Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4296/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: INTERVENÇÃO PRINCIPAL
LEGITIMIDADE
RESPONSABILIDADE CIVIL
TRANSITÁRIO
Data do Acordão: 04/04/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 320.º, 325.º, N.º 1 E ARTIGO 15.º, 1 E 2 DO DECRETO-LEI N.º 255/99, DE 07/07
Sumário: 1. O deferimento da intervenção principal de um terceiro constitui caso julgado formal sobre a legitimidade desse terceiro na causa, se, para tanto, o tribunal firmou um juízo positivo sobre o interesse do mesmo na relação delineada pelo autor, nos termos dos artigos 320.º ou 325, nº 1 do CPC.
2. O transitário é sempre objectivamente responsável pelo incumprimento das obrigações do transportador que haja contratado, ainda que com os limites de que este beneficie, face ao disposto nos nºs 1 e 2 do art.º 15 do DL 255/99 de 7/7.

3. Por força do nº 4 do art.º 23 CMR, salvo convenção em contrário, a mera culpa do transportador na perda da mercadoria não abarca a indemnização dos danos sequenciais, como sejam o prejuízo na imagem comercial ou os lucros cessantes do lesado.

Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

A... intentou no 3º Juízo Cível da comarca de Aveiro acção declarativa com processo sumário contra B..., pedindo a condenação desta no pagamento da quantia de € 5.389,70, acrescida de juros desde a citação, em consequência do incumprimento das obrigações de tratar do processo burocrático de importação e de realizar o transporte de determinada mercadoria adquirida pela A. na Suécia, que a A. nunca chegou a receber na época prevista (Natal de 2003), frustrando o lucro da comercialização programada e causando danos na imagem respectiva.
Contestou a Ré, alegando ter agido apenas na qualidade de empresa transitária, tendo organizado e promovido o transporte do chá adquirido pela A. desde a Suécia, encomendando aí a recepção da mercadoria à sua congénere C... e o transporte a D..., tudo em nome e por conta da A.. Todavia responsabilizou por escrito e de imediato junta desta a falta da mercadoria e providenciou nova remessa, que a A. recebeu seis dias depois, sem qualquer inconveniente para esta. Termina com a improcedência da acção e requer a intervenção acessória da dita transportadora, com vista ao exercício do direito de regresso que lhe assiste.
Respondendo, a A. manteve a versão inicial e deduziu subsidiariamente contra a referida transportadora o pedido já formulado, para a hipótese de ser esta a responsável, requerendo em consonância a sua intervenção principal na causa.

Após contraditório, a M.ma Juiz, rejeitando a intervenção acessória do terceiro mas aceitando a sua intervenção principal, ordenou a respectiva citação.
A interveniente, em contestação, arguiu a sua ilegitimidade por haver transferido a sua responsabilidade por perdas e danos com o transporte de mercadoria para a Companhia de Seguros Império; a circunstância de não ter podido conferir na expedição o número de volumes carregados, dada a grupagem da carga; a não reclamação ou reserva por parte da Ré na descarga; e a não entrega de documentos solicitados para accionamento do seguro. Remata assim com a respectiva ilegitimidade e absolvição; ou, assim não sendo, com absolvição do pedido.
A A. respondeu a este articulado, batendo-se pela improcedência das excepções.

No despacho saneador a M.ma Juiz, considerando que, por virtude da transferência de responsabilidade decorrente do contrato de seguro invocado, "na relação jurídica controvertida onde em princípio estaria a ré D... passa a estar a seguradora Império", julgou a Ré D... parte ilegítima e absolveu-a da instância.
Inconformados, agravaram A. e Ré, recurso admitido nessa espécie e com subida diferida.

O processo correu os seus termos subsequentes e a final a acção foi julgada totalmente improcedente.
De novo inconformada, apelou a A., manifestando conservar interesse no agravo.

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Colhidos os vistos cumpre decidir.
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São os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:

A) A Autora tem uma loja de venda de chá em Aveiro.
B) No início de Novembro de 2003 a Autora encomendou à empresa sueca East West Company Scandinavia AB, com sede em Estocolmo, um fornecimento de diversas espécies de chá em quantidades variadas e de produtos acessórios à confecção do chá, conforme os documentos de folhas 9 a 12, cujo conteúdo se dá aqui por reproduzido, no valor de 2.107,11 €.
C) Em 28/11/2003 foram expedidas de Estocolmo onze caixas contendo essa mercadoria.
D) A mercadoria foi entregue pela vendedora à empresa C... com sede em Estocolmo, por indicação da Ré.
E) Essa mercadoria nunca chegou a ser entregue à Autora.
F)- Foi acordado entra a Autora e a Ré que esta trataria de organizar o transporte das mercadorias referidas em B).
G) E que a Ré colocaria essas mercadorias na loja da Autora.
H) E que o faria em cerca de 8 dias desde a sua expedição da Suécia.
I) A Ré obrigou-se a organizar o transporte, por si e através de empresas por si contratadas, entre a Suécia e Portugal, da mercadoria importada pela Autora, para a loja desta em Aveiro.
J) A Ré pertence ao grupo da Gologistics AB que é a sua representada na Suécia e recebeu instruções da Ré para organizar o transporte de lá para Portugal.
L) A mercadoria perdida destinava-se a ser vendida pela Autora na época do Natal.
M) E seria vendida na sua maior parte a empresas que a integrariam em cabazes de Natal.
N) Toda a mercadoria tinha escoamento garantido.
O) Havia na encomenda o Glog Tea.
P) E este chá é apenas vendido na época do Natal.
Q) O não recebimento da mercadoria impediu a autora de satisfazer encomendas que havia aceite no pressuposto que aquela lhe seria entregue.
R) Um dos clientes da Autora tinha encomendado pelo menos 95 cargas de chá que na loja com IVA tem o preço de 4 euros.
S) A Autora para evitar perder clientes forneceu em substituição latas cujo preço na loja com IVA era no valor de 6 euros.
T) A Autora vendeu as latas ao preço das cargas.
U) A Autora não pôde vender na sua loja aquele chá, na altura prevista.
V) A margem de lucro da Autora com a mercadoria era de 80%.
X) A Ré foi contratada pela Autora para organizar o transporte dos produtos que a autora importava da Suécia para Portugal, na qualidade de transitário.
Z) A Ré para fazer o transporte da mercadoria da Autora encomendou a C... a recepção da mercadoria na origem (na Suécia) e a organização da sua expedição para Portugal.
AA) A C... exerce a actividade de transitário na Suécia.
BB) A Ré encomendou o transporte das mercadorias da Autora da Suécia para Portugal à empresa de “D...” que as carregou na C... na Suécia.
CC) À chegada ao Porto, a transportadora apenas entregou parte da mercadoria faltando os volumes correspondentes à encomenda da Autora.
DD) A Ré de imediato reclamou por escrito junto da Empresa de “D...”.
EE) A Ré promoveu e organizou o transporte, por via aérea, de nova encomenda visando a substituição dos chás que se haviam perdido.
FF) A segunda encomenda chegou quando faltavam cerca de 12 dias para o Natal (de 2003).
GG) E então foi entregue à Autora.


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Nada impõe que os recursos sejam conhecidos por ordem diferente daquela por que foram interpostos. O agravo da apelada B... deve considerar-se sem efeito por não ter para esta interesse independente (nº 2 do art.º 735 do CPC).

O agravo.
São as seguintes as conclusões da alegação:

1a – Nem a convenção CMR nem qualquer outra disposição de natureza legal, afastam a legitimidade processual da Ré D.... E impõem em seu lugar a Seguradora Império.
2a - Também o contrato de seguro não prevê essa "substituição processual".
3a – E mesmo que o previsse tal seria irrelevante para a Autora e qualquer outro sujeito processual.
4a – Pelo que as razões invocadas pela decisão-recorrida para declarar Ré D.... Parte ilegítima na acção, são inválidas.
5a – Até porque e como é dito no próprio despacho, "a legitimidade" para configurar a relação material controvertida e os respectivos sujeitos, pertence à Autora.
6a – Não podendo esta ficar dependente de um ignorado e alheio contrato de seguro para saber quem pode accionar.
7a – A decisão recorrida viola o art. 26° do CPC.


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A questão única do agravo tem que ver com a presença do pressuposto processual da legitimidade passiva na interveniente D....
Constituindo a legitimidade um excepção dilatória sujeita ao conhecimento oficioso do tribunal (art.ºs 494, al.ª e) e 495 do CPC) e sendo a mesma aferida, quanto ao réu, pela titularidade do interesse em contradizer relevante face à relação controvertida delineada pelo autor (art.º 26, nºs 1 e 3 do CPC), dispõe este tribunal de recurso da máxima amplitude na apreciação da questão.
Apesar disso, deve desde já anotar-se que são pertinentes as observações, inseridas nas conclusões 1ª a 5ª, no sentido de que a alegada existência de um seguro para a responsabilidade da interveniente decorrente do transporte de mercadorias, não podia conduzir, na relação material, à substituição daquela pela respectiva seguradora, como foi entendido na decisão recorrida.
Em boa verdade, esta decisão não decretou qualquer modificação subjectiva da instância pela substituição de uma das partes (art.ºs 268 e 270, al.ª do CPC): declarou antes que, por virtude do seguro, a interveniente não era titular do interesse relevante em contradizer na relação discutida nos autos.
O argumento da decisão é infundado na medida em que a responsabilidade do segurador coexiste ou é paralela com a do segurado, perante o terceiro beneficiário da prestação, sendo a regra processual do exercício dessa responsabilização o litisconsórcio voluntário (constitui excepcional derrogação legal deste litisconsórcio a conhecida legitimidade exclusiva da seguradora no caso previsto no art.º 29, nº 1, al.ª do DL nº 522/85 de 31/12).

O terceiro interveniente foi admitido na causa, pelo despacho de fls. 115, ainda na fase dos articulados.
A decisão do deferimento da intervenção principal de um terceiro, espontânea ou provocada, pode constituir, para as partes contemporâneas, caso julgado formal sobre a legitimidade desse terceiro na causa, uma vez que o tribunal tenha de fazer um juízo positivo do interesse deste na relação configurada. É o que resulta dos art.ºs 320, al.ªs a) e b) e 325, nº 1 do CPC.

Porém, o despacho – de fls. 115 - que admitiu o chamamento do terceiro não chegou sequer a fazer caso julgado (formal) na relação processual agora apreciada (art.º 672º do CPC), porquanto teve o único alcance de introduzir a chamada na lide, possibilitando-lhe o contraditório perante a dedução subsidiaria do pedido contra ela, nos termos do art.º 31-B do CPC (sustentada na invocada dúvida – de resto irrazoável - sobre o sujeito da relação controvertida). O facto do A. ter dirigido o pedido também contra o terceiro justificou, só por si, a admissão da intervenção deste, ao abrigo do nº 2 do art.º 325 do CPC. Sem que o juiz se pronunciasse, portanto, sobre os titulares dos interesses nesta relação, conforme a A. a traçou, para o efeito do nº 3 do art.º 26 do CPC.

Não obstante, a ilegitimidade da chamada é proveniente da circunstância da relação controvertida configurada pela A. – nº 3 do art.º 26 do CPC – se achar situada no âmbito de um contrato celebrado apenas com a Ré B..., sem a interveniente ter assumido qualquer obrigação perante A.. Se bem que, subsequentemente àquele negócio, a chamada tenha sido, por sua vez, contratada pela Ré B..., esta factualidade não é prefigurada pela A..
Aliás, a própria A., quando requer a intervenção da chamada, não localizando qualquer vinculação contratual desta perante si, reconhece que não descortina a causa da demanda subsidiária.
Deste modo, por inexistir qualquer interesse relevante da chamada D... na relação material configurada pela A., não colhem as conclusões 6ª e 7ª, devendo manter-se, embora com diverso fundamento, a declaração da respectiva ilegitimidade e absolvição da instância.

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A apelação.

Nas suas alegações apresenta a A. as seguintes conclusões:
1a – Conforme reclamou a Recorrente os factos alegados nos arts. 4º, 5º e 6º da PI deveriam ter sido levados à matéria de facto assente por serem de relevo para a causa e por não terem sido contestados pela Ré.
2a – Também conforme reclamou a recorrente, deveriam ter sido levados à base instrutória os factos alegados nos arts. 3º, 4º, 5º, 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 14º. e 15º da sua réplica.
3a – Porquanto são factos que colocam directamente em causa factos alegados pela Ré e são factos importantes para a caracterização da relação contratual estabelecida entre a Ré e a Recorrente.
4a – Pelo que e se por outros fundamentos não proceder este recurso deve a sentença ser anulada e o processo baixar à 1a instância para que se produza prova sobre os factos em falta na base instrutória.
5a – Por outro lado as respostas aos quesitos 1° e 19° são contraditórias com as respostas aos quesitos 2° e 3°, já que a resposta a estes quesitos pressupõe por parte da Ré obrigações de execução concreta e de resultado, incongruentes com as limitações das respostas aos quesitos 1° a 19º.
6a – O mesmo se passando com as respostas aos quesitos 4° e 20°, que não são congruentes com as respostas aos quesitos 2° e 3°.
7a – Do mesmo modo as respostas aos quesitos 21°, 22° e 23°, não só se não harmonizam com as respostas aos quesitos 2° e 3° como não se coadunam com a mera actividade de transitário da Ré e com a alegação desta de que "apenas actuou em nome e por conta da Autora".
8a – A Ré B... não se limitou a prestar à Recorrente um serviço de natureza transitaria tal como esta definiu no art. 1° do DL n.° 255/99 de 07/07.
9a – A Ré B... obrigou-se perante a recorrente a obter um resultado concreto num determinado prazo e para o qual foi acordado um preço que engloba o próprio transporte da mercadoria.
10a – Pelo que a não obtenção desse resultado – a mercadoria extraviou-se e nunca chegou à loja da Recorrente – incorre a Ré na responsabilidade de indemnizar a recorrente não só do valor da mercadoria perdida mas também dos danos que essa ocasionou.
11a – Ainda assim se se entender que há lugar à aplicação da convenção CMR, das normas dessa convenção que prevêem a obrigação de indemnização em caso de mercadoria perdida não deve ficar exonerada a Ré, porquanto o transporte da mercadoria foi da sua exclusiva responsabilidade e por esse serviço foi paga pela Recorrente.
12a – Porém, considera a Recorrente que ao contrato complexo de prestação de serviços que foi celebrado entre a Recorrente e a Ré se aplicam as normas do C. Civil, designadamente, os arts. 1.154°, 798° e 483°, pelo que a Ré incumbe a obrigação de indemnizar a recorrente de todos os prejuízos sofridos.
13a – Ou, pelo menos, aplicar-se-á o art. 15° do DL 255/99.
14a – A sentença recorrida violou as normas referidas nas precedentes conclusões e não está em sintonia com o Acordão ao STJ de 05/02/91 : AJ 15°/16°-26.

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A Ré respondeu, pugnando pela confirmação da sentença.

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São quatro as questões a tratar no recurso:

1º - Se ocorre contradição entre as respostas dadas aos nºs 2 e 3 da base instrutória e os nºs 1, 4, 19, 20, 21, 22 e 23 (conclusões 5ª a 7ª).
2º - Se deve ser ampliada a base instrutória para abranger os factos dos art.ºs 3º a 15º, inclusive, da réplica (conclusão 2ª, 3ª e 4ª).
3º - Se deve dar-se por assente a matéria alegada nos art.ºs 4º, 5º e 6º da p. inicial (conclusão 1ª).
4º - Se sobre a Ré B... impende a obrigação de indemnizar a A (conclusão 8ª e ss).


1ª Questão.

Na resposta aos nºs 2 e 3 da base instrutória foi dado por demonstrado que a Ré colocaria as mercadorias na loja da A. no prazo de 8 dias a contar da expedição da Suécia.
Esta matéria não colide, minimamente que seja, com os factos resultantes das respostas dadas aos nºs 1, 4 e 19 a 23, porquanto, nestas, a M.ma Juiz, ao circunscrever a actuação da A. à organização do transporte como transitária, de um certo modo, não afastou o propósito da Ré em se co-responsabilizar pelo êxito do transporte em que mediatamente se comprometeu. Inexiste assim a apontada contradição.
Não colhem, por isso, as conclusões em apreço.


2ª Questão.

A matéria constante dos art.ºs 3º a 15º da réplica é mera impugnação do alegado pela Ré nos art.ºs 1º a 4º da contestação. A factualidade dos art.ºs 4º a 15º, por sua vez, é totalmente irrelevante para a decisão da causa, visto referir as circunstâncias de entrega de mercadoria em anteriores contratos. Daí que se não mostre necessária a requerida ampliação da base instrutória.
Também não colhem estas conclusões.

3ª Questão.

Pretende a apelante que seja dada por assente a factualidade relativa à importação pela A. de chá da Suécia e da colaboração da Ré nessa actividade, fazendo chegar esse produto mensalmente às instalações da A. entre Fevereiro a Novembro de 2003.
Tais factos nenhum alcance têm na decisão do pleito, relativo a uma encomenda distinta – de Dezembro de 2003. Só o contexto negocial concreto desta, porque controvertido, importava averiguar.
Daí que a selecção desses factos não carecesse de ser efectuada.
Improcede, por conseguinte, a conclusão em apreço.


4ª Questão:

Emerge da factualidade apurada que foi acordado entre a A. e a Ré que esta, na sua qualidade de transitário, trataria de organizar o transporte das mercadorias por aquela encomendadas na Suécia, colocando-as na loja da A. no prazo de 8 dias desde a sua expedição (cfr. os factos provados em B, F, G, H e X).
Importa, pois, antes do mais, caracterizar a relação contratual estabelecida entre A. e R., atenta a comprovada natureza desta de empresa tendo por objecto a actividade transitária.
Nos termos do nº 2 do art.º 1º do DL 255/99 de 7/7 (diploma que sucedeu, na disciplina do serviço transitário, ao DL 43/83 de 25/01) a actividade transitaria consiste na prestação de serviços de natureza logística e operacional que inclui o planeamento, controlo, coordenação e a direcção das operações relacionadas com a expedição, recepção, armazenamento e circulação de bens ou mercadorias, desenvolvendo-se nos seguintes domínios de intervenção:
a) Gestão dos fluxos de bens ou mercadorias;
b) Mediação entre expedidores e destinatários, nomeadamente através de transportadores com quem celebre os respectivos contratos de transporte;
c) Execução dos trâmites ou formalidades legalmente exigidos, inclusive no que se refere à emissão do documento de transporte unimodal ou multimodal.

Neste quadro, o transitário apresenta-se como o «arquitecto» da logística que envolve a expedição e recepção de bens entre diversos pontos territoriais, actuando por conta e em nome de outrem, e agindo como mandatário do cliente em todas as operações necessárias à obtenção do resultado ou fim contratual (neste sentido, cfr. Nuno M. Castello Branco Bastos, Direito dos Transportes, Almedina, p.82).
Todavia, ainda no domínio do DL 43/83 de 25/01, tanto a jurisprudência como a doutrina, dando-se conta da desresponsabilização que na prática advinha para o transitário face às consequências do insucesso do transporte da mercadoria que ele contratava, directa ou indirectamente, com terceiros, foi elaborando a figura da comissão de transporte – B. Mercadal, Droit des transports terrestres et aériens, Paris, 1966, p. 9 e ss. e o Acórdão do STJ de 20/03/90 in www.dgsi.pt/jstj.
Visava-se responsabilizar o transitário não só pela não conclusão dos actos jurídicos e burocráticos inerentes ao trânsito dos bens, maxime ao transporte, mas sobretudo pela inexecução ou execução defeituosa desse segmento crucial da obrigação por ele assumida. Aliás, o próprio nº 1 do art.º 26 das Condições Gerais da APAT – que o Ac. do STJ de 8/07/03 (in www.dgsi.pt/jstj) considerou como claúsula proibida por força do disposto no art.º 809 do CC – prescrevia, em contra-mão à regra da culpa in eligendum (art.º 800, nº 1 do CC), a não responsabilização do transitário pelos actos ilícitos dos seus agentes ou correspondentes.
Hoje, perante a redacção do nº 1 do art.º 15 do DL 255/99 de 7/7, é indiscutível que o transitário responde objectivamente pelo cumprimento do transporte da mercadoria contratado com terceiros. Com efeito, aí se prescreve que " As empresas transitarias respondem perante o seu cliente pelo incumprimento das suas obrigações, bem como pelas obrigações contraídas por terceiros com quem hajam contratado, sem prejuízo do direito de regresso".
Consiste este princípio numa mera aplicação do preceito do nº 1 do art.º 500 do CC e do posicionamento do transitário como comitente do transporte.
É claro que nada continua a obstar a que o transitário assuma as vestes de transportador, obrigando-se autonomamente ao transporte perante o cliente e respondendo subjectivamente pelo cumprimento dessa obrigação, para além dos deveres relativos às específicas funções de desembaraço do trânsito dos respectivos bens.
No entanto, seja na roupagem de transportador, seja no papel de comitente do transporte, o nº 2 do artº. 15 do DL 255/99 manda que ao transitário se apliquem sempre os limites estabelecidos pela lei ou convenção para a responsabilidade do transportador.
Por conseguinte a Ré B... responderá nos precisos termos em que deva responder o transportador que escolheu.
Posto isto, definida a responsabilidade da Ré pelo transporte da mercadoria destinada à A., não pode aquela eximir-se à obrigação de indemnizar o prejuízo ocasionado com o incumprimento do transporte da mercadoria entre a Suécia e a sede da A.
O transporte dos autos destinou-se à deslocação de mercadorias entre a Suécia e Portugal, por estrada (factos das al.ªs A, B, C e F).
O contrato de transporte internacional de mercadorias é aquele pelo qual uma das partes se obriga, perante a outra fazer a transferência material de uma coisa, em veículo ou conjunto de veículos, de um local para outro, com atravessamento de fronteiras nacionais, mediante retribuição (art.º 2º, al.ªs c), d) e e) do DL 38/99 de 6/02, que transpôs para a ordem interna a directiva comunitária 96/26/CE de 29/04/96).
Ao transporte em causa aplica-se a Convenção CMR, que se impõe aos transportes internacionais de mercadorias por estrada em que um país contratante inclui o ponto de partida ou entrega (art.º 1º) e as suas disposições são imperativas.
É um contrato comercial e contém para o transportador uma obrigação não de meios mas de resultado, pois que a prestação só se torna cumprida com a colocação da mercadoria no local de destino (neste sentido, o Ac. da Rel. do Porto de 23/10/84 in CJ, ano IX, T. 4 – p. 232).
Configura, por isso, incumprimento pelo transportador a não entrega da mercadoria no local convencionado; constituindo perda a falta de entrega nos 30 dias seguintes ao prazo convencionado (art.º 20, nº 1 da CMR); e competindo ainda ao transportador a prova de que a não entrega ocorreu por facto estranho à sua vontade e por qualquer dos motivos do art.º 17º da CMR, sob pena de funcionar a presunção de culpa – na perda e no incumprimento - do art.º 18, nº 1 da Convenção.
Compulsada a materialidade dos autos, bem se vê que o carregamento de chá que a A. esperava nunca lhe foi entregue (facto E), que foi estipulado para esse fim o prazo de 8 dias desde a expedição (factos C e H), não tendo a Ré B... alegado tão-pouco qualquer motivo que, nos termos do sobredito art.º 17, ilidisse a presunção de culpa do transportador. Daí que deva indemnizar a A., nos termos do art.º 798 do CC, pelos prejuízos causados.
Nos termos gerais, o prejuízo do credor compreende os prejuízos derivados da falta do devedor (dano emergente) e os benefícios que deixou de obter com a lesão contratual, incluindo o interesse contratual positivo, ou seja os lucros que obteria se o contrato tivesse sido cumprido – art.º 564 do CC.
Todavia, no transporte internacional de mercadorias por estrada, a responsabilidade contratual do transportador está, em princípio, limitada ao valor da mercadoria, preço do transporte, direitos aduaneiros e outras despesas provenientes do transporte, não sendo devidas outras indemnizações de perdas e danos – nºs 4 e 1 do art.º 23 da Convenção.
A decadência deste tecto indemnizatório apenas pode resultar do acordo das partes sobre aspectos particulares do valor do transporte (art.ºs 24 e 26) ou de dolo do transportador (art.º 29).
A A. pediu, além do valor da mercadoria não recebida (art.º 55 da p.i.) os prejuízos pelas margens de lucro não concretizadas e pela fidelização de clientela na época prevista (art.ºs 48, 49, 56 e 57) e, bem assim, pela degradação da imagem comercial (art.º 58 da p.i.). Só o valor da mercadoria pode, portanto, ser ressarcido, devendo sê-lo pelo montante facturado porquanto se presuma ser esse o preço corrente no mercado (nº 2 do art.º 23 da CMR). A isto não obsta a circunstância da Ré ter promovido o transporte de nova encomenda de chá, entregue à A. 12 dias antes do Natal, já que nada inculca que esta não tenha sido também debitada à A. pelo fornecedor sueco.
É certo que o nº 3 do art.º 23 da CMR impõe à própria indemnização um limite material de 8,33 unidades de conta por quilograma de peso bruto em falta. No entanto não foi alegado, pela parte interessada nesse efeito modificativo do direito da A. - nos termos do nº 2 do art.º 342 do CC - o valor da unidade de peso da mercadoria, com vista ao eventual funcionamento do mencionado limite material.
Face ao exposto, é a A. credora da Ré da indemnização correspondente ao valor da mercadoria perdida, calculado através do preço facturado.
Colhendo, em parte, as conclusões 8ª a 14ª.

Quanto à mora.
A A. limita-se a pedir juros sobre o montante da indemnização desde a citação, à taxa de 4%. A condenação está submetida às fronteiras do pedido, nos termos do art.º 661, nº 1 do CPC. Em função da interpelação – art.º 805, nº 1 do CPC – e da liquidez da obrigação são devidos juros e é exigível a taxa invocada.


Sumário:

1 – O deferimento da intervenção principal de um terceiro constitui caso julgado formal sobre a legitimidade desse terceiro na causa, se, para tanto, o tribunal firmou um juízo positivo sobre o interesse do mesmo na relação delineada pelo autor, nos termos dos art.ºs 320 ou 325, nº 1 do CPC.
2 – O transitário é sempre objectivamente responsável pelo incumprimento das obrigações do transportador que haja contratado, ainda que com os limites de que este beneficie, face ao disposto nos nºs 1 e 2 do art.º 15 do DL 255/99 de 7/7.
3 – Por força do nº 4 do art.º 23 CMR, salvo convenção em contrário, a mera culpa do transportador na perda da mercadoria não abarca a indemnização dos danos sequenciais, como sejam o prejuízo na imagem comercial ou os lucros cessantes do lesado.

Pelo exposto, julgam a apelação procedente e, revogando a sentença, condenam a Ré a pagar à A. a indemnização de € 2.107,11, acrescida de juros de mora à taxa anual de 4% desde a citação até integral pagamento.
Custas pela apelada.