Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
522/08.5GAACB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: LUÍS RAMOS
Descritores: CRIME DE ROUBO
INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA
Data do Acordão: 12/09/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 210º,Nº1 DO CP E 410º,Nº2, AL.A) E C) DO CPP
Sumário: 1.Ainda que se admita que quando o arguido se dirigiu à ofendida não tivesse a intenção de integrar a máquina fotográfica no seu património, já ficou por apurar se essa intenção inicialmente formada se manteve, tanto mais que também se deu como provado que ele levou a máquina fotográfica consigo.
2.Deveria o tribunal a quo ter investigado e apurado o destino da máquina fotográfica a partir do momento em que o arguido a levou consigo, pois só assim poderia ter uma convicção fundada sobre a intenção com que o arguido agiu e assim fazer a adequada integração jurídica dos factos.
3.Verifica-se o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a correcta solução de direito porque faltam elementos que podiam e deviam ter sido indagados. Tal como acontece nos autos.

4. Sendo essencial para a descoberta da verdade material, nomeadamente ao nível do dolo, saber o que efectivamente aconteceu à máquina fotográfica após a mesma ter sido retirada à ofendida e não constando da sentença factos que retratem essa realidade, estamos perante o vício previsto na alínea a., do nº 2, do artº 410º.
5.Padecendo a sentença do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto na alínea a., do nº 2, do artº 410º e não sendo possível supri-lo em sede de recurso uma vez que se impõe a produção de nova prova, há que reenviar o processo para novo julgamento relativamente à totalidade do seu objecto nos termos previstos nos artigos 426º e 426º-A.
Decisão Texto Integral: Por sentença proferida nos autos supra identificados, decidiu o tribunal:
a) Absolver o arguido M..[[1]] da prática, em autoria material, de um crime de roubo, previsto e punido pelo art.º 210º, n.º 1 do Código Penal;
b) Condenar o arguido M…. pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artº 143º, nº 1, do Cód. Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o total de € 1.625,00 (mil seiscentos e vinte e cinco euros);
c) Julgar improcedente o pedido de indemnização cível formulado e, em consequência absolver o demandado M… do pedido contra si formulado pela demandante Maria …

Inconformados com o decidido, o Ministério Público e o arguido recorreram.

O Ministério Público apresentou as seguintes conclusões (transcrição):
A – O arguido apoderou-se de coisa imóvel alheia através de violência
B - Os factos dados como provados, analisados com base nas regras da experiência comum, impõem a verificação do dolo correspondente ao crime de roubo, p. e p . pelo artº 210°, nº l, do Código Penal ou, pelo menos, o dolo correspondente ao crime de furto, p. e p. pelo artº 203°, nº l, do mesmo código;
C - Ao não condenar o arguido pela prática do crime de roubo ou, pelo menos, pela prática do crime de furto em concurso real com o crime de ofensas à integridade física simples, incorreu o a douta sentença recorrida no vício de erro notório na apreciação da prova;
D - Ao ter-se decidido como se decidiu, violou a douta sentença o disposto nos artigos 14°,26°, 210° ou 103°, todos do Código penal e os artigos 127° e 410°, nº 2, al. c), ambos do Código de Processo Penal.
Termos em que, deve conceder-se provimento ao presente recurso, devendo a sentença ser revogada e substituída por outra que condene o arguido M… pela prática do crime de roubo, previsto e punível pelo artº 210°, nº 1, do Código Penal ou, pelo crime de furto, p. e p. pelo artº 203°, nº 1, do Código Penal, em concurso real com o crime de ofensas à integridade física simples.

Por seu turno, o arguido concluiu (transcrição):
1- O Tribunal a quo julgou procedente a acusação e condenou o recorrente como autor material de um crime de ofensa à integridade física, p.p pelo artigo 143º do CP.
2- O recorrente não se conforma com o decidido que, salvo o devido respeito, se traduz numa condenação injusta.
3- O Tribunal recorrido não avaliou devidamente os depoimentos prestados em sede de julgamento deixando-se influenciar pelo "ouvi dizer" e não por um procedimento de convicção lógico-nem, por outro lado, a matéria de facto que considerou provada.
4- Para formar a sua convicção sobre a matéria de facto dada como provada, designadamente, no que se refere aos factos consubstanciadores da conduta ilícita imputada ao recorrente, o Tribunal baseou-se nas declarações da ofendida, bem como das testemunhas por si indicadas, que nada viram.
5- Entende-se porém que, as declarações da ofendida Mª .. não podem oferecer coerência e credibilidade atentas as más relações quer pessoais, quer judiciais, que mantém com o recorrente,
6- Por outro lado, quer o depoimento da testemunha C…, quer o depoimento da testemunha I…, quer mesmo o relatório médico junto aos autos, afiguram-se manifestamente insuficientes à prova das lesões alegadamente sofridas pela ofendida Mª…, como causa directa e necessária de uma agressão infligida pelo recorrente.
7- Nessa perspectiva, deve ter-se como provada, com relevância para a decisão da causa, a seguinte matéria factual:
1- No dia … de … de 2008, pelas 15.30 horas, a ofendida Maria… deslocou-se ao Sitio do… nas imediações das bombas de combustível da …., … de Alcobaça, munida de um objecto não identificado.
3- A ofendida no dia … de … apresentava “uma escoriação de três milímetros de comprimento no nariz, e uma equimose de coloração violácea no dorso do 4° dedo da mão esquerda com 3 por 1.5cm de comprimento” e que foram causa directa e necessária de um período de doença fixavel em 6 (seis) dias, sem afectação da capacidade para o trabalho em geral e sem afectação da capacidade para o trabalho profissional.
8- Entende-se que a culpa do recorrente está totalmente afastada do circunstancialismo em que decorreram os factos dos autos, nenhuma censura ético-juridica lhe podendo ser assacada.
9- De facto entende-se não poderem ser considerados provados os factos integradores da conduta pela qual vinha acusado.
10- Decidindo como decidiu, o Tribunal a quo fez julgamento incorrecto da matéria de facto, impondo a prova produzida e a sua avaliação ponderada, de acordo com o conjunto dos elementos recolhidos, alterações aos factos e decisão diversa da recorrida, devendo absolver-se o recorrente do crime que lhe é imputado.
11- As situações descritas constituem violação do artigo 143º do CP, cuja imputação foi fundamentada num circunstancialismo de insuficiência de matéria de facto provada, (artigo 410, nº 2-a do CPP; erro notário na apreciação da prova (artigo 410, nº 2, c) do CPP e incorrecto julgamento da matéria de facto,
12- Pelo que se impõe alteração aos factos provados de decisão diversa da recorrida (artigo 412, nº 3-a) e b) do CPP.
13- Tanto mais que as declarações de qualquer dos intervenientes no presente processo, não são de molde a imputar ao recorrente a intenção de agredir a ofendida,
14- Assim, a sentença recorrida, violou o disposto nos artigos 143., nº 1 do CP,
15- E como tal deve ser revogada, julgando-se improcedente a acusação contra si deduzi da.
Fazendo-se assim a Costumada JUSTIÇA!

Respondeu o Ministério Público defendendo a falta de razão do recorrente quanto aos invocados vícios e ao alegado erro na apreciação da prova.

Por seu turno, o arguido concluiu assim a sua resposta (transcrição):
1- Os argumentos esgrimidos pelo Digno Magistrado do Ministério Publico não podem proceder.
2- A não intenção de apropriação da maquina fotográfica em causa nos autos, impõe a absolvição do recorrido da pratica do crime de roubo.
3- A falta de intenção de apropriação da maquina fotográfica impõe a absolvição do recorrido da pratica do crime de furto,
4- O elemento subjectivo do tipo de crime de furto e roubo, é idêntico, e reside na intenção de apropriação de bem alheio.
5- A referida intenção de apropriação, nunca poderia ser considerada provada, uma vez que, é a própria ofendida nos autos, que em sede de julgamento declara que nunca foi esse o propósito do recorrido, não obstante o agora recorrente não recorrer da matéria de facto, mas que o recorrido não pode deixar de realçar.
6- O vicio que se verifica na sentença recorrida, de insuficiência da prova e de erro notório, implica outrossim a absolvição do recorrido, que foi julgado com base no "ouvi dizer".
7- Pelo que deve o presente recurso a que se responde ser rejeitado
8- Antes se absolvendo o recorrido do crime de que vem acusado

Os recursos foram admitidos para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo.

Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela procedência do recurso do Ministério Público no que respeita ao invocado vício da sentença.

No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o arguido nada disse.

Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência.

Cumpre conhecer do recurso

Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso.

É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras).

Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir.

Questões a decidir:

- Eventual verificação dos vícios do artº 410º, nº 2 do Código de Processo Penal

- Eventual erro na apreciação da prova e consequente integração jurídica dos factos

Na 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição):
“1) No dia … de …. de 2008, pelas 15.30 horas, no …, nas imediações das bombas de combustível da …, em… e comarca de Alcobaça, a ofendida Maria… encontrava-se munida de uma câmara fotográfica, de marca …, modelo …, que havia comprado em Julho de 1978, pelo preço de Esc. 80.000$00 (oitenta mil escudos).
2) Máquina essa que trazia presa ao pulso da mão esquerda e com a qual efectuava fotografias a um monte de brita, num terreno que a mesma dizia ser seu.
3) Perante esses factos, o arguido M…, seu sobrinho e com o qual mantém um litígio sobre a propriedade do referido terreno, abeirou-se da ofendida com intenção de impedir que a mesma continuasse a tirar fotografias.
4) Para esse efeito, o arguido agarrou a máquina fotografia que a ofendida detinha junto da cara e, num gesto brusco, dela lha puxou, retirou e levou consigo, ao mesmo tempo que lhe desferiu um empurrão.
5) Em consequência dos factos referidos em 4), o arguido provocou na ofendida “uma escoriação de três milímetros de comprimento no nariz, e uma equimose de coloração violácea no dorso do 4° dedo da mão esquerda com 3 por 1,5 cm de comprimento”, causou mal-estar psicológico e dores, lesões essas que lhe determinaram, foram causa directa e necessária de um período de doença fixável em 6 (seis) dias, sem afectação da capacidade para o trabalho em geral e sem afectação da capacidade para o trabalho profissional.
6) O arguido quis provocar dores físicas e mau estar psicológico na pessoa da ofendida, bem sabendo que os provocaria, tendo em atenção as regiões do corpo que procurou e conseguiu atingir, querendo, na verdade, dar causa a essas dores e mal-estar, bem sabendo que a sua descrita conduta era adequada à produção daqueles efeitos.
7) O arguido actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era censurada, proibida e punida por lei.
8) O arguido é comerciante, retirando dessa actividade cerca de € 1.000,00 (mil euros) mensais.
9) Vive em casa própria com a esposa que é doméstica.
10) Paga mensalmente as quantias de € 220,00 (duzentos e vinte euros) e € 300,00 (trezentos euros) pela aquisição de veículos automóveis.
11) Tem como habilitações literárias a 3ª classe.
12) Do certificado do registo criminal do arguido constam as seguintes condenações:
- Processo Comum Singular nº …/96, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de …, pela prática do crime de ofensas à integridade física, por sentença datada de …/…/1997, na pena de 80 (oitenta) dias de multa, à taxa diária de Esc. 400$00;
- Processo Comum Singular nº …./94.8TACSC, do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de…, pela prática do crime de emissão de cheque sem provisão, por sentença datada de …/…/1997, na pena de 10 (dez) meses de prisão, suspensa por 2 (dois) anos;
- Processo Comum Singular nº …/97, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de…, pela prática do crime de dano, por sentença datada de .../…/1998, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de Esc. 1.000$00 (mil escudos);
- Processo Comum Singular nº…/02.7GAACB, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de … pela prática dos crimes de dano, injúria e ofensa à integridade física simples, em pena de multa;
- Processo Comum Singular nº …/01.4TAACB, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de… pela prática de um crime de usurpação de coisa imóvel, por sentença datada de …/…/2003, na pena de 5 (cinco) meses de prisão, substituída por 150 (cento e cinquenta) dias de multa.”

Quanto à factualidade não provada, consignou-se (transcrição):
“Não se provou qualquer outra matéria constante da acusação, nomeadamente:
- que a ofendida tivesse comprado a máquina pelo preço de Esc. 100.000$00 (cem mil escudos);
- que nas circunstâncias mencionadas em 3), o arguido se tivesse abeirado da ofendida com intenção de lhe retirar, levar consigo e fazer sua a dita máquina;
- que bem soubesse o arguido que agia contra a vontade da ofendida, visando integrar no seu património a supra mencionada máquina fotográfica que sabia não lhe pertencer, o que conseguiu, à custa do património daquela, bem sabendo que com a força física e psíquica que sobre ela utilizou, a constrangia a deixar-lha levar consigo.”

O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
“A convicção do tribunal relativamente à matéria dada como provada baseou-se na ponderação dos seguintes elementos de prova:
- Nas declarações do arguido no que concerne à sua situação sócio-económica.
- Nas declarações da ofendida Maria… que relatou como foi abordada pelo arguido quando estava a tirar fotografias ao terreno objecto de litígio entre ambos, o qual, como forma de a impedir de levar a cabo tal acção, lhe retirou a máquina fotográfica, ausentando-se do local com a mesma.
Este depoimento foi prestado de uma forma coerente e credível, descrevendo a situação de uma forma clara e precisa, sem lhe imprimir o exagero que, por vezes é característicos nos depoimentos de quem é ofendido e, por isso, mereceu a credibilidade deste Tribunal.
Tal depoimento surge ainda corroborado pelo relatório médico-legal junto a fls. 8 a 10, que traduz as lesões apresentadas pela ofendida, decorridos dois dias da prática dos factos.
- Nas declarações das testemunhas C.. e I… , funcionárias das bombas de abastecimento de combustível que ficam perto do terreno em causa, as quais também de uma forma coerente e credível, relataram que viram a ofendida passar em direcção ao terreno, transportando consigo um saco e, decorrido algum tempo a mesma regressou, com um ferimento na testa e no dedo, relatando o que tinha sucedido com o sobrinho.
- No certificado do registo criminal de fls. 73 a 77.
Não se provou qualquer outra matéria para além da consignada supra, pois não se produziu mais nenhuma prova que permitisse acrescentar aos provados outros factos, além dos aludidos.
Com efeito, não se valorou a versão do arguido negando a prática dos factos, porquanto, não obstante ninguém tenha assistido à situação relatada nos autos, o depoimento da ofendida foi prestado de forma clara, conforme já se referiu, merecendo a credibilidade deste Tribunal, o qual sai ainda corroborado pelo exame médico-legal junto aos autos e pelo depoimento das testemunhas inquiridas que confirmam que a mesma, logo após o ocorrência dos factos, apresentava as lesões que descreveu e que coincidem também com as mencionadas no relatório médico.
Também não se considerou que o arguido tivesse agido com intenção de apropriação da máquina fotográfica, porquanto ressaltou das declarações da ofendida que o propósito do mesmo foi impedi-la de continuar a tirar as fotografias ao terreno sobre o qual existe um litígio entre ambos, não tendo existindo qualquer intenção de apropriação no momento em que retirou a máquina à ofendida.
Com efeito, não obstante o arguido se tenha ausentado do local levando a máquina consigo, verifica-se que o mesmo apenas actuou contra a ofendida, retirando-lhe a máquina, com o intuito de que a mesma parasse com a acção que levava a cabo, não existindo qualquer intuito de se apoderar da máquina quando pegou na mesma, o que até resulta das regras da experiência comum, considerando toda a dinâmica da situação relatada pela ofendida.”


******

Começando pelo recurso do Ministério Público:

Entende este recorrente que a sentença padece dos vícios previstos nas alíneas a. e c. do nº 2, do artº 410º do Código de Processo Penal[[2]].

Vejamos:

Para melhor compreensão da situação, passamos a transcrever os trechos da acusação e da sentença que fundamentam a convicção do recorrente:

Consta da acusação que

(…) o arguido M… seu sobrinho e com o qual mantém um litígio sobre a propriedade do referido terreno, abeirou-se da ofendida com intenção de lhe retirar, levar consigo e fazer sua a dita máquina.

Para esse efeito, o arguido agarrou a máquina fotografia que a ofendida detinha junto da cara e, num gesto brusco, dela lha puxou, retirou levou consigo, ao mesmo tempo que lhe desferiu um empurrão.

(…)

Bem sabia o arguido que agia contra a vontade da ofendida, visando integrar no seu património a supra mencionada máquina fotográfica que sabia não lhe pertencer, o que conseguiu, à custa do património daquela, bem sabendo que com a força física e psíquica que sobre ela utilizou, a constrangia a deixar-lha levar consigo.

 Por seu turno, na sentença deu-se como provado que:

“(…) o arguido M…, seu sobrinho e com o qual mantém um litígio sobre a propriedade do referido terreno, abeirou-se da ofendida com intenção de impedir que a mesma continuasse a tirar fotografias.

4) Para esse efeito, o arguido agarrou a máquina fotografia que a ofendida detinha junto da cara e, num gesto brusco, dela lha puxou, retirou e levou consigo, ao mesmo tempo que lhe desferiu um empurrão.”

e como não provado:

- que nas circunstâncias mencionadas em 3), o arguido se tivesse abeirado da ofendida com intenção de lhe retirar, levar consigo e fazer sua a dita máquina;

- que bem soubesse o arguido que agia contra a vontade da ofendida, visando integrar no seu património a supra mencionada máquina fotográfica que sabia não lhe pertencer, o que conseguiu, à custa do património daquela, bem sabendo que com a força física e psíquica que sobre ela utilizou, a constrangia a deixar-lha levar consigo.

O tribunal a quo fundamentou assim este fragmento da matéria de facto não provada:

Também não se considerou que o arguido tivesse agido com intenção de apropriação da máquina fotográfica, porquanto ressaltou das declarações da ofendida que o propósito do mesmo foi impedi-la de continuar a tirar as fotografias ao terreno sobre o qual existe um litígio entre ambos, não tendo existindo qualquer intenção de apropriação no momento em que retirou a máquina à ofendida.

Com efeito, não obstante o arguido se tenha ausentado do local levando a máquina consigo, verifica-se que o mesmo apenas actuou contra a ofendida, retirando-lhe a máquina, com o intuito de que a mesma parasse com a acção que levava a cabo, não existindo qualquer intuito de se apoderar da máquina quando pegou na mesma, o que até resulta das regras da experiência comum, considerando toda a dinâmica da situação relatada pela ofendida.

Apreciando:

Entende o Ministério Público que a sentença padece do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artº 410º, nº 2, alínea c. porquanto, e em termos gerais, não foi dado por provado o dolo de roubo.

Vejamos:

Como resulta da citada disposição legal, os vícios previstos nas diversas alíneas têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, são vícios da decisão e não de julgamento.

Começando pelo vício da alínea c., diremos que estamos perante o mesmo “quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida. Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos” (Código de Processo Penal Anotado”, de M. Simas Santos e M. Leal Henriques, pág. 740).

O erro notório consiste num desacerto do raciocínio na apreciação das provas que ressalta de imediato patenteado numa simples leitura da decisão recorrida uma vez que as provas anunciam claramente um sentido e a decisão recorrida conclui em sentido contrário.

De uma forma linear mas abrangente, escreve-se no acórdão do STJ de 12 de Junho de 1996, processo n.º 268/96:

“Em sede de erro notório na apreciação da prova, as regras de experiência comum só podem ser invocadas quando da sua aplicação resulte, sem equívocos, a existência do aludido erro, já que a lei exige, para ser válido, enquanto motivo de anulação, que ele tenha veste de “notório”, isto é, que contra o que resulta de elementos que constem dos autos e cuja força probatória plena não haja sido infirmada ou de dados do conhecimento público generalizado, se emite um juízo sobre a verificação ou não de certa matéria de facto e se torne incontestável a existência de tal erro de julgamento sobre a prova produzida.

É o que acontece, nomeadamente, quando por forma manifesta, e sem adequada justificação, se dá como não provada matéria constante de documento com força probatória plena sem que o mesmo tenha sido arguido de falso, ou quando se afirme como existente ou inexistente um facto, que seja do conhecimento público não se ter ou se ter produzido.

Fora destas hipóteses, porém, o erro notório na apreciação da prova só pode resultar do texto da própria decisão recorrida, em virtude de o conhecimento da prova oralmente produzida em audiência se encontrar subtraído, pela sua intrínseca natureza, a qualquer reapreciação pelo tribunal de recurso.”

Em suma, o vício em causa apenas se verifica quando, usando um método racional e lógico de análise, se torna evidente para qualquer pessoa minimamente atenta que a conclusão a que chegou o tribunal recorrido é ostensivamente violadora das regras da experiência comum([3]).

Ora, no caso em apreço sempre seria plausível que, atentas as relações problemáticas entre o arguido e a ofendida, aquele se tivesse dirigido a esta com a intenção de a impedir que continuasse a tirar fotografias e que, como meio de atingir tal fim, lhe tivesse retirado a máquina fotográfica que ela estava a utilizar.

Aliás, a fundamentação apresentada pelo tribunal a quo quanto a este ponto não revela a existência de violação evidente das regras da experiência.

Pode haver erro, admite-se mesmo que haja, mas se o houver, não evidencia as características exigidas pelo nº 2.

Pelo menos perante a prova produzida em audiência e indicada na sentença.

Mas aqui é que reside o problema, pois que, ainda que se admita que quando o arguido se dirigiu à ofendida não tivesse a intenção de integrar a máquina fotográfica no seu património, já ficou por apurar se essa intenção inicialmente formada se manteve, tanto mais que também se deu como provado que ele levou a máquina fotográfica consigo.

Porém, a sentença é omissa quanto ao que aconteceu à máquina fotográfica após tal momento, o que não permite avaliar globalmente os factos e assim apurar se a intenção do arguido se alterou, ou até mesmo, se terá sido efectivamente essa a intenção inicial.

Acontece que muito embora o tribunal tenha dado como não provada a intenção de apropriação e a integração da máquina fotográfica no seu património, o certo é que o arguido a levou consigo.

O que aconteceu depois não se sabe porque o tribunal não investigou.

E era essencial que tivesse investigado porquanto, como facilmente se percebe, só na posse de tal conhecimento se poderia fazer a correcta integração jurídico-criminal da acção.

Assim sendo, deveria o tribunal a quo ter investigado e apurado o destino da máquina fotográfica a partir do momento em que o arguido a levou consigo, pois só assim poderia ter uma convicção fundada sobre a intenção com que o arguido agiu e assim fazer a adequada integração jurídica dos factos.

Ora, sendo essencial para a descoberta da verdade material, nomeadamente ao nível do dolo, saber o que efectivamente aconteceu à máquina fotográfica após a mesma ter sido retirada à ofendida e não constando da sentença factos que retratem essa realidade, estamos perante o vício previsto na alínea a., do nº 2, do artº 410º.

Este vício verifica-se quando, como acontece no caso “sub judice”, “da actualidade vertida na decisão em recurso, se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição” (Ac. do STJ de 97-05-08, Ac.s STJ V, 2, 200), ou, como se diz em “Código de Processo Penal Anotado”, de M. Simas Santos e M. Leal Henriques, pág. 738, parafraseando o acórdão do STJ de 99/06/02, proferido no processo n.º 288/99, “quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação; no cumprimento do dever de descoberta da verdade material, que lhe é imposto pelo normativo do art.º 340.º do Código de Processo Penal, o tribunal podia e devia ter ido mais longe; não o tendo feito, ficaram por investigar factos essenciais, cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa. Os factos que ficaram por apurar têm, portanto, de ser factos que, num juízo de prognose, se admita virem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis e que, vindo a ser provados, determinarão ou a alteração da qualificação jurídica da matéria de facto ou da medida da pena ou de ambas”([4]).

Pode-se assim dizer que se verifica o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a correcta solução de direito porque faltam elementos que podiam e deviam ter sido indagados.

Tal como acontece nos autos.

Em face do exposto, padecendo a sentença do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto na alínea a., do nº 2, do artº 410º e não sendo possível supri-lo em sede de recurso uma vez que se impõe a produção de nova prova, há que reenviar o processo para novo julgamento relativamente à totalidade do seu objecto nos termos previstos nos artigos 426º e 426º-A.

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Perante isto, está prejudicado o conhecimento do recurso interposto pelo arguido.

***

Nesta conformidade

1) Acorda-se, ainda que por outros fundamentos, em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e determinar o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do seu objecto nos termos previstos nos artigos 426º e 426º-A

2) Acorda-se ainda em julgar prejudicado o conhecimento do recurso interposto pelo arguido

*

Sem custas.

*

Coimbra,



[1] M…. filho de J. … e de D... nascido a …/…/1959, natural da freguesia …, concelho de Alcobaça, casado, comerciante, residente na Rua…  Alcobaça
[2] Diploma a que pertencerão, doravante, todos os normativos sem indicação da sua origem
([3]) Neste sentido, cita-se ainda o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 97-07-09, processo n.º 562/97), cujo sumário é o seguinte 1 – O erro notório na apreciação da prova, previsto no art.º 410.°, n.º 2, a!. c), do C.P.P., não reside na desconformidade entre a decisão de facto do julgador e aquela que teria sido a do próprio recorrente. 2 – Tal erro só existe quando, do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, resulte por demais evidente a conclusão contrária àquela a que chegou o tribunal. (cfr. Código de Processo Penal Anotado de Simas Santos e Leal-Henriques, II Volume, 2ª edição, pág. 778) 
([4]) Em complemento e por serem linearmente claros, reproduzimos os sumários dos Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de Maio de 1998 e de 18 de Novembro de 1998 (processos n.º 310/98 e 855/98), dizendo-nos o primeiro que “só existe insuficiência da matéria de facto provada para a decisão quando o tribunal deixa de investigar, podendo fazê-lo, toda a matéria de facto relevante, de tal forma que os factos declarados provados não permitam, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso que foi submetido à apreciação do julgador” e o segundo que “a insuficiência da matéria de facto para a decisão, como vício previsto pela al. a) do n.º 2 do art.º 410.°. do C.P.P. verifica-se quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito. E só existe se o tribunal deixar de investigar o que devia e podia, tornando a matéria de facto insusceptível de adequada subsunção jurídico-criminal, pressupondo a existência de factos constantes dos autos ou derivados da causa que ainda seja possível apurar, sendo este apuramento necessário para a decisão a proferir”.