Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
288/19.3GCCLD.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
AMEAÇA
TIPO OBJECTIVO
MAL FUTURO
TRABALHO A FAVOR DA COMUNIDADE
REGRA DE CONDUTA
DEVERES
Data do Acordão: 01/11/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DAS CALDAS DA RAINHA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA, PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTS. 51.º, N.º 1, AL. C), 52.º, NºS 1 A 3, 58.º, 291.º E 153.º DO CP
Sumário: I – Qualquer acto que se inclua nos exemplos descritos no tipo legal do artigo 291º do Código Penal constitui uma violação grosseira dessa circulação pois a violação grosseira das regras de condução implica um comportamento de desrespeito por um conjunto de regras de trânsito especificadas no tipo.

II – São três as características essenciais do conceito AMEAÇA: Mal Futuro (não existirá ameaça futura quando, terminado o filme do nosso processo e a história de vida contida nos nossos autos, deixar de haver futuro para aquela ameaça concreta, não sendo ela passível de vir a ser consumada na medida em que se esgotou no momento presente – o mal não pode ser de execução imediata mas ser antes de execução futura) cuja ocorrência dependa da vontade do agente (ou apareça como dependente da vontade do agente);

III – Sendo requisito do crime de ameaça que o mal anunciado seja futuro, tal característica temporal há-de resultar da ponderação de um conjunto diversificado de factores referentes à conformação global do facto, em que relevam quer elementos objetivos, quer elementos subjectivos referentes ao propósito ou fim visado pelo agente;

IV – Dizer «Sai cá para fora», em contexto de disputa rodoviária, em tom irado e acompanhado por pontapés no carro, é uma ameaça real de lesão presente e não futura (consome-se naquele instante), que, tendo sido seguida de algum acto de execução (mesmo sabendo que a ofensa corporal simples do artigo 143º do CP não admite punição pela sua tentativa), não constitui para um destinatário normal de tais palavras uma ameaça de violência futura para os efeitos do crime do artigo 153º do CP.

V – O legislador apenas habilita o julgador a cumular com a pena de trabalho a favor da comunidade uma ou várias regras de conduta previstas no artigo 52º, nº 1 a 3 do CP, não autorizando o tribunal a cumular os deveres impostos no artigo 51º [sendo um dever e não uma regra de conduta a entrega aos Bombeiros de uma quantia pecuniária – artigo 51º, nº 1, alínea c) -, não fazendo qualquer sentido o tribunal ter subsumido este dever à regra de conduta prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 52º].

Sumário elaborado pelo Relator
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 5ª Secção - Criminal - do Tribunal da Relação de Coimbra:

            I - RELATÓRIO
           
             1. A SENTENÇA RECORRIDA

No processo comum singular nº 288/19.... do Juízo Local Criminal ... – Juiz ... -, por sentença datada de 21 de Junho de 2022, foi decidido o seguinte: 

1. «Absolvo o arguido AA da prática de um crime de ameaça agravada, p. e p. pelos artºs 153º, e 155º, nº 1, do Código Penal.
2. Condeno o arguido AA pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punível pelo art. 291º, nº 1, al. b), do Código Penal, na pena de 10 (dez) meses de prisão.
3. Condeno o arguido AA pela prática de um crime de ameaça, previsto e punível pelo art. 153º, nº 1, do Código Penal, na pena de 2 (dois) meses de prisão.
4. Condeno o arguido AA pela prática de um crime de coação, previsto e punível pelo art. 154º, nº 1, do Código Penal, na pena de 4 (quatro) meses e 15 (quinze) dias de prisão.
5. Em cúmulo jurídico, condeno o arguido AA na pena única de 13 (treze) meses de prisão.
6. Substituo a pena de prisão por 395 (trezentas e noventa e cinco) horas de Trabalho a Favor da Comunidade, a prestar nas condições e local que venham a ser definidos pela DGRSP, mas que deverão ter em atenção as características específicas de personalidade do arguido e os aspetos que se pretende, com esta pena, debelar na mesma.
7. Nos termos do disposto no artº 52º, nº 1, als. b) e c), do Código Penal, aplico ao arguido as seguintes regras de conduta:
  • frequência do programa STOP – Responsabilidade e Segurança Rodoviária e
  • entrega, aos Bombeiros Voluntários ..., da quantia de 500,00€ (quinhentos euros), no prazo de 1 (um) ano contado do trânsito em julgado da presente decisão.
8. Condeno o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados, pelo período de 1 (um) ano.
9. Custas criminais a cargo do arguido, com taxa de justiça pelo mínimo.
10. O arguido fica, desde já, expressamente advertido de que está obrigado a entregar a sua carta de condução na secretaria deste Tribunal, ou no posto policial mais próximo da área da sua residência, no prazo de 10 (dez) dias a contar do trânsito em julgado da sentença, sob pena de apreensão e de cometer o crime de desobediência (cfr. art. 69º, nºs 3 e 5, do Código Penal e art. 500º, nºs 1, 2, 5 e 6, do Código de Processo Penal, e art. 5º, nº 4, do DL 2/98, de 03/01).
11. O arguido fica, igualmente, advertido de que, caso conduza no período da proibição fixada, incorrerá na prática de um crime de violação de proibições».


            2. O RECURSO

Inconformado, o arguido AA recorreu da sentença condenatória, finalizando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):

A. «O presente recurso tem como objecto toda a matéria de facto e de direito da sentença proferida nos presentes autos.
B. O presente recurso versa sobre a matéria de facto dada como provada e que, na perspectiva do arguido, em confronto com a prova produzida em julgamento, foi incorretamente julgada, devendo ter sido decidida de forma diversa.
C. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos: “...o arguido realizou a ultrapassagem do veículo conduzido pela queixosa pisando e transpondo para o efeito as marcas obliquas e longitudinais contínuas marcadas no pavimento, passando desta forma a circular imediatamente à frente da mesma, ocasião em que, sem que nada o fizesse prever, realizou uma travagem repentina do seu veículo, tendo a queixosa a muito custo imobilizado o seu veículo conseguindo fazê-lo ainda antes de embater no veículo tripulado pelo arguido”(ponto 3 dos factos provados da douta sentença) e “ No dia 25/10/2019, cerca das 17h e 50m, na Estrada Principal, junto à escola primária da localidade denominada ..., área do concelho das ..., na sequência de um desentendimento quanto a uma manobra de trânsito realizada pela queixosa BB, o arguido abeirou-se do veículo conduzido por aquela, com a matrícula ..-..-ZV e em “voo” mandou-se para cima do capot do mesmo.”, “Após dirigiu-se à porta do lado do condutor do veículo e tentou abrir a mesma o que só não conseguiu porque a queixosa a tinha trancada.”, “De seguida o arguido desferiu um número não concretamente apurado de murros e pontapés no vidro e nas portas do referido veículo ocasião em que a queixosa lhe disse que ia chamar a polícia tendo o arguido respondido: “se chamares a polícia eu mato-te”.”e “O arguido ao atuar da forma descrita em 9. a 11. fê-lo com firmeza e seriedade, e com intenção concretizada de fazer convencer a queixosa que pretendia concretizar o que disse, conseguindo desta forma perturbar o sossego e a tranquilidade desta causando-lhe medo.” e “O arguido proferiu a expressão referida em 11. com firmeza e seriedade, e com intenção de fazer convencer a queixosa que viria a atentar contra a sua vida, caso a mesma chamasse as autoridades policiais ao local, por forma a perturbar o sossego e a tranquilidade desta e a causar-lhe medo, tendo em vista constranger a queixosa a não atuar da referida forma, o que conseguiu. “(pontos 9 a 13 dos factos provados).
D. Tal conclusão assenta apenas e parcialmente nas declarações das ofendidas, situações em que ambas assumem ter infringido as regras estradais ao não ceder passagem ao arguido e estacionando na faixa de rodagem imediatamente a seguir a uma curva, conforme expressamente descrito nas motivações do presente recurso. Ambas as ofendidas revelaram consciência da ilicitude das suas acções.
E. As versões apresentadas pelas ofendidas são contrapostas de forma coerente pelo arguido, pelo que, no minimo, o douto Tribunal a quo, face à descrição antagónica dos mesmos factos e na ausência de quaisquer outras provas, deveria absolver o arguido de harmonia com o principio in dubio pro reo.
F. Ora, o arguido é condenado ab initio apenas porque não concorda com o teor da acusação e contrapõe os factos alegados pelas ofendidas.
G. Assim, o presente recurso incide na condenação propriamente dita, uma vez que é sua convicção face à prova produzida em audiência de julgamento, que deveria ter sido absolvido.
H. Entende assim o arguido, que o tribunal a quo interpretou de forma incorrecta o disposto nos artigos 50º, 70º, e 71º do Código Penal e violou o disposto nas diversas alíneas do artigo 410º nº 2, do Código de Processo Penal.
I. Pelo que se impunha decisão diversa, no sentido da absolvição do arguido dos crimes de que se encontrava acusado.
J. DO DIREITO:
K. QUANTO AO CRIME DE CONDUÇÃO PERIGOSA (art. 291º Código Penal) releva que, na situação em apreço nos presentes autos e ainda que sejam mantidos os factos dados como provados, nunca poderá ser entendido que se verificou um perigo real e efetivo para a vida, integridade física ou bens patrimoniais de outrem.
L. Na realidade, não ficou provada qualquer situação que fizesse perigar a vida, a integridade fisica ou os bens patrimoniais de outrém.
M. Conforme declarações da ofendida CC gravadas através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, com início pelas 12.35 horas e termo pelas 12.50 horas, do dia 19 de Maio de 2022, ao Minuto 5:40 “Incrivelmente não passou ninguém, nem para um lado nem para o outro...”, as circunstâncias concretas verificadas no tempo e lugar, obstavam à verificação da existência de um perigo concreto, real e efectivo.
N. Assim, não seria possível a criação desse perigo concreto, real e efectivo.
O. Pelo exposto, e não se encontrando preenchidos todos os elementos do tipo de crime, terá o arguido de ser absolvido do mesmo.
P. QUANTO AO CRIME DE AMEAÇA, e Tal como é afirmado no Acórdão da Relação do Porto de 22.11.2006, proc. nº 0614091, em www.dgsi.pt, “haverá crime de ameaça quando alguém diz: “quando te apanhar (momento futuro), vou dar-te uns socos” (anúncio de um mal para a integridade física). Que se distingue do acto intimidatório de execução imediata de ofensa à integridade física quando alguém diz: “ou sais, ou levas já um soco”. Na primeira hipótese, ocorre o anúncio de um mal futuro, limitador da liberdade individual da pessoa ameaçada. Na segunda hipótese ocorre o anúncio de um mal actual, contra a ofensa à integridade física, que começa e acaba ali: ou porque é executado de mediato, integrando o crime de ofensa à integridade física, ou porque o agente ameaçador desiste de o executar, sem que o mal anunciado se projecte na liberdade de decisão e de acção futura da pessoa visada”.
Q. No caso dos presentes autos a actuação do arguido não configura uma ameaça futura, não configura um anúncio de um mal a praticar no futuro, noutro momento posterior, não se encontrando preenchido um requisito essencial para preenchimento do tipo de crime, devendo também, neste caso, ser o arguido absolvido da prática do crime de ameaça agravada.
R. QUANTO AO CRIME DE COAÇÃO, desconhece o arguido em que prova se baseia o tribunal para concluir da forma supra descrita quando do Depoimento de BB, gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, com início pelas 12.35 horas e termo pelas 12.50 horas, do dia 19 de Maio de 2022, ao Minuto 4:27 resulta que “Eu depois queria me ir embora porque as minhas filhas estavam em pânico....”.
S. Assim, conclui-se que a ofendida não chamou a policia porque quis sair do local atento o comportamento das filhas, e não porque o arguido a tivesse coagido a tal., não podendo o facto de a arguida ter apresentado queixa posteriormente, justificar a prática do crime de coação. Trata-se apenas do exercicio de um direito que a lei lhe confere e que não permite que se extrapolem conclusões sem qualquer fundamento.
T. Em suma, e não se encontrando preenchidos os elementos do tipo de crime de coação em que o arguido foi condenado, deverá este ser absolvido do mesmo.
U. QUANTO À ESCOLHA E MEDIDA CONCRETA DA PENA, importa realçar que a aplicação de penas visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração social do agente e, em caso algum, a pena pode ultrapassar a medida da culpa (cfr. artº 40º, nº 1 e 2 do CP) sendo a prevenção e a culpa instrumentos jurídicos obrigatoriamente atendíveis e necessariamente determinantes para balizar a medida da pena concreta a aplicar, e ainda, os termos do disposto no art. 70º do Código Penal “ Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
V. Feito o enquadramento jurídico-penal dos factos há que determinar a medida concreta da pena, tendo em conta os limites mínimo e máximo apontados pela moldura penal abstracta, devendo o tribunal ter em conta a culpa do agente e as exigências de prevenção, conforme os trilhos apontados pelo art. 71º, nº 1, do CP.
W. E a concretização desse critério para determinar a pena concreta que se pretende justa e adequada a cada caso concreto tem desenvolvimento, na ponderação que o tribunal deve ter, de todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo legal, deponham a favor e/ou contra o agente do crime, conforme art. 71º, nº 2, do CP.
X. O arguido recorrente considera, no que respeita a todos os crimes em que foi condenado, que as penas são exageradas e desproporcionais, tendo em conta as finalidades da punição, a culpa do agente e as exigências de prevenção geral e especial, não podendo conformar-se com a pena que lhe foi aplicada, em cumulo jurídico, de 13 meses de prisão no que concerne à dosimetria, pois, a fixação da referida pena, ainda que suspensa, merece censura em termos de inadequação, reputando-a por excessiva e desproporcional à gravidade dos factos que praticou e insusceptível de assegurar as finalidades que estão na base da punição.
Y. Como se constatou, o Tribunal a quo não ponderou e valorou todos os fatores ou circunstâncias na determinação da medida da pena, devendo fazê-lo de forma a que a pena aplicada seja adequada à acção desenvolvida pelo arguido e às suas condições pessoais, devendo a douta sentença proferida ser alterada, aplicando ao arguido uma pena não privativa da liberdade ou, se assim se não entender, reduzir ao mínimo as penas parcelares aplicadas, assim como a pena aplicada em cumulo jurídico.
Z. Na consideração da personalidade devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos, isto é, se a personalidade unitária do agente é reconduzível a uma tendência ou eventualmente mesmo “uma carreira” criminosa, ou antes se se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente, só no primeiro caso sendo de agravar especialmente a pena por efeito do concurso, cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As Consequências Jurídicas do Crime pág. 29. In casu não está evidenciada nem comprovada uma tendência delituosa do arguido.
AA- No que respeita à pena acessória em que foi condenado e atento o disposto no artº 69, nº 1, alínea a) do CP, a pena acessória pode ser determinada por um período fixado entre três meses e três anos.
BB- No caso dos autos, devem sublinhar-se, d) A ausência de antecedentes criminais do arguido; e) A necessidade de utilização diária do carro o qual é indispensável para o exercício da sua profissão; f) A impossibilidade de poder conduzir, levará inevitavelmente à impossibilidade de cumprir os seus compromissos profissionais e consequente colocação em situação de desemprego, o que é manifestamente desproporcional, à conduta do recorrente.
CC- Impõe-se assim, e caso se mantenha a condenação do arguido na prática do crime de condução perigosa, a redução da pena acessória de inibição de conduzir para o minimo previsto na norma legal aplicável.
Em suma,
1. Deverá o arguido ser absolvido dos crimes em que foi condenado, ou se assim se não entender,
2. Deverão as penas parcelares impostas ao ora recorrente ser reduzidas para os limites mínimos permitidos, E, em consequência, a pena única resultante do cúmulo jurídico deverá, ser reformada e substancialmente reduzida.
3. A manter-se a condenação no crime de condução perigosa e consequente aplicação da pena acessória de inibição de conduzir, deverá esta ser reduzida ao limite minimo aplicável.
NESTES TERMOS, e nos melhores de Direito que V. Exas. Doutamente suprirão, deverá o douto acórdão ser revogado e substituído por outro que se coadune com a pretensão exposta, assim se fazendo a costumada JUSTIÇA!».

3. O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recurso, opinando que o mesmo não merece provimento, defendendo o sentenciado em 1ª instância.

4. Admitido o recurso e subidos os autos a este Tribunal da Relação, o Exmº Procurador da República pronunciou-se, corroborando as contra-alegações do Magistrado do Ministério Público de 1ª instância, sendo seu parecer no sentido da negação de provimento ao recurso.

5. Cumprido o disposto no artigo 417º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante, CPP), foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419º, nº 3, alínea c) do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO
           
1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso

Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso [cfr. artigos 119º, nº 1, 123º, nº 2, 410º, nº 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242, de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271 e de 28.4.1999, in CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, pág.193, explicitando-se aqui, de forma exemplificativa, os contributos doutrinários de Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, Universidade Católica Editora, 2015, pág. 335 e Simas Santos e Leal-Henriques, Recursos Penais, 8.ª ed., 2011, pág. 113].
             Assim, é seguro que este tribunal está balizado pelos termos das conclusões formuladas em sede de recurso.
Também o é que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar - se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões.
Mas também é grave quando o recorrente apresenta fundamentação nas conclusões que não tratou de modo nenhum na motivação.
Estas conclusões (deduzidas por artigos, nas palavras da lei) não devem trazer nada de novo; os fundamentos têm de estar no corpo motivador e são aqueles e só aqueles que são resumidos nas conclusões.
Assim são estas as questões a decidir por este Tribunal:
1. Há erro de julgamento quanto aos factos provados nºs 1 a 8?
2. Existe tipicidade criminal quanto ao crime de condução perigosa de veículo rodoviário na factualidade apurada?
3. Existe tipicidade criminal quanto ao crime de ameaça – em que é vítima CC - na factualidade apurada?
4. Há erro de julgamento quanto aos factos provados nºs 9 a 16?
5. Existe tipicidade criminal quanto ao crime de coacção na factualidade apurada?
6. A pena principal aplicada por cada um dos crimes foi adequada?
7. A pena de cúmulo jurídico foi adequada?
8. A pena acessória aplicada foi adequada?

            2. DA SENTENÇA RECORRIDA

            2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos, com interesse para a decisão deste recurso (transcrição:

- processo 288/19....
1. No dia 18.10.2019, cerca das 15h e 13m, a queixosa CC circulava na A..., no sentido norte-sul, tripulando o veículo com a matrícula ..-CT-.., e a dada altura sinalizou a manobra para sair da referida auto-estrada, tendo entrado no ramal de desaceleração em direção à vila de ....
2. Ao chegar ao fim do referido ramal de desaceleração aproximou-se pela retaguarda do veículo conduzido pela queixosa o veículo tripulado pelo arguido, com a matrícula ..-NJ-.., ocasião em que a queixosa continuou a sua marcha para a via de trânsito à esquerda, dando assim continuidade à marcha imprimida pelo veículo por si tripulado.
3. De seguida o arguido realizou a ultrapassagem do veículo conduzido pela queixosa pisando e transpondo para o efeito as marcas obliquas e longitudinais contínuas marcadas no pavimento, passando desta forma a circular imediatamente à frente da mesma, ocasião em que, sem que nada o fizesse prever, realizou uma travagem repentina do seu veículo, tendo a queixosa a muito custo imobilizado o seu veículo conseguindo fazê-lo ainda antes de embater no veículo tripulado pelo arguido.
4. Ato contínuo arguido saiu do veículo por si conduzido e começou a gesticular com os braços no ar e dirigiu-se em direção ao veículo conduzido pela queixosa.
5. Ali chegado, o arguido desferiu um murro no vidro da frente, lado esquerdo do veículo da queixosa e outro no espelho retrovisor da frente do mesmo lado ao mesmo tempo que dirigiu à queixosa as seguintes palavras: “sai para fora”.
6. Face à conduta praticada pelo arguido, a queixosa por temer que o arguido atentasse contra a sua integridade física, realizou manobra de marcha a trás, com vista a sair do local, ocasião em que o arguido colocou um pé sob o capot do veículo da queixosa e desferiu um murro no capot do mesmo, tendo a queixosa abandonado o local.
7. O arguido quis e conseguiu conduzir o veículo da forma supra descrita, admitindo como possível que a sua conduta fosse idónea a produzir um acidente de viação e a colocar em perigo a vida ou a integridade física dos demais utilizadores da estrada pela qual circulava, conformando-se com essa possibilidade.
8. O arguido ao atuar da forma acima descrita fê-lo com firmeza e seriedade, e com intenção concretizada de fazer convencer a queixosa que pretendia ofender a sua integridade física, conseguindo desta forma perturbar o sossego e a tranquilidade desta causando-lhe medo.
- processo nº ...9...

9. No dia 25/10/2019, cerca das 17h e 50m, na Estrada Principal, junto à escola primária da localidade denominada ..., área do concelho das ..., na sequência de um desentendimento quanto a uma manobra de trânsito realizada pela queixosa BB, o arguido abeirou-se do veículo conduzido por aquela, com a matrícula ..-..-ZV e em “voo” mandou-se para cima do capot do mesmo.
10. Após dirigiu-se à porta do lado do condutor do veículo e tentou abrir a mesma o que só não conseguiu porque a queixosa a tinha trancada.
11. De seguida o arguido desferiu um número não concretamente apurado de murros e pontapés no vidro e nas portas do referido veículo ocasião em que a queixosa lhe disse que ia chamar a polícia tendo o arguido respondido: “se chamares a polícia eu mato-te”.
12. O arguido ao atuar da forma descrita em 9. a 11. fê-lo com firmeza e seriedade, e com intenção concretizada de fazer convencer a queixosa que pretendia concretizar o que disse, conseguindo desta forma perturbar o sossego e a tranquilidade desta causando-lhe medo.
13. O arguido proferiu a expressão referida em 11. com firmeza e seriedade, e com intenção de fazer convencer a queixosa que viria a atentar contra a sua vida, caso a mesma chamasse as autoridades policiais ao local, por forma a perturbar o sossego e a tranquilidade desta e a causar-lhe medo, tendo em vista constranger a queixosa a não atuar da referida forma, o que conseguiu.
14. O arguido quis e conseguiu atuar da forma acima descrita o que fez sempre de forma livre deliberada e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida por lei.
15. À data de 10.01.2022 nada constava do Certificado de Registo Criminal do arguido.
16. À data de 30.05.2022 nada constava do RIC do arguido.
17. AA é o mais novo dos dois filhos de um casal de mediana condição social, o pai contabilista a mãe cabeleireira e doméstica.
18. Cresceu junto destes familiares, recordando um ambiente familiar estável e condições de suficiência económica.
19. Manteve a frequência escolar até aos dezasseis anos de idade, altura em que a interrompeu para iniciação laboral, tendo completado o terceiro ciclo do ensino básico.
20. Inicialmente começou a trabalhar como aprendiz de mecânica e, após a conclusão do serviço militar, como técnico de reparação de eletrodomésticos por conta do irmão.
21. Nos últimos quinze anos tem exercido essa atividade por conta própria, comercializando e prestando serviços de assistência técnica de equipamentos da marca ..., tendo, entretanto, constituído a empresa J... Unipessoal Lda. para enquadrar a atividade profissional.
22. Autonomizou-se da família de origem aos vinte e um anos de idade, tendo assumido uma relação marital, subsequentemente consolidada por matrimónio, ainda subsistente. Dela resultou o nascimento de um casal de filhos, a mais nova entretanto autonomizada.
23. Atualmente, o arguido integra um agregado familiar constituído pelo cônjuge DD, o filho EE e um neto, com 57, 28 e 9 anos de idade respetivamente.
24. A dinâmica marital e parental é descrita como satisfatória pelo casal.

25. A situação económica do agregado familiar configura-se equilibrada, sustentada pelos salários do arguido (610 euros líquidos) e do cônjuge (900 euros mensais), funcionária administrativa num centro de saúde.
26. As despesas mensais relatadas pelo arguido incluem a amortização de créditos para aquisição de habitação (400 euros) e carro (248 euros), consumos domésticos de água, energia e telecomunicações (200 a 250 euros) e encargos relacionados com a manutenção própria e do cônjuge.
27. O filho é economicamente autónomo, apresentando uma situação de emprego assalariado.
28. O arguido refere dedicar os períodos de lazer ao convívio familiar e a deslocações em passeio numa autocaravana.
29. No meio sócio-residencial não cultiva sociabilidades significativas, mencionando alguns amigos residentes na área de ....
30. AA utilizando o carro para deslocações diárias entre o local de residência e de trabalho, sendo que a sua atividade profissional exige frequentes deslocações pelo país.
31. Manifesta a convicção de que pratica, usualmente, uma condução automóvel conforme as regras de segurança.
32. A impulsividade e reatividade emocional em situações percecionadas como adversas são características pessoais atribuídas ao arguido pelo cônjuge.
33. AA evidencia uma atitude expectante em relação às consequências sancionatórias que venham a decorrer do presente processo-crime, manifestando consciência do desvalor da conduta criminal que lhe é imputada.
34. Conhecida do cônjuge e filho, a situação jurídico-processual do arguido não colocou em causa o relacionamento com estes familiares.
35. No meio sócio-residencial essa situação é desconhecida.

36. Segundo órgão de polícia criminal da sua área de residência não existem outras ocorrências delituosas ou processos pendentes imputáveis ao arguido».

2.2. São estes os FACTOS NÃO PROVADOS (transcrição):
a. «Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas em 9 dos factos provados, o arguido disse á ofendida BB “vou-te matar, queres que parta esta merda toda?”.
b. Nas circunstâncias de tempo e lugar descritas supra em 11, o arguido disse à ofendida “então atreve-te!”.
c. O arguido proferiu a expressão referida em 11. dos factos provados com firmeza e seriedade, e com intenção de fazer convencer a queixosa que viria a atentar contra a sua integridade física ou contra o seu veículo, caso a mesma fosse relatar às autoridades policiais o sucedido, por forma a perturbar o sossego e a tranquilidade desta e a causar-lhe medo, tendo em vista constranger a queixosa a não atuar da referida forma, o que só não conseguiu por razões alheias à sua vontade».

2.3. Motivou-se assim, a matéria de facto provada (transcrição):
«A convicção do tribunal na decisão sobre a matéria de facto teve como fundamento a apreciação crítica e ponderada de toda a prova produzida nos autos e em sede de audiência de julgamento, tendo sido examinada e avaliada toda a documentação pertinente à boa decisão da causa e conjugada com as declarações prestadas pelas testemunhas de acusação ouvidas em audiência de julgamento e com as declarações do próprio arguido.
O arguido negou a prática dos factos constantes da acusação e confrontado com a circunstância da apresentação de queixa por duas pessoas distintas, por factos idênticos, que não se conheciam à data dos factos, não foi capaz de apresentar uma justificação razoável.
Admitiu, contudo, que ficou desagradado com o que considera serem “erros de condução” por parte das ofendidas, tendo admitido que ficou zangado em ambas as situações sendo que, na primeira, se limitou a gesticular em gesto de desagrado, tendo seguido o seu percurso e, na segunda, chegou a sair do seu veículo e ir falar com a condutora do outro veículo para a alertar para o perigo da situação.
Contudo, as ofendidas prestaram declarações bem distintas, às quais o Tribunal atribuiu consistência e credibilidade.
A primeira testemunha, CC, ofendida da situação a que se reportam os primeiros factos, foi capaz de os descrever de forma coerente e precisa, localizando-os no espaço e no tempo.
Confirmou a sua trajetória, bem como a do arguido, tendo confirmado que, imediatamente antes dos factos e à entrada na bifurcação, se apercebeu que o veículo tripulado pelo ora arguido vinha a uma distância que lhe permitia a sua entrada naquele local em segurança o que fez altura em que, sem nada o fazer prever, o veículo do arguido se aproximou rapidamente do seu, tendo efetuado uma ultrapassagem pela zona da berma da estrada e tendo-se imobilizado, de seguida, à sua frente, de forma brusca, o que a obrigou a, igualmente, imobilizar o seu veículo de forma brusca.
Mais descreveu que, nesta sequência, o arguido saiu com muita agressividade do interior do seu veículo e dirigiu-se ao seu, tentando abrir a porta do lado do condutor, o que apenas não conseguiu por a mesma se encontrar trancada pelo lado interior, confirmando integralmente os demais factos descritos na acusação, designadamente os murros e pontapés que o arguido desferiu no seu veículo e as expressões que proferiu.
Confirmou ter sentido muito receio deste comportamento, tendo ficado em pânico com toda a situação ocorrida.
No que se refere à segunda situação, foi inquirida a testemunha BB, a qual demonstrou mais dificuldade em recordar-se da dinâmica dos factos, o que é perfeitamente compreensível dado que, aquando da sua ocorrência, a ofendida se encontrava com as suas duas filhas, crianças, no interior do veículo, as quais estavam extremamente assustadas, a gritar e a chorar com os factos, o que é natural que provoque dificuldades em recordar-se de toda a situação, pelo trauma sentido reflexamente com a sua ocorrência.
Não obstante, a testemunha localizou os factos no espaço e no tempo, confirmou que ali se encontrava parada para ir recolher a sua filha mais nova à escola findas as atividades letivas desta, altura em que o arguido imobilizou o seu veículo à frente daquele que tripulava e, muito zangado, dirigiu-se ao mesmo, tentou abrir a porta e, como não conseguia, insultou-a e atirou-se para cima do capot do seu veículo para a impedir de abandonar o local, tendo a testemunha acabado por referir que iria chamar a polícia, altura em que o arguido disse que se o fizesse a matava. Perante esta conduta do arguido a ofendida, por receio, não chamou a polícia ao local naquele momento mas dirigiu-se à respetiva esquadra para apresentar queixa da situação.
Relatou, ainda, que a situação terminou, em parte por intervenção da mulher do arguido, que o levou para o veículo de ambos, tendo abandonado o local.
A testemunha DD, mulher do arguido, apesar de não o fazer inicialmente, acabou por confirmar esta afirmação da testemunha, quando acareada com a mesma, tendo prestado depoimento algo constrangido e claramente tendencioso e defensivo da posição do seu marido, o que contendeu com a credibilidade das suas declarações acerca dos factos (os segundos, já que a testemunha não presenciou os primeiros factos).
Ainda assim, no seu depoimento, acabou por admitir que o arguido é uma pessoa impulsiva e explosiva, que fica muito irritado com os comportamentos dos demais utentes da via, aquando do exercício da condução, descrevendo-o como alguém que “ferve em pouca água”, características que são coincidentes com o comportamento descrito em sede de acusação.
Assim, do confronto das versões apresentadas em julgamento, o Tribunal não deu qualquer credibilidade à versão dos factos apresentada pelo arguido, sendo que as versões das testemunhas, dada a circunstância de não conhecerem o arguido anteriormente aos factos e nunca mais o terem visto após os mesmos, para além da coincidência de comportamentos, os quais são confirmados, também, pela testemunha mulher do arguido, que lhe atribui características de personalidade coincidentes com os comportamentos descritos nos autos, levam à conclusão de que os factos ocorreram, efetivamente, conforme se narrou supra.
No que se refere aos antecedentes criminais do arguido, o Tribunal teve em consideração o teor objetivo do seu Certificado de Registo Criminal junto a fls. 161, no que respeita às suas condições pessoais, o teor do relatório social para determinação da sanção, junto a fls. 158 e ss. e, por fim, no que se refere ao seu comportamento estradal, além do acima exposto, o teor do RIC com a ref.ª 8754674».
             3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

3.1. IMPUGNAÇÃO DE FACTO

3.1.1. O arguido alega que existe um erro de julgamento na prova que foi feita dos factos 1 a 8 (1ª situação dos autos) e 9 a 16 (2ª situação dos autos).
É sabido que o Tribunal da Relação deve conhecer da questão de facto por duas vias:
- a da impugnação alargada (com apelo à prova gravada), se tiver sido suscitada – cfr. artigo 431º do CPP;
- e, se for o caso, a dos vícios do nº 2 do art. 410º do CPP.
Na 1ª situação estamos perante um típico erro de julgamento - ínsito no artigo 412º/3 – que ocorre quando o tribunal considere provado um determinado facto, sem que dele tivesse sido feita prova pelo que deveria ter sido considerado não provado ou quando dá como não provado um facto que, face à prova que foi produzida, deveria ter sido considerado provado.
Aqui, nesta situação de erro de julgamento, o recurso quer reapreciar a prova gravada em 1ª instância, havendo que a ouvir em 2ª instância.
Neste caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412º do CPP.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
Na 2ª situação, apela-se ao normatizado no artigo 410º, nº 2 do CPP que estipula que, mesmo nos casos em que a lei restringe a cognição do tribunal, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum:
1. A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada;
2. A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão;
3. Erro notório na apreciação da prova.
            Tais vícios implicarão para o tribunal de recurso o reenvio do processo para novo julgamento, nos termos do artigo 426º do CPP.
Saliente-se que, em qualquer das apontadas hipóteses, o vício tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos àquela estranhos, para o fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento (cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 10. ª ed., 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6.ª ed., 77 e ss.), tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da sentença que, por isso, quanto a eles, terá que ser auto-suficiente.
De facto, pressuposto comum à verificação de tais vícios é que os mesmos resultem do próprio texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum – nº 2 do artigo 410º do CPP.
Ao determinar-se que tais vícios sejam cognoscíveis com base no texto da decisão, adoptou-se uma solução de recurso-remédio e não de reexame da causa.
O recorrente alude a um erro de julgamento.
Prévio a ele, opinamos no sentido de inexistir qualquer vício formal da decisão, nos termos do nº 2 do artigo 410º do CPP.

3.1.2. Houve, de facto, um erro de julgamento?
Ouvimos as gravações dos depoimentos prestados pelo arguido e pelas duas «vítimas» CC e BB (os 3 únicos depoimentos visados pela defesa, os dois primeiros por conta do crime de condução perigosa e o último dos quais apenas por conta do crime de coacção[1]) e facilmente nos apercebemos que temos em jogo duas versões contraditórias:
· a do arguido que nega toda a factualidade, dando uma imagem benigna de si próprio durante todo o desenrolar de todas as duas cenas em causa;
· a das ofendidas CC e BB que confirmam a maior parte do libelo acusatório (com a excepção da factualidade que acabou por ver absolvido o arguido do crime de ameaça agravada pretensamente levado a cabo sobre a pessoa da BB).
Quanto à impugnação dos factos, está a causa a prática pelo arguido dos crimes de condução perigosa (1ª situação) e de coacção (2ª situação).
Ouvido o testemunho das duas ofendidas, não temos qualquer dúvida em validar a leitura feita pelo tribunal quanto à imputação ao arguido das condutas estradais em causa e dos comportamentos criminais aludidos nos autos (com a excepção dos crimes de ameaça, por um dos quais foi absolvido pelo tribunal recorrido).
*
Quanto à 1ª situação – a de 18/10/2019:
Os segmentos das gravações invocados no recurso não modificam a convicção probatória tomada pelo tribunal, na medida em que a descrição das manobras estradais do arguido em 18/10/2019, feitas pela ofendida CC, são absolutamente credíveis.
O facto de esta poder também incorrido em alguma falta estradal não justifica de todo em todo o alterado e selvático (“estado alucinante, descompensado e descontrolado”, segundo as suas palavras ao minuto 3:51) comportamento do arguido, pisando linhas contínuas e fazendo ultrapassagens de forma ilegal e em locais onde não o poderia fazer (usando bermas).
 Por isso, não temos nada a apontar à conclusão probatória a que chegou o tribunal que teve a imediação do processo, optando por uma das versões, em natural detrimento da outra.
Raciocinou assim o foro:
«A primeira testemunha, CC, ofendida da situação a que se reportam os primeiros factos, foi capaz de os descrever de forma coerente e precisa, localizando-os no espaço e no tempo.
Confirmou a sua trajetória, bem como a do arguido, tendo confirmado que, imediatamente antes dos factos e à entrada na bifurcação, se apercebeu que o veículo tripulado pelo ora arguido vinha a uma distância que lhe permitia a sua entrada naquele local em segurança o que fez altura em que, sem nada o fazer prever, o veículo do arguido se aproximou rapidamente do seu, tendo efetuado uma ultrapassagem pela zona da berma da estrada e tendo-se imobilizado, de seguida, à sua frente, de forma brusca, o que a obrigou a, igualmente, imobilizar o seu veículo de forma brusca.
Mais descreveu que, nesta sequência, o arguido saiu com muita agressividade do interior do seu veículo e dirigiu-se ao seu, tentando abrir a porta do lado do condutor, o que apenas não conseguiu por a mesma se encontrar trancada pelo lado interior, confirmando integralmente os demais factos descritos na acusação, designadamente os murros e pontapés que o arguido desferiu no seu veículo e as expressões que proferiu.
Confirmou ter sentido muito receio deste comportamento, tendo ficado em pânico com toda a situação ocorrida».

Totalmente de acordo – este depoimento convenceu-nos muito mais do que o simplista depoimento do arguido.
No que tange ao dolo, enquanto facto interior, não podendo ser apreendido directamente, tem que ser deduzido de factos externos, de factos materiais designadamente, dos que preenchem o tipo objectivo do crime, conjugados com as regras da experiência.
Neste sentido, invoque-se o Acórdão da RP de 23.02.93, in B.M.J. 324/620, onde se escreve, a certo trecho: “dado que o dolo pertence à vida interior de cada um, é, portanto, de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência”.
Os factos relativos aos elementos intelectual e volitivo do dolo concernente à conduta do arguido foram considerados assentes a partir do conjunto das circunstâncias de facto dadas como provadas supra, já que o dolo é uma realidade que não é apreensível diretamente, decorrendo antes da materialidade dos factos analisada à luz das regras da experiência comum.
*
Quanto à 2ª situação – a de 25/10/2019:
O depoimento da testemunha BB foi claro também quanto à forma como se comportou o arguido nesse dia.
Pode não se ter logo lembrado das frases exactas proferidas pelo arguido mas, a instâncias do tribunal, acabou por confirmar o constante da acusação quanto à questão da coacção de que foi vítima.
A defesa entende que não coagiu a testemunha pois a BB não chamou a polícia por ter sido coagida a tal pelo arguido mas por vontade própria, devido ao comportamento assustado das filhas.
Ouvida a testemunha, mesmo que a instâncias da Exmª Juíza que tentou retirar o mais possível do seu depoimento, ela foi enfim clara em dizer [a 11:36 do seu depoimento gravado, e a 2:41 do 2º segmento gravado] que ouviu da boca do arguido a frase contida no facto nº11.
Esta testemunha não se lembrou de tudo e não quis adivinhar ou inventar, o que só credibiliza o seu depoimento (são passados, à data do julgamento, quase 3 anos sobre os factos, sendo natural algumas hesitações de memória).
Portanto, a frase ouvida da boca do arguido foi muito mais decisiva na sua decisão não querida de não chamar a polícia do que o susto das filhas que a tudo isto assistiam dentro do seu veículo (também terá pensado nelas e no possível impacto que uma agressão do arguido à sua pessoa enquanto condutora provocaria nas infantas).
A sentença fez assim o exame crítico da prova neste jaez:
«No que se refere à segunda situação, foi inquirida a testemunha BB, a qual demonstrou mais dificuldade em recordar-se da dinâmica dos factos, o que é perfeitamente compreensível dado que, aquando da sua ocorrência, a ofendida se encontrava com as suas duas filhas, crianças, no interior do veículo, as quais estavam extremamente assustadas, a gritar e a chorar com os factos, o que é natural que provoque dificuldades em recordar-se de toda a situação, pelo trauma sentido reflexamente com a sua ocorrência.
Não obstante, a testemunha localizou os factos no espaço e no tempo, confirmou que ali se encontrava parada para ir recolher a sua filha mais nova à escola findas as atividades letivas desta, altura em que o arguido imobilizou o seu veículo à frente daquele que tripulava e, muito zangado, dirigiu-se ao mesmo, tentou abrir a porta e, como não conseguia, insultou-a e atirou-se para cima do capot do seu veículo para a impedir de abandonar o local, tendo a testemunha acabado por referir que iria chamar a polícia, altura em que o arguido disse que se o fizesse a matava. Perante esta conduta do arguido a ofendida, por receio, não chamou a polícia ao local naquele momento mas dirigiu-se à respetiva esquadra para apresentar queixa da situação.
Relatou, ainda, que a situação terminou, em parte por intervenção da mulher do arguido, que o levou para o veículo de ambos, tendo abandonado o local».

Ouvido o seu testemunho, reiteramos a convicção criada pela Mº Juíza das ....
E concluiu depois o tribunal:
«Assim, do confronto das versões apresentadas em julgamento, o Tribunal não deu qualquer credibilidade à versão dos factos apresentada pelo arguido, sendo que as versões das testemunhas, dada a circunstância de não conhecerem o arguido anteriormente aos factos e nunca mais o terem visto após os mesmos, para além da coincidência de comportamentos, os quais são confirmados, também, pela testemunha mulher do arguido, que lhe atribui características de personalidade coincidentes com os comportamentos descritos nos autos, levam à conclusão de que os factos ocorreram, efetivamente, conforme se narrou supra».

Nada aqui a objectar.
Assim, podemos dizer que a argumentação expendida pelo recorrente esbarra naquilo que foi o conjunto da prova (direta e indireta) produzida, e com eco na decisão proferida.
Decorre, pois, de todo o exposto, que não demonstra o recorrente que a decisão recorrida tenha incorrido em ilógico ou arbitrário juízo na valoração da prova, ou se tenha afastado das regras da normalidade do acontecer, ou da experiência comum, não existindo razões para afastar o raciocínio lógico do tribunal a quo, tampouco o recorrente indicou prova que imponha decisão diversa da tomada na decisão em crise, não podendo senão concluir-se que a argumentação e prova por ele indicadas não impõem decisão diversa, nos termos da al. b) do nº 3 do artigo 412º do CPP, apenas sendo exemplificativas de outra interpretação da prova, não havendo, pois, qualquer razão para alterar a matéria de facto provada decidida pelo Tribunal a quo.

3.1.3. E nem foi violado qualquer princípio constitucional de presunção da sua inocência na medida em que o tribunal não acreditou na sua versão, no legítimo exercício da sua livre apreciação do depoimento do arguido e dos demais meios de prova.
No fundo, o que o recorrente pretende, nos termos em que formula a sua impugnação, é ver a convicção formada pelo tribunal substituída pela convicção que ele próprio entende que deveria ter sido a retirada da prova produzida.
O recorrente limita-se a divulgar a sua interpretação e valoração pessoal das declarações por si prestadas e da credibilidade que deveria ter merecido, exercício que, no entanto, é irrelevante para a sindicância da forma como o tribunal recorrido valorou a prova.
Não se evidencia qualquer violação das regras da experiência comum, sendo certo que fora dos casos de renovação da prova em 2ª instância, nos termos previstos no art. 430º do CPP - o que, manifestamente, não é o caso -, o recurso relativo à matéria de facto visa apenas apreciar e, porventura, suprir, eventuais vícios da sua apreciação em primeira instância, não se procurando encontrar uma nova convicção, mas apenas e tão-só verificar se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável na prova documentada nos autos e submetida à apreciação do tribunal de recurso.
Decidiu-se, no douto Acórdão da Relação de Coimbra de 9/9/2009 (Pº 564/07.8PAVCD.P1) o seguinte:
«Acresce que vigorando no âmbito do processo penal o princípio da livre apreciação da prova, com expressa previsão no art. 127º, a impor, salvo quando a lei dispuser diferentemente, a apreciação da prova segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, a mera valoração da prova feita pelo recorrente em sentido diverso do que lhe foi atribuído pelo julgador não constitui, só por si, fundamento para se concluir pela sua errada apreciação, tanto mais que sendo a apreciação da prova em primeira instância enriquecida pela oralidade e pela imediação, o tribunal de 1ª instância está obviamente mais bem apetrechado para aquilatar da credibilidade das declarações e depoimentos produzidos em audiência, pois que teve perante si os intervenientes processuais que os produziram, podendo valorar não apenas o conteúdo das declarações e depoimentos, mas também e sobretudo o modo como estes foram prestados, já que no processo de formação da convicção do juiz “desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um determinado meio de prova) e mesmo puramente emocionais”, razão pela qual quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum».
Na realidade, ao tribunal de recurso cabe apenas verificar se os juízos de racionalidade, de experiência e de lógica confirmam ou não o raciocínio e a avaliação feita em primeira instância sobre o material probatório constante dos autos e os factos cuja veracidade cumpria demonstrar.
«Se o juízo recorrido for compatível com os critérios de apreciação devidos, então significará que não merece censura o julgamento da matéria de facto fixada. Se o não for, então a decisão recorrida merece alteração” (Paulo Saragoça da Matta, “A Livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença”, texto incluído na colectânea “Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 253).
Portanto, a prova produzida foi coerentemente valorada.
Se há duas versões dos factos (mesmo que uma delas tenha dois veículos), não é uma maioria matemática que faz escolher a versão verdadeira.
O facto de haver duas afirmações opostas, não conduz necessariamente a uma “dúvida inequívoca”, por força do princípio in dubio pro reo.
Não está em causa a igual valoração de declarações ou depoimentos, mas a valoração de cada um dos meios de prova em função da especial credibilidade que mereçam.
As declarações e depoimentos produzidos em audiência são livremente valoráveis pelo tribunal, não tendo outra limitação, em sede de prova, que não seja a credibilidade que mereçam.
Voltamos ao Acórdão de 9/9/2009:
«Uma vez verificado que o tribunal recorrido formulou a sua convicção relativamente à matéria de facto com respeito pelos princípios que disciplinam a prova e sem que tenham subsistido dúvidas quanto à autoria dos factos submetidos à sua apreciação, não tem cabimento a invocação do princípio in dubio pro reo, que como reflexo que é do princípio da presunção da inocência do arguido, pressupõe a existência de um non liquet que deva ser resolvido a favor deste. O princípio em questão afirma-se como princípio relativo à prova, implicando que não possam considerar-se como provados os factos que, apesar da prova produzida, não possam ser subtraídos à dúvida razoável do tribunal. Contudo no caso dos autos, o tribunal a quo não invocou, na fundamentação da sentença, qualquer dúvida insanável. Bem pelo contrário, a motivação da matéria de facto denuncia uma tomada de posição clara e inequívoca relativamente aos factos constantes da acusação, indicando clara e coerentemente as razões que fundaram a convicção do tribunal».
Sabemos que o julgador deve manter-se atento à comunicação verbal mas também à comunicação não verbal.
Se a primeira ainda é susceptível de ser escrutinada pelo tribunal de recurso mediante a audição do gravado (e foi o que se fez nesta sede de recurso), fica impossibilitado de aceder à segunda para complementar e interpretar aquela.
Deste modo, quando a opção do julgador se centra em prova oral, o tribunal de recurso só estará em condições de a sindicar se esta for contrária às regras da experiência, da lógica, dos conhecimentos científicos, ou não tiver qualquer suporte directo ou indirecto nas declarações ou depoimentos prestados.
E repetimos: o juiz pode formar a sua convicção com base em apenas um testemunho (ou numa só declaração), desde que se convença que nele reside a verdade do ocorrido.
Não basta que o recorrente diga que determinados factos estão mal julgados.
É necessário constatar-se esse mal julgado face às provas que especifica e a que o julgador injustificadamente retirou credibilidade.
Atente-se que o artº 412º/3 alínea b) do CPP fala em provas que imponham decisão diversa.
Por isso entendemos que a decisão recorrida só é de alterar quando for evidente que as provas não conduzam àquela, não devendo ser alterada quando perante duas versões, o juiz optou por uma, fundamentando-a devida e racionalmente.
Ao reapreciar-se a prova por declarações, o tribunal de recurso deve, salvo casos de excepção, adoptar o juízo valorativo formulado pelo tribunal recorrido desde que o seu juízo seja compatível com os critérios de apreciação devidos.
Decorre do princípio «in dubio pro reo» que todos os factos relevantes para a decisão desfavoráveis ao arguido que face à prova não possam ser subtraídos à dúvida razoável do julgador não podem dar-se como provados.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, «será dado como não provado se desfavorável ao arguido, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa».
O princípio só é desrespeitado quando o tribunal colocado em situação de dúvida irremovível na apreciação dos factos decidir por uma apreciação desfavorável à posição do arguido.
Não ficou o Tribunal ... em estado de dúvida.
E este tribunal de recurso também não, assente que o tribunal recorrido valorou os meios de prova de acordo com a experiência comum e com critérios objectivos que permitem estabelecer um “substrato racional de fundamentação e convicção”, com o apoio de presunções naturais, “juízos de avaliação através de procedimentos lógicos e intelectuais, que permitam fundadamente afirmar, segundo as regras da experiência, que determinado facto, não anteriormente conhecido nem directamente provado, é a natural consequência, ou resulta com toda a probabilidade próxima da certeza, ou para além de toda a dúvida razoável, de um facto conhecido“ – v. g. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 07-01-2004 (Proc. 03P3213 - Rel. Cons. Henriques Gaspar - SJ200401070032133).
Ou seja:
Assim, podemos dizer que a argumentação expendida pelo recorrente esbarra naquilo que foi o conjunto da prova (directa e indirecta) produzida, e com eco na decisão proferida.
Aqui chegados e, face a todo o exposto, parece-nos evidente a falta de razão do recorrente, no que se refere à invocada violação princípio do in dubio pro reo, ínsito no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa.
O tribunal decidiu acreditar na versão das ofendidas e explicou porquê.
E este tribunal valida esta leitura da prova.
De facto:
Não basta à procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal.
Este decide, salvo existência de prova vinculada, de acordo com as regras da experiência e a livre convicção, não sendo suficiente, por isso, para a pretendida modificação da decisão de facto que as provas especificadas pelo recorrente permitam uma decisão diferente da proferida pelo tribunal, sendo imprescindível, para tal efeito, que as provas especificadas pelo recorrente imponham decisão diversa da recorrida.
Ora, a versão trazida pelo arguido não nos convenceu mais do que a das ofendidas, razão pela qual validaremos a tese acusatória.
Se assim é, tem-se por definitivamente fixada a matéria de facto PROVADA, improcedendo a impugnação de facto levada a cabo.

3.2. DO DIREITO

3.2.1. DO CRIME DE CONDUÇÃO PERIGOSA DE VEÍCULO RODOVIÁRIO
A factualidade descrita nos factos nºs 1, 2, 3 e 7 consubstancia em absoluto a prática deste delito.
Vem o arguido condenado pela prática de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário, previsto e punido pelo artigo 291º, nº 1, al. b) e 69º, nº 1, al. a) do Código Penal, doravante CP).
Estatui este artigo que:
«1.Quem conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada:
a) – (…)
b) violando grosseiramente as regras da circulação rodoviária relativas à prioridade, à obrigação de parar, à ultrapassagem, à mudança de direcção, à passagem de peões, à inversão do sentido de marcha em auto-estradas ou em estradas fora de povoações, à marcha atrás em auto-estradas fora de povoações, ao limite de velocidade ou à obrigatoriedade de circular na faixa de rodagem da direita,
e criar deste modo perigo para a vida ou para a integridade física de outrem, ou para bens patrimoniais alheios de valor elevado, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa”.
Já o sabemos - o bem jurídico protegido com esta incriminação radica na protecção de bens jurídicos individuais, pois com esta disposição pretendeu-se evitar, ou pelo menos, manter dentro de certos limites, a sinistralidade rodoviária, que tem vindo a aumentar vertiginosamente no nosso país, punindo todas aquelas condutas que se mostrem susceptíveis de lesar a segurança deste tipo de circulação, e que, ao mesmo tempo, coloquem em perigo a vida, a integridade física ou bens patrimoniais alheios de valor elevado.
No que diz respeito ao tipo objectivo de ilícito pretendem-se descrever aqui aqueles comportamentos que no âmbito da circulação rodoviária se mostram mais susceptíveis de colocar em perigo os bens jurídicos protegidos, incluindo em duas categorias o tipo de condutas capazes de determinar insegurança na condução em que se traduzem na falta de condições para a condução e na violação grosseira das regras de circulação rodoviária.
No nosso caso, estamos na 2ª situação.
Violou o arguido as regras estradais ínsitas nos artigos 36º e 38º [ligados à contra-ordenação muito grave do artigo 146º, alínea o) do Código da Estrada], violando grosseiramente as regras relativas à ultrapassagem de veículos[2], quer seja na proibição de ultrapassar veículos pela direita, a não ser em casos excepcionais, não aqui consubstanciados, quer na perspectiva da proibição de pisar linhas contínuas no pavimento.
 Diga-se apenas que a possível impertinência ou o igualmente comportamento anti-estradal do outro condutor não justifica o acontecido (a estratégia da defesa é alegar que a CC também não agiu em termos estradais como podia e devida ao ter entrado na vida do arguido).
As infracções estradais, bem como todas as outras, devem ser sancionadas pelo Estado e não pelos particulares.
Como tal, chega-se à conclusão inequívoca que nesta condução, o arguido actuou livre, voluntária e conscientemente, visando e logrando conduzir o veículo da forma supra descrita, violando deste modo as regras de circulação rodoviária, e admitindo como possível que viesse a embater no veículo da CC e assim pudesse lesar a integridade física e até a vida daquele outro condutor, conformando-se com tal possibilidade.
Tem-se considerado que constitui violação grosseira das regras de circulação rodoviária a violação objectiva de elementares deveres de condução no âmbito dessa circulação.
De acordo com Paula Ribeiro Faria, para que se encontre violação grosseira de regras de condução é necessário que se esteja perante «uma violação de elementares deveres de condução, susceptível de traduzir o carácter particularmente perigoso do comportamento para a segurança do tráfego, e para os bens jurídicos pessoais envolvidos. Em suma, exige-se um grau especial de violação de deveres».
Igualmente, Germano Marques da Silva, perante a formulação da norma anterior à Lei 77/01, de 01, refere que «não se trata de violação das regras de trânsito, nem da violação que ocasione um perigo concreto, porque este é o evento da acção e a violação grosseira é a causa desse evento, mas de temeridade, de ousadia perante o perigo quase certo, previsto ou previsível atentas as circunstâncias. O condutor devia prever que naquelas circunstâncias a violação daquelas regras de trânsito era especialmente adequada a causar um perigo concreto para determinados bens jurídicos e, por isso, era mais forte o dever de evitar aquele comportamento»
Assim, este elenco[3] de manobras consubstancia as mais graves violações das condições de segurança rodoviária, que são susceptíveis – elas mesmas só por si - de constituir violações grosseiras das regras de condução.
Como escreve Maia Gonçalves (Código Penal Português, 16ª ed., pág. 894), “não se refere somente este artigo às condições de segurança, mas adianta em que consiste essa violação; e elencou as mais graves violações das condições de segurança da condução rodoviária; e sendo certo que todas elas são para prevenir perigos, há no entanto algumas que têm conexão directa com alguns perigos”.
Trata-se de um crime doloso de perigo concreto[4], bastando-se com esse perigo.
Por isso, qualquer acto que se inclua nos exemplos descritos no tipo legal constitui uma violação grosseira dessa circulação (a violação grosseira das regras de condução implica um comportamento de desrespeito por um conjunto de regras de trânsito especificadas no tipo).
E o nosso arguido preencheu um acto violador das normas estradais.
E criou perigo concreto, pelo menos, para a ofendida CC que teve de travar a fundo para não embater na traseira do veículo do arguido, tal bastando, não havendo que provar que desta sua conduta estradal tenha resultado perigo para outros utentes da via.
Como tal, incorreu na prática do crime p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, alínea b).
Mas terá apenas criado o dito perigo por mera negligência que possa justificar a subsunção da sua conduta à norma do nº 3 de tal normativo?
A resposta é negativa.
No nº 3 temos dolo de acção e negligência – consciente ou inconsciente - quanto ao evento do perigo (ou seja, o dolo do agente não compreende o perigo concreto criado, afirmando-se, quanto a este, negligência do condutor) – neste nº 3, o agente sabe e tem plena consciência da sua desenfreada condução, mas não representa (negligência inconsciente) ou representa e afasta a possibilidade (negligência consciente) da criação de um perigo para os bens jurídicos em apreço.
O nº 1 prevê dolo de acção e dolo de perigo, admitindo-se aqui – E NOS DOIS SEGMENTOS - qualquer uma das modalidades de dolo (directo, necessário e eventual) – ou seja, a acção do agente e a criação de perigo são intencionais.
Note-se que ainda existe um nº 4 do artigo – aqui o agente age com negligência de acção e de criação de perigo.
A sentença recorrida não mexeu nos factos narrados na acusação.
O Ministério Público acusou apenas pelo artigo 291º, nº 1 e não pelo nº 3.
E a sentença recorrida validou tal acusação, consubstanciando a prova do elemento subjectivo nas regras da experiência comum e na análise crítica do evento.
Ora, os factos 2, 3 e 7 não deixam margem para dúvidas – o arguido agiu como dolo de acção e com dolo – eventual - de perigo.
Equivale a dizer que quis conduzir de forma desenfreada e violadora das regras estradais, admitindo também a forte possibilidade de criar perigo para terceiros.
Nesta parte, improcede o recurso do arguido.

3.2.2. DO CRIME DE AMEAÇA
Discute-se agora se é possível subsumir a conduta do arguido, exarada no facto 5, ao crime de ameaça pelo qual foi condenado, tendo como ofendida a testemunha CC.
Não por ter sido directamente invocado pela defesa (os pontos 33 a 36 da motivação referem-se à factualidade da 2ª situação) mas por se impor essa análise pelo facto de genericamente a defesa ter pedido a sua absolvição de todos os crimes pelos quais foi condenado, sendo essa uma questão nítida de DIREITO (como a seguir se verá).

3.2.2.1. O facto 5 é:
«5. Ali chegado, o arguido desferiu um murro no vidro da frente, lado esquerdo do veículo da queixosa e outro no espelho retrovisor da frente do mesmo lado ao mesmo tempo que dirigiu à queixosa as seguintes palavras: “sai para fora”».

Será que esta frase não configura o anúncio de mal futuro mas apenas o anúncio de uma iminente ofensa corporal?

3.2.2.2. Quanto ao imputado crime de ameaça p. e p. pelo artigo 153º, nº 1 do CP, há que dizer o seguinte:
Sujeito passivo de ameaça é o destinatário da ameaça, valendo aqui a ameaça com a prática de um crime, seja ou não na pessoa do ameaçado (no nosso caso, a frase foi ouvida pelo seu destinatário).
O conhecimento da ameaça por parte do sujeito passivo desta é elemento integrante do tipo objectivo do ilícito de ameaça (vide FIGUEIREDO DIAS, in Actas da Comissão Revisora do C.Penal, 1993, página 232).
Hoje em dia, este ilícito é um crime de perigo concreto[5] – na realidade, já não se exige a ocorrência do dano (efectiva perturbação do ameaçado quanto à sua pessoa ou a bens seus), mas também não basta (diferentemente do Código Penal alemão) a simples ameaça da prática do crime, exigindo-se ainda que tal ameaça seja, na situação concreta, adequada a provocar medo ou inquietação.
            São, pois, três as características essenciais do conceito AMEAÇA:
q Mal
q Futuro (não existirá ameaça futura quando, terminado o filme do nosso processo e a história de vida contida nos nossos autos, deixar de haver futuro para aquela ameaça concreta, não sendo ela passível de vir a ser consumada na medida em que se esgotou no momento presente – o mal não pode ser de execução imediata mas ser antes de execução futura)
q Cuja ocorrência dependa da vontade do agente (ou apareça como dependente da vontade do agente)
Neste sentido, entre muitos outros, os Acórdãos da Relação do Porto de 16.04.2008, proc. nº 0717222 , e de 28.11.2007, proc. nº 0712156, todos em www.dgsi.pt, onde se afirma que no crime de ameaça o mal anunciado tem de ser futuro, não estando preenchido o crime se o mal anunciado é iminente.
É esta característica temporal do mal ameaçado, visando um momento futuro, que serve de critério para distinguir a acção como crime de ameaça da tentativa de execução do respectivo acto violento.
Tal como é afirmado no Acórdão da Relação do Porto de 22.11.2006, proc. nº 0614091, em www.dgsi.pt, “haverá crime de ameaça quando alguém diz: “quando te apanhar (momento futuro), vou dar-te uns socos” (anúncio de um mal para a integridade física). Que se distingue do acto intimidatório de execução imediata de ofensa à integridade física quando alguém diz: “ou sais, ou levas já um soco”. Na primeira hipótese, ocorre o anúncio de um mal futuro, limitador da liberdade individual da pessoa ameaçada. Na segunda hipótese ocorre o anúncio de um mal actual, contra a ofensa à integridade física, que começa e acaba ali: ou porque é executado de imediato, integrando o crime de ofensa à integridade física, ou porque o agente ameaçador desiste de o executar, sem que o mal anunciado se projecte na liberdade de decisão e de acção futura da pessoa visada».
Repete-se: o mal ameaçado tem que ser futuro, ou seja, o objecto da ameaça não pode ser iminente, pois nesse caso e, conforme tem sido largamente defendido na jurisprudência, “estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento, do respectivo mal, sendo, irrelevante que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o este seja curto ou longo” – Acórdãos da Relação do Porto de 25 de Janeiro de 2006 e 21 de Junho de 2006, ambos disponíveis em www.dgsi.pt.
Não ignoramos que a jurisprudência se tem dividido a propósito do mal iminente.
Enquanto uns consideram que, quando o anúncio é de um mal iminente, não há crime de ameaça [cfr. Acs. TRP de 25/9/02, procº 0240259, de 22/1/03, procº 0210754, de 17/11/04, procº nº 0414654, de 23/2/05, procº 0510031, de 30/3/05, procº 0510587, de 25/1/06, procº nº 0544124, de 17/5/06, procº nº 0411428, de 22/11/06, procº nº 0614091, de 20/12/06, procº nº 0645320, de 28/11/07, procº nº 0712156, de 28/5/08, procº nº 0841544, de 22/6/11, proc nº 41/10.0GAVMS.P1 e de 7/3/12, procº nº 625/10.6GBVNG.P1; TRG de 1/2/10, procº nº 495/05.6GBMR.G2; TRC de 7/3/12, Procº nº 110/09.9TATCS.C1 e de 30/5/12, Proc. nº366/10.4GCTND.C1], outros entendem que o mal iminente, embora esteja próximo, é ainda um mal futuro[6] e a pedra de toque para distinguir o que é ameaça e o que são actos de execução de outro ilícito criminal que o agente tenha decidido cometer [casos claros em que não há ameaça, mas sim tentativa da prática de outro crime, são os que foram analisados nos Acs. TRP de 28/5/03, proc. nº 0340713, TRL de 11/12/03, proc. nº 7569/2003-9 e de 3/11/09, proc. nº 1092/02.3PBOER.L1-5, e TRE de 4/11/10, proc. nº 13/07.1GLBJA.E1] (art. 22º nº 1 do C. Penal) estará na intenção que presidiu à conduta em questão [No âmbito deste entendimento, cfr. Acs. TRP de 16/2/00, proc. nº 9910861, de 7/1/08, proc. nº 1798/07-2 de 13/7/11, TRG de 18/5/09, proc. nº 349/07.1PBVCT, TRC de 9/9/09, proc. nº 363/08.0OGAACB.1 de 23/9/09, proc. nº 541/04.0GBPBL.C1, TRL de 11/2/10, proc. nº 105/08.0PCPDL.L1-9 de 9/3/10, proc. nº 1713/06.9TALRS.L1.5, e TRE de 6/9/11, proc. nº 428/09.0PBELV.E1].
«A propósito refiram-se também os acórdãos (da mesma Relação do Porto) de 14.7.2004, relatora Conceição Gomes, em que se considerou que ”o arguido diz ao queixoso: “Anda cá para fora, que eu mato-te”, está a anunciar um mal futuro; de 30.3.2005, relator Fernando Monterroso, onde foi considerado como mal anunciado futuro a expressão “eu vou dar cabo de ti, eu vou-te cortar aos bocadinhos”; de 21.6.2006, relator Jorge França, considerou-se como mal futuro, a situação de o arguido, dirigindo-se à ex-mulher, em frente do edifício onde esta residia, a aborda inesperadamente, segurando por alguns momentos a porta do veículo, impedindo-a assim de a fechar, enquanto lhe diz, em tom sério, que queria resposta sobre a casa e “não sabes do que eu sou capaz, eu estoiro-te”; de 30.9.2009, do mesmo relator, onde se entendeu que a expressão “Quando te agarrar para os lados da … faço-te as contas” utilizada de forma séria, no contexto de uma discussão, é suscetível de preencher o tipo legal do crime de ameaça; de 22.9.2010, relatora Lígia Figueiredo, onde se entendeu que preenche o tipo objetivo do crime de ameaça a conduta daquele que, dirigindo-se a outrem, lhe diz: “hei de te pôr numa cadeira de rodas”; de 6.10.2010, relator Moisés Silva, onde se considerou preencher o tipo objetivo do crime de ameaça a conduta daquele que, dirigindo-se a outrem, lhe diz: «hei de tratar-te da saúde, e só não é hoje porque tenho uma distensão muscular» (trecho do eloquente acórdão da Relação do Porto de 26/5/2021, no Pº 775/18.0GBVFR.P1).

3.2.2.3. Analisemos o caso vertente.
A frase é:
“Sai cá para fora”.
Com ela, anuncia-se um iminente mal.
Trata-se de uma frase adequada a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação da ameaçada CC[7].
Já não a temos, contudo, como anúncio de algo futuro na medida em que os factos nºs 4 e 6 dão toda uma envolvência demasiado contemporânea das intenções criminosas deste homem que quereria tudo «resolver» naquele instante, caso a ofendida saísse mesmo do carro, não se resguardando para ulterior e futuro momento (veja-se o depoimento da ofendida CC que foi clara aos 14:56 do seu depoimento ao dizer que, se o arguido tivesse conseguido partir o vidro do seu carro, ele iria agredi-la seguramente, tal a sua ira).
Repete-se o que atrás se escreveu:
Não existirá ameaça futura quando, terminado o filme do nosso processo e a história de vida contida nos nossos autos, deixar de haver futuro para aquela ameaça concreta, não sendo ela passível de vir a ser consumada na medida em que se esgotou no momento presente – o mal não pode ser de execução imediata mas ser antes de execução futura.
O nosso caso é muito paralelo ao descrito no Acórdão da Relação do Porto de 7/3/2012 que decidiu que «não consubstancia a prática de um crime de ameaça a conduta de quem se desloca até junto da residência de outrem, bloqueia-lhe a entrada com um camião e, em tom elevado de voz, diz-lhe: «Anda cá fora, que eu estou à tua espera, cabrão».
Sendo requisito do crime de ameaça que o mal anunciado seja futuro, tal característica temporal há-de resultar da ponderação de um conjunto diversificado de factores referentes à conformação global do facto, em que relevam quer elementos objetivos, quer elementos subjectivos referentes ao propósito ou fim visado pelo agente – e aí os factos nºs 4 e 6 dão toda uma envolvência violenta à acção do agente e às suas reais e presentes intenções criminosas, não passíveis de ser transportadas para momento futuro.
Como entendeu a Relação do Porto, por aresto de 17/3/2015:
«I. Para efeitos do preenchimento do tipo legal previsto no artigo 153º do Código Penal, a ameaça com a prática de um dos crimes de referência do artigo 153º não é típica se ocorrer em simultâneo com a sua execução, sob a forma tentada ou consumada, ou se a execução do crime prometido ainda não se iniciou mas está iminente, pois em ambas as situações (ou seja, quando se verifique identidade do crime prometido com o crime concretamente executado) o desvalor inerente á ameaça é desconsiderado pelo legislador, por estar abrangido pela incriminação do crime prometido.
II. A desconsideração do desvalor da ameaça pressuposta pelo legislador só se verifica nos casos em que a ameaça é seguida ou acompanhada da execução do crime prometido ou por ele consumido - e não outro -, tanto na forma consumada como tentada, isto é, quando se verifique identidade do crime prometido com o crime concretamente executado.
(…)
IV. O critério determinante para aferição da incriminação autónoma da «ameaça» é, pois, que da conduta global do agente, praticada em dado momento, resulte que o desvalor contido na ameaça não se esgota no desvalor do ilícito típico executado na mesma ocasião, aferida esta pelo critério da unidade de sentido do acontecimento ilícito-global..
No nosso caso, dizer «Sai cá para fora», em contexto de disputa rodoviária, em tom irado e acompanhado por pontapés no carro, é uma ameaça real de lesão presente e não futura (consome-se naquele instante), que, tendo sido seguida de algum acto de execução (mesmo sabendo que a ofensa corporal simples do artigo 143º do CP não admite punição pela sua tentativa), não constitui para um destinatário normal de tais palavras uma ameaça de violência futura.
Como tal, inexiste, a nosso ver, tipicidade jurídico-penal na frase em causa, razão pela qual se justifica a absolvição do arguido por tal delito.

3.2.3. DO CRIME DE COACÇÃO
Praticou o arguido um crime de coacção na forma consumada (note-se a comunicação que foi feita pelo tribunal nos termos do nº 3 do artigo 358º do CPP, não contestada pela defesa)?
A defesa entende que não pois a testemunha BB não chamou a polícia por ter sido coagida a tal pelo arguido mas por vontade própria, devido ao comportamento das filhas.
Já aqui se destruiu esta tese mercê da validação que se fez dos factos provados pelo Tribunal ....
Vejamos.
O CP prescreve no seu artigo 154º, nºs 1 e 2, o seguinte:
«1. Quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.
3. O facto não é punível:
a) Se a utilização do meio para atingir o fim visado não for censurável; ou
b) Se visar evitar suicídio ou a prática de facto ilícito típico.
4. Se o facto tiver lugar entre cônjuges, ascendentes e descendentes, adoptantes e adoptados, ou entre pessoas, de outro ou do mesmo sexo, que vivam em situação análoga à dos cônjuges, o procedimento criminal depende de queixa».
Não estamos perante o caso dos nºs 3 e 4 mas do nº 1 (concordando-se com a consumação e não com a tentativa).
Nos crimes contra a liberdade, nomeadamente nos crimes de ameaça e de coacção, está subjacente uma certa tensão entre o interesse na salvaguarda da liberdade de decisão e de acção e o interesse em não limitar excessivamente a liberdade social de acção de terceiros.
O tipo legal em causa tem como bem jurídico protegido a liberdade de auto determinação e distingue-se da ameaça por o mesmo ter como elemento típico o constranger alguém a uma acção ou omissão, ou seja, o anúncio do mal futuro depende de uma acção ou missão que deverá ser realizada pela vítima ou outrem.
O tipo objectivo de ilícito da coacção consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar uma acção, omitir determinada acção ou suportar uma acção – cfr. Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 354.
Quanto à violência, esta pode implicar o emprego da força física, mas também a pressão moral ou intimação, não se exigindo que a intimação ou a força física sejam irresistíveis: basta que tenham potencialidade causal para compelir a pessoa contra quem se empregam à prática do acto ou à omissão ou a suportar a actividade.
Quanto à ameaça com um mal importante, atende-se apenas à actividade social susceptível de causar um mal importante, ou seja, um mal que tenha acentuado relevo, um mal que a comunidade repele e censura pelo dano relevante que pode causar. (Cfr. Código Penal Português - Maia Gonçalves, 1996, anotação ao artigo 154º do Código Penal), entendendo-se também que aqui bastará quer essa ameaça com mal importante tenha a potencialidade de compelir a pessoa contra quem se emprega, mesmo que o sujeito passivo da coacção não tenha afinal cedido às exigências comportamentais do coactor.
Quanto ao elemento subjectivo, exige-se o dolo, em qualquer das suas modalidades previstas no artigo 14° do CP - não é necessário que a acção do agente vise, especificamente, humilhar ou constranger o coagido (dolo específico), bastando que o agente, sejam quais foram as suas motivações, tenha consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que faz é susceptível de constranger e com tal se conforme.
O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do homem comum); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das sub-capacidades do ameaçado).
O tipo subjectivo requer o dolo que exige (mas basta-se) com a consciência (representação e conformação) da adequação da ameaça a provocar medo ou intranquilidade no ameaçado.
No caso vertente, face à factualidade dada como provada, resulta inequívoca a expressão ameaçadora por parte do arguido dirigida à BB e documentada no facto nº 11, a qual, no quadro das circunstâncias em que é proferida, o arguido sabia ser apta e adequada a provocar medo naquela, com o propósito de esta não chamar ali mesmo a polícia.
É verdade que a BB acabou por apresentar queixa policial mais tarde mas isso não invalida que, naquele preciso momento do evento, ela não tenha deixado de chamar a autoridade policial por receio de que algo de mal lhe pudesse acontecer, face à notória fúria do arguido e à expressão por ele usada naquele preciso momento.
Como bem explica a sentença recorrida:
«No caso dos autos provou-se que o arguido, quando a ofendida BB lhe disse que iria chamar a polícia retorquiu “se chamares a polícia eu mato-te”.
Verifica-se, deste modo que, mediante uma clara e inequívoca ameaça para a vida da ofendida, o arguido quis limitar a sua liberdade de ação, i.e., quis constranger ou limitar a liberdade de decisão da ofendida, pela ameaça que lhe dirigiu.
A ofendida, com receio do que o arguido lhe pudesse fazer, dados os comportamentos que adotava e que rodearam a expressão proferida, o que a levaram a crer que poderia, efetivamente, vir a concretizar o mal ameaçado, não chamou a polícia ao local naquele momento, mas dirigiu-se após às autoridades e denunciou a situação.
Aqui chegados, não existindo dúvidas de que o arguido preencheu, com a sua conduta, os elementos objetivo e subjetivo deste tipo de crime resta apenas avaliar se a conduta do arguido se enquadra na dimensão da mera tentativa ou no crime consumado.
No caso concreto, o arguido vem acusado pela prática do crime de coação na forma tentada. Analisada a matéria de facto provada nos autos constata-se que o arguido logrou, efetivamente, naquele momento, obstar a que a ofendida chamasse as autoridades ao local. Naquele momento, portanto, o arguido logrou atingir os objetivos que delineou com a ameaça que proferiu, posteriormente, não obstante, a ofendida denunciou os factos à autoridade.
Importa, para a análise do enquadramento jurídico dos factos, analisar a expressão em causa.
A expressão proferida pelo arguido, de acordo com a matéria de facto provada, foi “se chamares a polícia eu mato-te”.
Ora, a expressão proferida não deixa dúvidas de que, de acordo com a mesma, a concretização do mal ameaçado ocorreria caso a ofendida adotasse o comportamento que o arguido pretendia obstar naquele momento.
E tal ocorreu, já que a ofendida, conforme já referido, não obstante tivesse pegado no seu telemóvel com tal finalidade, absteve-se de chamar as autoridades ao local, precisamente por causa da ameaça que o arguido lhe dirigiu.
Constata-se, por isso, que, independentemente de, em momento posterior, a ofendida se ter dirigido às autoridades para denunciar os factos, naquele mesmo momento e local dos factos, a ofendida, não obstante pretendesse fazê-lo, omitiu este comportamento».

Assim:
Encontrando-se imputada ao arguido a prática de um crime de coacção, não assiste razão à defesa quanto à alegação de errada qualificação jurídica dos factos já que, para a prática do crime de coacção basta que a conduta do arguido, quer sob a forma de violência, quer sob a forma de ameaça com um mal importante, seja objectivamente capaz de obrigar outrem a praticar um acto, a omiti-lo, ou a suportar uma determinada actividade.
Na realidade, a conduta adoptada pelo arguido que foi dada como provada pelo tribunal a quo foi e é objectivamente apta a forçar a testemunha BB a deixar de chamar a autoridade policial.
A expressão supra transcrita, acompanhada pelo comportamento referido, no contexto descrito, traduz, inequivocamente, a intenção de provocar medo e receio na BB, por forma a levá-la a omitir uma acção previamente pensada.
Improcede, assim, o recurso neste segmento.

3.2.4. DA MEDIDA DAS PENAS PRINCIPAIS

3.2.4.1. Assente que este Tribunal da Relação irá absolver o arguido da prática do crime de ameaça, foi o arguido condenado nas seguintes e relevantes penas parcelares:
· 10 meses de prisão pelo crime de condução perigosa e
· 4 meses e 15 dias pelo crime de coacção.
São estas as molduras penais abstractas:
· Pelo 1º delito, pena de prisão até 3 anos OU pena de multa.
· Pelo 2º delito, pena de prisão até 3 anos OU pena multa.
A pena de cúmulo jurídico foi de 13 meses de prisão (numa moldura abstracta de 10 meses a 16 meses e 15 dias, considerando a pena de 2 meses aplicada pelo crime de ameaça).
O tribunal afastou a aplicação da pena pecuniária, entendendo que só uma pena privativa de liberdade era adequada a sancionar quem duas vezes seguidas prevarica desta forma, incorrendo numa quase selvática atitude rodoviária, à laia de justiceiro da estrada.
Entende o arguido que a pena aplicada foi excessiva, pugnando pela aplicação de uma pena não privativa de liberdade.
O arguido, na sua motivação, insiste em dizer que foi sancionado em pena suspensa.
Não foi o caso.
Foi-lhe aplicada uma pena substitutiva dessa pena de prisão, ao abrigo do artigo 58º do CP.
Foi esta a decisão do tribunal neste segmento:
«No caso sub judice, entendemos que, na ponderação da escolha do tipo de pena a aplicar ao arguido, terá de ser analisada, globalmente, a conduta que o mesmo assumiu nos autos, sem esquecer os elementos constantes do relatório social para determinação da sanção junto aos autos, as características de personalidade do mesmo, sobretudo no exercício da condução e que foram descritas pela sua mulher, testemunha nos autos e ainda os elementos que ressaltam do RIC do arguido, tudo ponderado com a postura que assumiu em Audiência de Julgamento, de negação dos factos, assim demonstrado falta de consciência da gravidade dos seus comportamentos e elevada resistência em alterar os mesmos.
Na realidade, se o legislador manda que, sempre que tal seja possível para a conformação do agente com as regras do Direito e da sociedade, opte o julgador pela aplicação de pena de multa, a verdade é que resulta da conjugação de todos os elementos referenciados com os factos analisados nos autos, que o arguido apresenta uma vincada personalidade desconforme às regras de boa conduta social, pelo menos, no exercício da condução e ainda um elevado desrespeito pelos demais utentes da via pública, considerando-se o único (ou dos poucos) condutor que tem o “direito” a na mesma transitar, mais considerando que faz parte das suas “obrigações” chamar a atenção, de forma violenta e agressiva, os demais condutores, sempre que se depara com uma situação que considera desadequada no exercício da condução. Estes comportamentos do arguido, que integram características da sua personalidade, do nosso ponto de vista, de modo algum, poderão voltar a conformar-se com os princípios basilares da vida em sociedade mediante a simples aplicação de uma pena de multa.
Assim, pese embora a inexistência de antecedentes criminais averbados ao seu Certificado de Registo Criminal, entende-se que a gravidade objetiva dos factos, a perigosidade inerente à sua repetição e ainda o juízo de prognose que, quanto a nós, enquanto não se mostrar devidamente corrigido, lhe é altamente desfavorável, apontam para a circunstância de, apenas, a pena privativa da liberdade ser capaz de punir, de forma adequada os factos sob pena de, sendo-lhe aplicada pena de multa, a incapacidade que o arguido denota de interiorização do erro da sua conduta, levar à perpetuação deste tipo de comportamentos que poderão, no futuro, assumir contornos de elevada agressividade e violência, dado que o arguido é totalmente incapaz de conter os seus impulsos de agressão no exercício do ato de condução, que é comportamento que assume diariamente.
Assim, por razões de prevenção especial, impõe-se que, no caso dos autos, se opte pela aplicação de pena privativa da liberdade.
*
Atendendo ao critério definido no art. 71º (“ex vi” art. 47º, 1, do Código Penal), a determinação da medida da pena faz-se em função da culpa do agente, tendo ainda em conta as exigências de prevenção de futuros crimes.
Assim, a culpa do agente é elevadíssima, tendo em conta, não só a sua gravidade e censurabilidade mas, igualmente, o indubitável dolo direto com que praticou os seus atos.
As exigências de prevenção geral são elevadas, para qualquer um dos tipos de ilícito em causa, atenta a proliferação da criminalidade a que assistimos na nossa sociedade.
As exigências de prevenção especial, são particularmente expressivas, atentas as suas características de personalidade, que resultaram evidentes na prova produzida em audiência de julgamento, sendo igualmente referenciadas no relatório social para determinação da sanção, sendo o arguido descrito como impulsivo e reativo.
Resulta igualmente do relatório social que o arguido utiliza o seu veículo para deslocações diárias, entre a sua residência e o local de trabalho, sendo que a sua profissão exige frequentes deslocações pelo país, o que exponencia a possibilidade de repetição deste tipo de condutas.
Assim, tendo em consideração todos os factos, entende-se ser justa e adequada dentro da moldura abstrata das penas aplicáveis a cada um dos ilícitos, fixar, para a prática do crime de condução perigosa, a pena de 10 meses de prisão, para a prática do crime de ameaça, a pena de 2 meses de prisão e, para a prática do crime de coação, da pena de 4 meses e 15 dias de prisão.
*
2. Cúmulo jurídico
Determina o artº 77º, nº 1, do Código Penal que “Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.”.
Daqui resulta a imposição legal de, em casos como o vertido nos presentes autos, estando em causa mais do que um crime imputado ao mesmo agente, dever ser-lhe aplicada uma única pena pela globalidade dos factos praticados.
A pena única a aplicar, terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos crimes em causa.
No caso dos autos, a pena a aplicar terá, como limite máximo, 16 meses e 15 dias de prisão e, como limite mínimo, 10 meses de prisão.
Na medida da pena única há a considerar, conjuntamente, os factos, a personalidade do agente e a sua conduta anterior e posterior aos factos.
Os factos, conforme acima exposto, revestem-se de alguma gravidade, sendo nossa convicção que apenas não se mostraram mais graves em termos de consequência pela circunstância de, numa e noutra situação, por um lado, o arguido não ter logrado abrir a porta do condutor dos veículos das ofendidas e estas não terem reagido aos seus comportamentos agressivos, não se nos colocando quaisquer dúvidas de que, caso o arguido lograsse abrir tais portas, teria agredido de forma agressiva e bárbara as ofendidas, dado o seu estado de irritação e descontrole.
No que se refere aos comportamentos anteriores aos factos, há a sublinhar a inexistência de antecedentes criminais, por um lado, e os elementos que resultam do RIC junto aos autos.
Por fim e no que se refere ao comportamento posterior aos factos, há a sublinhar que o arguido optou por negar os factos, não demonstrando qualquer consciência moral ou juízo crítico acerca dos mesmos, nem se retratando em Audiência de Julgamento com um pedido de desculpas que era, no mínimo, exigível às ofendidas.
Assim, atendendo aos critérios que determinaram a escolha da medida da pena, a consideração dos factos, no seu conjunto e a personalidade do arguido, de acordo com o que se acaba de expor, considero adequada a aplicação da pena única de 13 meses de prisão.
*
3. da substituição da pena de prisão
Determina o artº 58º, do Código Penal que
1 - Se ao agente dever ser aplicada pena de prisão não superior a dois anos, o tribunal substitui-a por prestação de trabalho a favor da comunidade sempre que concluir, nomeadamente em razão da idade do condenado, que se realizam, por este meio, de forma adequada e suficiente, as finalidades da punição.
2 - A prestação de trabalho a favor da comunidade consiste na prestação de serviços gratuitos ao Estado, a outras pessoas coletivas de direito público ou a entidades privadas cujos fins o tribunal considere de interesse para a comunidade.
3 - Para efeitos do disposto no 1, cada dia de prisão fixado na sentença é substituído por uma hora de trabalho, no máximo de 480 horas.
4 - O trabalho a favor da comunidade pode ser prestado aos sábados, domingos e feriados, bem como nos dias úteis, mas neste caso os períodos de trabalho não podem prejudicar a jornada normal de trabalho, nem exceder, por dia, o permitido segundo o regime de horas extraordinárias aplicável.
5 - A pena de prestação de trabalho a favor da comunidade pode ser aplicada com aceitação do condenado.
6 - O tribunal pode ainda aplicar ao condenado as regras de conduta previstas nos nºs 1 a 3 do artigo 52º, sempre que o considerar adequado a promover a respetiva reintegração na sociedade.”.
No caso concreto, verifica-se que o arguido tem 57 anos de idade e, não obstante a mesma, tem notórias carências quanto à perceção do respeito pelos demais na sociedade.
Por outro lado, o arguido aceitou a prestação de trabalho, conforme consta dos autos.
A substituição da pena curta de prisão por Trabalho a Favor da Comunidade afigura-se-nos, assim, ser perfeitamente adequada às finalidades da punição uma vez que a mesma, através da prestação de serviços ao estado, de forma gratuita, obrigará o arguido a uma consciencialização da importância dos demais na sociedade e à necessidade de respeito pelo outro e de tolerância para os comportamentos de terceiros, aspetos que se afiguram prementes à estruturação da personalidade.
Assim, considerando que, desta forma, se realizam de modo adequado as finalidades da punição, decido substituir a pena de 13 meses de prisão por 395 (trezentas e noventa e cinco) horas de Trabalho a Favor da Comunidade, a prestar nas condições e local que venham a ser definidos pela DGRSP, mas que deverão ter em atenção as características específicas de personalidade do arguido e os aspetos que se pretende, com esta pena, debelar na mesma.
Dispõe o artº 58º, nº 4, que O tribunal pode ainda aplicar ao condenado as regras de conduta previstas nos nºs 1 a 3 do artigo 52º, sempre que o considerar adequado a promover a respetiva reintegração na sociedade.
No caso concreto, afigura-se-nos que a aplicação de regras de conduta, a par da substituição da pena, é fundamental a promover a reintegração do arguido na sociedade.
Assim, decido aplicar, ainda, as seguintes regras de conduta: frequência do programa STOP – Responsabilidade e Segurança Rodoviária (al. b), do nº 1, do artº 52º, do Código Penal) e entrega, aos Bombeiros Voluntários ..., da quantia de 500,00€ (quinhentos euros), no prazo de 1 (um) ano contado do trânsito em julgado da presente decisão (al. c), do mesmo normativo legal)».

3.2.4.2. Analisemos então a causa neste segmento.
O artigo 71º, nº 1 do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor e contra ele.
            Na determinação da medida concreta da pena, dispõe o artigo 71º, nº 1 do CP que ela é feita, dentro dos limites definidos na lei, em função da culpa do agente e das exigências prevenção, atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente, designadamente de entre as que constam do elenco do nº 2, da mesma norma legal.
A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística.
Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena.
A determinação da pena dentro dos limites da moldura penal é um acto de discricionariedade judicial, mas não uma discricionariedade livre como a da autoridade administrativa quando esta tem de eleger, de acordo com critérios de utilidade, entre várias decisões juridicamente equivalentes, mas antes de uma discricionariedade juridicamente vinculada.
O exercício dessa discricionariedade pelo juiz na individualização da pena depende de princípios individualizadores em parte não escritos, que se inferem dos fins das penas em relação com os dados da individualização - trata-se da aplicação do DIREITO e, como acontece com qualquer outra operação nesse domínio, “mesclam-se a discricionariedade e vinculação, com recurso a regras de direito escritas e não escritas, elementos descritivos e normativos, actos cognitivos e puras valorações” (SIMAS SANTOS).
Neste domínio, o julgador tem de traduzir numa certa quantidade (exacta) de pena os critérios jurídicos de determinação dessa mesma pena.
            Sublinhe-se que estes constituem os princípios regulativos que deverão estar subjacentes à determinação de qualquer pena, funcionando a culpa como fundamento da punição em obediência ao princípio “nulla poena sine culpa” e limite máximo inultrapassável da pena, atendendo à dignidade da pessoa humana.
A prevenção, na sua vertente positiva ou de integração, mostra-se ligada às necessidades comunitárias da punição do caso concreto, e irá fixar os limites dentro dos quais a prevenção especial de socialização irá determinar, em última instância, a medida concreta da pena.
Na verdade, só se justificará a aplicação de uma pena se ela for necessária e na exacta medida da sua necessidade, ainda que sempre subordinada a uma incondicionável proibição de excesso, conquanto, ainda que necessária, a pena que ultrapasse o juízo de censura que o agente mereça é injusta e dessa forma inadmissível.
            Ora, aqui chegados, e com este pano de fundo, há que considerar que as penas finais foram justas e equitativas.
            São, na realidade, prementes as exigências de prevenção geral.
Assim, em concreto, atender-se-á:
· à culpa, sendo certo que o arguido actuou com dolo directo, dando um especial envolvimento à sua actuação, desculpabilizante e nunca arrependida, preferindo arranjar desculpas infundamentadas e inverosímeis, negando os factos;
· às exigências de prevenção geral, as quais se nos afiguram particularmente acentuadas dada a frequência deste tipo de crime e alarme que provoca na comunidade, assente que se mata e fere outrem por razões rodoviárias absolutamente fúteis;
· às exigências de prevenção especial, as quais revertem a seu favor, na medida em que é delinquente primário, com bom comportamento anterior.
Como tal, e recordando que a moldura penal abstracta dos crimes em apreço é a de 10 dias a 360 dias de multa OU 30 dias a 3 anos de prisão, pergunta-se:
Foi justa a opção pela pena de prisão?
Não poderíamos estar mais de acordo.
A postura do arguido em julgamento é manifestamente censurável e apta a podermos considerar e ajuizar que ele não intuirá o desvalor da sua atitude a não ser pela aplicação de uma pena bem grave, em termos de modalidade (pois as multas pagam-se e pouco pesam na nossa vontade de não voltar a prevaricar).
Quanto ao quantum das penas, o seu limpo passado criminal não permite efectuar um juízo de prognose favorável, atenta a sua personalidade e a forma como se portou em julgamento, negando sempre os factos (cfr. facto nº 32 – «a impulsividade e reatividade emocional em situações percepcionadas como adversas são características pessoais atribuídas ao arguido pelo cônjuge»).
Penas inferiores às aplicadas revelar-se-iam manifestamente insuficientes face às necessidades de prevenção geral e especial que no caso se fazem sentir.
Não deixaremos ainda de considerar, como o faz o acórdão desta Relação, datado de 16/2/2022 (Pº 226/18.0GAPMS.C1):
«Acresce que “o tribunal de recurso deve intervir na alteração da pena concreta, apenas quando se justifique uma alteração minimamente substancial, isto é, quando se torne evidente que foi aplicada sem fundamento, com desvios aos citérios legalmente apontados” – cfr. Ac. da RC de 18.3.2015, in www.dgsi.pt.
Como se pode ler também no Ac. da RG de 5.3.2018, in www.dgsi.pt, “quanto aos limites de controlabilidade da determinação da pena em sede de recurso - entendemos ser de seguir o entendimento da doutrina e da jurisprudência no sentido de que é suscetível de revista a correção das operações de determinação ou do procedimento, a indicação de fatores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, a falta de indicação de fatores relevantes, o desconhecimento pelo tribunal ou a errada aplicação dos princípios gerais de determinação, mas a determinação do quantum exato de pena só pode ser objeto de alteração perante a violação das regras da experiência ou a desproporção da quantificação efetuada”.
Posição jurisprudencial que se acompanha».
E nós também.
Como tal, as duas penas de prisão são adequadas, também o sendo esta substituição pela pena de trabalho a favor da comunidade.
Por tudo isto, não foram excessivas as duas aplicadas, vendo-se este tribunal obrigado a secundá-las, mudando, como é óbvio, a pena de cúmulo jurídico para os 12 meses de prisão (em vez dos 13 meses), atenta a absolvição pela prática do crime de ameaça.

3.2.4.3. Mas quanto à pena do artigo 58º do CP, não secundamos totalmente a decisão recorrida.
No caso, decidiu-se, face aos 13 meses de prisão do cúmulo:
· Substituir a pena de prisão por 395 (trezentas e noventa e cinco) horas de Trabalho a Favor da Comunidade, a prestar nas condições e local que venham a ser definidos pela DGRSP, mas que deverão ter em atenção as características específicas de personalidade do arguido e os aspetos que se pretende, com esta pena, debelar na mesma.
· Nos termos do disposto no artº 52º, nº 1, als. b) e c), do Código Penal, aplicar ao arguido as seguintes regras de conduta:
§ frequência do programa STOP – Responsabilidade e Segurança Rodoviária e
§ entrega, aos Bombeiros Voluntários ..., da quantia de 500,00€ (quinhentos euros), no prazo de 1 (um) ano contado do trânsito em julgado da presente decisão.
No nosso caso, e atenta a mudança da pena de cúmulo, a pena do artigo 58º do CP deverá ser agora a de 365 horas de trabalho a favor da comunidade (cfr. artigo 58º, nº 3), não podendo, contudo, concordar-se com a condenação na entrega aos Bombeiros da quantia de € 500.
Trata-se de uma pena mista aquela que é prevista no nº 6 do artigo 58º do CP.
A lei é clara:
 «6 - O tribunal pode ainda aplicar ao condenado as regras de conduta previstas nos nºs 1 a 3 do artigo 52º, sempre que o considerar adequado a promover a respetiva reintegração na sociedade».

O legislador apenas habilita o julgador a cumular com a pena de trabalho a favor da comunidade uma ou várias regras de conduta previstas no artigo 52º, nº 1 a 3.
Não autoriza o tribunal, pois, a cumular os deveres impostos no artigo 51º [sendo um dever e não uma regra de conduta a entrega aos Bombeiros de uma quantia pecuniária – artigo 51º, nº 1, alínea c), não fazendo qualquer sentido o tribunal ter subsumido este dever à regra de conduta prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 52º].
Ou é um dever que se impõe.
Ou é uma regra de conduta que se aplica.
Nunca as duas espécies por falta de previsão típica legal.
O tribunal aplicou um dever como se fosse uma regra de conduta.
E a lei apenas lhe permitia fazer a aplicação cumulada de uma regra de conduta e não de um dever.
Como tal, por falta de tipicidade da pena, tem de cair este 2º segmento da pena de trabalho a favor da comunidade, cumulando-se apenas tal pena com a regra de conduta prevista no artigo 52º, nº 1, alínea b), aqui aplicável por força do nº 6 do artigo 58º.

3.2.5. DA MEDIDA DA PENA ACESSÓRIA

Foi ainda o arguido condenado na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 1 ano [artigo 69º, nº 1, alínea a) do CP, por força da condenação pelo crime do artigo 291ºdo mesmo diploma].
Discorreu assim o tribunal recorrido:
«De acordo com o art. 69º, nº1, al. a), do Código Penal, é condenado na proibição de conduzir veículos motorizados por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido, designadamente, por crime previsto e punido no art. 291º, do Código Penal.
A pena acessória visa, ao invés da pena principal, decidir sobre o sancionamento do comportamento adotado na vertente em que o mesmo contende com o exercício da condução.
Visa-se, assim, punir o condutor pelos comportamentos desadequados no exercício da atividade de conduzir, paralelamente à punição da conduta criminosa que determina a aplicação da pena principal.
No caso concreto, considera-se que as características de personalidade que o arguido detém, as quais se exacerbam no exercício da condução, tal como referido pela sua mulher que, não raro, o acompanha nesta atividade, aliado à circunstância de o arguido exercer a condução com uma periodicidade diária, apontam para uma elevada perigosidade do mesmo no exercício desta atividade.
Assim, considerando a gravidade dos factos e dos comportamentos assumidos pelo arguido no exercício da condução, considero adequada a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir pelo período de 1 (um) ano».

Estamos perante uma verdadeira pena: conquanto seja uma sanção dependente da aplicação da pena principal (como a própria denominação indica), não resulta directa e imediatamente da cominação desta, no sentido de que não é seu efeito automático, o que, aliás, constitui imposição constitucional, decorrente do nº 4 do artigo 30º da Constituição, que estabelece, tal qual o faz o nº 1 do artigo 65º do CP, que nenhuma pena envolve como efeito necessário a perda de quaisquer direitos civis, profissionais ou políticos, constituindo antes uma sanção autónoma.
A pena acessória de proibição de conduzir, para muitos, é bem mais gravosa que a pena principal (evidentemente, quando esta é não privativa da liberdade), sendo certo que a defesa passa aqui, necessariamente, pela alegação e prova de factos de natureza pessoal, factos da maior importância para a determinação concreta da medida daquela, os quais só podem ser dados a conhecer pelo arguido ao tribunal se o mesmo for prevenido de que a condenação no crime de que é acusado implica, também, a condenação na pena acessória (e daí o sentenciado, em termos de fixação de jurisprudência, no AFJ do STJ nº 7/2008, de 25/6/2008 - «Em processo por crime de condução perigosa de veículo ou por crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas, não constando da acusação ou da pronúncia a indicação, entre as disposições legais aplicáveis, do nº 1 do artigo 69º do Código Penal, não pode ser aplicada a pena acessória de proibição de conduzir ali prevista, sem que ao arguido seja comunicada, nos termos dos nºs 1 e 3 do artigo 358º do CPP, a alteração da qualificação jurídica dos factos daí resultante, sob pena de a sentença incorrer na nulidade prevista na alínea b) do nº 1 do artigo 379º deste último diploma legal».
Qualquer sentença não deve deixar de atender às circunstâncias que, não fazendo parte do crime, depõem a favor do agente - designadamente as circunstâncias do facto, grau de culpa e ilicitude, antecedentes criminais e situação pessoal, profissional e familiar do arguido -, devendo-o fazer, como é de direito, na operação de graduação concreta daquela sanção.
Admitindo que a faculdade de conduzir veículos automóveis é um direito civil, é certo que a perda desse direito é uma medida que o juiz aplica e gradua dentro dos limites mínimo e máximo previstos, em função das circunstâncias do caso concreto e da culpa do agente, segundo os critérios do artigo 71º do CP.
A circunstância de ter sempre de ser aplicada essa medida, ainda que pelo mínimo da medida legal da pena, desde que seja aplicada a pena principal de prisão ou multa, não implica, ainda assim, neste caso, colisão com a proibição de automaticidade.
A adequação da proibição de conduzir a este tipo de ilícitos revela que a medida dessa proibição se configura como uma parte de uma pena compósita, como se de uma pena principal associada à pena de prisão se tratasse, em relação à qual valem os mesmos critérios de graduação previstos para esta ultima (com efeito, a aplicação da proibição de conduzir fundamenta-se, tal como a aplicação da pena de prisão ou multa, na prova da prática do facto típico e ilícito e da respectiva culpa, sem necessidade de se provarem quaisquer factos adicionais, surgindo como adequada e proporcional tal sanção, atenta a natureza da infracção, com a inerente perigosidade decorrente dessa conduta).
Como opinam Jorge Miranda e Rui Medeiros, in CRP anotada, Tomo I, CE, p. 338, «parece-nos que não é pelo facto de o legislador associar a um crime (ou a uma pena) de alguma gravidade um “efeito” que atinja esses direitos, que fique violado um princípio constitucional, desde que seja SEMPRE respeitado o princípio da proporcionalidade, tanto em abstracto como em concreto, através da determinação, por moldura legal, do tempo de privação do direito ou, então, através da previsão de uma cláusula de salvaguarda por “manifesta desproporção”».
Ora:
A proibição de conduzir veículos motorizados como pena acessória que é, tal como a pena principal, deve ser determinada de acordo com o disposto no artigo 71º do CP.
            O artigo 71º, nº 1 do CP estabelece o critério geral segundo o qual a medida da pena (leia-se, então, também medida da pena acessória) deve fazer-se em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
O nº 2 desse normativo estatui que, na determinação da pena, há que atender a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor e contra ele.
A medida concreta da pena há-de ser, assim, o quantum que é encontrado, de forma intelectual pelo julgador, através do racional e ponderado funcionamento dos conceitos de «culpa» e «prevenção, sendo a culpa o limite inultrapassável da punição concreta e casuística.
Dentro dos limites da moldura penal, há-de ser a culpa que fixa o limite máximo da pena que no caso será aplicada – a finalidade de prevenção geral de integração ou positiva orienta a determinação concreta da pena abaixo do limite máximo indicado pela culpa, aparentando-se mais com a prevenção especial de socialização, sendo esta a determinar, em última instância, a medida final da pena.
Seguem-se aqui os mesmos comandos que se expuseram para a fixação da pena principal.
Diremos ainda mais - à pena acessória cabe uma «função preventiva adjuvante da pena principal (...) que se não esgota na intimidação da generalidade mas se dirige (…) à perigosidade do delinquente» – Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, p. 96.
Considerando que a pena acessória visa prevenir a perigosidade mas constitui também uma censura adicional pelo facto praticado pelo arguido - cfr., Figueiredo Dias, Acta nº 8 da Comissão de Revisão do Código Penal, in Actas e Projecto da Comissão de Revisão do Código Penal, Editora Rei dos Livros, pág. 75 -, verifica-se que, não obstante a pena acessória ter, face à pena principal, uma função mais restrita - função preventiva -, a determinação da sua medida é ainda feita por recurso aos critérios gerais constantes do artigo 71° do Código Penal - cfr. neste sentido Ac. da R.C. de 18/12/96, in CJ, Ano XXI, t. V, p. 62 e ss. e Ac. da R.P. de 20/9/95, in CJ, Ano XX, t. IV, p. 229 e ss.
Discorda o arguido da pena acessória que lhe foi aplicada.
Defende ele que 3 meses – o mínimo - seria mais adequado.
De facto, o crime em questão é também punível com a pena acessória de proibição de condução de veículos com motor, a fixar entre três meses e três anos, nos termos do disposto no artigo 69º, nº 1, alínea a), do CP.
Esta pena acessória tem, além do mais, um carácter dissuasor, com vista a evitar que os condutores conduzam de forma imprevidente e desatenta.
No caso em apreço, são elevadas as exigências de prevenção geral, pois subjacente ao preceito em apreciação visa-se o combate à sinistralidade rodoviária provocado pela irresponsabilidade rodoviária de tantos condutores que matam terceiros por isso.
Face à factualidade considerada provada nos autos, encontram-se, no caso vertente, integralmente reunidos os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido da pena acessória da proibição de conduzir veículos a motor por um período de três meses a três anos.
            Importa, agora, determinar a medida da pena acessória, que será fixada dentro da moldura penal abstracta – com um mínimo de três meses e um máximo de três anos – de acordo com a culpa e as exigências de prevenção (geral e especial), bem como a todas as circunstâncias que depuserem a favor ou contra o arguido (cf. artigo 71º do CP), fazendo-se, por isso, o mesmo raciocínio que se faz para graduar a pena principal.
            Sabemos que o arguido se mostra familiar, social e profissionalmente integrado.
Aplicar-se agora ao arguido – e perante a sua reincidência, não no sentido técnico-jurídico mas vivencial (duas idênticas atitudes estradais levadas a cabo numa semana, com diferentes vítimas) - a solicitada pena acessória de 3 meses (a mínima), afigura-se-nos, desde logo, injustificadamente “benevolente” pois estaríamos a tocar no mínimo da moldura.
Diga-se que a actual letra do artigo 69º do CP foi introduzida pela Lei nº 77/2001 de 13/7 – esta iniciativa legislativa agravou, de modo significativo, a pena abstracta da mencionada pena acessória, alterando-a, no seu limite mínimo, de 1 mês para 3 meses e, no seu limite máximo de 1 ano para 3 anos.
Deste modo, tal agravação derivou de uma inequívoca opção político-criminal que reconhece – sabia e pragmaticamente - que as finalidades da punição, atenta a reconhecida pouca eficácia da pena de multa, se conseguem, neste tipo de delito rodoviário, essencialmente, através da aplicação da pena acessória de proibição de condução, sendo essa a parte que invariavelmente mais toca no âmago do prevaricador.
Concorda-se, não obstante, que foi algo dura a pena acessória.
Entendemos, assim, fixá-la nos 10 meses, a qual será mais adequada às necessidades de prevenção geral e especial dos autos, não podendo aqui deixar de relvar o seu limpo cadastro rodoviário.
Não vale agora invocar que se precisa da carta para trabalhar.
Desta forma, não será de esperar – esse o nosso desejo - que volte de delinquir pois já sabe a falta que lhe faz a carta.
Esta pena exerce uma função de emenda cívica e, por isso, é justificada, ao contrário do que defende o recorrente.
Assim, ponderadas as circunstâncias atinentes à culpa e às necessidades de prevenção, bem como os elevados índices de sinistralidade no nosso País, provocados justamente por condutores imprevidentes, considera-se justa e proporcional a imposição ao arguido da proibição de conduzir veículos a motor por um período de 10 MESES.

3.3. Se assim é, procede parcialmente este recurso.

3.4. Em sumário:
I. Qualquer acto que se inclua nos exemplos descritos no tipo legal do artigo 291º do Código Penal constitui uma violação grosseira dessa circulação pois a violação grosseira das regras de condução implica um comportamento de desrespeito por um conjunto de regras de trânsito especificadas no tipo;
II. São três as características essenciais do conceito AMEAÇA: Mal Futuro (não existirá ameaça futura quando, terminado o filme do nosso processo e a história de vida contida nos nossos autos, deixar de haver futuro para aquela ameaça concreta, não sendo ela passível de vir a ser consumada na medida em que se esgotou no momento presente – o mal não pode ser de execução imediata mas ser antes de execução futura) cuja ocorrência dependa da vontade do agente (ou apareça como dependente da vontade do agente);
III. Sendo requisito do crime de ameaça que o mal anunciado seja futuro, tal característica temporal há-de resultar da ponderação de um conjunto diversificado de factores referentes à conformação global do facto, em que relevam quer elementos objetivos, quer elementos subjectivos referentes ao propósito ou fim visado pelo agente;
IV. Dizer «Sai cá para fora», em contexto de disputa rodoviária, em tom irado e acompanhado por pontapés no carro, é uma ameaça real de lesão presente e não futura (consome-se naquele instante), que, tendo sido seguida de algum acto de execução (mesmo sabendo que a ofensa corporal simples do artigo 143º do CP não admite punição pela sua tentativa), não constitui para um destinatário normal de tais palavras uma ameaça de violência futura para os efeitos do crime do artigo 153º do CP.
V. O legislador apenas habilita o julgador a cumular com a pena de trabalho a favor da comunidade uma ou várias regras de conduta previstas no artigo 52º, nº 1 a 3 do CP, não autorizando o tribunal a cumular os deveres impostos no artigo 51º [sendo um dever e não uma regra de conduta a entrega aos Bombeiros de uma quantia pecuniária – artigo 51º, nº 1, alínea c) -, não fazendo qualquer sentido o tribunal ter subsumido este dever à regra de conduta prevista na alínea c) do nº 1 do artigo 52º].


            III – DISPOSITIVO       

            Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em: 
· em conceder parcial provimento ao recurso intentado pelo arguido AA, na medida em que se decide:
· Absolver o arguido da prática de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153º, nº 1 do CP, no segmento referente à ofendida CC;
· Em cúmulo jurídico, condenar o arguido na pena única de 12 (doze) meses de prisão;
· Substituir a pena de prisão por 365 (trezentas e sessenta e cinco) horas de Trabalho a Favor da Comunidade, a prestar nas condições e local que venham a ser definidos pela DGRSP, mas que deverão ter em atenção as características específicas de personalidade do arguido e os aspectos que se pretende, com esta pena, debelar na mesma;
· Nos termos do disposto no artigo 52º, nº 1, alínea b), do CP, aplicar ao arguido a seguinte e ÚNICA regra de conduta:
o frequência do programa STOP – Responsabilidade e Segurança Rodoviária (revogando-se a segunda assim apelidada “regra de conduta”);
· Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir quaisquer veículos motorizados, pelo período de 10 (dez) meses;
· Mantendo no mais toda a decisão recorrida (penas pelo crime de condução perigosa e pelo crime de coacção E pontos 10 e 11 do Dispositivo).

Sem tributação [cfr. artigo 513º, no 1, a contrario sensu do CPP].
Coimbra,
(Consigna-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário, sendo ainda revisto pelo segundo e pelo terceiro – artigo 94º, nº 2, do CPP -, com assinaturas electrónicas apostas na 1.ª página, nos termos do artº 19º da Portaria 280/2013, de 26-08, revista pela Portaria 267/2018, de 20/09)


Paulo Guerra (Relator)
Alcina da Costa Ribeiro (Adjunta)
Cristina Pêgo Branco (Adjunta)




[1] Note-se que a defesa pede a absolvição do crime de ameaça agravada referindo-se estranhamente à factualidade nº 9 a 16, quando é certo que nessa aí referida 2ª situação dos autos (factos de 25/10/2019) o arguido veio a ser absolvido da prática de tal crime de ameaça (factos não provados a e b), tendo ficado apenas com a imputação de um crime de coacção, vertido nos factos 11, 13 e 14 (a ameaça aqui transforma-se numa coacção, mais severamente punível, deixando a ameaça intrínseca à acção do agente de ter autonomia para ser instrumental do crime mais grave).
[2] Note-se que a alusão feita na sentença à violação da regra estradal do artigo 49º, nº 1, alínea g) é aqui irrelevante para a subsunção da conduta do agente ao crime em apreço pois a norma do artigo 291º não elenca, no típico e taxativo rol de violações rodoviárias, essa infracção de paragem súbita na faixa de rodagem. Como tal, só aqui relevará as infracções estradais relacionadas com a ilegal ultrapassagem que o agente faz.
[3] Importa notar que essa conformação do normativo, designadamente com a indicação de um elenco de manobras perigosas, resulta da Lei 77/01, de 13/07, obedecendo, como acontece com disposição similar do Código Penal alemão, à necessidade de tornar mais segura a interpretação do tipo de crime.
[4] Estabelecido como um crime de perigo concreto, decorrente da «forte probabilidade de ocorrência de dano ou do resultado desvalioso que a norma pretende evitar se desencadeie», nas palavras de Faria Costa, (O Perigo em Direito Penal, Coimbra, 1992, p. 580 e ss), deve entender-se que nas situações tipificadas no crime em causa haverá, assim, uma situação de perigo sempre que a produção do resultado desvalioso, mediante a formulação de um juízo de experiência comum, é mais provável que a sua não produção; ou pelo menos ocorre uma forte probabilidade de o resultado desvalioso se vir a desencadear ou a acontecer - cfr. neste sentido o acórdão do Tribunal da Relação Coimbra, de 24.11.2004, in www.dgsi.pt.

[5] «Como o refere Paulo Pinto de Albuquerque (ob. cit., p. 413), referindo-se ao crime base, «atenta a natureza do crime, não é aplicável a teoria da adequação do resultado à acção, mas a mensagem comunicada tem de ser "adequada" a provocar medo ou inquietação ou prejudicar a liberdade de determinação do destinatário. Isto é, não é necessário que o destinatário tenha efectivamente ficado com medo ou inquieto ou inibido na sua liberdade de determinação. Basta que as palavras ou sinais feitos tivessem essa potencialidade (daí, se afigurando como mais adequada a qualificação como crime de perigo abstracto-concreto e não como crime de perigo concreto, como pretende TAIPA DE CARVALHO, anotação 23.ª ao artigo 153.°, in CCCP, 1999, nem como crime de perigo abstracto, como defendem SÁ PEREIRA e ALEXANDRE LAFAYETIE, 2008: 412, anotação 13.ª ao artigo 153.°; e, na jurisprudência, acórdão do STJ, de 26.4.2001, in SASTJ, 50, 55, e acórdão do TRE, de 24.4.2001, in CJ, XXVI, 2, 270). Nas palavras proferidas por FIGUEIREDO DIAS na comissão de revisão do CP de 1989-1991, “O que se exige, para preenchimento do tipo, é que a acção reúna certas características, não sendo necessário que em concreto se chegue a provocar o medo ou a inquietação” (actas CP/Figueiredo Dias, 1993: 500”» (cfr. Ac. Relação de Lisboa de 9/5/2017 (Pº 17/16.3PTHRT.L1-5).
[6] Por isso, o mal iminente é ainda mal futuro, porque é um mal que ainda não aconteceu, que há-de ser, que há-de vir, embora esteja próximo e prestes a acontecer.
[7] A ameaça adequada é, assim, aquela ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o ameaçado ficar, ou não, intimidado).
O critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo - individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado» (Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo I, anotação ao art. 153º).