Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | LUÍS RAMOS | ||
Descritores: | CRIME DE ROUBO INSUFICIÊNCIA PARA A DECISÃO DA MATÉRIA DE FACTO PROVADA | ||
Data do Acordão: | 12/09/2009 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | COMARCA DE ALCOBAÇA | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTIGOS 210º,Nº1 DO CP E 410º,Nº2, AL.A) E C) DO CPP | ||
Sumário: | 1.Ainda que se admita que quando o arguido se dirigiu à ofendida não tivesse a intenção de integrar a máquina fotográfica no seu património, já ficou por apurar se essa intenção inicialmente formada se manteve, tanto mais que também se deu como provado que ele levou a máquina fotográfica consigo. 2.Deveria o tribunal a quo ter investigado e apurado o destino da máquina fotográfica a partir do momento em que o arguido a levou consigo, pois só assim poderia ter uma convicção fundada sobre a intenção com que o arguido agiu e assim fazer a adequada integração jurídica dos factos. 3.Verifica-se o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a correcta solução de direito porque faltam elementos que podiam e deviam ter sido indagados. Tal como acontece nos autos. 4. Sendo essencial para a descoberta da verdade material, nomeadamente ao nível do dolo, saber o que efectivamente aconteceu à máquina fotográfica após a mesma ter sido retirada à ofendida e não constando da sentença factos que retratem essa realidade, estamos perante o vício previsto na alínea a., do nº 2, do artº 410º. 5.Padecendo a sentença do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto na alínea a., do nº 2, do artº 410º e não sendo possível supri-lo em sede de recurso uma vez que se impõe a produção de nova prova, há que reenviar o processo para novo julgamento relativamente à totalidade do seu objecto nos termos previstos nos artigos 426º e 426º-A. | ||
Decisão Texto Integral: | Por sentença proferida nos autos supra identificados, decidiu o tribunal: a) Absolver o arguido M..[[1]] da prática, em autoria material, de um crime de roubo, previsto e punido pelo art.º 210º, n.º 1 do Código Penal; b) Condenar o arguido M…. pela prática, em autoria material, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo artº 143º, nº 1, do Cód. Penal, na pena de 250 (duzentos e cinquenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,50 (seis euros e cinquenta cêntimos), o que perfaz o total de € 1.625,00 (mil seiscentos e vinte e cinco euros); c) Julgar improcedente o pedido de indemnização cível formulado e, em consequência absolver o demandado M… do pedido contra si formulado pela demandante Maria … Inconformados com o decidido, o Ministério Público e o arguido recorreram. O Ministério Público apresentou as seguintes conclusões (transcrição): Por seu turno, o arguido concluiu (transcrição): Respondeu o Ministério Público defendendo a falta de razão do recorrente quanto aos invocados vícios e ao alegado erro na apreciação da prova. Por seu turno, o arguido concluiu assim a sua resposta (transcrição): Os recursos foram admitidos para subir imediatamente, nos próprios autos, com efeito suspensivo. Nesta instância o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu douto parecer no qual se manifesta pela procedência do recurso do Ministério Público no que respeita ao invocado vício da sentença. No âmbito do art.º 417.º, n.º 2 do Código Penal o arguido nada disse. Os autos tiveram os legais vistos após o que se realizou a conferência. Cumpre conhecer do recurso Constitui entendimento pacífico que é pelas conclusões das alegações dos recursos que se afere e delimita o objecto e o âmbito dos mesmos, excepto quanto àqueles casos que sejam de conhecimento oficioso. É dentro de tal âmbito que o tribunal deve resolver as questões que lhe sejam submetidas a apreciação (excepto aquelas cuja decisão tenha ficado prejudicada pela solução dada a outras). Cumpre ainda referir que é também entendimento pacífico que o termo “questões” não abrange os argumentos, motivos ou razões jurídicas invocadas pelas partes, antes se reportando às pretensões deduzidas ou aos elementos integradores do pedido e da causa de pedir, ou seja, entendendo-se por “questões” as concretas controvérsias centrais a dirimir. Questões a decidir: - Eventual verificação dos vícios do artº 410º, nº 2 do Código de Processo Penal - Eventual erro na apreciação da prova e consequente integração jurídica dos factos Na 1.ª instância foi dada como provada a seguinte factualidade (transcrição): Quanto à factualidade não provada, consignou-se (transcrição): O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição): ****** Começando pelo recurso do Ministério Público: Entende este recorrente que a sentença padece dos vícios previstos nas alíneas a. e c. do nº 2, do artº 410º do Código de Processo Penal[[2]]. Vejamos: Para melhor compreensão da situação, passamos a transcrever os trechos da acusação e da sentença que fundamentam a convicção do recorrente: Consta da acusação que “(…) o arguido M… seu sobrinho e com o qual mantém um litígio sobre a propriedade do referido terreno, abeirou-se da ofendida com intenção de lhe retirar, levar consigo e fazer sua a dita máquina. Para esse efeito, o arguido agarrou a máquina fotografia que a ofendida detinha junto da cara e, num gesto brusco, dela lha puxou, retirou levou consigo, ao mesmo tempo que lhe desferiu um empurrão. (…) Bem sabia o arguido que agia contra a vontade da ofendida, visando integrar no seu património a supra mencionada máquina fotográfica que sabia não lhe pertencer, o que conseguiu, à custa do património daquela, bem sabendo que com a força física e psíquica que sobre ela utilizou, a constrangia a deixar-lha levar consigo.” Por seu turno, na sentença deu-se como provado que: “(…) o arguido M…, seu sobrinho e com o qual mantém um litígio sobre a propriedade do referido terreno, abeirou-se da ofendida com intenção de impedir que a mesma continuasse a tirar fotografias. 4) Para esse efeito, o arguido agarrou a máquina fotografia que a ofendida detinha junto da cara e, num gesto brusco, dela lha puxou, retirou e levou consigo, ao mesmo tempo que lhe desferiu um empurrão.” e como não provado: - que nas circunstâncias mencionadas em 3), o arguido se tivesse abeirado da ofendida com intenção de lhe retirar, levar consigo e fazer sua a dita máquina; - que bem soubesse o arguido que agia contra a vontade da ofendida, visando integrar no seu património a supra mencionada máquina fotográfica que sabia não lhe pertencer, o que conseguiu, à custa do património daquela, bem sabendo que com a força física e psíquica que sobre ela utilizou, a constrangia a deixar-lha levar consigo. O tribunal a quo fundamentou assim este fragmento da matéria de facto não provada: Também não se considerou que o arguido tivesse agido com intenção de apropriação da máquina fotográfica, porquanto ressaltou das declarações da ofendida que o propósito do mesmo foi impedi-la de continuar a tirar as fotografias ao terreno sobre o qual existe um litígio entre ambos, não tendo existindo qualquer intenção de apropriação no momento em que retirou a máquina à ofendida. Com efeito, não obstante o arguido se tenha ausentado do local levando a máquina consigo, verifica-se que o mesmo apenas actuou contra a ofendida, retirando-lhe a máquina, com o intuito de que a mesma parasse com a acção que levava a cabo, não existindo qualquer intuito de se apoderar da máquina quando pegou na mesma, o que até resulta das regras da experiência comum, considerando toda a dinâmica da situação relatada pela ofendida. Apreciando: Entende o Ministério Público que a sentença padece do vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artº 410º, nº 2, alínea c. porquanto, e em termos gerais, não foi dado por provado o dolo de roubo. Vejamos: Como resulta da citada disposição legal, os vícios previstos nas diversas alíneas têm de resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, ou seja, são vícios da decisão e não de julgamento. Começando pelo vício da alínea c., diremos que estamos perante o mesmo “quando se retira de um facto dado como provado uma conclusão logicamente inaceitável, quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado de facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida. Mas existe igualmente erro notório na apreciação da prova quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada, as regras da experiência ou as legis artis, como sucede quando o tribunal se afasta infundadamente do juízo dos peritos” (Código de Processo Penal Anotado”, de M. Simas Santos e M. Leal Henriques, pág. 740). O erro notório consiste num desacerto do raciocínio na apreciação das provas que ressalta de imediato patenteado numa simples leitura da decisão recorrida uma vez que as provas anunciam claramente um sentido e a decisão recorrida conclui em sentido contrário. De uma forma linear mas abrangente, escreve-se no acórdão do STJ de 12 de Junho de 1996, processo n.º 268/96: “Em sede de erro notório na apreciação da prova, as regras de experiência comum só podem ser invocadas quando da sua aplicação resulte, sem equívocos, a existência do aludido erro, já que a lei exige, para ser válido, enquanto motivo de anulação, que ele tenha veste de “notório”, isto é, que contra o que resulta de elementos que constem dos autos e cuja força probatória plena não haja sido infirmada ou de dados do conhecimento público generalizado, se emite um juízo sobre a verificação ou não de certa matéria de facto e se torne incontestável a existência de tal erro de julgamento sobre a prova produzida. É o que acontece, nomeadamente, quando por forma manifesta, e sem adequada justificação, se dá como não provada matéria constante de documento com força probatória plena sem que o mesmo tenha sido arguido de falso, ou quando se afirme como existente ou inexistente um facto, que seja do conhecimento público não se ter ou se ter produzido. Fora destas hipóteses, porém, o erro notório na apreciação da prova só pode resultar do texto da própria decisão recorrida, em virtude de o conhecimento da prova oralmente produzida em audiência se encontrar subtraído, pela sua intrínseca natureza, a qualquer reapreciação pelo tribunal de recurso.” Em suma, o vício em causa apenas se verifica quando, usando um método racional e lógico de análise, se torna evidente para qualquer pessoa minimamente atenta que a conclusão a que chegou o tribunal recorrido é ostensivamente violadora das regras da experiência comum([3]). Ora, no caso em apreço sempre seria plausível que, atentas as relações problemáticas entre o arguido e a ofendida, aquele se tivesse dirigido a esta com a intenção de a impedir que continuasse a tirar fotografias e que, como meio de atingir tal fim, lhe tivesse retirado a máquina fotográfica que ela estava a utilizar. Aliás, a fundamentação apresentada pelo tribunal a quo quanto a este ponto não revela a existência de violação evidente das regras da experiência. Pode haver erro, admite-se mesmo que haja, mas se o houver, não evidencia as características exigidas pelo nº 2. Pelo menos perante a prova produzida em audiência e indicada na sentença. Mas aqui é que reside o problema, pois que, ainda que se admita que quando o arguido se dirigiu à ofendida não tivesse a intenção de integrar a máquina fotográfica no seu património, já ficou por apurar se essa intenção inicialmente formada se manteve, tanto mais que também se deu como provado que ele levou a máquina fotográfica consigo. Porém, a sentença é omissa quanto ao que aconteceu à máquina fotográfica após tal momento, o que não permite avaliar globalmente os factos e assim apurar se a intenção do arguido se alterou, ou até mesmo, se terá sido efectivamente essa a intenção inicial. Acontece que muito embora o tribunal tenha dado como não provada a intenção de apropriação e a integração da máquina fotográfica no seu património, o certo é que o arguido a levou consigo. O que aconteceu depois não se sabe porque o tribunal não investigou. E era essencial que tivesse investigado porquanto, como facilmente se percebe, só na posse de tal conhecimento se poderia fazer a correcta integração jurídico-criminal da acção. Assim sendo, deveria o tribunal a quo ter investigado e apurado o destino da máquina fotográfica a partir do momento em que o arguido a levou consigo, pois só assim poderia ter uma convicção fundada sobre a intenção com que o arguido agiu e assim fazer a adequada integração jurídica dos factos. Ora, sendo essencial para a descoberta da verdade material, nomeadamente ao nível do dolo, saber o que efectivamente aconteceu à máquina fotográfica após a mesma ter sido retirada à ofendida e não constando da sentença factos que retratem essa realidade, estamos perante o vício previsto na alínea a., do nº 2, do artº 410º. Este vício verifica-se quando, como acontece no caso “sub judice”, “da actualidade vertida na decisão em recurso, se colhe faltarem elementos que, podendo e devendo ser indagados, são necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição” (Ac. do STJ de 97-05-08, Ac.s STJ V, 2, 200), ou, como se diz em “Código de Processo Penal Anotado”, de M. Simas Santos e M. Leal Henriques, pág. 738, parafraseando o acórdão do STJ de 99/06/02, proferido no processo n.º 288/99, “quando os factos provados são insuficientes para justificar a decisão assumida, ou quando o tribunal recorrido, podendo fazê-lo, deixou de investigar toda a matéria de facto relevante, de tal forma que essa matéria de facto não permite, por insuficiência, a aplicação do direito ao caso submetido a apreciação; no cumprimento do dever de descoberta da verdade material, que lhe é imposto pelo normativo do art.º 340.º do Código de Processo Penal, o tribunal podia e devia ter ido mais longe; não o tendo feito, ficaram por investigar factos essenciais, cujo apuramento permitiria alcançar a solução legal e justa. Os factos que ficaram por apurar têm, portanto, de ser factos que, num juízo de prognose, se admita virem a ser averiguados pelo tribunal a quo através dos meios de prova disponíveis e que, vindo a ser provados, determinarão ou a alteração da qualificação jurídica da matéria de facto ou da medida da pena ou de ambas”([4]). Pode-se assim dizer que se verifica o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a correcta solução de direito porque faltam elementos que podiam e deviam ter sido indagados. Tal como acontece nos autos. Em face do exposto, padecendo a sentença do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada previsto na alínea a., do nº 2, do artº 410º e não sendo possível supri-lo em sede de recurso uma vez que se impõe a produção de nova prova, há que reenviar o processo para novo julgamento relativamente à totalidade do seu objecto nos termos previstos nos artigos 426º e 426º-A. ** Perante isto, está prejudicado o conhecimento do recurso interposto pelo arguido. *** Nesta conformidade 1) Acorda-se, ainda que por outros fundamentos, em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público e determinar o reenvio do processo para novo julgamento relativamente à totalidade do seu objecto nos termos previstos nos artigos 426º e 426º-A 2) Acorda-se ainda em julgar prejudicado o conhecimento do recurso interposto pelo arguido * Sem custas. *
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