Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1428/10.3TBPMS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS CRAVO
Descritores: RESERVA DE PROPRIEDADE
VENDA A PRESTAÇÕES
RESOLUÇÃO
ABUSO DE DIREITO
Data do Acordão: 06/25/2013
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PORTO DE MÓS
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 217, 334, 409, 627, 628, 801, 808, 934 CC
Sumário: 1. O art. 409º, nº1, do C.Civil, estabelece a possibilidade do alienante reservar para si a propriedade da coisa, até que o devedor cumpra, total ou parcialmente, as suas obrigações, configurando uma excepção ao princípio geral, segundo o qual, a propriedade da coisa vendida se transfere por mero efeito do contrato (art. 879º, al. a), do mesmo C.Civil).

2.Por força da cláusula de reserva de propriedade, a propriedade da coisa alienada só se transfere no momento em que o comprador cumpra todas as suas obrigações, operando essa cláusula como garantia do adquirente cumprir essas obrigações (normalmente o pagamento do preço).

3. Na venda a prestações, com reserva de propriedade e entrega da coisa ao comprador, o direito de resolver o contrato, radicado na norma imperativa contida no art. 934º do C.Civil, não surge automaticamente por virtude da falta de pagamento de uma prestação que exceda a oitava parte do preço.

4. Adquirido pelo vendedor o direito à resolução do predito contrato, não está aquele dispensado de seguir as normas gerais, ao art. 808º nº1 do C.Civil, nomeadamente, devendo recorrer a "intimação admonitória para cumprimento", caso não consiga demonstrar a perda de interesse na prestação (a qual, nos termos do art. 808º nº2 do C.Civil, deve ser apreciada objectivamente).

5. E só se pode falar em actuação com Abuso do Direito caso o vendedor aqui Exequente tivesse de alguma forma incutido no Executado ora Opoente, com a sua actuação, verificado que estava um incumprimento determinante da perda do benefício do prazo, que não iria exercitar o seu legítimo direito à exigência antecipada do saldo devedor total, nomeadamente em termos de se poder então afirmar que esse seu exercício constituía uma retaliação, pois que só aí haveria violação da regra da boa-fé e do princípio da confiança a evidenciar claro “venire contra factum proprium”, o que seguramente não ocorre quando o Exequente actuou “ab initio” em vista do pagamento do preço em dívida.

Decisão Texto Integral:             Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra[1]

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            1 – RELATÓRIO

Por apenso aos autos em que era Exequente “T (…)– Comércio de Máquinas e Equipamentos, Ld.ª” e executados “S (…) Ld.ª” e J (…) veio este executado deduzir oposição à execução, alegando, em síntese, que não foi por si declarada expressamente a fiança e que a obrigação principal se extinguiu, atenta a reserva de propriedade prevista no contrato de compra e venda celebrado com a co-executada sociedade.

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A Exequente contestou, sustentando que o Opoente vendeu a máquina escavadora a terceiros e que a obrigação de pagar o preço acordado e a extinção da fiança não se extinguiram.

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Na sequência foi proferido despacho saneador, com a afirmação tabelar dos pressupostos processuais, finalizando-se por dispensar a selecção da matéria de facto, dada a simplicidade da causa, tudo sem reclamação.

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Realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância do formalismo legal, tendo sido na oportuna sequência proferido despacho de resposta à matéria de facto (cf. fls. 58-60), do qual não coube qualquer reclamação.

Veio finalmente a ser proferida sentença através da qual se julgou improcedente quer o fundamento da oposição consistente na falta de assunção de fiança pelo Opoente, quer o fundamento da alegada extinção da obrigação principal (donde e concomitantemente, da obrigação acessória do fiador), em face da reserva de propriedade prevista no contrato, termos em que, na total improcedência da oposição deduzida, se determinou o normal prosseguimento da execução para pagamento da quantia exequenda.

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   Inconformada com essa sentença, apresentou o Opoente/Executado recurso de apelação contra a mesma, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:

«1 – Os factos provados com relevo para a boa decisão da causa.

a) O vendedor, Tecma, ora exequente, declarou vender a máquina, mas transferindo a respetiva posse para o comprador, declarou reservar para si o direito de propriedade até ao integral pagamento do preço, declaração de vontade que foi assinada pelo seu legal representante, conforme resulta das cláusulas 1.ª, 3ª e 5.ª.

b) Provado ficou que no escrito designado por contrato de compra e venda não consta qualquer declaração de vontade reduzida a escrito e que se limitou a assinar por baixo da palavra fiador.

c) Acordado ficou entre comprador e vendedor que a falta de pagamento de uma das prestações fazia vencer as restantes, clausula 4.ª do aludida escrito.

d) A Exequente notificou o executado, ora Recorrente do vencimento da totalidade das prestações por falta de pagamento de três prestações.

e) Acordado entre comprador e vendedor ficou que o vendedor fica com plenos direitos sem necessidade de outra formalidade para entrar na posse da máquina e seus acessórios logo que o comprador não proceda ao pagamento voluntários e pontual das prestações, clausula 5.ª.

f) Ficou acordado entre vendedor e comprador que no caso de incumprimento do contrato, o comprador ficava obrigado a indemnizar o vendedor de todos os prejuízos causados, conforme melhor resulta da cláusula 8.ª.

2 - Violação das normas dos artigos 628.º, n.º1 e 217.º do Código Civil.

a) O Apelante não produziu qualquer declaração de vontade; não consta qualquer declaração reduzida a escrito no documento designado por documento de compra e venda onde se possa ler que o J (…), ou sequer, que o Fiador declarou que garante o pagamento do preço da máquina ou que garante o pagamento da indemnização pelos prejuízos resultantes do incumprimento do contrato, apenas constando a sua assinatura sob a palavra fiador.

b) O Apelante não produziu declaração expressa no sentido de garantir o pagamento do preço da máquina ou de indemnização pelos prejuízos resultantes do incumprimento do contrato.

c) Declaração expressa é a declaração feita por palavras, escrito ou outro meio direto de manifestação de vontade, conforme dispõe o artigo 217.º do Código Civil, mas não obstante “... a regra geral da liberdade declarativa, há casos em que o Código exige declarações expressas ...” como é o caso do número 1 do artigo 628.º do Código Civil( in Código Civil Anotado Pires de Lima/Antunes Varela, em anotação ao artigo).

d) Não existe declaração de vontade expressa do Apelante a garantir a satisfação do crédito do Exequente, como impõe o número 1 do artigo 628.º do Código Civil, norma que exige que a declaração da vontade de prestar fiança seja expressa; que a vontade de cobrir a obrigação do comprador, obrigando-se perante o credor, a realizar a mesma prestação tem que resultar diretamente da declaração do fiador e não através deduções, inferências ou presunções ...”, razão porque não há fiança.

e) A Douta Sentença qualificando a factualidade descrita como fiança e obrigando o Executado ora Apelante a pagar a quantia exequenda viola o disposto nos artigos 628.º, n.º1 e 217.º ambos do Código Civil. Se assim se não entender,

3 – Violação das normas dos artigos 409.º, 405.º e 334.º todos do Código Civil.

a) Reservada a propriedade da máquina e ressalvada por acordo a possibilidade de ir buscar a máquina na falta de pagamento pontual das prestações, o acordado na cláusula 5.ª, ficou contratualmente afastada possibilidade de cobrança do preço no caso de falta

de pagamento de uma das prestações, porquanto o vendedor não pode ter a possibilidade de ir buscar a máquina e ter direito ao preço.

b) O vendedor reservou para si a propriedade da coisa, compra e venda sob a condição suspensiva, da transferência da propriedade, do pagamento do preço, acontecimento futuro e incerto, evento do qual dependia a produção daquele efeito jurídico.

c) Tendo as partes acordado que a falta de pagamento do pagamento voluntário e pontual das prestações, facultava ao vendedor a possibilidade de ir, de imediato e sem formalidade, buscar a máquina e o direito a ser ressarcido pelos prejuízos resultantes pela falta de pagamento das prestações, a comunicação de vencimento da totalidade das prestações, extinguiu o direito do vendedor de cobrar a totalidade do preço e a obrigação de o pagar, pois o vendedor não pode exigir o preço e simultaneamente manter a propriedade da máquina, cláusulas 5.ª e 8.ª.

d) O vendedor, ao reservar para si direito de propriedade sobre a máquina, ao acordar na faculdade de ir a buscar sem qualquer formalidade no caso de falta de pagamento pontual das prestações, renunciou ao direito ao preço em caso de incumprimento, pois o vendedor não pode manter a propriedade e ter direito a receber o preço da sua transmissão.

e) A comunicação sobre a falta de pagamento de três prestações fez extinguir o direito ao preço e revivescer o direito à entrega da máquina, com o que se extinguiu a obrigação de pagar o preço, que era a obrigação principal, nos termos do disposto no artigo 651.º do Código Civil, com o que se extinguiu assim a fiança, obrigação acessória.

f) Tendo a presente execução por objeto o pagamento da quantia certa correspondente ao preço e extinguindo-se a obrigação de o pagar, extinguiu-se a obrigação acessória, a do alegado fiador, que, além dos meios de defesa que lhe são próprios, tem o direito de opor ao credor aqueles que competem ao devedor, nos termos do artigo 637.º do Código Civil.

g) Da factualidade provada resultar para o comprador, o dever de indemnizar por incumprimento e o dever de entregar a coisa, mas não pode resultar o dever de pagar o preço pois a propriedade foi reservada pelo vendedor.

h) A Douta Sentença viola o disposto no artigo 409.º do Código Civil, porquanto não reconhece a natureza condicional da da transmissão do direito de propriedade, no contrato de compra e venda com reserva de propriedade e a sua manutenção na titularidade do vendedor.

i) A Douta Sentença viola o disposto no artigo 405.º do Código Civil, porquanto não reconhece o contratualmente estabelecido pelas partes quanto ao incumprimento do contrato, concretamente, quanto aos efeitos contratualmente fixados pelas partes, da possibilidade do vendedor ir buscar a máquina no caso de incumprimento/falta de pagamento do preço e da obrigação de indemnizar por aquele incumprimento e consequente extinção do dever de pagar o preço, pois o vendedor não pode ter direito à máquina e ao preço em simultâneo.

j) A Douta Sentença viola o disposto no artigo 334.º do Código Civil, porquanto tendo as partes fixado contratualmente a possibilidade do vendedor reaver a máquina, constitui manifesto abuso de direito o exercício do direito à cobrança do preço de venda da coisa, mantendo o vendedor o direito de propriedade sobre a mesma, revelado na faculdade do vendedor a ir buscar onde quer que ela esteja, faculdade que é própria do dominus ou legitimo proprietário.

---- Termos em que, Deve a Douta Sentença ser alterada por Douto Acórdão que declare procedente por provada a Oposição deduzida e que absolva o Apelante do pagamento da quantia peticionada/exequenda, pois só assim se fará Justiça.»

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            Não foram apresentadas contra-alegações.

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            Colhidos os vistos e nada obstando ao conhecimento do objecto do recurso, cumpre apreciar e decidir.

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            2QUESTÕES A DECIDIR, tendo em conta o objecto do recurso delimitado pelo Executado/Opoente/Recorrente nas conclusões das suas alegações (arts. 684º, nº3 e 685º-A, nºs 1 e 3, ambos do C.P.Civil), por ordem lógica e sem prejuízo do conhecimento de questões de conhecimento oficioso, observado que seja, quando necessário, o disposto no art. 3º, nº3 do C.P.Civil:

 - Falta de assunção da obrigação de fiança por parte do Opoente, por não constar do contrato qualquer declaração de vontade expressa por parte do mesmo reduzida a escrita nesse sentido?;

- Extinção da obrigação principal de pagar o preço, donde e concomitantemente, da obrigação acessória do fiador ora co-Executado/Opoente, em face da reserva de propriedade para o vendedor ora Exequente prevista no contrato (o vendedor não pode ter a possibilidade de ir buscar a máquina e ter direito ao preço)?;

- Violação da norma do Abuso do direito na sentença, por se reconhecer à Exequente o exercício do direito à cobrança do preço de venda da coisa, mantendo o vendedor o direito de propriedade sobre a mesma?

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3 – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Consiste a mesma na enunciação do elenco factual que foi considerado/fixado pelo tribunal a quo (factos que se consideraram provados na 1ª instância):

I – Foi junto ao requerimento executivo um escrito com o seguinte teor:

« CONTRATO DE COMPRA E VENDA

Entre a firma T (…)-COMÉRCIO DE MÁQUINAS E EQUIPAMENTOS, LDA, com sede em Santo Antão Apartado 100 2440-053 Batalha, (…) como firma vendedora, e S (…) LDA, com sede na rua esquerda n.º 6, Moita, (...) Marinha Grande, (…) como comprador e, J (…), portador do Bilhete de Identidade (…), contribuinte número (…) como Fiador, é efectuado um contrato de COMPRA e VENDA nas seguintes condições:

1.º

A firma vendedora transfere para a firma compradora a posse da máquina com as seguintes características: UMA MINI-ESCAVADORA USADA DA MARCA HITACHI MODELO ZX35U-2 SÉRIE Nº HCM1M800 E000111148 com garantia de um ano-

2.º

A venda é feita pelo valor de Euros 42.000,00 Euros (quarenta e dois mil euros).

O valor anteriormente referido será pago do seguinte modo:

1- Entrada inicial de Euros 3.000,00 (Três Mil euros)

2- Retoma de uma máquina usada, da marca Caterpillar, modelo 303 5 série n.ºAFW01654, pelo valor de 12.000,00 Euros (Doze Mil euros).

3- Os restantes € 27.000,00 (vinte e sete mil euros) serão pagos em 24 (vinte e quatro) prestações mensais iguais e consecutivas no valor de € 1.274,00 (mil duzentos e setenta e quatro euros) cada. As prestações são cobertas por letras, aceites pelo comprador e avalizadas pelo Fiador. Os encargos são da conta do comprador e estão incluídos no valor das letras. As letras serão descontadas na banca.

Esta venda é firme, mas o vendedor é titular do direito de propriedade, de acordo com o que dispõe o artigo 409 do código civil, sobre máquinas e seus acessórios até que o preço da venda, expresso nas cláusulas anteriores seja integralmente pago em dinheiro, de acordo com as condições prescritas no presente contrato.

A falta de pagamento de qualquer das prestações pelo comprador torna imediatamente exigível o saldo devedor, após comunicação da mora pelo devedor, por meio de carta registada e com aviso de recepção

O vendedor fica em plenos direitos, sem necessidade de qualquer outra formalidade, de entrar na posse da máquina e seus acessórios, logo que o comprador não proceda ao pagamento voluntário e pontual das prestações.

Até que o preço esteja integralmente pago, o comprador não poder vender, penhorar, emprestar, locar ou de qualquer forma alienar a máquina objecto deste contrato, ou fazer recair sobre a mesma quaisquer ónus.

A deterioração ou destruição da máquina, seus acessórios e equipamento objecto deste contrato, depois de entregue ao comprador e, ainda que tal aconteça, por acaso fortuito ou de força maior, não exonera o Comprador da obrigação de pagar integralmente as prestações ainda não vencidas.

No caso do comprador não cumprir este contrato, fica obrigado a indemnizar o vendedor de todos os prejuízos causados.

O contrato lido e devidamente explicado a todos os intervenientes, que o compreenderam e aceitaram de livre vontade, pelo que o vão assinar.

10º

Todas as questões emergentes deste contrato ficarão sujeitas ao foro da comarca de Porto de Mós.

Batalha, 01 de Novembro de 2009 »

[cf. facto “1.” alinhado na sentença];

II – O escrito referido em 1. foi assinado por um representante da exequente sob a menção “VENDEDOR”, por um representante da sociedade executada sob a menção “COMPRADOR” e pelo opoente sob a menção “O FIADOR”

[cf. facto “2.” alinhado na sentença];

III – Em 01/10/2010, a exequente enviou ao opoente uma carta registada com aviso de

recepção, que este recepcionou em 04/10/2010, com o seguinte teor:

«Exmo Senhores

Conforme estabelecido no contrato de compra e venda, vimos informar que se encontram vencidas e não pagas três (3) prestações no valor de 1.274,00 cada, com vencimentos em 10/07/2010, 10/08/2010 e 10/09/2010.

De acordo com o referido contrato de compra e venda, o não pagamento de qualquer das prestações torna imediatamente exigível o pagamento do saldo, no valor actual, até 01/09/2010, de 22.648,73 €.

Para dar cumprimento ao artigo 4º do contrato de compra e venda, se envia esta carta em correio registado e com aviso de recepção (…)»

[cf. facto “3.” alinhado na sentença].

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4 - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1– Cumpre então entrar na apreciação da primeira das questões supra enunciadas, a saber, a da Falta de assunção da obrigação de fiança por parte do Opoente, por não constar do contrato qualquer declaração de vontade expressa por parte do mesmo reduzida a escrita nesse sentido:

Para se sustentar e concluir em sentido contrário, foi aduzido mais relevante e incisivamente o seguinte na sentença em recurso:

«(…) No que concerne ao opoente, o mesmo assinou esse contrato de compra e venda sob a expressão “o fiador”.

Tomando em consideração a norma constante do referido artigo 628.º, n.º 1 do Código Civil, entende-se por declaração expressa, aquela que é feita por palavras, escrito ou quaisquer outros meios directos, frontais, imediatos de expressar a vontade (artigo 217.º, n.º 1, do Código Civil).

Nestes termos, aquele primeiro preceito legal impõe que a fiança “tem que resultar directamente da declaração do fiador, e não através de deduções, inferências ou presunções, embora para esses efeitos não haja fórmulas precisas e sacramentais” (cf. ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, Vol. II, 7.ª, págs. 482 e 4836).

            Todavia, “a circunstância de uma declaração ser expressa não dispensa uma actividade interpretativa, a qual tem de ser sempre realizada, como sucede com todo o texto legal, uma vez que a declaração expressa não supõe que os meios directos de manifestação de vontade tenham de ser também inequívocos e que, por conseguinte, não exista a necessidade de se recorrer à interpretação a fim de se extrair qual o sentido a dar àqueles meios directos de declaração expressa de vontade” (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 26/10/2010, proc. 357/1999.P1.S1, www.dgsi.pt, citando MANUEL DE ANDRADE e ANTUNES VARELA).

Recorrendo às normas previstas nos artigos 236.º, n.º 1 e 238.º, n.º 1 do Código Civil, conclui-se que a aposição de uma assinatura num contrato de compra e venda sob a expressão “o fiador”, por um interveniente distinto dos que subscreveram o mesmo contrato na qualidade de vendedor e comprador permite a um declaratário normal, colocado perante a situação real descrita nestes autos, deduzir que aquele está a emitir uma declaração negocial com o sentido de prestar expressamente uma fiança, obrigando-se o opoente perante a exequente a garantir com o seu património a satisfação do pagamento das quantias que viessem a ser devidas pela sociedade executada, decorrentes do incumprimento do contrato de compra e venda (sendo certo que, de acordo com o mesmo contrato, a posse da máquina vendida foi logo entregue à compradora, pelo que apenas a prestação contratual assumida pela compradora se dilataria no tempo, através do pagamento em prestações e, nessa medida, apenas quanto a essa prestação poderia corresponder a fiança prestada).

Na perspectiva de qualquer pessoa com capacidade, razoabilidade, conhecimento e diligência medianos colocada na posição da exequente, o comportamento negocial do opoente, ao identificar-se e assinar o referido contrato de compra e venda como o fiador traduz uma declaração expressa de constituição de uma fiança. De resto, não sendo invocado qualquer falta ou vicio da vontade do opoente ao assinar como fiador aquele contrato, não se antevê qual o sentido e o efeito útil desse seu comportamento que não obrigar-se como fiador – cujo conceito é perceptível pela generalidade da comunidade – conforme resulta expressamente do texto do contrato, ainda que, contrariamente à sua conduta anterior, venha agora invocar a inexistência de qualquer declaração negocial, de modo a eximir-se à responsabilidade contratual que livremente assumiu, sem sequer apresentar qualquer justificação para assinar um contrato de compra e venda como fiador mas sem que, alegadamente, pretendesse obrigar-se como tal.».

            Merece-nos inteiro acolhimento esta via de argumentação, a que aderimos sem qualquer rebuço ou ressalva.

            Na verdade, que mais exigir para se poder afirmar que ocorreu uma declaração de vontade expressa de se assumir como “fiador”, do que assinar um contrato no espaço específica e literalmente reservado e destinado a quem o fazia nessa qualidade e a esse título?

            Tenha-se, sobretudo, presente que o contrato foi assinado pelo ora Opoente sob a menção escrita e literal de “O FIADOR”…

            Sendo certo que – como, aliás, doutamente evidenciado na sentença sob recurso – o conceito e qualidade jurídica de “fiador” é de percepção corrente na nossa sociedade, enquanto comummente associado ao “eu respondo pelo devedor”, sem que, aliás, o Opoente sequer alegue desconhecimento ou menor informação sobre o que isso seja, isto é, sobre as consequências que significam e implicam subscrever/intervir nessa qualidade num contrato…

            O que tudo serve para dizer que se nos afigura como perfeitamente falacioso o que “à outrance” se invoca nas alegações recursivas como fundamento para sustentar o recurso neste particular.
 Improcede, assim, e sem necessidade de maiores considerações, este fundamente recursivo.
                                                           *
4.2 – Vejamos agora da subsequente questão supra enunciada, que se traduz em apreciar e decidir sobre a Extinção da obrigação principal de pagar o preço, donde e concomitantemente, da obrigação acessória do fiador ora co-Executado/Opoente, em face da reserva de propriedade para o vendedor ora Exequente prevista no contrato (o vendedor não pode ter a possibilidade de ir buscar a máquina e ter direito ao preço):
Sustenta enfaticamente o co-Executado/Opoente as sua alegações nesta linha de argumentação.
Contudo, só o podemos compreender no contexto do exercício do patrocínio por quem doutamente o representa.
E para o evidenciar, entendemos que o mais curial será fazer uma breve incursão teórica e doutrinal sobre a figura conceitual do contrato de venda a prestações, com reserva de propriedade.     

O tipo geral de compra e venda acolhido pelo legislador é aquele que tem por efeito directo e imediato a transmissão da propriedade.

Todas as outras compras e vendas são tipos especiais relativamente a este tipo geral.

Assim, a compra e venda com reserva de propriedade é um tipo especial de compra e venda, em que a transferência da propriedade é diferida: ao celebrarem o contrato as partes têm por objectivo transferir a propriedade e pretendem fazê-lo sem que se torne necessário nova manifestação de vontade nesse sentido; porém, por razões que se prendem com a garantia de uma das partes contra o risco de incumprimento da outra, as partes desligam temporalmente a transmissão da propriedade com respeito à celebração do contrato e fazem-na coincidir com o pagamento do preço pelo comprador.

Isto é, através da reserva da propriedade, as partes transformam o contrato de compra e venda, que, regra geral, é um facto complexo de formação instantânea, num facto complexo de formação sucessiva.

No negócio condicional, sendo a condição suspensiva, tudo se passa como se o negócio não tivesse sido celebrado.

Ora, não é exactamente isto o que ocorre com o negócio (alienação) celebrado com reserva de propriedade: neste, apenas fica “suspenso”, o efeito translativo da propriedade, enquanto os outros se produzem imediatamente; isto é, apesar da referida suspensão há lugar, regra geral, desde logo à transmissão da posse que se opera com a tradição da coisa.

Donde, já ter sido sustentado “Enquanto o adquirente detém o conjunto de poderes de gozo e disposição que correspondem ao conteúdo do direito de propriedade, a propriedade reservada do alienante consiste apenas na titularidade ‘abstracta’ do direito de propriedade.[2]

Por outro lado, não se verificando a “condição” do pagamento do preço, o negócio não desaparece automaticamente como aconteceria se estivéssemos perante uma verdadeira e própria condição, diferentemente fica dependente da vontade do credor alienante que tanto pode exercer a acção de cumprimento (mantendo o contrato e exigindo o cumprimento), como resolvê-lo e obter a restituição da coisa.

Acrescendo que o pagamento do preço (ou prestações do preço) não surge na compra e venda com reserva de propriedade como um acto voluntário, como seria no caso de configurar uma condição potestativa: na medida em que o vendedor pode optar pela acção de cumprimento, exigindo o preço devido, no caso de incumprimento, tal pagamento configura-se como uma obrigação e não como uma condição.[3]

Naturalmente que, adquirido pelo vendedor o direito à resolução do contrato repousante na norma imperativa contida no art. 934º do C.Civil, não está aquele dispensado de seguir as normas gerais, devendo, nomeadamente, recorrer ao art. 808º nº 1 do C.Civil.

Isto é, do art. 934º do C.Civil não pode inferir-se, por argumento a contrario sensu, como recorda VASCO LOBO XAVIER,[4]que, na venda a prestações com reserva de propriedade e entrega da coisa ao comprador, o direito de resolver o contrato surge automaticamente por virtude da falta de pagamento de uma prestação que exceda a oitava parte do preço.”[5].

Antes, o que fica facultado ao vendedor nessas circunstâncias, é o recurso, em alternativa, a dois meios: a resolução do contrato ou a exigibilidade antecipada das prestações vincendas, por via da perda do benefício do prazo.

Sem embargo, esta opção – entre os pedidos de resolução do contrato e de exigibilidade antecipada com base na perda do benefício do prazo – não é total.

Esta conclusão apoia-se em dois fundamentos. Primeiro, a resolução só pode ser pedida nos termos gerais; isto é, depois de se estar perante uma situação de incumprimento definitivo total (art. 801.º, nº2 do CC), ou parcial, sendo grave (art. 802.º do CC). Porém, a falta de pagamento de um oitavo do preço parece corresponder naturalmente a um incumprimento grave, pelo que, sendo definitivo, não terá de passar por outro crivo. Segundo, nada obsta a que o vendedor exiga o pagamento das prestações vincendas com base na perda do benefício do prazo, depois de ter decorrido o prazo admonitório ou na sequência de declaração do comprador no sentido de não pagar o preço.” [6]

Obviamente que verificada a situação de incumprimento definitivo, poderá o vendedor pedir a resolução do contrato, em alternativa à exigência do preço em falta, acrescido dos juros de mora; como também, estando em dívida duas prestações, mesmo que de valor inferior a um oitavo do preço, parece dever entender-se que também se aplicam as soluções estabelecidas em alternativa para a hipótese de falta de uma prestação de valor superior a um oitavo (nomeadamente o recurso à exigência do preço em falta).  

O que tudo serve para dizer que na conceptualização dogmática que tem sido feito desta instituto jurídico e da sua interpretação na jurisprudência, nada obstava no caso ajuizado, verificado que estava o incumprimento determinante da perda do benefício do prazo – à luz do disposto no art. 934º do C.Civil – e depois de comunicada a situação de mora como exigido contratualmente, à exigência antecipada do saldo devedor total, isto é, das prestações vencidas e vincendas.

Sendo mesmo, diríamos nós em jeito de conclusão neste particular, co-natural neste instituto jurídico e até a via mais facilitada e segura para a tutela dos direitos do vendedor.

Improcede assim obviamente este fundamento recursivo.

                                                           *

4.3 – Vejamos, para finalizar, do acerto do postulado da Violação da norma do Abuso do direito na sentença por se reconhecer à Exequente o exercício do direito à cobrança do preço de venda da coisa, mantendo o vendedor o direito de propriedade sobre a mesma:

Salvo o devido respeito, só se compreende a colocação desta questão como fruto de desconhecimento ou menor compreensão do recorte dogmático do contrato de venda a prestações, com reserva de propriedade.

Sendo certo que o vindo de dizer na análise da questão precedente, em grande medida creio que já fez adivinhar esta resposta.

Senão vejamos.

Dispõe o art. 334º do C.Civil:

“É ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.”

O instituto do abuso do direito visa obtemperar a situações em que a invocação ou exercício de um direito que, na normalidade das situações seria justo, na concreta situação da relação jurídica se revela iníquo e fere o sentido de justiça dominante.

Para que se possa considerar abusivo o exercício do direito, importa demonstrar factos, através dos quais se possa considerar que, ao exercê-lo se excede, manifestamente, clamorosamente, o seu fim social ou económico, ou que a pretensão viola sérias expectativas incutidas na contraparte, assim traindo o investimento na confiança, o que exprime violação da regra da boa-fé.

Temos também presente que o art. 334º do C.Civil, acolhe uma concepção objectiva do abuso do direito, segundo a qual não é necessário que o titular do direito actue com consciência de que excede os limites impostos pela boa-fé, pelos bons costumes ou pelo fim económico ou social do direito.

A lei considera verificado o abuso, prescindindo dessa intenção, bastando que a actuação do abusante, objectivamente, contrarie aqueles valores.

Como ensina ANTUNES VARELA, “Para que o exercício do direito seja abusivo, é preciso que o titular, observando embora a estrutura formal do poder que a lei lhe confere, exceda manifestamente os limites que lhe cumpre observar, em função dos interesses que legitimam a concessão desse poder.”[7]

Ora, como já vimos, faz parte da configuração dogmática do instituto jurídico da compra e venda com reserva de propriedade, a propriedade não se transferir para o comprador enquanto o preço não for pago.

Sendo que, verificada a situação de incumprimento definitivo, poderá o vendedor pedir a resolução do contrato, ou, em alternativa, exigir o preço em falta, acrescido dos juros de mora.

Sendo sempre certo que estando verificado um incumprimento determinante da perda do benefício do prazo, constitui-se como o exercício de um legítimo direito, a exigência antecipada do saldo devedor total.

Neste quadro, como se pode então afirmar que o direito está a ser exercido (como acentuava M. de Andrade), “em termos clamorosamente ofensivos da justiça?

Ou que haja um venire contra factum proprium”?

Decididamente não o vislumbramos…

Tenha-se presente que a Exequente actuou “ab initio” em vista do pagamento do preço em dívida, sendo que, antes de proceder judicialmente, até começou por comunicar a situação de mora como exigido pela cláusula 4º do contrato celebrado entre as partes.

Isto é, face ao conspecto fáctico alegado e apurado, em nenhum momento a aqui Exequente, pela sua atitude, fez legitimamente a contraparte (leia-se, o co-Executado ora Opoente) confiar que não iria exercitar o seu legítimo direito à exigência antecipada do saldo devedor total.

De facto, como ensina FERNANDO CUNHA DE SÁ, “O abuso prescinde quer da causação de danos (pode haver um acto abusivo não danoso) quer, quando os haja, qualquer elemento subjectivo, na forma de dolo ou de mera culpa; ora sendo assim, a exigência de culpa requisito da responsabilidade civil por actos abusivos, depende da possibilidade de emitir um juízo de reprovação sobre a conduta do agente, pois nisso mesmo é que consiste a culpa.

Dito por outras palavras, depende da existência de um dever que impenda sobre o titular do direito subjectivo ou da diversa prerrogativa jurídica e que este tenha violado voluntariamente.[8].

Finalmente, o facto de o vendedor (leia-se, a aqui Exequente) conservar o seu direito de propriedade – que não se transfere para o comprador enquanto o preço não for pago – não conflitua minimamente com o vindo de afirmar.

Tal é uma das características do instituto jurídico da compra e venda com reserva de propriedade, apenas dissentindo os autores quanto a o vendedor, poder logo lançar mão da execução, sem resolver o contrato, relativamente ao que há autores[9] que sustentam que é possível ao vendedor nomear à penhora o bem alienado com reserva de propriedade, entendendo-se que o vendedor renuncia à resolução do contrato de compra e venda.[10] 

Pelo exposto, soçobra também esta pretensão recursiva do Opoente ora Recorrente.

                                                           *                    

5 – SÍNTESE CONCLUSIVA

I – O art. 409º, nº1, do C.Civil, estabelece a possibilidade do alienante reservar para si a propriedade da coisa, até que o devedor cumpra, total ou parcialmente, as suas obrigações, configurando uma excepção ao princípio geral, segundo o qual, a propriedade da coisa vendida se transfere por mero efeito do contrato (art. 879º, al. a), do mesmo C.Civil).

II – Por força da cláusula de reserva de propriedade, a propriedade da coisa alienada só se transfere no momento em que o comprador cumpra todas as suas obrigações, operando essa cláusula como garantia do adquirente cumprir essas obrigações (normalmente o pagamento do preço).

III – Na venda a prestações, com reserva de propriedade e entrega da coisa ao comprador, o direito de resolver o contrato, radicado na norma imperativa contida no art. 934º do C.Civil, não surge automaticamente por virtude da falta de pagamento de uma prestação que exceda a oitava parte do preço.

IV – Adquirido pelo vendedor o direito à resolução do predito contrato, não está aquele dispensado de seguir as normas gerais, ao art. 808º nº1 do C.Civil, nomeadamente, devendo recorrer a "intimação admonitória para cumprimento", caso não consiga demonstrar a perda de interesse na prestação (a qual, nos termos do art. 808º nº2 do C.Civil, deve ser apreciada objectivamente).

V – E só se pode falar em actuação com Abuso do Direito caso o vendedor aqui Exequente tivesse de alguma forma incutido no Executado ora Opoente, com a sua actuação, verificado que estava um incumprimento determinante da perda do benefício do prazo, que não iria exercitar o seu legítimo direito à exigência antecipada do saldo devedor total, nomeadamente em termos de se poder então afirmar que esse seu exercício constituía uma retaliação, pois que só aí haveria violação da regra da boa-fé e do princípio da confiança a evidenciar claro “venire contra factum proprium”, o que seguramente não ocorre quando o Exequente actuou “ab initio” em vista do pagamento do preço em dívida.

                                                                       *

6 - DISPOSITIVO

Pelo exposto, decide-se a final, julgar totalmente improcedente a apelação, mantendo a sentença recorrida quanto ao decidido no sentido de determinar o normal prosseguimento da execução.

            Custas nesta instância pelo co-Executado/Opoente.

                                                                       *

Luís Filipe Cravo ( Relator )

Maria José Guerra

Carvalho Martins


[1] Relator: Des. Luís Cravo
  1º Adjunto: Desª Maria José Guerra
  2º Adjunto: Des. Carvalho Martins
[2] Assim LIMA PINHEIRO, in “A Cláusula de Reserva da Propriedade”, Coimbra, 1988, com desenvolvimentos vários sobre esta temática a págs. 23 e segs, 108 e segs. e 120.
[3] Cf., mais desenvolvidamente sobre esta questão, ANA MARIA PERALTA, in “A Posição jurídica do Comprador na Compra e Venda com Reserva de Propriedade”, Coimbra, 1990, a págs. 24 e segs. e a págs. 110 e segs.
[4] In “Venda a Prestações: Algumas Notas sobre os Artigos 934º e 935º do Código Civil”, RDES-Ano XXI (1974)-, nºs 1/4, a págs. 203.
[5] cfr., neste sentido, Acs. STJ de 19-4-88 (in BMJ nº 376, a págs. 598), 29-3-90 (in BMJ nº 395, a págs.573), 29-9-93 (in CJ/Acs.STJ-Ano I-tomo III-, a págs.38), e 9-1-03 (doc. nº SJ200301090039617, disponível in www.dgsi.pt./jstj.) e 5-2-91 (in BMJ nº404, a págs.460).
[6] Citámos PEDRO ROMANO MARTINEZ, in “”da cessação do Contrato”, 2ª ed., Livª Almedina, 2006, a págs. 262.
[7] In “Das Obrigações em Geral”, 7ª edição, a págs. 536.
[8] In “Direito ao Cumprimento e Direito a Cumprir”, sep. RDES (1973) - “Abuso do Direito”, Lisboa, a págs. 640.
[9] Como o já referenciado VASCO LOBO XAVIER, in obra pré-citada, a págs. 216 e segs.
[10] Neste último sentido, vide o Ac. da Rel. de Lisboa de 9-07-1998, in CJ, Ano XXIII, Tomo IV, a págs. 101.