Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
831/09.6TACBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE DIAS
Descritores: INJÚRIA
Data do Acordão: 02/09/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DE INSTRUÇÃO CRIMINAL DE COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS180º, 182º E 187º CP
Sumário: A expressão “Ando no futebol há 11 anos e quero-lhe dizer na cara o seguinte: Você é mau exemplo para os seus jogadores e para a sua equipa”, proferida depois de, o massagista de uma das equipas ter interpelado o arguido, árbitro naquele jogo, questionando-o do motivo pelo qual tinha assinalado grande penalidade contra a sua equipa, pode ser considerada desrespeitosa ou grosseira, mas não tem relevância penal, pois foi proferida no âmbito do seu direito de defesa, não sendo susceptível de o atingir na sua honra e consideração.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra, Secção Criminal.
No processo supra identificado foi proferido despacho no qual se decidiu não pronunciar o arguido DG..., determinando-se o arquivamento dos autos.

Inconformado, o assistente JC… apresenta recurso para esta Relação.

Na sua motivação, apresenta as seguintes conclusões, que delimitam o objecto do recurso.

A)No dia …, no decorrer da competição "Liga …", época …, teve lugar no Estádio Municipal de .... o jogo da 3° Jornada entre a A.... ( A....) e o B.... ( B....- ....).

B)O assistente integrava a equipa do B....- .... enquanto massagista, estando sentado no banco, fazendo parte da ficha de jogo, enquanto o arguido era o árbitro responsável pela arbitragem do mesmo.

C)O jogo decorreu sem problemas de maior, tendo havido apenas algumas manifestações de desagrado, por parte do assistente e de todo o banco do B..../ .... contra decisões do arguido, nomeadamente quanto à marcação de uma grande penalidade contra o B... não havendo, no entanto, qualquer reacção a estas por parte do árbitro, nomeadamente advertindo ou expulsando o assistente quer durante o jogo quer depois deste ter terminado.

D)No final do jogo, já no hall de acesso à saída do estádio, o assistente dirigiu-se ao arguido e perguntou-lhe o porquê do penalty, ao que o arguido respondeu: "Ando no futebol há 11 anos e quero-lhe dizer na cara o seguinte: Você é um mau exemplo para os seus jogadores e para a sua equipa".

E)A frase foi proferida em voz alta perante dirigentes do Clube, treinador e funcionários, num tom agressivo e hostil, sendo totalmente despropositada, sendo notório o carácter injurioso e calunioso das declarações, uma vez que o assistente se viu atacado na sua honra e consideração pessoais, tendo o arguido perfeita consciência do carácter ofensivo das suas afirmações e das consequências de que poderia advir da sua conduta.

F)Não procede o argumento de que o arguido agiu no âmbito do exercício do seu direito de opinião, uma vez que este colidiu com o direito à honra e consideração do assistente, afectando o núcleo essencial deste, o que, de acordo com o princípio da concordância prática, deve fazer ceder o primeiro, perante o segundo.

G)Até porque a situação aconteceu na presença de outros elementos do B..., nomeadamente de elementos dos corpos directivos, que o arguido sabia quem eram por estarem na ficha de jogo, de quem depende a manutenção do vínculo laboral do assistente, a qual poderia ficar em perigo pela actuação do arguido.

H)O crime de difamação é um crime doloso, não se exigindo, no entanto, um dolo específico, bastando qualquer uma das modalidades previstas no art. 14 do Código Penal.

I)Assim, para que o dolo se verifique, basta que o agente tenha consciência que as expressões utilizadas são aptas a ofender a honra e consideração de uma pessoa considerando o meio social e cultural e a "sã opinião da generalidade das pessoas de bem".

J)Não é de acreditar que o arguido não tenha tido esta consciência no momento da prática dos factos.

K)Estão assim preenchidos os elementos objectivo e subjectivo do crime de difamação na forma agravada p. e p. nos art.s 180, 182 e 187 do Código Penal, não havendo justificação para a não pronúncia do arguido.

Deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que pronuncie o arguido pelo crime de que vinha acusado, ordenando-se em consequência o prosseguimento do processo.

Foi apresentada resposta pelo Magistrado do Mº Pº, que conclui verificarem-se indícios da prática do crime de injúria, mas não de difamação como pretende o recorrente.

Foi apresentada resposta pelo arguido, concluindo:

a)Os factos descritos na acusação não se subsumem na previsão dos Art. 180, 182 e 187 do C. Penal.

b)O arguido imputou os factos directamente ao assistente.

c)Fê-lo verbalmente, e

d)Não se referiu a nenhuma pessoa colectiva, nem o assistente, na qualidade em que se apresenta, representa qualquer pessoa colectiva.

e)Da prova produzida em inquérito e na instrução não resultaram indícios suficientes da prática de qualquer crime contra a honra.

f)O arguido agiu no uso da autoridade que exerce sobre o assistente, advertindo-o do cometimento de infracções.

g)A sua intenção foi corrigi-lo e não ofende-lo.

h)Dizer a alguém que o seu comportamento - cometimento de infracções - é um mau exemplo e uma vergonha, não ultrapassa os limites da crítica objectiva.

i)A imputação feita pelo arguido ao assistente é assertiva.

j)O comportamento do assistente é um mau exemplo para os jogadores que podem seguir-lho, sujeitando-se a sanções.

k)É motivo para sentir vergonha o cometimento de infracções.

I)A advertência e crítica feita pelo arguido, não é exagerada nem desproporcional.

m)A argumentação usada pelo assistente neste recurso é contraditória, não sendo capaz de beliscar a decisão de não pronúncia.

n)A decisão recorrida é irrepreensível, quer na fundamentação de facto, quer na fundamentação de direito

Deve ser negado provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida.

Nesta Relação, o Ex.mº P.G.A., emite parecer concordante com a posição da resposta do Mº Pº na 1ª Instância.

Foi cumprido o art. 417 do CPP.

Não foi apresentada resposta.

Colhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre decidir:


***

É do seguinte teor o despacho recorrido:

(…)

Nos termos do disposto no nº 1 do artigo 286 do Código de Processo Penal, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.

Por sua vez, determina o artigo 308, nº 1 do Código de Processo Penal que, se até ao encerramento da instrução tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos, devendo, em caso contrário, proferir despacho de não pronúncia.

Assim, a função da presente instrução é a de apreciar se nos autos existem indícios da prática pelo arguido do referido crime de difamação, que sejam suficientes para o submeter o julgamento, ou, pelo contrário, não existem tais indícios e terá que ser proferido despacho de não pronúncia.

Face ao disposto nos artigos 283, nº2 e 308, nº 2 do Código de Processo Penal, consideram-se indícios suficientes “sempre que deles resulte uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, uma pena ou uma medida de segurança.”

Haverá indícios suficientes quando está em causa um conjunto de elementos convincentes de que o arguido praticou os factos incrimináveis que lhe são imputados, isto é, vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer de que há crime e é o arguido responsável por ele.

Consequentemente, fundando-se o conceito de indícios suficientes na possibilidade razoável de condenação ou de aplicação de uma pena ou medida de segurança, deve considerar-se existirem os mesmos, para efeitos de prolação do despacho de pronúncia quando:

- os elementos de prova, relacionados e conjugados entre si fizerem pressentir a culpabilidade do agente e produzirem a convicção pessoal de condenação posterior;

- se conclua, com probabilidade razoável, que esses elementos se manterão em julgamento; ou

- quando se pressinta que da ampla discussão em audiência de julgamento, para além dos elementos disponíveis, outros advirão no sentido de condenação futura. Para a pronúncia não é necessário uma certeza da existência da infracção, bastando uma grande probabilidade de futura condenação do arguido, ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição.

Deve assim o Juiz de Instrução compulsar os autos e ponderar toda a prova produzida, fazendo um juízo de probabilidade sobre a condenação do arguido e, em consonância com esse juízo, remeter ou não a causa para a fase de julgamento.


*

Vem o arguido acusado por um crime de difamação agravada, previsto e punido pelos artigos 180, 182 e, segundo o assistente, também pelo artigo 187, todos do Código Penal.

Dispõe o artigo 180 do Código Penal que, “quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo, é punido com pena de prisão até 6 meses ou com pena de multa até 240 dias”.

Nos termos do artigo 182 do Código Penal “á difamação e á injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão”.

“A honra é a essência da personalidade humana, referindo-se, propriamente, á probidade, á rectidão, á lealdade, ao carácter”.

Por outro lado, a “consideração é o património de bom nome, de crédito, de confiança, que cada um pode ter adquirido ao longo da sua vida, sendo como que o aspecto exterior da honra, já que provém do juízo em que somos tidos pelos outros.

A consideração é o merecimento que o indivíduo tem no meio social, isto é, a reputação, a boa fama, a estima, a dignidade objectiva, que é o mesmo que dizer, a forma como a sociedade vê cada cidadão - a opinião pública” (cfr. Leal Henriques e Simas Santos, “O Código Penal de 82, vol. 2, pág. 196).

Acresce que o crime de difamação é um crime doloso, o que quer significar que só estão arredadas do seu âmbito subjectivo as condutas negligentes, sendo, por isso, suficiente a imputação baseada tão só em dolo eventual.

Por outro lado, é de salientar que, hoje, está superada a antiga controvérsia no que tocava á exigência de um chamado dolo específico. E superada no sentido de que não se pode conceber uma tal exigência. Basta uma actuação dolosa, desde que se integre numa das modalidades do artigo 14 do Código Penal.

Assim, a imputação de um facto ofensivo, ainda que sob a forma de suspeita; a formulação de um juízo de desvalor ou a reprodução de uma imputação ou de um juízo, que seja levado a terceiros, constitui um crime de difamação a menos que tal imputação surja para realizar interesses legítimos (por exemplo no exercício do direito de informar ou no cumprimento de um dever) e se faça a prova da verdade da imputação ou a mesma seja tida, de boa fé, como verdadeira (artigo 180, nº 2 do Código Penal). Tais condições objectivas de punibilidade são requisitos cumulativos que forçosamente se têm que verificar de modo a afastar a punição do agente.

Assim, não consubstanciam crime de difamação os juízos que, como reflexo de crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto - cfr. Ac. da RC de 24.3.2004, in CJ XXIX, II, 46.

Em qualquer Estado de Direito democrático é constitucionalmente garantido a todo o cidadão o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento por qualquer meio, bem como o direito de informar sem impedimentos nem discriminações, direitos que se traduzem na liberdade de criação, discussão e crítica.

Esta última forma de tradução do direito de expressão e de informação, tende a provocar situações de conflito potencial com bens jurídicos como a honra, situações em que de acordo com a doutrina mais recente e actualizada, a relevância jurídico-penal está á partida excluída por razões de atipicidade.

Costa Andrade, in Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal, 232/245, defende mesmo que se devem considerar atípicos os juízos que, como reflexo necessário da crítica objectiva, acabam por atingir a honra do visado, desde que a valoração crítica seja adequada aos pertinentes dados de facto.

No entanto, esclarece que a atipicidade já não poderá sustentar-se para os juízos que atingem a honra pessoal e a consideração pessoal, perdendo todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou a obra que, em princípio, legitimaria a crítica objectiva, nem para os juízos de facto feitos no contexto duma valoração crítica objectiva, a menos que pressuposta a prova da verdade, o que significa que só se deverão ter por atípicos os juízos de facto ofensivos em que a verdade do facto ou factos em que os mesmos assentam é evidente ou notória ou se mostra já demonstrada.

Deve, pois, excluir-se a atipicidade relativamente a críticas caluniosas, bem como a outros juízos de valor exclusivamente motivados pelo propósito de rebaixar e humilhar e, bem assim, em todas as situações em que os juízos negativos sobre o visado não têm nenhuma conexão com a matéria em discussão. Uma coisa é criticar a obra, outra muito distinta é agredir pessoalmente o autor, dar expressão a uma desconsideração dirigida á sua pessoa.

Acresce que é próprio da vida em sociedade haver alguma conflitualidade entre as pessoas. Há frequentemente desavenças, lesões de interesses alheios, etc. que provocam animosidade. Uma pessoa que se sente prejudicada por outra, por exemplo, pode compreensivelmente manifestar o seu descontentamento através de palavras azedas, acintosas ou agressivas. E o direito não pode intervir sempre que a linguagem utilizada incomoda ou fere susceptibilidades do visado. Só o pode fazer quando é atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa tenha apreço por si própria e não se sinta desprezada pelos outros. Se assim não fosse, a vida em sociedade seria impossível. E o direito seria fonte de conflitos, em vez de garantir a paz social, que é a sua função - cfr. Ac. da RP de 19.1.2005, in dgsi.pt.

“Se bem que ninguém goste que lhe verberem comportamentos, atitudes ou mesmo simples intenções, ou fustigue a sua personalidade ou carácter, sobretudo quando feito de forma desabrida e cáustica, o incómodo daí resultante e susceptibilidade do visado não bastam para que se considere desde logo atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa se tenha como socialmente realizada.

De facto, a dignidade penal da ofensa não se esgota na subjectividade dialéctica do visado, havendo de objectivar-se ainda necessariamente no circunstancialismo envolvente e no veículo condutor da mesma” - cfr. Ac da RP de 5.12.2007, in dgsi.pt.

Também nos termos do Ac. da RP de 22.11.2006, in dgsi.pt, “o direito de expressão do pensamento, de opinião e de crítica deve prevalecer se as expressões e termos utilizados não ofendem o princípio da proporcionalidade e são adequados ao fim legitimamente perseguido com o escrito”.

Acresce que o cerne da determinação dos elementos objectivos se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização.

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Por último, no artigo 187 do Código Penal temos um distinto tipo legal de crime.

Nos termos do artigo 187, nº 1 do Código Penal “quem, sem ter fundamento para, em boa fé, os reputar verdadeiros, afirmar ou propalar factos inverídicos, capazes de ofender a credibilidade, o prestígio ou a confiança que sejam devidos a organismo ou serviço que exerçam autoridade pública, pessoa colectiva, instituição ou corporação, é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 240 dias”.


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Cumpre agora apreciar os indícios recolhidos tanto em sede de inquérito como em sede de instrução e apreciar se os mesmos se subsumem ou não no crime em causa.

Como resulta da leitura da acusação, a frase que está em causa nos autos é “ando no futebol há 11 anos e quero-lhe dizer na cara o seguinte: você é um mau exemplo para os seus jogadores e uma vergonha para a sua equipa”.

De facto, o assistente queixou-se do arguido lhe ter dirigido tal frase. Aliás, frase esta que o arguido não nega ter proferido.

Como resulta das declarações do arguido, a fls. 30, este confirmou ter proferido tais expressões.

A fls. 65, a testemunha MA... referiu que estava no corredor de acesso aos balneários do Estádio Municipal de ...., surgiu o arguido e dirigindo-se ao assistente disse: “você é uma vergonha para a equipa do B...., o seu comportamento no banco é um péssimo exemplo para os jogadores”.

A testemunha DF… referiu, a fls. 73, que presenciou ao longo do jogo de futebol um comportamento de desagrado para com a equipa de arbitragem por parte do ofendido, o qual, provavelmente, propiciou as expressões proferidas pelo arguido.

MC…, a fls. 80, referiu que interpelou o arguido acerca da infracção que ocorreu no campo e que originou o penalty. Foi o arguido igualmente interpelado pelo arguido (ofendido?). O queixoso apenas lhe perguntou o porquê do penalty, tendo o arguido respondido “olhe você nem me diga nada, porque você é uma vergonha, o seu comportamento é uma vergonha para o futebol e digo-lhe na cara, não mando dizer por ninguém”.

Por sua vez, em sede de instrução, a testemunha JL… árbitro que fazia parte da equipa de arbitragem no jogo em causa, referiu que o árbitro é a autoridade e que exerce essa autoridade sobre todos os agentes desportivos, inclusive sobre o assistente que era massagista. Esclareceu que durante o jogo o assistente excedeu-se, gesticulava, contra uma decisão de grande penalidade do arguido. Disse ainda que na parte final, o assistente estava á espera do arguido junto aos balneários deste e voltou a perguntar o que foi que ele viu para marcar penalty. O arguido disse-lhe que ele era um mau exemplo para a equipa e que o seu comportamento poderia prejudicar a equipa. Mais disse que o assistente é uma pessoa impulsiva e já tem sido expulso por se insurgir contra as decisões do árbitro. Esclareceu ainda que o comportamento do assistente poderia mesmo prejudicar a equipa porque incentivava comportamentos semelhantes contra as decisões do árbitro.

A testemunha PG…, árbitro que fazia parte da equipa de arbitragem do jogo em causa, referiu que é habitual o assistente manifestar-se contra as decisões dos árbitros. No presente caso não conseguiu ouvir o que ele disse mas ele manifestou-se contra uma decisão do arguido, não tendo tido um comportamento correcto. Mais referiu que á data não foi expulso atendendo á sua idade. Mais disse que no final do jogo, o assistente e outros directores do B.... estavam á espera do arguido para tirar satisfações de uma decisão deste. Disse: “que grande penalidade foi esta?”. O arguido disse que o seu comportamento não era exemplo para ninguém e que era uma vergonha para a equipa”. Mais esclareceu que o comportamento do assistente poderia levar a outras reacções idênticas, o que prejudica os jogadores, podendo mesmo levar a expulsões. O arguido não teve intenção de o ofender mas de o trazer ao bom caminho, explicando que não podia ter aqueles comportamentos. Aliás, o árbitro tem autoridade para dizer ao assistente que não está correcto. Por outro lado, no final eles não podiam estar no sítio onde se encontravam com o fim de afrontar o arguido. Referiu ainda que o assistente reage sempre assim e os árbitros são condescendentes com ele.

Por último, a testemunha JG…, árbitro, fazia igualmente parte da equipa de arbitragem do jogo em causa; referiu que o assistente protesta sempre contra a equipa de arbitragem. Neste caso concreto, reagindo contra uma decisão do arguido, ele levantou-se do banco, gesticulou e disse “vergonha do caralho”. Referiu que estava perto do assistente e ouviu bem o que ele disse. Foi várias vezes ao banco para o acalmar e disseram-lhe também a si para ter calma e ter em conta a sua idade. No balneário comentou esta situação com a equipa de arbitragem e, quando iam a sair do balneário, o assistente encontrava-se á espera com outras pessoas. O assistente foi o primeiro a questionar, de forma arrogante e a rir-se com ar de gozo como se o arguido tivesse assinalado uma grande penalidade inexistente com o fim de beneficiar alguém. O arguido disse que não tinha que lhe responder sobre isso e que o comportamento dele teria sido vergonhoso. Também lhe disse que ele era um mau exemplo para a equipa dele. Mais disse que esta advertência por parte do arguido era um comportamento normal, com intenção de o repreender e não de o ofender na honra ou consideração. Interpelar o árbitro da forma como o assistente o fez é uma infracção e estar no local em que se encontrava no final do jogo com o fim de confrontar o arguido é outra infracção.

Pelo documento de fls. 152 da Liga Portuguesa de Futebol pode constar-se que o assistente já foi anteriormente advertido e sancionado com multa.


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São estes os indícios relevantes.

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Ora, pelo que fica dito, existem indícios do assistente ter protestado contra uma decisão do árbitro ora arguido, durante o jogo, de forma veemente chegando a dizer “vergonha do caralho”, levantando-se do banco e gesticulando de forma ostensiva.

No final do jogo, o assistente voltou a procurar o árbitro junto ao balneário deste para tirar satisfações acerca de uma decisão por ele tomada. Aí, o arguido disse a frase constante da acusação, isto é, “você é um mau exemplo para os seus jogadores e uma vergonha para a sua equipa”.

Ora, se constitui infracção tais reacções ás decisões do árbitro, a atitude do assistente não poderia ser um bom exemplo para os jogadores e para a equipa.

Existem indícios da atitude do assistente não ter sido correcta em relação ao arguido, tanto no campo como depois do jogo. De facto, mesmo depois do jogo terminar, o assistente, não satisfeito com a situação, ainda esperou pelo arguido para, mais uma vez, o confrontar com uma decisão por ele tomada.

Assim, no contexto em que foi proferida a dita expressão por parte do arguido, entende-se que a mesma não preenche os elementos típicos do crime de difamação de que vem acusado.

Como já se disse supra “se bem que ninguém goste que lhe verberem comportamentos, atitudes ou mesmo simples intenções, ou fustigue a sua personalidade ou carácter, sobretudo quando feito de forma desabrida e cáustica, o incómodo daí resultante e susceptibilidade do visado não bastam para que se considere desde logo atingido o núcleo essencial de qualidades morais que devem existir para que a pessoa se tenha como socialmente realizada.

De facto, a dignidade penal da ofensa não se esgota na subjectividade dialéctica do visado, havendo de objectivar-se ainda necessariamente no circunstancialismo envolvente e no veículo condutor da mesma” - cfr. Ac da RP de 5.12.2007, in dgsi.pt.

Assim, entende-se que as expressões indiciadas não atingem o direito á honra e consideração do assistente de forma a reclamar a intervenção do direito penal. Por outro lado, o arguido é a pessoa que pode repreender o assistente pelas suas atitudes. Para além disso, tem o arguido o direito de crítica e opinião que, segundo o princípio da concordância prática, só deve ceder quando atingir o núcleo essencial do direito á honra e consideração, o que não é o caso.

De facto, nos termos do artigo 37 da Constituição da República Portuguesa, “todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento pela palavra, pela imagem ou por qualquer outro meio, bem como o direito de informar, de se informar e de ser informado, sem impedimentos nem discriminações.

Nos termos do nº 2 da mesma norma legal, o exercício destes direitos não pode ser impedido ou limitado por qualquer tipo ou forma de censura.

De acordo com o nº 3 da mesma norma legal, as infracções cometidas no exercício destes direitos ficam submetidas aos princípios gerais de direito criminal, sendo a sua apreciação da competência dos tribunais judiciais”.

Neste artigo está assim reconhecido o direito de expressão de pensamento. Este direito é, desde logo e em primeiro lugar, a liberdade de expressão, isto é, o direito de não ser impedido de exprimir-se. Neste sentido, enquanto direito negativo ou direito de defesa, a liberdade de expressão é uma componente da clássica liberdade de pensamento.

O direito de expressão não pode ser sujeito a impedimentos nem discriminações. Porém, “sem impedimentos” não pode querer dizer sem limites, visto que o seu exercício pode dar lugar a “infracções”. Há limites. Todavia, dentro dos limites do direito (expressos ou implícitos), não pode haver obstáculos ao seu exercício e, fora as exclusões constitucionalmente admitidas, todos gozam dele em pé de igualdade - cfr. Gomes Canotilho, “Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, pág. 225-226.

Corolário da liberdade de expressão é a proibição da censura, pois esta é uma negação qualificada daquela.

A Constituição exclui obviamente qualquer delito de opinião, mesmo quando se trate de opiniões que se traduzem em ideologias ou posições anticonstitucionais. Do nº 3 da mesma norma conclui-se que há certos limites ao exercício do direito de exprimir livremente o pensamento, cuja infracção pode conduzir a punição criminal. Esses limites visam salvaguardar os direitos ou interesses constitucionalmente protegidos de tal modo importantes, que gozam de protecção penal.

Entre eles estarão designadamente os direitos dos cidadãos á sua integridade moral, ao bom nome e reputação; a injúria e a difamação não podem reclamar-se de manifestações da liberdade de expressão ou de informação.

As infracções ficam sujeitas aos princípios gerais do direito criminal, só podendo ser julgadas pelos tribunais judiciais. Os princípios gerais de direito criminal são, naturalmente não apenas os princípios constitucionais garantidos, mas também os contidos na legislação penal comum, designadamente no Código Penal.

Assim, a liberdade de expressão estende-se também ao chamado “direito de opinião”, o qual obviamente se exerce mediante a exteriorização de juízos de valor.

Acresce que o direito de liberdade de expressão e o direito á honra e consideração são direitos de igual valência normativa. Estes valores não podem de forma alguma ser hierarquizados.

Ora, não restam dúvidas de que o arguido agiu no âmbito do seu direito de expressão e opinião; mais precisamente opinião sobre a actuação do assistente.

Pode verificar-se um conflito entre o direito de expressão e o direito á honra e consideração.

Para a resolução deste conflito deve prevalecer o princípio da concordância prática, bem como um critério de proporcionalidade. Trata-se aqui também da aplicação do princípio da ponderação de interesses, princípio ao qual se encontra imanente a ideia de proporção entre os valores em conflito e que domina soberanamente as normas que disciplinam as causas de justificação.

“Terá, pois, de respeitar-se a protecção constitucional dos diferentes direitos ou valores, procurando solução no quadro da unidade da Constituição, isto é, tentando harmonizar da melhor maneira os preceitos divergentes.

O princípio da concordância prática pressupõe que o conflito entre direitos nunca afecte o conteúdo essencial de nenhum deles. Não é possível, sob pena de falta de unidade constitucional, que possam colidir os conteúdos essenciais de dois direitos ou valores.

Por outro lado, o princípio da concordância prática não prescreve propriamente a realização óptima de cada um dos valores em jogo, em termos matemáticos. É apenas um método e um processo de legitimação das soluções que impõe a ponderação de todos os valores constitucionais aplicáveis, para que se não ignore algum deles, para que a Constituição seja preservada na maior medida possível” - cfr. Vieira de Andrade, “Os direitos fundamentais na Constituição Portuguesa”, pág. 222.

Ora, atendendo á jurisprudência mais recente, o direito de expressão na sua vertente de direito de opinião e de crítica, caso redunde em comportamento típico, pode e deve ter-se por justificado, desde que o agente não incorra na crítica caluniosa ou na formulação de outros juízos de valor aos quais subjaz unicamente a intenção de achincalhar - cfr. Ac. RC, CJ, 98, II, pág. 68.

As expressões em causa enquadram-se nos limites do direito de expressão. Não existem indícios do arguido ter intenção de achincalhar a pessoa do assistente nem o que disse se traduzir em qualquer crítica caluniosa.

Assim sendo, mesmo se o que disse o arguido fosse considerado ofensivo da honra ou consideração do assistente, sempre o arguido teria agido no exercício do seu direito de expressão. Recorrendo ao princípio da concordância prática supra referido, pode afirmar-se que as expressões do arguido não afectam o conteúdo essencial do direito á honra e consideração do assistente.


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Fica assim prejudicada a invocada agravação do crime pelo artigo 187 do Código Penal.

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Nestes termos e sem necessidade de mais considerações, decide-se proferir despacho de não pronúncia do arguido DG..., quanto á prática pelo mesmo do crime de difamação, previsto e punido pelos artigos 180, 182 e 187 do Código Penal.

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Conhecendo:
Questão suscitada:

- Existência de indícios da prática do crime.


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O despacho recorrido encontra-se bem elaborado e fundamentado, acerca do objectivo da instrução e decisão instrutória, não merecendo qualquer reparo.

O art. 308 do CPP manda pronunciar o arguido pelos factos respectivos, quando se tiverem recolhido indícios suficientes de que se verificam os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, ou seja, o juiz deve pronunciar quando se verificarem os elementos objectivos e subjectivos de um determinado tipo de crime, e nesse caso sim, deve enumerar os factos indiciados que preenchem esses requisitos.

Na instrução (incluindo a investigação em inquérito) ou são recolhidos indícios suficientes, ou seja, factos que demonstrassem a existência do elemento objectivo e subjectivo do crime e há despacho de pronuncia, ou não se apuram esses factos e o despacho será de não pronuncia.

Existência/inexistência de indícios suficientes:

Sendo "a instrução formada pelo conjunto dos actos de instrução - art. 289° n° 1- com vista "à comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou arquivar o inquérito " - art. 286°- logo que "encerrado o debate, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não pronúncia " - art. 307° n. ° 1, todos do CPP.

Aquele será proferido se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança - art. 308° n° 1 C. P. Penal.

No caso vertente está em causa a recolha de indícios, desde logo saber se os elementos apurados podem constituir o elemento objectivo e subjectivo do crime de injúria/difamação.

A lei define o que deve entender-se por tal noção (indícios), considerando a sua verificação, em consonância, aliás, com o citado art. 308º sempre que deles-(indícios)- resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, em julgamento, uma pena ou medida de segurança - art. 283° n° 2 CPP.

Luís Osório no seu Comentário ao Código de Processo Penal Português, IV, pág. 411 refere que "devem considerar-se indícios suficientes aqueles que fazem nascer em quem os aprecia, a convicção de que o réu poderá vir a ser condenado".

E, Figueiredo Dias in Direito Processual Penal, I, 133 escreve: tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência de indícios está contida a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final, só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios que estarão ao dispor do juiz na fase de julgamento e, por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação.

Assim que a acusação não deva ser proferida de forma apressada, precipitada, quiçá leviana, atentando-se que sujeitar alguém a julgamento pode acarretar, para além do normal incómodo, um vexame e até um estigma de ignomínia, porventura injustificável e que dificilmente se arreda da mente dos outros.

Considerações e argumentos estes que se encontram vertidos de forma clara, precisa e lúcida no Ac. Rel. Porto. de 20/10/93 in Col. Jurisp. Tomo IV, pág. 261: no juízo de quem acusa, como no de quem pronuncia, deverá estar sempre presente a defesa da dignidade da pessoa humana, nomeadamente a necessidade de protecção contra intromissões abusivas na sua esfera de direitos, mormente os salvaguardados na Declaração Universal dos Direitos do Homem e que, entre nós, se revestem de dignidade constitucional- (art. 3° daquela Declaração e art. 27° da Constituição da República Portuguesa).

E, por tal razão, prossegue o dito Aresto "que quer a Doutrina quer a Jurisprudência vêm entendendo que aquela possibilidade razoável de condenação é uma possibilidade mais positiva do que negativa; o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos nos autos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido, ou os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação do arguido ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição".

Passando ao caso dos autos, em sintonia com o decidido no despacho recorrido, temos como não suficientes os indícios recolhidos para haver uma submissão a julgamento.

Entende o recorrente que se infere dos factos provados a existência de elementos suficientes e sem que deixem a mínima dúvida razoável, de que o recorrido praticou o ilícito criminal que lhe imputa no requerimento de abertura da instrução, difamação (entendendo o Mº Pº que é injúria).

Os factos ocorreram durante um jogo de futebol e no final do mesmo.

Salienta o recorrente, conclusão C), o jogo decorreu sem problemas de maior, “tendo apenas havido algumas manifestações de desagrado, por parte do assistente e de todo o banco do B....”.

A expressão tida como injuriosa e imputada ao arguido é, “ando no futebol há 11 anos e quero-lhe dizer na cara o seguinte: Você é mau exemplo para os seus jogadores e para a sua equipa”. Expressão proferida depois de o recorrente, massagista do B.... ter interpelado o arguido, árbitro naquele jogo, questionando-o do motivo pelo qual tinha assinalado grande penalidade contra a sua equipa.

Os factos ocorreram pois, entre profissionais do futebol, habituados a polémicas semelhantes ou ainda mais graves. Quem assiste a jogos de futebol e, não necessita de ser ao vivo, sabe que assim é.

Porque é que as reacções do recorrente durante o jogo são “apenas manifestações de desagrado” e a expressão do arguido é injuriosa?

Dizer a alguém, directamente, que “é mau exemplo para os seus jogadores e para a sua equipa”, não sendo um elogio, também não é de considerar ofensa gravosa à honra e consideração pessoais do visado.

Raiando, ou quase arranhando as fronteiras da ofensa, temos que, objectivamente, aqueles factos ofensivos não são de molde a ter relevância penal e preencherem o tipo de crime, difamação ou injúria.

Penaliza o art. 180, n° 1 do CP a conduta de "quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo ".

Por seu turno, o art. 181, n° 1 do CP criminaliza a conduta de "quem injuriar outra pessoa, imputando-lhe factos, mesmo sob a forma de suspeita, ou dirigindo-lhe palavras, ofensivas da sua honra ou consideração ".

O crime de injúria (e a difamação mais não é que uma injúria “indirecta”), está inserido no capítulo dos crimes contra a honra, bem jurídico que o legislador penal quis proteger, reafirmando a importância que já lhe era dada pela Lei Fundamental (cfr. Artigo 26º da Constituição da República Portuguesa), sendo esta entendida como um aspecto da personalidade de cada indivíduo, que lhe pertence desde o nascimento apenas pelo facto de ser pessoa e radica na sua inviolável dignidade. Ora, a acção típica do crime contra a honra consiste numa manifestação de menosprezo que seja idónea para afectar tal bem jurídico nas circunstâncias concretas em que é utilizada. A conduta, para integrar o tipo legal, deve ser ainda adequada a produzir a ofensa nos bens jurídicos tutelados. A adequação das expressões para atingir o bem jurídico protegido deve ser feita, não de acordo com a susceptibilidade pessoal de quem quer que seja (o direito penal protege direitos fundamentais dos cidadãos e não particularidades deste ou daquele sujeito), mas sim tendo em conta a dignidade individual a que todos têm direito (dependente no entanto das diferenças no significado das expressões de região para região ou do local onde são proferidas, sem olvidarmos in casu que foram proferidas num estádio de futebol e após a realização de um jogo, tendo o recorrente, massagista de uma das equipas, interpelado o arguido, arbitro, por um penalty marcado contra a sua equipa e, este responder com aquela expressão).

É entendimento doutrinal e jurisprudencial, cremos que uniforme, que a honra é um bem jurídico complexo, que abrange tanto o valor que cada ser humano tem por si, como a sua reputação ou consideração exteriores. Cfr. Prof. Faria Costa, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 607.

"O bem jurídico honra traduz uma presunção de respeito, por parte dos outros, que decorre da dignidade moral da pessoa, o seu conteúdo é constituído basicamente, por uma pretensão de cada um ao reconhecimento da sua dignidade por parte dos outros. Sem a observância social desta condição, não é possível à pessoa realizar os seus planos de vida e os seus ideais de excelência na multiplicidade de contextos e relações sociais em que intervém,

Esse bem jurídico-constitucional assim delineado apresenta um lado individual (o bom nome) e um lado social (a reputação ou consideração) fundido numa pretensão de respeito que tem como correlativo uma conduta negativa dos outros; é ao fim e ao cabo, uma pretensão a não ser vilipendiado ou depreciado no seu valor aos olhos da comunidade" (Augusto Silva Dias, in " Alguns Aspectos do Regime Jurídico dos Crimes de Difamação e de Injúrias", ADFDL, 1989, pg. 17/18).

Importa, ainda, na esteira dos ensinamentos de Leal Henriques e Simas Santos (in Código Penal Anotado), referir que nos crimes em análise, não se protege a susceptibilidade pessoal de quem quer que seja, mas apenas a dignidade individual da pessoa, sendo uma das suas características a da sua relatividade, o que significa que o carácter injurioso ou difamatório de determinada palavra ou acto é fortemente dependente do lugar ou ambiente em que ocorre, das pessoas entre quem ocorre, do modo como ocorre.

Em todas as comunidades, há um sentido comum das regras de comportamento que devem nortear cada pessoa na sua convivência com as demais, sob pena de não ser possível a vida em sociedade.

Traduzem-se essas regras num mínimo de respeito ético, cívico e social, mínimo esse que não se confunde, porém, com cortesia ou com educação, pelo que os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito, consabido que o Direito Penal não se destina a proteger as pessoas face a meras impertinências (cfr. Ac. RC de 2/3/2005, Proc. n° 296/05, inwww.dgsi.pt).

Diz-se, ainda, no mesmo Acórdão da RC, referindo-se aos ensinamentos de Costa Andrade sobre o direito de crítica objectiva, que: "se devem considerar (penalmente) atípicos os juízos de apreciação e de valoração crítica vertidos sobre realizações científicas, académicas, artísticas, profissionais, etc., ou sobre prestações conseguidas nos domínios do desporto e do espectáculo, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, às realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores, posto que não atingem a honra pessoal do cientista, do artista ou desportista, etc., nem atingem a honra com a dignidade penal e a carência de tutela penal que definem e balizam a pertinente área de tutela típica.

Mais entende que a atipicidade da crítica objectiva pode e deve estender-se a outras áreas, aqui se incluindo as instâncias públicas, com destaque para os actos da administração pública, as sentenças e despachos dos juízes, as promoções do Ministério Público, as decisões e o desempenho político de órgãos de soberania como o Governo e o Parlamento.

(…)

No entanto, esclarece que a atipicidade já não poderá sustentar-se para os juízos que atingem a honra pessoal e a consideração pessoal, perdendo todo e qualquer ponto de conexão com a prestação ou obra que, em princípio, legitimaria a crítica objectiva, nem para os juízos de facto feitos num contexto de uma valoração crítica objectiva, a menos que pressuposta a prova da verdade, o que significa que só se deverão ter por atípicos os juízos de facto ofensivos em que a verdade do facto ou factos em que os mesmos assentam é evidente ou notória ou se mostra já demonstrada”.

Quanto ao elemento subjectivo do crime, é também entendimento unânime que basta o dolo genérico, em qualquer das suas formas (directo, necessário ou eventual), bastando que o agente, ao realizar voluntariamente a acção, tenha consciência da capacidade ofensiva das palavras ou expressões, não se exigindo qualquer motivação especial.

"O dolo - ou o nível de representação ou de reconhecimento que a sua afirmação supõe sob um ponto de vista fáctico - pertence, por natureza, ao mundo interior do agente, razão pela qual apenas se poderá tornar conhecido, na hipótese de não ser revelado pelo próprio, caso possa ser inferido através da consideração de um determinado circunstancialismo objectivo com idoneidade suficiente para revelá-lo " - Proc. n° 8665/2004-9, in www.dgsi.pt.

A vida democrática em sociedade pressupõe a liberdade dos cidadãos de criticar e discordar das decisões das instâncias públicas ou privadas, as quais estão, por conseguinte, sujeitas ao escrutínio do direito de crítica objectiva.

Segundo o Prof. Costa Andrade (in "Liberdade de Imprensa e Inviolabilidade Pessoal", Coimbra Editora, 1996, pg. 232 e ss.), na medida em que a liberdade de expressão não ultrapasse o âmbito da crítica objectiva - isto é, enquanto a valoração e censura críticas se atêm exclusivamente às obras, realizações ou prestações em si, não se dirigindo directamente à pessoa dos seus autores ou criadores - os juízos de valor formulados cairão fora da tipicidade das incriminações como a difamação ou a injúria.

Ainda segundo o mesmo autor, a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da "verdade" das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem-fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, não exigindo do crítico, para tomar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva.

As expressões imputadas ao arguido se bem que proferidas num tom e de um modo manifestamente inadequados às circunstâncias, correspondem ainda ao exercício do direito de crítica objectiva. São juízos de valor sobre actuações do assistente no âmbito das suas funções no âmbito da equipa do B.... e não propriamente sobre a pessoa.

Salvo o devido respeito, parece-nos que a expressão proferida pelo arguido não é objectivamente ofensiva para a honra e consideração do assistente, nem é questão pessoal.

Há que reconhecer e admitir que no direito nada é absoluto, que possa haver diversa interpretação da lei, ainda que se esteja convicto do acerto da nossa decisão.

A actuação do arguido, no que a esta expressão concerne, moveu-se (com ou sem razão, não interessa para o caso) no âmbito do direito de defesa pessoal e por ter sido interpelado e direito de crítica às expressões de desagrado proferidas pelo assistente, não podendo, desta forma, ser considerado crime.

Trata-se, assim, de uma crítica, porventura imerecida e injusta, à actuação do assistente no decorrer do jogo e não propriamente à pessoa do assistente.

Conclui-se, pois, que, muito embora a conduta do arguido tivesse sido infeliz e indelicada, não constitui indícios de qualquer ilícito criminal.

O arguido embora tenha formulado juízos de valor negativos sobre a actuação do assistente, fê-lo sempre por factos relacionados com a actividade profissional do mesmo, em momento algum incidindo tais juízos e críticas sobre a pessoa do assistente, não incorrendo, pois, a nosso ver, em crítica pessoal, e muito menos em crítica caluniosa ou em juízos que exclusivamente revelem o propósito de rebaixar ou humilhar o assistente. Daí que nos parece correcto o entendimento assumido pela M.mº Juiz de considerar atípicas as críticas que o assistente entende terem ofendido a sua honra e consideração - cfr ., no sentido defendido, o acórdão do STJ de 7-3-2007, processo n° 07P440, transcrito em www.dgsi.pt.

De facto, se unanimemente vem sendo entendido que nem todo o facto que envergonha, perturba ou humilha é injurioso ou difamatório, "... tudo dependendo da «intensidade» da ofensa ou perigo de ofensa" - cfr. Oliveira Mendes, in O Direito à Honra e a Sua Tutela Penal, 37 -, mais relevantemente cumpre considerar a natureza subsidiária do direito penal, decorrente do princípio da necessidade enquanto matriz orientadora em matéria de direitos fundamentais, e erigida esta a princípio jurídico-constitucional, com assento no preceito geral contido no art. 18°, nº 2 da Lei Fundamental.

Decorrendo de tal natureza subsidiária um princípio de intervenção mínima do direito penal, ou ultima ratio da intervenção da jurisdicidade, significa isso que não deve tal intervenção ocorrer quando seja possível proteger o bem jurídico – com idêntica ou superior eficácia - através de distintas e menos onerosas intervenções tutelares - neste mesmo sentido vide Faria Costa, Comentário Conimbricence do CP , 1-683

Analisados os elementos recolhidos quer no decurso do Inquérito quer durante a Instrução, não foram recolhidos indícios a partir dos quais e, com razoabilidade, possamos referir que o arguido proferiu a expressão que lhe é imputada, com o intuito de ofender o assistente na sua honra e consideração e que, em julgamento, por tais factos, lhe possa vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança, pela prática do crime de injúria ou difamação.

Injúria (e a difamação não é senão uma forma de injúria “indirecta”) é a manifestação, por qualquer meio, de um conceito ou pensamento que importe ultraje, menoscabo, ou vilipêndio contra alguém, dirigida, tal manifestação, ao próprio visado. Com a incriminação de manifestações conducentes a tal resultado pretende-se salvaguardar, prevalentemente, a chamada honra subjectiva, ou seja, o sentimento da própria honorabilidade ou respeitabilidade pessoal - cfr. Nelson Hungria, citado no Ac. da RL de 26.10.00, in CJ, IV-154. A injúria não se pode confundir com a mera indelicadeza ou mesmo com a grosseria, como se nos afigura ser o caso agora em análise: efectivamente, a expressão proferida não ultrapassa o nível discursivo da indelicadeza ou grosseria, apta a qualificar pejorativamente quem a produziu, mas inócua para atingir as referenciadas honorabilidade ou respeitabilidade de quem a ouviu.

Por isso que, não atingindo as palavras em apreço o âmbito normativo do tipo legal em apreço, ou por outras palavras por não se nos afigurar conduta juridico-penalmente relevante, ou seja, por não constituir crime, deve improceder o recurso e manter-se a decisão.

Como salienta o Cons. O. Mendes in ob. cit. pág. 38, “há um consenso na generalidade das pessoas sobre o que razoavelmente se não deve considerar ofensivo…Há um sentir comum em que se reconhece que a vida em sociedade só é possível se cada um não ultrapassar certos limites na convivência com os outros”.

Mas como salienta o mesmo autor, ob. cit. pág. 39, “os comportamentos indelicados, e mesmo boçais, não fazem parte daquele mínimo de respeito”, mas “efectivamente, o direito penal, neste particular, não deve, nem pode proteger as pessoas face a meras impertinências”.

É certo que como escreveu o prof. Beleza dos Santos in RLJ, 92-168, “não deve considerar-se ofensivo da honra e consideração de outrem, aquilo que o queixoso entende que o atinge, de certos pontos de vista, mas aquilo que razoavelmente, isto é, segundo a sã opinião da generalidade das pessoas de bem, deverá considerar-se ofensivo daqueles valores individuais e sociais”.

Como refere o Ac. desta Relação, de 06-01-2010, in Col Jurisp. tomo 1, pág. 42, “a ofensa à honra e consideração, no sentido pressuposto pelas normas que lhe conferem tutela penal não é susceptível de confusão com a ofensa às normas de convivência social ou com atitudes desrespeitosas ou mesmo grosseiras ainda que direccionadas para pessoa identificada”.

Como se refere neste mesmo aresto, não tendo as expressões proferidas pelo arguido “a virtualidade de causar dano à honra do assistente em qualquer das vertentes tuteladas”, não há necessidade de maior indagação, nomeadamente quanto à verificação do elemento subjectivo do tipo.

Na medida em que as expressões imputadas ao arguido, apesar de censuráveis do ponto de vista moral, não assumem relevância penal, inútil se revela a tarefa de apreciação das demais questões suscitadas no recurso, uma vez que claudica a própria possibilidade de imputar ao arguido uma actuação relevante do ponto de vista do direito criminal”.

Assim, temos que se deve julgar improcedente o recurso, mantendo-se a decisão de não pronúncia.


*

Decisão:

Pelo que exposto ficou, acordam nesta Relação e Secção Criminal, em julgar improcedente o recurso interposto pelo assistente JC…, e em consequência, mantém-se integralmente a decisão recorrida de não pronúncia.

Custas pelo recorrente com taxa de justiça de 4 Ucs.

Jorge Dias (Relator)
Féliz Almeida