade do objecto, considerando que devem ser declarados perdidos os objectos instrumentos ou produtos que, atenta a sua natureza intrínseca, isto é, a sua utilidade específica e co-natural social, se mostrem especialmente vocacionados para a prática criminosa e devam por isso, considerar-se, nesta acepção, objectos perigosos.
O que manifestamente se não verifica num veículo automóvel.
Acresce que deve ser tido em conta o princípio da proporcionalidade, pois como refere o Ac. do STJ de 14-03-02, a perda do instrumentum sceleris, não estando submetida ao princípio da culpa, terá que ser equacionada com o princípio da proporcionalidade relativamente à importância do facto.
E, in casu é manifesta essa desproporcionalidade.
O Ac. da Rel. Guimarães de 27-09-2004, in Col. Jurisp. tomo I, pág. 294, conclui e relativamente a automóvel viciado e relativamente a elementos identificadores, que “o veículo em causa não entra em nenhuma das duas categorias de instrumentos referidos no nº 1 do art. 109. Com efeito, nem é instrumento do crime nem produto dele. É antes o objecto sobre o qual incidiu a actuação ilícita”.
Assim, que entendamos não ser de declarar perdido a favor do Estado, tal veículo.
Assim, que se julgue procedente o recurso.
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Decisão:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra e Secção Criminal, em julgar procedente o recurso, e em consequência, revoga-se o despacho recorrido.
Sem custas.
Coimbra,
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