Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1582/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
CULPA
PRIORIDADE DE PASSAGEM
VELOCIDADE EXCESSIVA
Data do Acordão: 09/27/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTº 503º, Nº 3, DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: É de atribuir a culpa exclusiva na ocorrência do acidente ao condutor do veículo ligeiro que circulava a velocidade superior a 180 km/h em local onde o máximo permitido era de 90 km/h, se a manobra de um veículo pesado – de travessia da E.N. nº 1, da direita para a esquerda, atento o sentido seguido por aquele condutor – podia ser vista por esse mesmo condutor à distância de 330 metros, distância essa que lhe permitia, se circulasse à velocidade regulamentar (90 km/h), passar sem ter de alterar essa mesma velocidade, permitindo-lhe usufruir da prioridade de passagem de que gozava.
Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A... e B..., menores e representados por Amarino Agostinho Mendes, propuseram, em 19/03/1996, pelo Tribunal Judicial de Alcobaça, acção sumária emergente de acidente de viação, contra C..., D... e E..., pedindo a condenação solidária destes a pagar-lhes a quantia global de 99.375.888$00 e juros legais, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, por eles sofridos com a morte de seus pais Paulo Alexandre Santos Sineiro e Ana Paula Cardoso Mendes, em consequência do acidente de viação ocorrido na E.N. nº 1, ao Km 87,9, em Charneca do Carvalhal, Turquel, entre o veículo ligeiro de matrícula 46-70-BO, conduzido pelo Paulo Alexandre, e o veículo pesado de mercadorias de matrícula AO-25-14, pertencente ao réu D..., conduzido por conta deste pelo 3º réu Paulo António e seguro na ré C... (apólice nº 031/6614763), ficando o acidente a dever-se a culpa exclusiva do condutor do AO.
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O réu David contestou, por excepção, invocando a sua ilegitimidade, por o pedido estar dentro do limite do seguro e impugnou os factos articulados pelos autores no que diz respeito à culpa, em virtude de esta se ficar a dever exclusivamente ao condutor do BO.

Também o réu Paulo António e ré C... contestaram (separadamente), defendendo a improcedência da acção, em virtude de o acidente ter ocorrido por culpa exclusiva do condutor do BO, Paulo Alexandre.
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Os autores responderam à matéria de excepção, pugnando pela sua improcedência.
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A companhia de seguros Assicurazioni Generali, S.p.A., deduziu incidente de intervenção principal espontânea, pedindo a condenação da ré C... na quantia de 14.500.000$00 e juros vincendos desde a citação, pelos danos causados no veículo BO, que segurava à data do acidente.

A ré C... contestou tal pedido, invocando a prescrição do direito que a interveniente pretende exercer.

O pedido de intervenção foi indeferido por despacho de 03/04/1998, que, no entanto, foi alterado por Acórdão desta Relação, de 02/03/1999, que admitiu tal pedido.
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Foi proferido despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes as excepções de ilegitimidade dos réus David e Paulo António e de prescrição do direito invocado pela interveniente Assicurazioni, e organizados a especificação e o questionário, com reclamação dos autores, que foi deferida.

Teve, depois, lugar o julgamento, com gravação da prova e inspecção ao local do acidente, após o que foi decidida a matéria de facto controvertida, com reclamação dos autores, que foi deferida.
Foi, depois, proferida sentença, que julgou a acção totalmente improcedente.

Interposto recurso pelos autores e pela interveniente, foi, por Acórdão desta Relação, de 24/09/2002, anulado o julgamento, para a realização de uma diligência no local do acidente e repetição quanto à matéria dos quesitos 4º e 25º.

Realizada inspecção ao local, com reconstituição dos factos (consignada em acta), foi dada resposta aos aludidos quesitos 4º e 25º, sem reclamações, após o que foi proferida sentença, que julgou a acção totalmente improcedente.
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Inconformados, recorreram os autores e a interveniente, não sendo o recurso desta última admitido, por intempestivo, conforme despacho de fls. 541.
São do seguinte teor as conclusões da alegação do recurso dos autores:
1- Foi, ora apurado que o condutor do veículo AO, podia avistar as luzes do BO a menos de 330 m, quando iniciou a manobra de entrada na via (q. 25º).
2- Manobra essa que não permitiu ao condutor do BO qualquer possibilidade de se desviar.
3- Os restantes factos já apurados com relevo e interesse para a decisão foram que:
a) O acidente entre o veículo pesado AO e o ligeiro BO se produziu às 00,30 h, que o traçado da via era uma recta, que o veículo ligeiro BO circulava na sua mão de trânsito no sentido Leiria – Venda das Raparigas, que o pesado AO entrou na via, vindo de um parque de estacionamento existente do lado direito da estrada atento o sentido Leiria – Venda das Raparigas, tudo cfr. A, B, E, F da especificação.
b) O veículo AO iniciou a sua manobra de travessia da estrada nacional nº 1 da direita para a esquerda atento o sentido atrás referido, com o propósito de passar a circular por essa via no sentido inverso ao referido (resp. qºs 1 e 2).
a) As luzes do BO eram visíveis pelo condutor do AO quando este iniciou a manobra de travessia da via (resp. qº. 5º).
b) O AO saiu do parque de estacionamento pelo local 80 m mais próximo do lado em que circulava o BO (resp. qº 7).
c) A colisão ocorreu quando o AO se encontrava com a parte traseira na faixa de rodagem do veículo BO, a uma distância de 1,30 m da berma direita (resp. qº 11).
d) Provado que o AO se encontrava carregado de fruta (resp. qº 14).
e) Que o AO não possuía luzes laterais (resp. qº 41º).
4- A cedência de passagem dos condutores que saiam de um parque de estacionamento é obrigatória tanto no CE de 1954 (artº 8º nº 3), como no actual (artº 31º nº 1 a).
5- Sendo de interpretar o pensamento do legislador, o “ratio” da norma, a de impedir que o condutor que pretende entrar na via, se permita calcular, cogitar ou medir mentalmente as suas possibilidades de entrar na mesma sem afectar a circulação ou causar acidentes.
6- Ao violar esta norma o condutor do AO deu causa ao acidente.
7- Tanto mais que violou regras elementares de prudência e cuidado, sendo de noite, encontrar-se a conduzir um veículo carregado de furta, não ter experiência de condução de pesados, não possuir luzes laterais, e não haver qualquer iluminação no local.
8- O condutor do AO, tem a presunção de culpa resultante do artº 503º nº 3 do C.Civil.
9- Sendo que, mesmo não se tendo provado a sua culpa competia-lhe ilidir a presunção, o que não aconteceu.
10- A acção deveria proceder.
A sentença violou os artºs 503 nº 3 do C. Civil, 8º nº 3 do C. Estrada de 1954.
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A ré C... contra-alegou, defendendo a confirmação da sentença.

Também a interveniente Assicurazioni Generali apresentou alegação, aderindo à alegação dos recorrentes (autores), concluindo pela procedência desta.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Dado que a decisão proferida sobre a matéria de facto não foi impugnada, remete-se para os termos de tal decisão, ao abrigo do disposto no artº 713º, nº 6, do Código de Processo Civil..
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Como é sabido, o objecto do recurso está delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo o tribunal da relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil).

Com o presente recurso está em discussão, essencialmente, a culpa na produção do acidente, que, segundo os recorrentes, é de atribuir ao condutor do veículo AO, por inobservância das regras da prioridade, o qual tem, de qualquer modo, a presunção de culpa resultante do artº 503º, nº 3, do Código Civil, que não elidiu.
Na sentença recorrida considerou-se que, não obstante recair sobre o condutor do veículo AO a presunção de culpa prevista no artº 503º, nº 3, do Código Civil, por o fazer no interesse e soba direcção efectiva do dono do veículo, é de concluir que a responsabilidade na produção do acidente é única e exclusivamente imputável ao condutor do veículo BO, tendo, pois, o réu Paulo Campos logrado elidir a presunção de culpa que sobre ele recaía.
Não obstante a sentença conter algumas incorrecções na indicação de medidas, distâncias e tempo tomados em consideração para efectuar o cálculo da manobra levada a efeito pelo veículo AO, a fim de determinar se a faria com segurança – como seja a indicação de metade da largura da estrada (3,75 m, em vez de 3,25 m, aí referidos), da distância que faltava percorrer ao veiculo AO para deixar a faixa da direita completamente livre (2,45 m, em vez de 1,95 m, aí indicados), e do tempo que esse veículo demoraria para percorrer os 11,75 m (em vez dos 11,25 m aí referidos) até deixar a faixa da direita completamente livre (8,22 segundos, em vez de 7,86 segundos, também aí referidos) -, consideramos que a mesma interpretou e aplicou correctamente o direito aos factos dados como provados, sendo, portanto, de a confirmar, remetendo para os fundamentos da respectiva decisão, fazendo uso da faculdade conferida pelo nº 5 do já atrás referido artº 713º do Código de Processo Civil.
Com efeito, face ao factualismo dado como provado, tem que se concluir que só a velocidade manifestamente excessiva a que circulava o veículo BO esteve na origem do acidente dos autos.
Na verdade, este veículo circulava a velocidade superior a 180 km/h, em local onde o máximo permitido era de 90 km/h.
A manobra do veículo pesado AO – de travessia da E.N. nº 1, da direita para a esquerda, atento o sentido Leira/Venda das Raparigas, que era o seguido pelo BO – podia ser vista pelo condutor do veículo BO à distância de 330 metros.
Tal distância permitia-lhe, se circulasse à velocidade regulamentar (90 km/h), passar sem ter de alterar (reduzir) essa mesma velocidade, permitindo-lhe usufruir da prioridade de passagem de que gozava.
Como bem se diz na sentença - e é jurisprudência dominante dos tribunais - os condutores, em regra, não são obrigados a prever ou a contar com a falta de prudência alheia, pelo que não se impunha ao condutor do pesado que previsse que o ligeiro circulava a mais de 180 km/h, superior em mais de metade à regulamentar.
Não se pode, por isso, considerar que o condutor do pesado tenha infringido a regra da prioridade de passagem prevista no artº 8º, nº 3, al. a), do Código da Estrada de 1954 (então em vigor), tendo em conta a distância a que o BO era visível quando aquele condutor iniciou a manobra.
Essa distância era considerável, e suficiente, para permitir ao OA efectuar a manobra da travessia da estrada sem obrigar o BO a modificar a sua marcha, se este circulasse à velocidade máxima permitida por lei, não se pondo, assim, a questão da prioridade de passagem e da sua inobservância pelo condutor do pesado.
Concordamos com a argumentação da sentença – embora não se possa arvorar em regra absoluta, por depender de inúmeros factores -, quando refere que, numa estrada de muito movimento, como é a E.N. nº 1, se se exigisse a um veículo que nela pretendesse entrar que dispusesse de uma distância superior a 300 metros em relação a qualquer outro que viesse na sua direcção, dificilmente um veículo pesado poderia entrar nessa via.
Assim, concluindo-se pela culpa exclusiva do condutor do veículo BO, e porque não violou a sentença recorrida as disposições dos artºs 503º, nº 3, do Código Civil, e 8º, nº 3, do Código da Estrada, não poderá deixar de ser negado provimento ao recurso.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.

Custas pelos recorrentes, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficiam.