Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1769/11.2TJCBR-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
PERÍODO DE CESSÃO
DESPACHO DE ENCERRAMENTO
Data do Acordão: 10/18/2016
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: COMARCA DE COIMBRA - COIMBRA - INST. CENTRAL - SEC.COMÉRCIO - J1
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.235, 237, 239 CIRE
Sumário: Nas situações em que o despacho inicial de exoneração do passivo restante e o despacho de encerramento do processo de insolvência não são proferidos em simultâneo, e começando de imediato os insolventes a ceder o rendimento disponível segundo o decidido naquele despacho e o promovido pelo fiduciário (nos termos do art.º 239º, n.º 4, alínea c) do CIRE), é razoável uma interpretação extensiva do disposto no art.º 239º, n.º 2 do CIRE, que permita considerar que o período de cessão (de 5 anos) e a referida cedência do rendimento disponível pode legalmente e de facto ocorrer, independentemente da prolação do despacho de encerramento, após o despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo.
Decisão Texto Integral:  





            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:        

           

            I. No processo de insolvência em epígrafe, que corre termos na Comarca de Coimbra (Inst. Central – Sec. Comércio), em que foram declarados insolventes P (…) e mulher S (…), a credora Caixa de Crédito Agrícola Mútuo da (…) CRL, insurgiu-se contra a aprovação dos mapas de contas juntos pelo Administrador da Insolvência (AI) no apenso de prestação de contas, alegando, em resumo, que todas as quantias entregues pelos insolventes até à presente data devem integrar a massa insolvente, porque ainda não foi declarado encerrado o processo e, como tal, ainda não se iniciou o período de cessão do rendimento disponível.

            Contestaram os insolventes alegando que o período de cessão se iniciou em Setembro de 2011, data a partir da qual passaram a ceder ao AI a parte do seu rendimento disponível.

            Seguidamente, o Tribunal a quo, por despacho de 11.4.2016, declarou que o período de cessão de rendimento dos insolventes iniciou-se em Setembro de 2011 e terminará em Setembro de 2016, pelo que as quantias entregues pelos insolventes desde Setembro de 2011 até à presente data deverão reverter para a fidúcia e não para a massa insolvente.

            Inconformada, a referida credora apelou, terminando a alegação com as seguintes conclusões:

            1ª - Com referência ao instituto da exoneração do passivo restante, a Lei impõe de forma inequívoca que o período de cessão do rendimento disponível do devedor decorre nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, sendo que a exoneração do passivo restante incide exactamente na parte restante da dívida não ressarcida no processo de insolvência.

            2ª - A concessão do benefício da exoneração corresponde ao valor restante que não for pago pela liquidação dos bens do devedor nem for pago por intermédio dos rendimentos auferidos pelo devedor nos cinco anos posteriores àquela liquidação.

            3ª - Em sede de exoneração do passivo restante, o consequente início do período de cessão não se reporta à data da declaração de insolvência mas sim, inequivocamente, à data do encerramento da insolvência, i. é, depois de excutidos todos os bens conhecidos do devedor insolvente.

            4ª - A lei é expressa e inequívoca quanto ao momento em que se inicia o período de cessão, fazendo-o coincidir com o encerramento do processo de insolvência - art.º 239º, n.º 2 -, pelo que não há fundamento legal, para retroagir à data do início da apreensão do vencimento dos Insolventes a contagem do prazo de cinco anos previsto naquele normativo.

            5ª - A apreensão de valores do salário dos insolventes antes do período de cessão em nada colide com o regime legal de apreensão de bens do insolvente.

            6ª - Determina o art.º 46º, n.º 1, do CIRE que integram a massa insolvente todos os bens penhoráveis do insolvente, incluindo os bens e direitos que adquira na pendência do processo, mesmo tratando-se de rendimentos que obtenha, maxime o vencimento ou salário que aufira.

            7ª - Visando o processo de insolvência a execução universal do património do insolvente, para satisfação de todos os seus credores, enquanto o processo de execução visa apenas a penhora e liquidação dos bens estritamente necessários à satisfação do crédito exequendo, compreender-se-ia muito mal que o executado possa ver o seu património (na modalidade de rendimentos do trabalho) penhorado e o insolvente se veja livre da apreensão desses rendimentos enquanto decorre o processo de insolvência e até à liquidação do seu património e encerramento desse processo - tal seria potenciar a insolvência como “um caminho encorajador da falta de cumprimento das obrigações”.

            8ª - A decisão recorrida violou o disposto nos art.ºs 46º, n.º 1, 235º, 239º, n.ºs 2 e 6, 244º, n.º 1 e 245º, n.º 1, do CIRE.

            Pugna, assim, pela revogação da decisão recorrida, com as consequências supra referidas quanto ao início do período de cessão do rendimento disponível dos insolventes e à composição da massa insolvente (integrando os bens e direitos adquiridos na pendência do processo, mesmo tratando-se de rendimentos do trabalho).
            Os insolventes responderam à alegação concluindo pela sua improcedência.

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, principalmente, se, e quando, se iniciou o período da cessão do rendimento disponível.


*

            II. 1. A 1ª instância deu como provados os seguintes factos:[1]

            a) Por sentença proferida em 22.6.2011[2] foi declarada a insolvência de P (…) e mulher S (…);

            b) Em 06.9.2011 foi proferido despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante formulado pelos insolventes;

            c) O despacho referido em II. 1. b) fixou o rendimento indisponível em valor correspondente a um salário mínimo nacional para cada um dos insolventes;

            d) Os insolventes interpuseram recurso da decisão referida em II. 1. b), o qual foi decidido em 13.12.2011 e manteve a decisão da 1ª instância;

            e) No despacho referido em II. 1. b) não foi declarado encerrado o processo de insolvência[3];

            f) No mesmo despacho declarou-se, designadamente, que a exoneração será concedida, uma vez observadas as condições previstas no artigo 239º do CIRE, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão);

            g) O administrador da insolvência remeteu aos insolventes, que a receberam, a carta datada de 20.9.2011, junta a fls. 265, da qual consta, designadamente: “(…) R (....), Administrador de Insolvência nomeado nos autos no processo acima referenciado, notificado do despacho de deferimento da exoneração do passivo restante, vem respeitosamente enviar a V. Exa. o NIB da conta bancária para onde deverão transferir o remanescente do rendimento disponível que lhes foi fixado”;

            h) Em 04.9.2012 o insolvente informou nos autos da alteração da sua situação laboral e do cumprimento da cedência mensal de rendimento disponível, nos termos que constam do requerimento junto de fls. 154 a 161.

            i) Em 27.01.2014 o administrador da insolvência juntou aos autos comunicação que recepcionou do insolvente relativa ao despedimento colectivo que o abrangeu, nos termos que constam do requerimento junto de fls. 179 a 181.

            j) Em 24.02.2014 o administrador da insolvência juntou aos autos declaração de IRS dos insolventes e comprovativos de procura de emprego que recepcionou dos insolventes, nos termos que constam do requerimento junto de fls. 182 a 190;

            k) Em 01.4.2014 o administrador da insolvência discriminou e documentou nos autos as quantias entregues pelos insolventes desde Fevereiro de 2012 até Janeiro de 2014, no valor global de € 7 207,47, nos termos que constam do requerimento junto de fls. 197 a 210;

            l) Em 09.5.2014 o administrador da insolvência corrigiu o valor do rendimento cedido para € 12 482,88 e informou que, até Fevereiro de 2014, os insolventes cumpriram as suas obrigações quanto ao deferimento do pedido de exoneração do passivo restante, nos termos que constam do requerimento junto a fls. 215;

            m) Em 25.9.2014 o insolvente informou nos autos da alteração da sua situação laboral, nos termos que constam do requerimento junto de fls. 219 a 223;

            n) Em 14.11.2014 a insolvente informou nos autos da alteração da sua situação laboral, nos termos que constam do requerimento junto de fls. 239 a 242;

            o) Em 19.10.2015 o insolvente informou nos autos da alteração da sua situação laboral, nos termos que constam do requerimento junto de fls. 249 a 253;

            p) Na sequência da carta referida em II. 1. g), desde Janeiro de 2011 até Janeiro de 2016 os insolventes transferiram para a conta bancária indicada pelo administrador da insolvência as quantias discriminadas de fls. 246 a 248 do apenso de prestação de contas, no valor global de € 18 302,40.

            2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

            O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art.º 1º, n.º 1, 1ª parte, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa/CIRE[4], aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18.3 e na redacção conferida pela Lei n.º 16/2012, de 20.4).

            A massa insolvente destina-se à satisfação dos credores da insolvência, depois de pagas as suas próprias dívidas, e, salvo disposição em contrário, abrange todo o património do devedor à data da declaração de insolvência, bem como os bens e direitos que ele adquira na pendência do processo (art.º 46º, n.º 1). Os bens isentos de penhora só são integrados na massa insolvente se o devedor voluntariamente os apresentar e a impenhorabilidade não for absoluta (n.º 2).

            Prosseguindo o processo após a declaração de insolvência, o juiz declara o seu encerramento: a) Após a realização do rateio final, sem prejuízo do disposto no n.º 6 do artigo 239º; b) Após o trânsito em julgado da decisão de homologação do plano de insolvência, se a isso não se opuser o conteúdo deste; c) A pedido do devedor, quando este deixe de se encontrar em situação de insolvência ou todos os credores prestem o seu consentimento; d) Quando o administrador da insolvência constate a insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente; e) Quando este ainda não haja sido declarado, no despacho inicial do incidente de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do artigo 237º[5] (art.º 230º, n.º 1, sob a epígrafe “Quando se encerra o processo”).[6]

                3. Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste (…) (art.º 235º).

             O despacho inicial (de exoneração do passivo restante) determina que, durante os cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência, (…) designado período da cessão, o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a entidade, neste capítulo designada fiduciário, escolhida pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência (…) (art.º 239º, n.º 2). Durante o período da cessão, o devedor fica ainda obrigado a: a) Não ocultar ou dissimular quaisquer rendimentos que aufira, por qualquer título, e a informar o tribunal e o fiduciário sobre os seus rendimentos e património na forma e no prazo em que isso lhe seja requisitado; b) Exercer uma profissão remunerada, não a abandonando sem motivo legítimo, e a procurar diligentemente tal profissão quando desempregado, não recusando desrazoavelmente algum emprego para que seja apto; c) Entregar imediatamente ao fiduciário, quando por si recebida, a parte dos seus rendimentos objecto de cessão; d) Informar o tribunal e o fiduciário de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência, bem como, quando solicitado e dentro de igual prazo, sobre as diligências realizadas para a obtenção de emprego; e) Não fazer quaisquer pagamentos aos credores da insolvência a não ser através do fiduciário e a não criar qualquer vantagem especial para algum desses credores (n.º 4). Sendo interposto recurso do despacho inicial, a realização do rateio final só determina o encerramento do processo depois de transitada em julgado a decisão (n.º 6).

            Não tendo havido lugar a cessação antecipada, o juiz decide nos 10 dias subsequentes ao termo do período da cessão sobre a concessão ou não da exoneração do passivo restante do devedor, ouvido este, o fiduciário e os credores da insolvência (art.º 244º, n.º 1).

            A exoneração do devedor importa a extinção de todos os créditos sobre a insolvência que ainda subsistam à data em que é concedida, sem excepção dos que não tenham sido reclamados e verificados (…) (art.º 245º, n.º 1).

            4. O regime da exoneração do passivo restante, instituído nos art.ºs 235º e seguintes, específico da insolvência das pessoas singulares, é um instituto novo, ‘tributário da ideia de fresh start’, sendo o seu objectivo final a extinção das dívidas e a libertação do devedor, para que, «aprendida a lição», este não fique inibido de começar de novo e de, eventualmente, retomar o exercício da sua actividade económica[7].

            Com a publicação do CIRE, o legislador explicitou qual o propósito de consagração do instituto de exoneração do passivo, referindo: O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do ´fresh start` para as pessoas singulares de boa fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante».

O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos posteriores ao encerramento deste.

A efectiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos — designado período da cessão — ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (…), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.

A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta recta que ele teve necessariamente de adoptar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica.[8]

            5. A problemática da exoneração do passivo restante, propriamente dita, está naturalmente arredada do objecto do presente recurso, sendo que o decidido em 1ª instância apenas foi impugnado pelos próprios insolventes [cf. II. 1. alíneas b) a d), supra] e é agora praticamente irrelevante qualquer análise sobre as suas circunstâncias e consequências, desde logo, também, por se desconhecer o correspondente quadro fáctico.

            Assim, resta-nos verificar se podemos definir o momento a partir do qual se iniciou o dito período da cessão

            E diga-se, desde já, sem quebra do respeito sempre devido por opinião em contrário, que a realidade apurada e a orientação da jurisprudência (aliás, referida na decisão recorrida e nas alegações de recurso das partes[9]) apontam, de forma suficientemente clara, para a razoabilidade e a justeza (obviamente, à luz do regime normativo instituído) da solução ditada na decisão sob censura.

            6. Inexistindo motivos para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, o juiz profere despacho inicial (art.º 239º, n.ºs 1 e 2) determinando que, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência (período da cessão), o rendimento disponível que o devedor venha a auferir se considera cedido a uma entidade - fiduciário -, para os fins previstos no art.º 241º, entre os quais, principalmente, a distribuição do remanescente pelos credores da insolvência, nos termos prescritos para o pagamento aos credores no processo de insolvência.

            Durante o período da cessão o devedor assume, entre outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível ao fiduciário (art.º 239º, n.º 4), que afectará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam, é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento.

            O período da cessão é de 5 anos e, no dizer da lei, inicia-se com o encerramento do processo de insolvência.

            Coloca-se, assim, a questão de saber se é necessário um acto formal de encerramento do processo para o início do período da cessão - e então só com a prolação do despacho de encerramento é que se inicia, jurídica e materialmente, a cedência do rendimento disponível do devedor que for fixado no despacho liminar - ou se o período de cessão e a referida cedência do rendimento disponível pode ocorrer independentemente da prolação do despacho de encerramento, após o despacho inicial, sendo que, em ambos os casos, o período de cessão nunca poderá exceder os 5 anos fixados na lei.

            Não obstante, seja qual for a opção, não se antolha admissível que, sem que exista despacho de encerramento do processo de insolvência, sejam impostas ao devedor (ou aceites pelo fiduciário) as obrigações inerentes ao período da cessão previstas no n.º 4 do art.º 239º - nomeadamente a cedência do rendimento disponível ao fiduciário - e que se venha a entender posteriormente que o período de cessão ainda não começou e fazer ratear as importâncias que o devedor de boa fé disponibilizou e entregou ao fiduciário para benefício (imediato) da massa, o que, a admitir-se, traduziria, na prática, uma irregular ou ilegal extensão da duração do período de cessão para além dos 5 anos.

            Ademais, a razão pela qual o art.º 239º, n.º 2 estabelece que o período da cessão é (imediatamente) subsequente ao encerramento do processo de insolvência estará porventura no estatuído no art.º 230º, n.º 1, alínea e) - na redacção (actual) conferida pela Lei n.º 16/2012, de 20.4[10] - que impõe ao juiz que declare o encerramento do processo de insolvência, quando tal encerramento não haja ainda sido declarado, no despacho inicial de exoneração do passivo restante referido na alínea b) do art.º 237º.[11]

            7. Assim, nas situações em que o despacho inicial de exoneração do passivo restante e o despacho de encerramento do processo de insolvência não são proferidos em simultâneo, e começando de imediato os insolventes a ceder o rendimento disponível segundo o decidido naquele despacho e o promovido pelo fiduciário (nos termos do art.º 239º, n.º 4, alínea c) do CIRE), é razoável uma interpretação extensiva do disposto no art.º 239º, n.º 2 do CIRE, que permita considerar que o período de cessão (de 5 anos) e a referida cedência do rendimento disponível pode legalmente e de facto ocorrer, independentemente da prolação do despacho de encerramento, após o despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo.[12]

            8. Sendo a fonte da cessão a lei (ainda que na dependência de despacho judicial) e sabendo-se que a cessão dá-se desde o despacho inicial e respeita a bens futuros[13], no caso em análise, os insolventes, ante a comunicação do AI dita em II. 1. g), supra, e logo após o trânsito em julgado do despacho de admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante, iniciaram a cedência dos rendimentos disponíveis ao AI (entregando todos os “descontos” que deveriam ter ocorrido desde Setembro de 2011); de Janeiro de 2012 a Janeiro de 2016 efectuaram entregas de rendimentos disponíveis ao AI com periodicidade quase mensal; desde Janeiro de 2012 até à data mais recente considerada na decisão recorrida informaram nos autos da alteração das suas situações laborais e do montante das suas remunerações, bem como dos montantes de rendimento disponível que entregaram ao AI em cumprimento do despacho de admissão liminar [cf. II. 1., supra].

            9. Por conseguinte, se é certo que, in casu, se determinou judicialmente que a cedência ao fiduciário do rendimento disponível ocorreria no prazo de cinco anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência e ainda não foi proferido despacho de encerramento do processo, em face do exposto, e da demais factualidade aludida em II. 1., supra, não vemos como não acolher a perspectiva da Mm.ª Juíza a quo, mormente quando refere: “não restam dúvidas que (…) os insolventes interiorizaram os deveres que para eles decorrem, durante cinco anos, da admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante e que desde essa data têm vindo a cumprir estes deveres escrupulosamente”; “Neste contexto, e sob pena de violação injustificada e injusta das legítimas expectativas dos insolventes, tem de considerar-se que o seu período de cessão de rendimento se iniciou em Setembro de 2011 e terminará em Setembro de 2016”; “A não se entender assim, e considerando que ´no processo de insolvência, após a declaração de insolvência, não devem ser penhorados ou apreendidos a favor da massa insolvente os rendimentos auferidos pelo insolvente decorrentes do exercício da sua actividade laboral`[14] [15], as entregas entretanto efectuadas pelos insolventes teriam de ser-lhes devolvidas”.

            10. Nesta conformidade, reafirma-se o acerto da decisão sob censura, pelo que as quantias que, a partir do despacho inicial de exoneração do passivo, foram entregues pelos insolventes, deverão reverter para o fiduciário e não para a massa insolvente, porquanto, tendo o fiduciário promovido e aceite a entrega imediata dos rendimentos dos devedores, nos termos do art.º 239º, n.º 4, alínea c), tal estado de coisas consubstanciou o efectivo cumprimento das obrigações inerentes ao período da cessão[16].

            Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


*

            III. Pelo exposto, acorda-se em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a decisão recorrida.

            Custas do recurso pela apelante.

                                                                   *


18.10.2016

Fonte Ramos ( Relator )

Maria João Areias

Vítor Amaral ( com declaração de voto anexa )

Vencido.

Está apurado ter sido proferido despacho – definidor e ordenador – em que foi declarado que “a exoneração será concedida, uma vez observadas as condições previstas no artigo 239º do CIRE, durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência (período de cessão)”.

O signatário já anteriormente teve de decidir sobre a questão da apreensibilidade para a massa insolvente dos salários (na parte penhorável) recebidos pelo insolvente na pendência do processo (período entre a declaração de insolvência e o encerramento do processo insolvencial) – assim aconteceu, uniformemente, no âmbito do Proc. 1266/14.4TJPRT-D.P1, do TRP ([17]), e, anteriormente, como adjunto, no Ac. TRL, de 14/03/2013, Proc. 4343/12.2TBVFX-D.L1-6 (Rel. Tomé Ramião), disponível em www.dgsi.pt.

A jurisprudência dominante dos Tribunais da Relação perfila-se no sentido da admissão daquela apreensibilidade ([18]), o mesmo ocorrendo com o STJ – cfr. Acs. do STJ, de 15/03/2007, Proc. 07B436 (Cons. Oliveira Rocha), de 30/06/2011, Proc. 191/08.2TBSJM-H.P1.S1 (Cons. Bettencourt de Faria), e de 18/10/2012, Proc. 80/11.3TBMAC-C.E1.S1 (Cons. Tavares de Paiva), todos disponíveis em www.dgsi.pt ([19]) ([20]).

Ora, salvo o devido e merecido respeito pela posição que fez vencimento, não se vê motivo para alterar a posição anteriormente assumida noutras decisões, tanto mais que o STJ tem vindo, como visto, a pronunciar-se, de forma uniforme, também neste sentido.

Por isso, seria de concluir pela admissibilidade da apreensão para a massa insolvente ([21]) da parte do salário ou outros rendimentos do insolvente que não sejam impenhoráveis, sem contender com a figura da exoneração do passivo restante, a qual só deve operar após o encerramento do processo, enquanto a apreensão subsistirá até esse encerramento.

Após tal encerramento é que já não é assim, passando, então, a caber esse “ativo” ao insolvente (que pode requerer o benefício da exoneração do passivo restante, de modo a livrar-se definitivamente deste). Não sendo liminarmente indeferido o pedido de exoneração (despacho inicial), começa o período de cessão ao fiduciário (todavia, apenas nos cinco anos subsequentes ao encerramento do processo, como dispõe o art.º 239.º, n.ºs 1 e 2, do CIRE).

Assim, o regime da exoneração (cessão), salvo o devido respeito, só seria de aplicar na sequência do encerramento do processo de insolvência e não, imediatamente, na pendência deste. Nessa pendência os salários não cabem, na parte penhorável, ao insolvente, termos em que não se pode acompanhar, nesta parte, a posição adotada no douto acórdão.

Vítor Amaral


[1]Em face dos documentos e informações constantes dos autos”, reproduzidos nos autos de recurso a fls. 21, 22, 30, 32, 37, 44, 45, 50, 54 e 57.
[2] Rectificou-se a data (cf. fls. 6/fls. 108).
[3] Sublinhado nosso, como os demais a incluir no texto.
[4] Diploma a que respeitam os normativos adiante citados sem menção da origem.

[5] Com a seguinte redacção: A concessão efectiva da exoneração do passivo restante pressupõe que: b) O juiz profira despacho declarando que a exoneração será concedida uma vez observadas pelo devedor as condições previstas no artigo 239º durante os cinco anos posteriores ao encerramento do processo de insolvência, neste capítulo designado despacho inicial.

[6] Na sua primitiva redacção (DL n.º 53/2004, de 18.3) e na conferida pelo DL n.º 282/2007, de 07.8, o n.º 1 do referido art.º não incluía, apenas, a previsão da actual alínea e).
[7] Vide Catarina Serra, O Novo Regime Português da Insolvência, Uma Introdução, Almedina, 3ª edição, págs. 102 e seguinte.
[8] Cf. o ponto 45 do preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18.3.

[9] Que comungam, todavia, de um mesmo lapso na identificação do acórdão da RP de 25.01.2011-processo 191/08.2TBSJM-H.P1, revogado pelo acórdão do STJ de 30.6.2011-processo 191/08.2TBSJM – H.P1.S1, publicados no “site” da dgsi.
[10] Cf. o ponto II. 2. e a “nota 6”, supra.
[11] Cf., com idêntico entendimento, o acórdão da RG de 21.5.2013-processo1220/08.5TBBCL-J.G1, publicado no “site” da dgsi.

   Porém, importa não olvidar a discrepância entre o preceituado no art.º 230º, n.º 1, alínea e), e a realidade, pela simples razão de que o despacho de admissão (ou rejeição) liminar do pedido de exoneração do passivo restante é normalmente proferido na assembleia de apreciação do relatório (ou posteriormente a ela), porquanto o juiz tem de, nessa assembleia, ouvir os credores relativamente a tal pedido - essa mesma assembleia destina-se a decidir o futuro da insolvente, que pode passar pela apresentação de um plano, pela liquidação ou pelo encerramento em caso de inexistência ou insuficiência de bens.

   Ora, por regra, só no caso de inexistência de bens o encerramento poderá ser decretado nesta assembleia; se houver bens a liquidar, o despacho de encerramento nunca poderá/deverá ser proferido nessa assembleia mas apenas após o termo da liquidação.
[12] Cf. o citado acórdão da RG de 21.5.2013-processo1220/08.5TBBCL-J.G1 [na situação aí analisada, o despacho que admitiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante foi proferido em 20.5.2008 mas não veio a ser declarado o encerramento do processo de insolvência].
[13] Vide Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris-Sociedade Editora, 2009, pág. 789.

[14] De resto, na linha do entendimento sufragado nos acórdãos da RC de 24.10.2006-processo 1017/03.9TBGRD-F.C1 [Assim sumariado: O produto do trabalho (vencimento/salário) do falido, após a declaração da falência respectiva, está, em absoluto, fora do conjunto de bens ou direitos susceptíveis de apreensão em benefício da massa falida e, através dela, dos credores, não podendo ser apreendido, distinguindo-se, portanto, da penhora do salário do executado no processo executivo. E tendo-se argumentado, nomeadamente, que no processo executivo, o executado, ao contrário do insolvente, não sofre a privação imediata da administração e do poder de disposição de todos os seus bens presentes e futuros (art.º 81 do CIRE). Ali - na execução - o executado apenas tem uma indisponibilidade relativa dos bens ou direitos penhorados, não ficando inibido de auferir os proventos ou rendimentos dos restantes bens ou mesmo de os alienar ou onerar na sua plenitude. Na insolvência, o insolvente deixa de poder alienar qualquer dos seus bens ou de fruir a respectiva rentabilização, não se compreendendo que os credores ainda pudessem pagar-se, a partir da declaração de insolvência, do produto do trabalho que permite ao insolvente, não apenas fazer face aos efeitos negativos desta, como conduzir a regularização da sua vida pessoal, para poder encetar novas iniciativas económicas após a respectiva reabilitação.] e da RP de 23.3.2009-processo 2384/06.8TJVNF-D.P1 [Ao considerar que entendimento diverso teria como consequência o “eternizar” dos processos de insolvência, tendo em conta que normalmente o valor dos créditos é elevado e os montantes dos descontos realizados é relativamente reduzido, o que contraria frontalmente os princípios de celeridade subjacentes a este tipo de processos e, por outro lado, dificultaria a reabilitação do insolvente], publicados no “site” da dgsi. 

[15] Idêntico entendimento foi seguido no acórdão da RP de 25.01.2011-processo 191/08.2TBSJM-H.P1 (publicado no “site” da dgsi). Porém, na situação em causa, por despacho de 06.8.2009, transitado em julgado, havia sido indeferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, pelo que a posição depois adoptada pelo STJ - considerando que para os efeitos do art.º 46º n.º 2 do CIRE, um terço do vencimento do insolvente não é bem relativamente impenhorável e, ainda, que o conceito de bem relativamente impenhorável define-se, não só pela natureza do bem, como igualmente pela quota em questão, razão pela qual aquele terço, por ser um bem penhorável, deve ser apreendido para a massa insolvente (cf. o acórdão do STJ de 30.6.2011-processo 191/08.2TBSJM-H.P1.S1, publicado no mesmo “site”) - assentou em diferente contexto processual e em diverso enquadramento fáctico, podendo-se talvez dizer, em derradeira análise, que foi algo premonitório o que se fizera constar no “voto de vencido” lavrado naquele primeiro aresto (que assim dizia: “a devedora ficaria em melhor posição que se lhe tivesse sido concedido a exoneração do passivo restante”), e não será porventura ousado afirmar que, nesta matéria, deveras problemática, existirá, em elevado grau, o risco de alguma desigualdade (e, consequente, injustiça) no tratamento de situações que, na realidade ou na sua essência, pouco ou nada diferem…
[16] Caso contrário, sempre deveria ser observada a limitação decorrente do estatuído no art.º 738º do Código de Processo Civil, sob a epígrafe “bens parcialmente penhoráveis”.

([17]) Decisão singular datada de 22/06/2016, com o seguinte sumário: «1. - É admissível a apreensão para a massa insolvente da parte do salário, pensões ou outros rendimentos do insolvente que não sejam impenhoráveis. 2. - A apreensão para tal massa de 1/3 do salário do insolvente não contende com a figura da exoneração do passivo restante, que só opera após o encerramento do processo, enquanto a apreensão deve subsistir até esse encerramento».
([18]) Cfr., entre outros, os Acs. TRL, de 10/09/2015, Proc. 14943/10.0T2SNT-L1-6 (Rel. António Martins), de 04/06/2013, Proc. 4836/10.6TCLRS.L1-7 (Rel. Orlando Nascimento), de 27/02/2014, Proc. 5797/13.5TCLRS-A.L1-6 (Rel. Teresa Pardal), de 18/06/2013, Proc. 11573/11.2T2SNT-F.L1-7 (Rel. Dina Monteiro), e de 18/02/2014, Proc. 576/13.2TBSXL.L1-7 (Rel. Luís Espírito Santo); bem como o Ac. TRG, de 05/06/2014, Proc. 5951/05.3TBBCL.G1 (Rel. Manuel Bargado), todos disponíveis em www.dgsi.pt. E ainda os Acs. TRL, de 06/10/2011, Proc. 465/10.2TBLNH-D.L1-6 (Rel. Olindo Geraldes), de 23/02/2012, Proc. 1162/11.7YXLSB-D.L1-8 (Rel. Catarina Manso), de 12/07/2012, Proc. 8412/11.8TBOER-B.L1-7 (Rel. Ana Resende), de 11/10/2012, Proc. 5843/10.4TBALM-D.L1-8 (Rel. Carla Mendes), de 22/11/2012, Proc. 1318/12.5TBBRR-e.L1-6 (Rel. Anabela Calafate), e de 15/11/2011, Proc. 17860/11.2T2SNT-A.L1-7 (Rel. Pimentel Marcos), também disponíveis, todos eles, em www.dgsi.pt.

([19]) Concluindo-se neste último que «A parte penhorável de um vencimento, ou seja, 1/3 é susceptível de integrar a massa insolvente» e, bem assim, que «O consentimento do devedor só se pode verificar, segundo o nº 2 do art. 46 do CIRE, relativamente a bens absolutamente penhoráveis, o que não se verifica quando se apreende para a massa 1/3 da pensão de aposentação que o insolvente aufere».
([20]) Na doutrina, no mesmo sentido, pode ver-se Ana Prata e outros, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, Almedina, Coimbra, 2013, ps. 155, 663 e seg..
([21]) Que, como refere o art.º 46.º, n.º 1, do CIRE, abrange os bens e direitos adquiridos na pendência do processo (logo, até ao seu encerramento).