Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
131/18.0GBNLS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA JOSÉ NOGUEIRA
Descritores: CRIME DE ABUSO E SIMULAÇÃO DE SINAIS DE PERIGO
CRIME DE INJÚRIA AGRAVADA
GUARDA PROVISÓRIO
ORDEM DE PARAGEM
CRIME DE RESISTÊNCIA E COAÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO
PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR VEÍCULOS COM MOTOR
Data do Acordão: 05/10/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE VISEU – JUÍZO CENTRAL CRIMINAL DE VISEU – JUIZ 1
Texto Integral: N
Meio Processual: RECURSO DECIDIDO EM CONFERÊNCIA
Decisão: CONCEDIDO PROVIMENTO PARCIAL AO RECURSO
Legislação Nacional: ARTIGOS 69.º, N.º 1, ALÍNEAS A) E C), 132.º, N.º 2, ALÍNEA L), 181.º, 184.º, 306.º E 347.º, N.º 2, DO CÓDIGO PENAL
ARTIGO 6.º, N.º 5, DO DECRETO-LEI N.º 30/2017, DE 22 DE MARÇO
Sumário: I – Com o crime de abuso e simulação de sinais de perigo o legislador tutela a ordem e o bom funcionamento das formas de auxílio público em situações de perigo, consistindo a proibição na criação dolosa da ideia falsa de que a intervenção é necessária.

II – No que ao tipo objetivo de ilícito respeita, o legislador faz equivaler “sinal ou chamada de alarme ou de socorro”, que “podem ser definidos como “expressões percetíveis, acústicas ou óticas, que chamam a atenção de alguém para a existência de uma situação de necessidade ou de perigo e para a necessidade de ajuda alheia”.

III – Fazer crer simuladamente que é necessário auxílio alheio em virtude de desastre, perigo ou situação de necessidade é “fazer alguém tomar como certo algo que é contrário à própria convicção do persuasor”, caso em que o agente “provoca noutra pessoa o convencimento de que a sua ajuda é necessária em virtude de desastre, perigo ou situação de necessidade coletiva, sabendo que o não é”.

IV – Uma chamada telefónica, efectuada às 2h40, para o Posto Territorial da GNR, solicitando a presença “urgente” de uma patrulha, dando conta de estarem a ocorrer desacatos no interior de estabelecimento de diversão noturna, e que determinou, num primeiro momento, a deslocação ao local de uma patrulha às ocorrências, à qual, via rádio, foi transmitido o teor da dita chamada, e, num segundo momento, a deslocação de uma outra patrulha, de diferente posto, accionada como reforço da primeira, induz inequivocamente a situação de «perigo».

V – Guarda provisório integra a categoria de militar da GNR porque corresponde a uma das designações dos guardas da GNR.

VI – O crime de injúria cometido contra guarda provisório da GNR, devidamente uniformizado e que integre uma patrulha da GNR, é agravado, nos termos dos artigos 184.º e 132.º, n.º 2 alínea l) do Código Penal.

VII – A expressão “hei-de vos foder”, dirigida aos militares da GNR, em clima de grande exaltação e agressividade e dita na sequência de uma tentativa de investida contra o comandante do posto, integra o elemento objetivo do crime de ameaça.

VIII – Resulta inequívoca a ordem de paragem na situação em que um militar, equipado com colete reflector, posicionado na faixa de rodagem, manuseia o bastão reflector de forma cadenciada, elevando-o e baixando-o.

IX – O crime de resistência e coação sobre funcionário, na modalidade do n.º 2, do artigo 347.º do Código Penal, não integra nenhum dos ilícitos típicos contemplados nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 69.º do mesmo diploma.

Decisão Texto Integral:
Relatora: Maria José Nogueira
1.ª Adjunta: Isabel Valongo
2.ª Adjunto: Jorge França

Acordam em conferência os juízes na 5.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra

I. Relatório

1. … por acórdão de 20.04.2022 o Coletivo de juízes deliberou [transcrição do dispositivo]:

1. Absolver o arguido AA da prática, em autoria material e em concurso efetivo, de:

- um crime de ofensa a organismo, serviço ou pessoa pública, p. e p. pelo art. 187.º, n.º 1 do Código Penal;

- cinco crimes de injúria agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 181.º, n.º 1 e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal (de que seriam visados BB, CC, DD, EE e FF);

- seis crimes de ameaça agravada, p. e p. pela disposições conjugadas dos art.ºs 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, alíneas a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal (de que seriam visados GG, CC, DD, EE, HH e FF);

2. Condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material e concurso efetivo, de:

a) um crime de abuso e simulação de sinais de perigo, p. e p. pelo art. 306.º do Código Penal (praticado em 05/07/2018), na pena de 3 (três) meses de prisão;

b) quatro crimes de injúria agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 181.º, n.º 1 e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal (praticado em 05/07/2018 sobre II e JJ – ponto 5 – e KK e LL – ponto 8), na pena de 2 (dois) meses e 15 (quinze) dias de prisão, por cada um deles;

c) dois crimes de injúria agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 181.º, n.º 1 e 184.º, por referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l) do Código Penal (praticado em 10/07/2018 sobre DD e FF – ponto 12), na pena de 3 (três) meses de prisão, por cada um deles;

d) quatro crimes de ameaça agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, als. a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l) do Código Penal (praticados em 05/07/2018 sobre MM, KK, LL e NN), na pena de 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles;

e) cinco crimes de ameaça agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, als. a) e c), por referência ao artigo 132.º, n.º 2, al. l) do Código Penal (praticados em 10/07/2018 sobre GG, NN, FF, HH e DD), na pena de 6 (seis) meses de prisão, por cada um deles;

f) um crime de ameaça agravada, p. e p. pelas disposições conjugadas dos art.ºs 153.º, n.º 1, e 155.º, n.º 1, al. a) do Código Penal (praticados em 12/10/2018 sobre OO), na pena de 10 (dez) meses de prisão;

g) um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347.º, n.º 2 do Código Penal (praticado em 01/01/2019), na pena de 2 (dois) anos de prisão;

Em cúmulo jurídico das penas parcelares acima referidas em a) a f), condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 8 (oito) meses de prisão.

Mais se decide suspender na sua execução a pena de prisão por igual período (4 anos e 8 meses), sujeitando tal suspensão:

- à obrigação de o arguido entregar, no prazo de 4 anos, a quantia global de € 4.200,00 (quatro mil e duzentos euros) a instituição de solidariedade social à sua escolha com sede na área de competência desta comarca, comprovando nos autos, o pagamento de quantia semestral não inferior a € 525,00;

- a regime de prova, assente num plano individual de readaptação social, a delinear pela Direção-Geral de Reinserção Social e Serviços prisionais.

3. Condenar o arguido AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, pelo período de 6 (seis) meses, devendo, para o efeito, proceder à entrega da carta de condução na Secretaria deste tribunal ou em qualquer posto policial, no prazo de 10 (dez) dias, após o trânsito em julgado da presente decisão, sob a cominação de desobediência.

4. Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização civil deduzido pelo assistente OO e, em consequência, condenar o arguido AA, no pagamento àquele da quantia de € 1.500,00 (mil e quinhentos euros), a título de indemnização por danos não patrimoniais, acrescida de juros vincendos, até efetivo e integral pagamento.

(…).

2. Inconformado com a decisão recorreu o arguido, extraindo as seguintes conclusões:

1. QUANTO AO CRIME DE ABUSO E SIMULAÇÃO DE SINAIS DE PERIGO,

2. O Recorrente impugna os pontos 1 a 3, 18 a 20 dos factos provados, por entender que deveriam constar como não escritos e constar dos factos não provados pelos motivos que se passam a expor:

3. O termo “desacato” não se encontra descrito nem tampouco devidamente concretizado na matéria de facto da douta sentença; estamos perante um conceito indeterminado que, por si só, não pode preencher o elemento objetivo, é, pois, um elemento atípico, não se encontra legalmente tipificado no artigo 306º do Código Penal.

4. Não constando dos factos provados um circunstancialismo correspondente a uma situação de desastre, perigo ou necessidade coletiva, não podia o tribunal a quo dar como preenchido o segmento tipo objetivo do crime de abuso e simulação de perigo, como deu.

5. O arguido foi condenado, tal qual vinha acusado, pela prática de um crime de abuso e simulação de sinais de perigo, p. e p. pelo artigo 306º do Código Penal.

6. Trata-se de um crime de perigo abstrato por não ser necessário que se tenha verificado um resultado.

7. Neste tipo de crime, para preenchimento do elemento objetivo é essencial a existência de um desastre, perigo ou situação de necessidade coletiva – elementos típicos descritos de forma taxativa.

9. O mesmo se diz em relação à situação de perigo alegada na douta sentença, no enquadramento jurídico de direito correspondente ao crime aqui em discussão, quando é referido que o arguido acionou uma chamada de auxílio, dando conta de uma situação de perigo (decorrente de alegados desacatos no interior de um estabelecimento de diversão noturna).

10. Acontece que, em parte alguma dos factos dados como provados se refere ou caracteriza uma situação de perigo por parte do arguido, que não se extrai, nem nunca se pode extrair, necessariamente da expressão utilizada “desacatos”.

12. Trata-se de um vício da decisão recorrida previsto no artigo 410º, nº 2, al. a) e c) CPP, por insuficiência da matéria de facto e erro na apreciação da prova para se concluir pela verificação do segmento objetivo do tipo relativo ao desastre, perigo ou situação de necessidade coletiva, já que havendo-se como não escrito o conceito genérico e indeterminado levado aos factos provados sob os pontos 1 a 3, falta o correspondente suporte factual para o enquadramento jurídico correspondente, inquinando concomitantemente a conclusão do ponto18 a20 dos factos provados. Tudo isto resulta do próprio texto da decisão recorrida.

13. Não estando preenchido o elemento tipo objetivo nem subjetivo, não pode o aqui recorrente ser condenado, pelo que deve ser absolvido da prática do crime de abuso e simulação de sinais de perigo.

14. Ademais, o recorrente convoca ainda erro notório na apreciação da prova e insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, por ter sido dada como provada a factualidade vertida nos sobreditos pontos, olvidando que os vícios contemplados na citada disposição normativa são vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correta, compreensível e conforme à lei.

16. Decorre da fundamentação da matéria de facto dada como provada, assumiu especial credibilidade para o Tribunal o depoimento do militar da GNR MM, do militar Guarda KK e do depoimento do militar LL, tendo o Tribunal a quo dado “merecida credibilidade – por se tratar da única com sustentação lógica – a versão trazida aos autos pelos elementos da GNR, ao referir que chegados ao local, tudo estava calmo, e o arguido se limitou a referir que apenas pretendia convidá-los para tomarem um copo”; Em detrimento com as declarações prestadas pelo arguido e pela testemunha de defesa PP – que afirmaram que existiram desacatos, tanto é que o recorrente ligou por duas vezes para o Posto Territorial ..., a primeira às 2h40m e a segunda às 2h50, conforme decorre do aditamento ao auto de notícia – vide fls. 4, 7 e 8, teor corroborado pelo militar NN e da motivação da douta sentença – chamada que não consta nem da acusação nem dos factos provados o que constitui um vício para a decisão da matéria de facto, que aqui se invoca nos termos e para os devidos e legais efeitos.

17. Lógico será concluir que se não tivessem havido quaisquer desacatos, não teria o recorrente insistido e ligado duas vezes para o Posto Territorial ..., como fez, versão totalmente corroborada pelo depoimento da Testemunha PP que se encontrava na zona da pista do bar.

18. Refere a Meritíssima Juiz na douta sentença que não existiram desacatos, concluindo, a nosso ver erradamente, que a existirem, a testemunha PP se teria aproximado de imediato do arguido, bem como QQ se teria apercebido da situação. Refere ainda que, em última análise certamente os alegados desacatos teriam sido depois relatados aos elementos da GNR.

19. Em primeiro lugar, a probabilidade de uma qualquer pessoa se aproximar de desacatos impulsionados num bar por um indivíduo que se encontra alcoolizado é de facto muito baixa. Em segundo lugar, a testemunha QQ no decorrer do seu depoimento referiu que se encontrava sentado na esplanada juntamente com outras pessoas, eventualmente com música alta, razão pela qual não se apercebeu dos desacatos ocorridos. Em terceiro lugar, os desacatos foram devidamente relatados pelo aqui recorrente aos elementos da GNR, conforme constam das declarações do recorrente.

20. Sucede que, o alegado fundamento de sustentação lógica invocado na douta sentença terá também de estar sempre aliado à coerência, integridade e enquadramento da totalidade da prova produzida, in casu, dos depoimentos, o que não aconteceu no caso concreto.

23. A decisão recorrida, nos pontos 1 a 4º dos factos provados que se impugna, contém erro quanto à matéria de facto. A prova produzida não permite concluir que o arguido praticou os factos pelos quais foi condenado.

25. Daqui resulta que estamos perante um vício previsto na alínea c) do nº 2 do artigo 410º do CPP, um erro notório na apreciação da prova.

26. Devendo os pontos 1 a 4 dos factos provados constar dos factos não provados pelas razões invocadas.

27. Não pode deixar de considerar, a aqui recorrente, que não foi respeitado o princípio in dubio pro reo.

28. No que aos CRIMES DE INJÚRIA AGRAVADA E AMEAÇA AGRAVADA Os Srs. FF e LL, pelo menos à data dos factos que invocam, não se enquadravam naquelas pessoas previstas na referida al. l) do nº 2 do artigo 132º do Código Penal, pelo facto de à data dos factos eram meros candidatos admitidos ao curso de formação de guardas. Ambos não se constituíram assistentes nos presentes autos nos prazos para o efeito, há muito ultrapassados. Consequentemente, não tinham legitimidade para estar em juízo na qualidade de partes/Assistentes, nem os factos por si alegados deveriam ter sido objeto de apreciação em juízo, devendo os factos correspondentes a estes Guardas Provisórios e vertidos na acusação serem tidos como não escrito, não podendo o arguido ser condenado pela prática dos crimes de injúria e ameaça agravada correspondentes, não podendo os mesmos proceder, o que expressamente se invoca, razão pela qual se impugnam os factos provados 2, 3, 8 e 12 - vício da decisão recorrida e erro notório na apreciação da prova previsto no artigo 410º, nº 2, al. a) e c) do CPP, por insuficiência da matéria de facto, que aqui se invoca nos termos e para os devidos e legais efeitos. – Sem prescindir, impugna-se a matéria de direito, nos termos do artigo 412º, nº 2, quanto ao preenchimento do tipo objetivo base da ameaça, prevista no artigo 153º, nº 1 CP, quanto aos factos provados correspondentes ao ponto 12.

29. Atenta a moldura penal do crime de injúria agravada e o disposto no art.118.º, n.º1, alínea d), do Código Penal, este crime prescreve no prazo de 2 anos; Com a constituição de arguido, no dia 10 de Abril de 2019 ocorreu causa de interrupção do procedimento criminal, pelo que a partir desse momento recomeçou a contagem do prazo de prescrição de 2 anos, até ao limite de 3 anos por força do disposto no art.121.º, n.º3 do Código Penal. Não ocorrendo qualquer causa de suspensão, o crime já há muito que se encontra prescrito, razão pela qual deve o arguido ser absolvido da prática destes crimes.

30. Quanto ao crime DAS AMEAÇAS AGRAVADAS ALEGADAMENTE PRATICADOS NO DIA 05.07.2018

31. Visto o ponto 26 dos factos dado como provados conclui-se que apesar da referência ao elemento cognitivo (“bem sabendo”), nenhuma ali se vê feita ao elemento volitivo do dolo - vício, que salta à vista no texto da decisão ora recorrida, configura claramente uma insuficiência da matéria de facto para a decisão proferida, nos termos do artigo 410º, nº 2, al. a) e c), já que os factos dados como provados não suportam o enquadramento jurídico do tipo subjetivo de ameaça, por falta daquele elemento volitivo do dolo quanto à adequação da expressão “hei-de vos matar” para provocar medo ou inquietação futura, impugnando também a matéria de direito, nos termos do artigo 412º, nº 2 do CPP, quanto ao preenchimento do tipo subjetivo da ameaça correspondente ao ponto 26 dos factos provados, por falta daquele elemento volitivo do dolo - não se pode dizer que o arguido tenha incorrido na prática do crime de ameaça.

32. DOS CRIMES ALEGADAMENTE PRATICADOS NO DIA 10.07.2018

33. Ora, o facto 12 dado como provado, designadamente a expressão “hei-de vos foder” não é um verdadeiro facto. Mas antes matéria exclusivamente conclusiva (conclusões de facto) de onde, assim, nada de concreto poderemos extrair ou rebater.

34. A expressão usada “hei-de vos foder” é uma expressão genérica, conclusiva e não um verdadeiro facto. É pois, uma expressão vaga, imprecisa e indeterminada, não concretizada, nem caraterizada minimamente.

35. O arguido não concretizou a ameaça, o anúncio ou qualquer mal futuro – não se encontrando preenchido o elemento objetivo do tipo legal do crime de ameaça, razão pela qual essa expressão não deveria constar sequer dos factos provados, devendo dar-se esse facto como não escrito.

36. Trata-se de um vício da decisão recorrida previsto no artigo 410º, nº 2, al. a) e c) CPP, por insuficiência da matéria de facto e erro na apreciação da prova para se concluir pela verificação do segmento objetivo do tipo (artigo 153º do CP), já que havendo-se como não escrito o conceito genérico e indeterminado levado aos factos provados sob o ponto 12, falta o correspondente suporte factual  para o enquadramento jurídico correspondente, inquinando concomitantemente a conclusão do ponto 29. Tudo isto resulta do próprio texto da decisão recorrida.

37. Sem prescindir, sustenta ainda o arguido que a factualidade assente não permite configurar aprática do crime de ameaça agravada, pois que não estamos perante um mal (ameaçado) futuro (quando muito iminente), e falta o elemento volitivo (a vontade do agente).

38. Para se saber se estamos perante o anúncio de um “mal futuro” que se projeta na liberdade de ação e de decisão futura (visando, portanto, o agente limitar ou coartar a liberdade pessoal do visado) ou antes diante de um “mal iminente” é fundamental a contextualização da situação e uma análise da conduta na sua globalidade.

39. No caso em apreço, não existe sequer qualquer mal anunciado pelo arguido, as palavras “hei-de vos foder a todos” – do ponto 12 dos factos provados – é uma expressão que não é de todo adequada a provocar no seu destinatário sentimentos de receio pela sua integridade física e pela vida.

40. No contexto, circunstâncias e motivação em que a expressão “hei – de vos foder” foi proferida, esta reporta-se quando muito ao anúncio de um mal imediato, apresentado como resultado do desafio para que todos e cada um dos militares presentes foram convocados pelo arguido – a este propósito refira-se que duvida-se da presença do militar NN no Posto da GNR no dia 10 de Julho de 2018, pois quando prestou o seu depoimento (tanto no posto da GNR em ... no dia 20.11.2018 – cfr auto a fls. 64 a 67 – como no dia 23.11.2021 na audiência de julgamento referiu que nesse dia estava no Posto a elaborar um aditamento ao auto de notícia do processo 131/08...., a fls 7 e 8 dos presentes autos.

41. Vícios, que se observa na simples leitura do texto da decisão recorrida, configuram claramente um erro notório na apreciação da prova ou uma insuficiência da matéria de facto para a decisão proferida, nos termos do artigo 410º, nº 2, alíneas a) e c). Sem prescindir, impugna-se a matéria de direito, nos termos do artigo 412º, nº 2, quanto ao preenchimento do tipo objetivo base da ameaça, prevista no artigo 153º, nº 1 CP, quanto aos factos provados correspondentes ao ponto 12.

43. Quanto ao CRIME DE AMEAÇA ALEGADAMENTE PRATICADO NO DIA 12.10.2018

44. O ponto 17 dos factos provados deveria antes constar dos factos não provados, porquanto, analisada a prova produzida, verifica-se que o depoimento do assistente OO e da testemunha RR se revela contraditório. Questionado o assistente de quem lhe comunicou e quando a alegada ameaça, o mesmo referiu ter sido o militar SS – que nem sequer foi arrolado como testemunha da acusação. Ao invés, o militar RR disse ter sido ele a comunicar ao assistente as alegadas expressões proferidas e que o mesmo ficou bastante transtornado – vício que configura um erro na apreciação da prova, nos termos do artigo 410º, nº 2, alínea c), que desde já se invoca.

45. Visto o ponto 31 dos factos dado como provados conclui-se que o mesmo ficou aquém, na descrição do dolo de ameaça, dos elementos integradores deste, já que apesar da referência ao elemento cognitivo (“bem sabendo”), nenhuma ali se vê feita ao elemento volitivo do dolo, configurando uma insuficiência da matéria de facto para a decisão proferida, nos termos do artigo 410º, nº 2, al. a). Sem prescindir,

48. Entende o recorrente que não se encontra preenchido o elemento subjetivo do tipo, uma vez que os elementos do dolo estão em falta. Dizer-se que o arguido sabia que o teor ia ser transmitido àquele, o que quis, é estarmos perante um verdadeiro e evidente juízo opinativo, sem explicação circunstanciada que conduz à conclusão ou silogismo pretendido a partir dos factos objetivos imputados ao arguido, razão pela qual se impugnam também o ponto 17 (no seu segmento final “… e convicto e certo de que o teor das suas expressões seria transmitido àquele militar da GNR, como sucedeu”) e 31 dos factos provados, de que o arguido sabia que estava convicto e certo de que a alegada expressão por si utilizada seria transmitida ao assistente OO.

49. Sendo um raciocínio bastante precipitado e duvidoso, não pode deixar de considerar, a aqui recorrente, que não foi respeitado o princípio in dubio pro reo. Mesmo que não se reconheça a verificação deste vício previsto na alínea a) do nº 2 do artigo 410º CPP, impugna-se a matéria de direito, nos termos do artigo 412º, nº 2 do CPP, quanto ao preenchimento do tipo subjetivo da ameaça correspondente aos pontos 31 dos factos provados, por falta daquele elemento volitivo do dolo.

50. Quanto ao CRIME DE RESISTÊNCIA E COAÇÃO SOBRE FUNCIONÁRIO

51. O facto 15 dado como provado não é um verdadeiro facto. Mas antes matéria exclusivamente conclusiva (conclusões de facto) de onde, assim, nada de concreto poderemos extrair ou rebater.

52. A expressão usada “ordem de paragem” é uma expressão genérica, conclusiva e não um verdadeiro facto. Dizer-se ordem de paragem ou sinal de paragem que é a expressão do tipo é vago, impreciso e indeterminado.

53. O tribunal a quo não concretizou como é que o militar fez a ordem de paragem, não concretizando essa dita ação/ordem, não materializou a ação do agente que no entender do douto Tribunal se traduz numa ordem de paragem.

54. A descrição constante do ponto15 dos factos provados relativa à ação do militar GG não configura por si só qualquer ordem de paragem - Não decorrendo do Regulamento de Sinalização do Transito a previsão expressa da utilização de bastões luminosos, como se reconhece na própria decisão recorrida, não pode ver-se nesta a materialização de uma alegada ordem de paragem que nos termos regulamentares (artigo 103º, al. a) do Decreto Regulamentar 22-A/98, de 1 de Outubro, apenas poderá ser realizada e interpretada como tal pelos agentes de autoridade e pelos condutores com o levantamento do braço na vertical e a palma da mão virada para a frente.

55. Não constando dos factos provados que o militar GG tenha levantado o braço na vertical e virado a palma da mão para a frente, não podia o tribunal a quo concluir pela existência de uma ordem de paragem, tivesse ele utilizado ou não qualquer bastão luminoso - Trata-se, mais uma vez, de um vício da decisão recorrida previsto no artigo 410º, nº 2, al. a e c) CPP, por insuficiência da matéria de facto,

56. Falta o correspondente suporte factual para o enquadramento jurídico correspondente, inquinando concomitantemente a conclusão do ponto 30 quanto à alegada intenção do arguido de impedir a realização da interceção e fiscalização alegadamente pretendidas pelo militar da GNR.

57. Como resulta do texto da decisão recorrida um claro erro notório na apreciação da prova (artigo 410º, nº 2, alínea c) já que nenhuma prova designadamente testemunhal, ali se refere como produzida no sentido deste militar GG ter levantado o braço na vertical e virado a palma da mão para a frente.

58. O mesmo erro notório na apreciação da prova ocorre quanto ao facto dado como provado no ponto 15, segundo o qual o arguido guinou o veículo na direção do militar, vício esse que decorre do texto da decisão recorrida (artigo 410º, nº 2, alínea c), já que nenhuma prova designadamente testemunhal, ali foi produzida no sentido do arguido ter alterado sequer a trajetória do veículo para desse modo conseguir prosseguir a marcha na direção do militar.

59. Entre o facto que deu como provado no ponto 15 (guinando-o na direção do militar) e a única prova aduzida a esse respeito, na circunstância da testemunha TT, que a decisão recorrida afirma ter dito o arguido não ter desviado a direção do veículo - circunstância ferida de contradição insanável a decisão da matéria de facto por vício de contradição, previsto no artigo 410º, nº 2, al. b) do CP, que decorre como se percebe da sua leitura do texto da decisão recorrida.

61. Constatando da leitura do texto da decisão recorrida não constar comprovado que o militar da GNR se encontrasse no centro da via, existe uma clara insuficiência da matéria de facto para se concluir, como erradamente concluiu a decisão recorrida, que constituiu o vício previsto no artigo 410º,nº 2, alínea a) do CPP.

62. Impugna-se a matéria de direito, nos termos do artigo 412º, nº 2, quanto ao preenchimento do tipo objetivo de resistência e coação sobre funcionário, prevista no artigo 347º, nº 2 CP, quanto aos factos provados correspondentes ao ponto 15 do dia 1 de Janeiro de 2019.

63. DA PENA ACESSÓRIA DE PROIBIÇÃO DE CONDUZIR – ARTIGO 69º CP

64. No caso constante do nº 2 do artigo 347º do C.P., a consumação verifica-se no momento em que o agente dirigia o veículo contra funcionário, tendo havido prévio sinal de paragem.

65. O uso do veículo constitui um modo de ação típico vinculada, já que o crime tem de ser cometido com a utilização de veículo, o que preenche a primeira parte da alínea b), número 1 do artigo 69º CP, mas não pressupõe, como afirmado na decisão recorrida, o preenchimento da parte final da referida alínea.

66. A ser como referido na decisão recorrida que o crime previsto no artigo 347º, nº2 CP pressupõe ope legis o preenchimento do pressuposto da aplicação da pena acessória, por certo teria o legislador incluído o mesmo na alínea a) do nº 1 do artigo 69º CP, atenta a automaticidade do efeito penalizante pretendido.

67. Assim, não sendo ao caso aplicável a alínea b) do nº 1 do artigo 69º do CP deve o arguido ser absolvido da pena acessória aplicada.

68. SEM PRESCINDIR,

69. Entende o arguido, ora recorrente, que, face à factualidade dada como provada em juízo e ao Direito aplicável, as penas parcelares bem como a pena única encontrada por via da operação do cúmulo jurídico, in casu, revelam-se pouco criteriosas e desequilibradamente doseadas, padecendo, assim, o Douto Acórdão salvo melhor entendimento, do vício de excesso da medida da pena concretamente aplicada.

70. O Douto Acórdão violou, entre outros, os artigos 40º, n.º 2, 50º, 51º, 71º e 77º, n.º 2 do CP, conforme iremos detalhar nesta sede.

71. Verifica-se que o parágrafo único reservado à fundamentação da determinação da pena única não contempla a ponderação sobre os concretos motivos que, no entender do tribunal a quo justificam a fixação da pena única aplicada e não outra.

72. O tribunal a quo não explanou o juízo global concreto para determinação da pena única aplicada na moldura do cúmulo, circunstância, que fere de nulidade a decisão recorrida por falta de fundamentação, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 374º, nº 2 e 379º, nº 1, al. a e nº 2 do CPP.

74. Assim, a medida concreta da pena única deva ser fixada num valor muito próximo do limite mínimo da moldura do concurso de penas, só assim se mostrando ajustada e proporcionada ao conjunto dos factos e da personalidade do arguido.

75. Entre outros, violou-se ou fez-se errada interpretação dos artigos 306º, 181º, Nº 1 e 184º, 132º, nº 2, al. l), 153º, nº 1 CP, 155º, nº 1, al. a) e c), 347º, nº 2 e 40º, n.º 2, 50º, 51º, 71º e 77º, n.º 2 todos do CP, nos termos acabados de expor, e com os argumentos acima expendidos que vªs Exªs doutamente suprirão, deve a Sentença condenatória ser substituída por outra que absolva o aqui recorrente dos crimes pelos quais veio condenado.

            2. Foi proferido despacho de admissão do recurso.

           

            3. Em resposta ao recurso o Ministério Público concluiu:

            “Deve manter-se a condenação do arguido pela prática de todos os crimes pelos quais foi condenado, assim como as penas parcelares e única e pena de proibição de conduzir, fixadas pelo Tribunal Recorrido”.

            4. A Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da total improcedência do recurso.

            5. Cumprido o n.º 2, do artigo 417.º do CPP, nenhuma dos sujeitos interessados reagiu.

            6. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência, cabendo agora decidir.

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso

Tendo presente as conclusões, pelas quais se delimita o objeto do recurso, sem prejuízo de eventuais questões de conhecimento oficioso, importa (em princípio) decidir se (i) o procedimento criminal pelos crimes de injúria agravada se mostra extinto por prescrição; (ii) a decisão sobre a matéria de facto enferma de erro de julgamento; dos vícios do n.º 2, do artigo 410.º do CPP; recorreu a expressões genéricas, conclusivas e a conceitos indeterminados; violou o in dubio pro reo (iii) incorreu o acórdão em erro de direito no que concerne aos crimes de abuso e simulação de sinais de perigo, injúria agravada, ameaça agravada e coação e resistência sobre funcionário; (iv) as penas parcelares e única – revelando-se, quanto a esta, o acórdão nulo – são excessivas; (v) o tribunal a quo errou ao aplicar a pena acessória de proibição de conduzir.

2. A decisão recorrida

Transcrição parcial do acórdão em crise:

A matéria de facto provada é a seguinte:

A) Inquérito n.º 131/08.....

1. No dia 5 de Julho de 2018, cerca das 2 horas e 40 minutos, o arguido AA efetuou uma chamada telefónica para o Posto Territorial da GNR ..., solicitando a presença urgente de uma patrulha no Bar “...”, sito na ..., por estarem a ocorrer desacatos no interior desse seu estabelecimento de diversão noturna.

2. Tendo sido transmitida via rádio tal comunicação à Patrulha de Ocorrências do Posto da GNR de ..., dirigiu-se a mesma, composta pelos militares MM, KK e pelo Guarda Provisório LL, ao identificado bar.

3. Aí chegados, os militares dirigiram-se ao arguido o qual os informou que não se tinha passado nada, que apenas tinha chamado a patrulha para beber um copo.

4. Preparando-se esta patrulha para abandonar o local, face à inexistência de quaisquer desacatos, chegou, entretanto, uma outra patrulha da GNR, esta do Posto Territorial de ..., constituída pelos militares II e JJ, que aí se tinha, de igual forma, dirigido, por igualmente ter sido acionada a sua presença, como reforço policial.

5. Nessas mesmas circunstâncias de lugar, o arguido AA, mal se apercebeu que o último carro de apoio pertencia à GNR de ..., dirigiu-se, de forma alterada, aos agentes da GNR, que constituíam tal patrulha, os quais se encontravam no exercício das suas funções e devidamente uniformizados, proferindo as seguintes expressões: “sois uns chulos, uns filhos da puta, a GNR é toda uma merda”.

6. Perante esta situação de descontrolo do arguido, para não gerar um clima de maior tensão e, por não se encontrarem reunidas as condições de segurança para deterem o arguido, a patrulha da GNR de ... afastou-se, e logrando a Patrulha de ... controlar e serenar os ânimos do arguido, abandonou, de igual forma, o local.

7. Cerca das 3 horas e 25 minutos, e numa altura em que ambas as patrulhas de ... e a de ... já se encontravam no Posto da GNR de ..., compareceu aí o arguido a pretexto de formalizar uma denúncia contra os militares da GNR que tinham estado momentos antes no Bar.

8. Já no interior do posto, dirigindo-se a todos os militares presentes, quer os que constituíam a anterior patrulha de ..., já identificados, quer o militar que no Posto da GNR de ... se encontrava no exercício das suas funções (já que os militares da Patrulha de ... se recolheram em espaço contíguo para não serem vistos pelo arguido) e devidamente uniformizado, NN, e continuou, repetidamente, a proferir as seguintes expressões: “sois uns chulos, filhos da puta, a guarda é uma merda, já fodi as trombas a um guarda de ... e fui condenado a pagar 1.800 €, não tenho problema em pagar mais dinheiro por bater em mais guardas, hei-de matar todos, sois uns cobardes, sois uns cabrões, são todos uns bêbados”.

9. No dia 10 de Julho de 2018, pelas 18 horas e 45 minutos, o arguido AA, dirigiu-se ao Posto da GNR de ..., para falar com o Comandante do mesmo, GG.

10. O arguido efetuou-lhe verbalmente uma reclamação contra um militar do efetivo desse Posto, Cabo EE, por este, na sua versão, lhe ter ficado a dever uns serviços prestados pela instalação de uma baixada elétrica, tendo-lhe sido explicado pelo identificado Comandante do Posto, que, por ser assunto privado do militar, não devia ser tratado por si, nem naquele Posto.

11. Nessa sequência, o arguido exaltou-se, e dirigindo-se ao Comandante do Posto, GG, vociferou: “Você deve estar a brincar comigo, vocês são todos uns cobardes e uns caloteiros”.

12. Tendo o arguido feito menção de investir contra o Comandante do Posto, os militares presentes, NN, FF (Guarda Provisório), HH e DD, de imediato, intervieram para acalmar a agressividade do arguido, e para o segurar, enquanto este continuava a vociferar num tom agressivo dirigindo-se a todos os militares presentes: “Vocês são todos uns heróis do caralho, cinco contra um, vamos lá para fora um a um que eu não tenho medo de vocês seus filhos da puta, hei-de vos foder a todos”.

13. No dia 1 de Janeiro de 2019, pelas 2 horas e 34 minutos, o arguido AA conduzia na Avenida ..., em ..., o veículo de marca ..., modelo ..., cor preta, com a matrícula ..-QS-...

14. Nessa ocasião, na Rotunda ..., em ..., pela Patrulha de Fiscalização de Trânsito de ..., decorria uma ação de fiscalização no âmbito da Operação Ano Novo.

15. Ao ver aproximar-se o veículo conduzido pelo arguido, o militar GG, devidamente equipado, com colete refletor, posicionou-se apeado na faixa de rodagem e, manuseando o bastão luminoso de forma cadenciada, elevando-o e baixando-o, deu-lhe ordem de paragem, o que o arguido não acatou, imprimindo maior velocidade ao veículo e guinando-o na direção do militar, só não o atingindo porque o mesmo, saltando, logrou afastar-se para a parte central da Rotunda.

16. No dia 12 de Outubro de 2018, cerca das 22 horas e 25 minutos, foi solicitada a presença da GNR no Bar ..., na Estrada Nacional n.º ...34, em ..., por notícia de agressões.

17. Tendo-se ali deslocado uma patrulha da GNR do Destacamento Territorial de ..., o arguido AA dirigiu-se ao Comandante do Posto de ... e vociferou em voz alta e com foros de seriedade: “Eu vou matar o vosso colega OO. Ele não dura mais meio ano”, referindo-se, dessa forma, ao militar da GNR OO, com quem mantinha um desentendimento pessoal por desconfiança que este tivesse tido uma relação amorosa com a sua anterior mulher, e convicto e certo de que o teor destas expressões seria transmitido àquele militar da GNR, como sucedeu.

18. Ao agir da forma descrita de 1. a 3. o arguido sabia que não estavam a ocorrer quaisquer desacatos no Bar ... e que não tinha qualquer motivo para acionar a presença da GNR a esse local.

19. Ainda assim, o arguido solicitou da forma descrita a presença da GNR, sabendo que não necessitava da ajuda e intervenção dos militares que aí acorreram e que os mesmos poderiam ser necessários para auxiliar alguém que deles realmente precisasse.

20. O arguido agiu com o propósito alcançado de acionar a presença de contingente militar da GNR e de o fazer deslocar ao bar que explorava, sabendo que dele não necessitava.

21. O arguido ao afirmar que a GNR é toda uma merda e a Guarda é uma merda, conforme descrito em 5. e 8, teve como propósito, objetivo e intenção ofender a dignidade e o bom nome dos elementos que compõem a Guarda Nacional Republicana.

22. Ao dirigir-se aos militares da GNR, II e JJ, que se encontravam no exercício das suas funções e devidamente uniformizados, com as palavras referidas em 5., o arguido sabia que as mesmas eram atentatórias da sua honra, dignidade pessoal e brio profissional, e ainda assim não se coibiu de as proclamar, o que quis.

23. O arguido conhecia a qualidade profissional dos militares da GNR II e JJ, e sabia igualmente que os mesmos se encontravam no exercício das suas funções.

24. Ao dirigir-se aos militares da GNR, militares KK e LL que se encontravam no exercício das suas funções e devidamente uniformizados, com as palavras referidas em 8., o arguido sabia que as mesmas eram atentatórias da sua honra, dignidade pessoal e brio profissional, e ainda assim não se coibiu de as proclamar.

25. O arguido conhecia a qualidade profissional dos militares da GNR KK e LL, e sabia igualmente que os mesmos se encontravam no exercício das suas funções, no Posto da GNR de ....

26. Com a conduta descrita em 8. o arguido quis proferir as expressões “hei-de vos matar”, como fez, bem sabendo que as dirigia aos militares da GNR, MM, UU, LL e NN, que se encontravam no exercício das suas funções e que as mesmas eram adequadas a provocar medo ou inquietação, o que quis e conseguiu.

27. Com a conduta descrita em 11 e 12, ao dirigir-se aos militares da GNR, aí presentes, FF e DD, que se encontravam no exercício das suas funções e devidamente uniformizados, com as palavras aí referidas, o arguido sabia que as mesmas eram atentatórias da sua honra, dignidade pessoal e brio profissional, e ainda assim não se coibiu de as proclamar, o que quis.

28. O arguido conhecia a qualidade profissional dos militares da GNR de FF e DD, e sabia igualmente que os mesmos se encontravam no exercício das suas funções, no Posto da GNR de ....

29. Com a conduta descrita em 12. o arguido quis proferir as expressões “hei-de vos foder”, como o fez, bem sabendo que as dirigia aos militares da GNR, GG, NN, FF, HH e DD, que se encontravam no exercício das suas funções e que as mesmas eram adequadas a provocar medo ou inquietação.

30. Com a conduta descrita em 15., o arguido agiu com o propósito concretizado de conduzir o seu veículo em direção a GG, aproveitando a superioridade material que a utilização do referido veículo lhe proporcionava para constranger o militar a sair da frente e assim o impedir de praticar atos englobados nas suas funções, nomeadamente a interceção e identificação do arguido, bem sabendo que se encontrava perante um militar da GNR no exercício de funções.

31. Com a conduta descrita em 17. o arguido quis proferir as expressões, como o fez, bem sabendo que as mesmas seriam transmitidas ao militar OO, como sucedeu e que aquelas eram adequadas a provocar medo ou inquietação.

32. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e puníveis por lei penal.

Do pedido de indemnização civil:

33. No período temporal imediatamente a seguir aos factos descritos em 17., e por causa deles, o assistente OO passou a sentir medo de que o arguido concretizasse as ameaças anunciadas, tendo receio pela sua integridade física, evitando andar sozinho na rua;

34. Passou a ter dificuldades em dormir, tendo começado a tomar medicação para o efeito.

35. Passou a isolar-se e deixando de conviver com os amigos e colegas.

Provou-se ainda que:


*

Factos não provados:


*

Motivação:

A convicção do tribunal assentou no conjunto da prova produzida nos autos, criticamente analisada à luz de regras de experiência e segundo juízos de normalidade.

Assim, quanto aos factos descritos em 1. e 2., atendeu-se ao depoimento do militar da GNR NN que disse ter recebido a chamada quando estava de serviço no Posto Territorial ..., tendo acionado a patrulha de .... Referiu que a chamada teria sido feita por alguém que se intitulou proprietário do estabelecimento e o próprio arguido confirmou ter sido o seu autor. Relativamente ao horário, atendeu-se ao teor do auto de notícia de fls. 4 e ss., confirmado pelo depoimento do militar da GNR MM que confirmou que a patrulha que integrava deslocou-se ao bar ... na sequência da notícia de uma ocorrência por parte do Guarda NN.

O vertido no ponto 3. dos factos provados foi quanto decorreu do depoimento do militar da GNR MM, que referiu que quando chegou ao local, dirigiu-se com o Guarda Provisório LL até à entrada da porta do estabelecimento, onde o arguido, proprietário do bar, disse que não havia nenhuma ocorrência, não havia quaisquer desacatos, e que só os tinha chamado para beberem um copo, convidando-os a fazê-lo.

Também o militar KK referiu que ao chegarem ao local estava tudo calmo, não existindo quaisquer desacatos e que o arguido falava com muita calma a dizer que só os tinha chamado para irem beber um copo.

O mesmo decorreu do depoimento do militar LL, que referiu que integrava, enquanto estagiário, a patrulha das 00:00/08:00 horas, com os colegas MM e KK e que se receberam chamada a dizer que havia desacatos no bar ..., mas ao chegarem ao local não se verificou nada do que tinham indicado. Estava tudo limpo e arrumado (as cadeiras todas em cima das messas e o chão molhado), e o arguido ao balcão, a dizer que não se tinha passado nada, que os tinha chamado só para irem beber um copo.

É certo que o arguido referiu que ligou para o Posto por estarem a ocorrer desacatos, designadamente um cliente a partir copos e, com essa conduta, a pôr em causa a segurança das pessoas do bar, indivíduo que entretanto saiu do local, tendo o arguido apanhado os copos e até se tendo cortado num deles.

E também PP, questionado sobre se presenciou desacatos no bar, respondeu que sim, “o normal” e concretizou que nessa noite estava na zona da pista do bar, quando escutou o barulho de copos a partir. Viu o arguido dirigir-se ao indivíduo que os partia (cuja identificação desconhece) e depois o indivíduo saiu porta fora, situação que teria durado cerca de meia hora.

Já QQ que também se encontrava no estabelecimento na data dos factos, embora na esplanada, referiu não se ter apercebido de quaisquer desacatos.

Ora, na análise conjugada dos depoimentos e declarações prestados, outra não pode deixar de ser a conclusão, que não a de que não teriam ocorrido no interior do estabelecimento desacatos de monta que justificassem a chamada das autoridades ao local. É que, ainda que pudessem ter sido partidos copos no estabelecimento (como dão a entender o arguido e PP), a verdade é que PP qualificou tal situação (de serem partidos copos) como algo de normal. E tanto assim foi que não viu necessidade de se deslocar até junto do arguido para averiguar o que se passava, tendo-se mantido na pista e só se tendo aproximado daquele quando se apercebeu da presença dos elementos da GNR.

Ou seja, a existirem efetivamente desacatos, conflitos, ou qualquer discussão ou alteração da ordem pública que justificasse a chamadas das autoridades policiais, certamente não só PP se teria aproximado de imediato do arguido (como o fez depois ao longo do resto da noite quando aquele foi ter com os militares e mais tarde se encaminhou para o Posto), como QQ se teria apercebido da situação. E, em última análise, certamente os alegados desacatos teriam sido depois relatados aos elementos da GNR. Contudo, não só estes afirmaram claramente que o arguido disse que nada tinha sucedido e que apenas os tinha chamado para tomarem um copo, como nenhuns vestígios encontraram de qualquer altercação no interior no estabelecimento. E – note-se – o que decorre do aditamento de fls. 7 a 8 (cujo teor foi corroborado pelo depoimento de NN) é que houve duas chamadas telefónicas insistentes por parte do arguido, a última das quais pelas 02:50 horas, sendo que pelas 03:10 horas, já o arguido dava conta de que os militares tinham saído do local. Não sendo de crer que naquele espaço de tempo tivessem sido limpos todos os vestígios do alegado desacato. Não poderá, por último, deixar de referir-se que, a ter existido efetivamente uma alteração da ordem no interior do estabelecimento, nem o arguido nem PP conseguissem identificar o indivíduo que o causou e nem se tivessem esforçado por descrever aos militares da GNR as características de tal sujeito.

Daí que tenha merecido inteira credibilidade – por se tratar da única com sustentação lógica – a versão trazida aos autos pelos elementos da GNR, ao referir que, chegados ao local, tudo estava calmo, e o arguido se limitou a referir que apenas pretendia convidá-los para tomarem um copo.

No respeitante ao ponto 4. dos factos provados, temos que a deslocação da patrulha de ... ao local foi referida unanimemente pelo arguido e pelas testemunhas, encontrando justificação nos depoimentos de NN (que referiu que como o arguido já tinha ligado duas vezes e estava muito nervoso, sugeriu aos colegas da patrulha de ... que contactassem como reforço a patrulha de ...) e MM (que referiu que a presença da segunda patrulha no local se deveu ao facto de já antes ter havido outras ocorrências com o arguido). A identificação dos elementos da GNR que integravam esta segunda patrulha foi confirmada pelos próprios (II e JJ), bem como por MM, mostrando-se ainda consignada no auto de notícia de fls. 4.

Quanto ao ponto 5. dos factos provados, o facto de o arguido se ter indisposto pelo facto de a segunda patrulha pertencer ao Posto da GNR de ... resultou, desde logo, das declarações do próprio arguido, que referiu que quando foi informado de que a segunda viatura a chegar ao local pertencia à GNR de ..., logo lhe teria dito “tirem-me daqui esses gajos, porque têm lá um gajo que já me deu um tiro”. Mas decorre também dos depoimentos de MM, KK e LL, que não foram apenas estas as expressões usadas pelo arguido, antes referindo o primeiro que o arguido se exaltou, dizendo que eram uns “filhos da puta”, “chulos” e que “a guarda era toda uma merda”; o segundo, que quando chegou a segunda patrulha e lhe disseram que era de ..., o arguido mudou completamente a maneira de estar, dizendo que não os queria ali, para se irem embora, que ninguém os chamou, dizendo “que vêm aqui fazer estes filhos da puta, estes merdas, que não valem nada” e acrescentando que “a Guarda era toda a uma merda, que nós eramos uns filhos da puta”, continuando sempre a insultá-los; e o terceiro, que quando o arguido se apercebeu que era a patrulha de ... insurgiu-se contra eles, chamando a todos os guardas, mas principalmente aos de ... “chulos, filhos da puta, não valem uma merda”.

E também os elementos da patrulha de ... confirmaram terem-lhes sido também dirigidas expressões injuriosas, afirmando II que quando o arguido os viu chegar perguntou de onde era a patrulha e quando disseram que era de ..., exaltou-se, começando a chamá-los de “filhos da puta”, “cabrões”, “que lá em ... estava o filho da puta que lhe deu um tiro, mas que ele ia matá-lo”. Expressões proferidas quando o depoente e o colega estavam ainda no interior da viatura, mas estando o arguido próximo deles. E referindo JJ que ao chegarem ao local, foram apelidados de “filhos da puta” e “chulos”, afirmando ainda o arguido que “o filho da puta que me deu o tiro eu vou matá-lo, nem que seja a última coisa que eu faça na vida”.

De onde resulta que, apesar de o militar da GNR MM dizer que os colegas de ... estavam ainda a chegar e não estavam, nesse momento, ao pé deles, desconhecendo se conseguiram ou não ouvir tais expressões, ficou claro nos depoimentos dos próprios que estavam perto o suficiente para que as mesmas fossem audíveis, o que é corroborado pelos depoimentos de KK e LL. Sendo certo que, perante todo o contexto em que foram proferidas, resultou claro que os principais destinatários das mesmas, pelo menos num moimento inicial, eram precisamente os elementos da patrulha de ..., tornando verosímil que tivessem sido proferidas de forma audível para aqueles.

É certo também que a testemunha PP referiu que a segunda viatura se dirigiu ao parque de estacionamento que ficava a cerca de 30 metros do local onde se encontravam. Mas é também certo que esta testemunha afirmou que nunca ouviu o arguido tratar mal os militares da GNR, adiantando que “se não tivessem farda eram clientes normais, estavam todos a falar normalmente”, quando é certo que todos os militares aludem, de forma inequívoca aos insultos que o arguido lhes dirigiu. Admitindo-se, pois, que, tal como afirmou a testemunha que não ouviu a conversa inicial entre o arguido e os militares (designadamente se este lhes disse ou não que só os tinha chamado para beber um copo), também lhe tivesse escapado a parte da conversa mais exaltada, no decurso da qual dirigiu a todos os militares os insultos descritos.

O descrito no ponto 6. dos factos provados foi quanto decorreu da unanimidade das declarações/depoimentos (quanto ao facto de a patrulha de ... ter logo abandonado o local) e dos depoimentos de MM e KK, quanto ao facto de terem abandonado o local quando os ânimos serenaram, explicando KK que não procederam à detenção do arguido por não estarem reunidas condições de segurança, designadamente por estarem no local mais 10 a 15 indivíduos, pessoas que estariam no estabelecimento, segundo pensa, por ser o aniversário do arguido.

Quanto ao vertido no ponto 7. dos factos provados, dir-se-á que o facto de o arguido ter comparecido no posto nessa noite, foi unanimemente referido por arguido e testemunhas. Já quanto à razão, importa desde logo salientar a pouca verosimilhança da versão trazida aos autos pelo arguido, no sentido de que resolveu deslocar-se ao Posto, àquela hora da noite, para pedir o contacto telefónico do comandante de ... e que foi por lhe ter sido dito que não podiam fornecer-lho que resolveu escrever o no livro de reclamações, na medida em que entende que é um cidadão igual aos outros. Sucede que não só tal versão surge como claramente insólita e inusitada, como é contrariada pelo teor da “reclamação” da qual, sendo embora quase impercetível, ainda se retira que faz uma alusão à “patrulha de ...” e não a qualquer comportamento do atendimento de ....

Por seu turno, MM e LL, em consonância com o teor do aditamento de fls. 7 e ss., referiram que o colega que estava de atendimento os avisou que o arguido se ia deslocar ao posto para reclamar da atuação da patrulha, e esse mesmo intuito foi também confirmado por NN e KK.

Também no tocante ao momento descrito no ponto 8. dos factos provados, não colheram as declarações do arguido, que referiu que quando o Guarda de atendimento lhe disse que não lhe dava o contacto do comandante, se limitou a afirmar que aquele não tinha de o tratar assim, pois era um cidadão como os outros, razão pela qual pediu o livro de reclamações, escreveu a reclamação e saiu para o exterior sem, em momento algum, ter tratado mal os militares presentes. E não colhem desde logo, em face do teor da reclamação que se mostra fotografada a fls. 11 a 13, que o próprio arguido não conseguiu ler, nem explicar qual a razão de se mostrar assim efetuada. Sendo certo que a forma como está feita, ou melhor dizendo, a forma como o arguido danificou as páginas do livro de reclamações, com sangue e escritos impercetíveis, antes denota o estado alterado em que o arguido se encontraria naquela noite, reforçando a credibilidade do depoimento de NN que referiu que o arguido aparentava estar embriagado, pelo cheiro a álcool e pelo grau de conflituosidade que revelava.

Por seu turno os Guardas presentes (MM, KK, NN e LL) relataram a prolação pelo arguido das expressões mencionadas, sendo certo que mesmo a afirmação de que tinha sido condenado a pagar uma quantia económica por ter agredido um guarda, apesar de o arguido negar que alguma vez tivesse sido condenado a pagar € 1.800,00, encontra total sustento probatório no teor do certificado de registo criminal onde consta condenação por resistência e coação sobre funcionário, em prisão substituída por multa, não de € 1.800,00, mas de € 2.100,00. Será ainda de referir que as expressões atribuídas ao arguido são perfeitamente compagináveis com todo o ambiente que o mesmo terá criado no posto da GNR e que é inteiramente descrito por NN, que disse ainda ter tentado acalmar os ânimos do arguido convidando-o a aguardar primeiro por assistência ao ferimento que apresentava na mão e só depois fazer a reclamação, tendo-se aquele insurgido também contra os bombeiros que compareceram no local, recusando-se a ser assistido pelos mesmos por considerar que não tinham competência para tanto, tudo conforme vertido no aditamento de fls. 7 a 8.

Relativamente aos factos vertidos nos pontos 9. e 10. dos factos provados, são convergentes as declarações do arguido e os depoimentos de GG, NN, HH, FF e DD.

E quanto ao descrito nos pontos 11. e 12., a versão do arguido (no sentido de que apenas respondeu ao comandante do posto que, como o serviço lhe tinha sido pedido no posto, era no posto que iria reclamar, e de que o próprio comandante também lhe devia dinheiro, após o que se ausentou do local sem o dinheiro e sem fazer a reclamação, nada mais tendo acontecido, e não tendo sido segurado pelos militares presentes), é totalmente infirmada pelos depoimentos dos cinco militares que estavam no local e que, de forma consentânea, confirmaram as expressões em causa, nos termos também consignados no auto de notícia de fls. 4 do Apenso A. De todos, aliás, apenas NN não soube descrever as concretas expressões proferidas pelo arguido neste dia, justificando que foram diversas as situações em que o arguido interveio, sempre dirigindo ameaças aos elementos da GNR. Em todo o caso, não teve dúvidas em descrever o contexto anterior e em identificar os colegas que estavam no local, os quais reproduziram as aludidas expressões.

No tocante aos factos descritos em 13., 14. e 15., afirmou o arguido ter apenas visto vários senhores parados, com coletes, e muitos carros, tendo pensado que fosse um acidente, Viu uma bandeirola (que confirmou ser um bastão luminoso laranja ou vermelho) no ar, e pensou que fosse para abrandar, o que fez, seguindo em frente, não tendo virado a direção e não tendo visto ninguém a mandá-lo parar. Descreveu o gesto que lhe foi feito, como um movimento em leque, semelhante ao sinal de adeus, que interpretou como sendo um sinal para abrandar. E questionado, afirmou que se tratava de um local bem iluminado, com muita luz.

Contudo, tal versão é frontalmente contrariada, desde logo, pelo depoimento de CC, que esclareceu que na noite em causa procediam a uma fiscalização rodoviária na Rotunda ..., estando também presentes os militares LL, TT e GG, e estando já duas viaturas paradas a ser fiscalizadas. O Comandante GG mandou parar uma viatura, cujo condutor, em lugar de abrandar, acelerou a marcha, passando pelo único sítio por onde podia passar. Estavam uniformizados com colete refletor e tinham bastão luminoso, sendo que só se apercebeu que era o arguido quando passou por eles. Disse ser impossível que o arguido não tivesse visto a ordem de paragem, pois o Comandante estava no meio da estrada, a mandar parar atrás da segunda viatura que estava a ser fiscalizada. E adiantou que ouviu o Cabo TT dizer pelo menos três vezes ao Comandante “ele não vai parar”, sendo que este teve de saltar para não ser atingido.

Também GG referiu que no dia 1 de Janeiro decorria uma ação de fiscalização, estando o depoente e mais 5 militares, tendo sido o depoente que deu a ordem de paragem. Estava com colete refletor e tinha bastão luminoso, tendo-se apercebido de que o veículo aumentou a velocidade. O colega (Cabo TT) que estava próximo de si disse-lhe para se desviar, pelo que saltou para o centro da rotunda, apercebendo-se então de que era o arguido, o qual seguia sozinho na viatura. Esclareceu que do lancil à rotunda, distam cerca de 9 metros, dos quais 2 metros estavam ocupados com viaturas que estavam a ser fiscalizadas. E o depoente estava posicionado mais junto à rotunda, para estar no campo de visão dos condutores. A visibilidade era de cerca de 50 mt, reiterando que o arguido, logo no imediato, acelerou.

E também TT afirmou que no dia 1 de Janeiro decorria uma ação de fiscalização na rotunda ..., estando dois militares a fiscalizar as viaturas do lado esquerdo. O depoente estava com o Comandante GG, quando surge uma viatura que vinha no sentido em que se encontravam, e a cerca de 50 mts de distância, altura em que o Comandante se dirigiu para o meio da rotunda para dar ordem de paragem. Quando o veículo estava a entrar na rotunda acelera em direção ao militar, sem desviar a direção, pelo que o depoente só disse: “Comandante, desvie-se, que ele vai atropelá-lo”, altura em que o Comandante dá um salto para o lado direito. Afirmou de forma segura que o condutor tinha que ver o militar de certeza, pois este estava de colete refletor, e a rotunda era bem iluminada, pelo que era impossível não o ver. Assim como seria impossível ele passar se o militar não se desviasse.

VV, também militar da GNR, descreveu que na data dos factos estava a fiscalizar um veículo, quando ouviu o Cabo TT a dizer ao Comandante para se desviar, o que este fez para não ser atingido.

De onde resulta que todos estes depoimentos sustentam uma atuação por parte do Comandante GG que não deixaria dúvidas a qualquer condutor, quer pelo local, na via, em que se posicionou, quer pelo facto de estarem já outras viaturas a serem fiscalizadas, quer pelo gesto efetuado, que claramente nunca seria – nem que a intenção fosse mandar abrandar – o descrito pelo arguido. E sendo a rotunda um local bem iluminado, como reconhece o arguido e afirmam os militares da GNR, não se encontram razões para sobrarem dúvidas ao arguido quanto à intenção do militar da GNR que, no âmbito da mencionada ação de fiscalização, lhe deu ordem de paragem.

Quanto ao descrito em 16. e 17. dos factos provados, temos que o arguido confirmou a presença da GNR no local, na data referida, embora referisse que a patrulha havia sido chamada por si por causa de uns carros que se encontravam, no final da noite, no parque de estacionamento do seu Bar. Sucede que, embora decorra do aditamento de 6 e v.º do Apenso C que essa situação teria efetivamente ocorrido pelas 02:20 horas do dia 13/10/2018, resulta do auto de notícia de fls. 4 que já antes, pelas 22:25 horas, a GNR teria estado no local, designadamente, e para além dos elementos do Posto Territorial ..., também o Sargento-Ajudante RR, que depois viria, em 16/10/2018 a lavrar o aditamento de fls. 11 do mesmo Apenso. E em consonância com o teor de tal aditamento, afirmou RR que estava de ronda quando a patrulha de ... pediu reforço por causa de situação da alteração da ordem pública, pelo que reuniram numas bombas de gasolina e foram para o local (o bar ..., onde estaria a decorrer uma festa nessa noite). Lá chegados estacionaram as viaturas no terreno, tendo sido abordados pelo arguido que, de forma muito hostil com os elementos da Guarda, disse para tirarem as viaturas do terreno dele. O depoente identificou-se dizendo que era o comandante do Posto de ..., ao que o arguido disse que o Cabo OO só tinha 6 meses de vida. RR disse confirmar as expressões consignadas no aditamento, por já não se lembrar o que é que arguido disse mais. Referiu que comunicou a situação ao Cabo OO e aos superiores hierárquicos, porque temeu pela vida daquele. Já tinha conhecimento da situação ocorrida antes e do processo que existia. Identificou os militares WW e SS como integrando a sua patrulha e afirmou estar convicto de que também eles ouviram tais expressões, porque o arguido falou em alto e bom som. Por seu turno, também o assistente referiu que logo no dia 12/10/2018, pelas 23:00 horas, recebeu um contacto telefónico de um colega, o Guarda Principal SS (que, conforme decorre do aditamento de fls. 11 do apenso C e do depoimento de RR também integrava a patrulha que se deslocou ao bar do arguido na noite em causa), dando-lhe conta de que tinha ido a uma ocorrência em ..., e que o arguido estava alterado, tendo dito que o declarante não tinha mais de meio ano de vida, que o ia matar, sendo que numa data posterior, no primeiro dia que entrou ao serviço despois desta situação, também o Comandante do Posto, RR, o avisou do teor das expressões proferidas pelo arguido.

Acresce que a circunstância relatada por RR e OO, de o arguido ter proferido tais expressões de ameaça, encontra ainda sustento lógico bastante quando ponderado todo o circunstancialismo envolvente, designadamente os eventos ocorridos entre o arguido e o OO em Janeiro de 2018, que se mostram documentados no teor do acórdão cuja cópia se mostra junta a fls. 345 e ss. (do qual se extrai que o arguido suspeitaria que este último teria mantido uma relação amorosa com a sua mulher, tendo ocorrido confrontos físicos entre ambos, no decurso dos quais o assistente disparou sobre o arguido), bem como a demais prova testemunhal a que supra se aludiu de onde resulta que já noutras situações o arguido fizera menção ao tiro que lhe teria sido desferido pelo Cabo OO e à intenção de vingança.

Nessa medida, e não obstante o arguido negar também a prática destes factos, não sobraram dúvidas ao Tribunal sobre a sua ocorrência.

Será de referir, quanto à globalidade das situações em causa nestes autos, que não se detetaram nos depoimentos prestados pelos militares da GNR as invocadas intenções persecutórias, antes se verificando que alguns deles, visados por expressões de ameaça, referiram não se terem sentido atemorizados; que outros, designadamente NN, acabaram por dar a entender que alguns dos comportamentos do arguido (em concreto no dia 05/07/2018) se teria devido ao estado ébrio em que o mesmo aparentava estar e, em última análise, quatro dos militares da GNR acabaram por manifestar nos autos pretender desistir da queixa apresentada, na parte em que a mesma era relevante.

Razão pela qual, confrontados os depoimentos destes, consentâneos e coerentes entre si, com as versões – totalmente carecidas de sustentação lógica – trazidas aos autos pelo arguido para cada um dos episódios, não restaram dúvidas ao Tribunal em considerar provados os factos objetivamente descritos em 1. a 17.

O vertido em 18. a 32. constitui, à luz das regras da experiência e segundo juízos de normalidade, inferência lógica dos factos objetivamente dados como provados, considerada ainda a circunstância de não decorrer dos autos qualquer elemento que sustente qualquer limitação ou condicionamento às capacidades cognitivas e à liberdade de ação do arguido.

Os pontos 33. a 35. dos factos provados, resultaram dos depoimentos de RR (superior hierárquico do assistente, que referiu estar convicto de que este acreditou na ameaça, ficando a temer pela vida dele – como, aliás, o depoente também temeu – tendo alterado as rotinas diárias, passando a adotar itinerários diferentes, a evitar andar sozinho e notando-se que ficava mais nervoso quando tinha de se deslocar a ...), XX (que referiu que o assistente costumava ir jantar a casa do depoente e deixou de o fazer, dizendo que não gostava de andar sozinho à noite; que o assistente andava num psicólogo e a tomar comprimidos para dormir e antidepressivos, tendo-se isolado. Esclareceu ainda que desde a primeira situação ocorrida com o arguido em Janeiro não ficou bem, mas que a situação ainda se agravou mais após estas ameaças) e YY (que disse que o assistente ficou aterrorizado com estas ameaças em virtude do que se tinha passado anteriormente entre ele e o arguido, pelo que passava muito tempo à conversa no telefone com o depoente quando tinha de fazer viagens à noite; que o assistente temia pela sua vida e dizia não estar bem, por não se sentir seguro; e que tomava medicamentos para dormir).

Para além de prestados de forma espontânea e descomprometida, tais depoimentos mereceram ainda credibilidade em face da análise global da prova, pois que, resultando do Acórdão cuja cópia o arguido juntou aos autos, que o arguido nutria um elevado grau de animosidade contra o assistente (por entender que este teria mantido uma relação amorosa com a sua mulher), sentimento que teria estado subjacente aos episódios de agressão de que já fora vítima em 09/11/2017 e 22/01/2018, naturalmente tinha o assistente sérias razões para acreditar que o desejo de vingança apenas se teriam agudizado depois de, nesta última data, ter sofrido um disparo da autoria do assistente. Razão pela qual a ameaça proferida, nas circunstâncias em que o foi (revelando-se o arguido até indiferente à qualidade profissional das pessoas perante quem a proferia), era particularmente apta a agravar os sentimentos de receio que o assistente já teria desde 22/01/2018.

Quanto aos antecedentes criminais (ponto 36. dos factos provados) louvou-se o Tribunal no certificado do registo criminal junto aos autos e relativamente às condições pessoais e económicas (pontos 37. a 40.), considerou-se o teor do relatório social junto aos autos, bem como, quanto à integração familiar e profissional do arguido, os depoimentos de ZZ, AAA e BBB, os quais, de um modo geral e que pareceu sincero, caracterizaram o arguido como bom pai e marido, e pessoa trabalhadora e empenhada, a quem conhecem apenas uma personalidade sociável.

Os factos dados como não provados, assim se consideraram por ausência de prova suficientemente segura produzida quanto a eles.

Assim, quanto ao descrito em a) verifica-se que resultou unanimemente dos depoimentos de MM, II e JJ, bem como do próprio BB, que este último não integrava a patrulha que se deslocou, no dia 05/07/2018, ao Bar ....

Quanto ao vertido em b), GG disse que quando chegou ao posto já estava tudo calmo e só soube do sucedido pelos subordinados CC afirmou que naquela madrugada viu o Guarda principal NN a esbracejar, e estavam entre 12 e 20 indivíduos no interior do posto, pelo que foi apurar o que se passava. Ao entrar dentro do posto, estavam 2 elementos dos bombeiros e quando o arguido viu o depoente, disse: “estás de férias, vai-te embora”, ao que o Guarda NN pediu ao depoente para se retirar do hall de entrada, tendo o depoente entrado para instalações do posto, para o bar, e não tendo presenciado mais nada. E DD, EE, HH e FF, referiram de forma clara e inequívoca que não se encontravam no Posto da GNR de ... na noite de 05/07/2018.

No tocante ao descrito em c), atendeu-se ao circunstancialismo em que as expressões foram proferidas, do qual decorre que o arguido visou primacialmente os elementos/militares da GNR aos quais se dirigiu, equiparando-os à imagem negativa que formula relativamente a outros concretos elementos da mesma corporação, e não tanto à instituição em si. E em todo o caso, ainda que pudesse concluir-se em sentido inverso, sempre ficaria por provar a aptidão de tais expressões, proferidas no contexto em que o foram, e porque correspondendo a um mero juízo de valor, para colocar em crise a credibilidade, o prestígio, a dignidade, confiança e bom-nome da GNR, enquanto corporação, como se deixará dito a propósito da análise do tipo penal de ofensa a organismo, serviço ou pessoa coletiva.

Relativamente ao descrito em d), embora o arguido tivesse afirmado que até ter levado o tiro sempre teve boa relação com todas as autoridades, ocorrendo entre todos “comezainas” e bebendo juntos uns “canecos”, a verdade é que tal afirmação é desde logo posta em causa pelo teor do certificado de registo criminal do arguido, do qual decorre já ter sofrido uma condenação, por factos de 2015, integradores dos crimes de ameaça agravada, injúria agravada e resistência e coação sobre funcionário. E também os depoimentos das testemunhas ZZ, AAA e BBB, afirmando que nunca conheceram qualquer animosidade por parte do arguido relativamente à GNR enquanto instituição ou a outras polícias, não permitiram, quando confrontados com a dita condenação e com a forma como decorre dos factos provados que o arguido se foi sempre dirigindo aos militares, sustentar uma convicção suficiente sólida e segura quanto às alegadas boas relações do arguido com os elementos da GNR ..., só até 22/01/2018.

No tocante ao descrito em e) não foi produzida nos autos prova suficiente para sustentar tal afirmação. É que não basta a constatação de que o arguido foi participado/denunciado em vários inquéritos. Necessário se tornaria que ficasse demonstrado com o mínimo de solidez, que haviam sido feitos constar das mencionadas participações factos falsos.

E no caso, a única afirmação objetiva que pode ser feita, em face da factualidade que se deu como provada e da prova que a sustentou, analisada nos termos expostos, é que ao longo do ano de 2018 o arguido protagonizou vários episódios de confronto aberto com elementos da GNR, integradores alguns deles, de ilícitos criminais.

Aliás, é significativo, que afirmando o arguido que era vítima de perseguição pelos diversos elementos da GNR, muitos dos episódios aqui em causa ocorreram no Posto da GNR, aonde o arguido voluntariamente se deslocou, segundo afirmou para fins que poderiam ser resolvidos de outra forma. Ou seja, a ser verdade que o arguido estaria a ser vítima de participações falsas, nenhuma razão se encontraria para que o mesmo se sujeitar a manter com elementos da GNR contactos escusados, tanto mais que – como resultou dos depoimentos de ZZ, AAA e BBB, até terá amigos/conhecidos que são elementos das forças policiais, a cuja intervenção poderia ter recorrido.

3. Apreciação

§1. Da prescrição do procedimento criminal no que respeita aos crimes de injúria

Pese embora a ordem pela qual o recorrente coloca as questões, constituindo a invocada prescrição causa de extinção do procedimento criminal ir-se-á iniciar o conhecimento do recurso pela apreciação da dita exceção.

Em causa estão os crimes de injúria agravada, p. e p. pelos artigos 181.º, n.º 1 e 184.º, com referência ao artigo 132.º, n.º 2, alínea l), todos do Código Penal, imputados na acusação e que conduziram à condenação em 1.ª instância, aos quais corresponde, atenta a respetiva moldura penal abstrata, o prazo de prescrição do procedimento criminal de dois anos, contados desde o dia em que o facto se consumou – [cf. artigos 181.º, n.º 1, 184.º, 118.º, n.º 1, alínea d) e 119.º, n.º 1, todos do Código Penal].

Os factos suscetíveis de os integrar remontam aos dias 05.07.2018 [sujeitos passivos II, JJ, KK e LL] e 10.07.2018 [sujeitos passivos DD e FF], pelo que a não se terem verificado causas de interrupção e/ou suspensão há muito se encontraria extinto, por prescrição, o procedimento criminal.

Sucede, porém, que o arguido foi constituído nessa qualidade em 10.04.2019 [cf. fls. 157], data em que se interrompeu o prazo de prescrição, tendo-lhe sido a acusação notificada em 16.09.2020 [cf. fls. 230 v.], assim se interrompendo [de novo] e suspendendo o dito prazo, neste último caso por tempo não superior a 3 anos – [cf. artigos 120.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, e 121.º, n.º 1, alínea a), todos do Código Penal], suspensão que se manteve – pela pendência do procedimento criminal – até à notificação do acórdão condenatório, proferido em 20.04.2022, momento em que ocorreu nova causa de suspensão [A sentença condenatória, após notificação ao arguido, não transitar em julgado], a qual, não podendo ultrapassar 5 anos – [cf. artigo 120.º, n.º 1, alínea e) e n.º 4], se mostra, de momento, em curso.

Em suma, não tendo decorrido entre as diferentes causas de interrupção e/ou suspensão verificadas o prazo normal de prescrição do procedimento criminal, tão pouco o prazo máximo, previsto no n.º 3, do artigo 121.º do Código Penal, é manifesta a falta de razão do recorrente.

§2. Da impugnação da matéria de facto

§2.1. Ao longo das conclusões insurge-se o recorrente contra a matéria de facto dada por assente, como provada, pela instância, invocando amiúde os vícios do n.º 2, do artigo 410.º do CPP, designadamente a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e o erro notório na apreciação da prova. Simultaneamente alude a um conjunto de factos, os quais, na sua perspetiva, por revestirem caráter genérico e/ou por se traduzirem em conceitos indeterminados deveriam ser tidos por não escritos e, assim, desconsiderados. Ao mesmo tempo não deixa de convocar passagens de depoimentos e declarações com vista a demonstrar contradições (entre os mesmos), “versões” contrárias àquelas que vieram a merecer acolhimento no acórdão e, ainda, decorrente das divergências entre os depoimentos/declarações, a violação do in dubio pro reo. Sendo tudo questões que pertinam à matéria de facto, visando a respetiva sindicância, o certo é que se tratam de meios distintos, insuscetíveis de se confundir, desde logo ao nível das exigências que o legislador faz recair sobre o recorrente.

§2.2. O recurso a parte de depoimentos/declarações, seguida de um conjunto de factos – elencados por referência a cada crime ou conjunto de crimes da mesma ou de diferente natureza – alegadamente mal julgados, sugere pretender o recorrente situar-se no âmbito do «erro de julgamento», domínio em que se lhe impunha o cumprimento, na dimensão legalmente exigida, dos ónus de impugnação especificada [artigo 412.º, n.º 3 e 4 do CPP], identificando (i) de per se os concretos pontos de facto incorretamente julgados; (ii) na relação com cada um dos mesmos, as concretas provas – com referência ao correspondente registo áudio - que impunham decisão diversa da recorrida; (iii) a razão pela qual assim seria, o que não foi observado, nem nas conclusões, nem na motivação donde emergem. Com efeito, não satisfaz minimamente os ónus de impugnação a indicação, em conjunto, de um certo número de itens; menos ainda a referência a um complexo de declarações/depoimentos [cujas passagens não surgem identificadas conforme o disposto no n.º 4, do artigo 412.º], não correlacionados com o concreto ponto de facto que em cada momento o recorrente visa afrontar; bem assim a alusão à credibilidade – no entender do recorrente imerecida - de que beneficiaram os depoimentos dos agentes de autoridade [v.g. as testemunhas MM, KK e LL], em contraste com aqueloutros [v.g. a testemunha PP, o arguido (declarações)], que da mesma deveriam ter sido credores, e - não sem que o Coletivo deixasse de esclarecer na fundamentação da convicção, com recurso às regras da experiência, do normal acontecer das coisas da vida, o motivo pelo qual assim foi – não o foram. Alegação esta que parece ignorar, que por via da imediação de que beneficia o tribunal de 1.ª instância [e não já o tribunal de recurso], a não ser que a fundamentação da convicção revele uma apreciação ilógica, contrária às regras da experiência, evidenciando que os factos não se poderiam ter passado tal como acolhidos na sentença/acórdão, estar vedado à instância de recurso, contrariando, para tanto, a credibilidade conferida a cada um dos depoimentos/declarações, alterar a matéria de facto. Com efeito, é pela imediação que se vincula o julgador à perceção, à utilização, à valoração e credibilidade da prova, sendo certo que “a atividade judiciária na valoração dos depoimentos há-de atender a uma multiplicidade de fatores que têm a ver com as garantias da imparcialidade, as razões de ciência, a espontaneidade dos depoimentos, a verosimilhança, a seriedade, o raciocínio, as lacunas, as hesitações, a linguagem (…), as coincidências, as contradições (…) e até saber interpretar as pausas e os silêncios dos depoentes, para perceber e aquilatar quem estará a falar a linguagem da verdade”; por isso “não raras vezes o julgamento da matéria de facto não tem correspondência direta nos depoimentos concretos, resultando antes da conjugação lógica de outros elementos probatórios que tenham merecido a confiança do tribunal (…)” – [cf. acórdão do TRP, de 05.06.2002 (proc. n.º 0210320)]. Dito de outro modo, “Existe uma incomensurável diferença entre a apreciação da prova em 1.ª instância e a efetuada em tribunal de recurso com base nas transcrições dos depoimentos. A sensibilidade à forma como a prova testemunhal se produz, e que se fundamenta num conhecimento das reações humanas e análise dos comportamentos psicológicos que traçam o perfil da testemunha, só logra obter concretização através do princípio da imediação, considerado este como a relação de proximidade comunicante entre o tribunal e os participantes, de modo que aquele possa obter uma perceção própria do material que haverá de ter como base da decisão” – [cf. acórdão do STJ, de 14.03.2007 (proc. n.º 21/07 – 3.ª)]. Tudo para dizer que a apreciação das provas gravadas pela Relação “só pode abalar a convicção acolhida pelo tribunal de 1.ª instância caso se verifique que a decisão sobre a matéria de facto não tem qualquer fundamento nos elementos de prova constantes do processo ou está profundamente desapoiada face às provas recolhidas (…)” – [cf. o acórdão do TRP, de 05.06.2002 (proc. n.º 0210320)]. Em suma, mesmo tendo havido documentação da prova, a sua livre apreciação, devidamente fundamentada de acordo com as regras da experiência, acolhendo uma das soluções plausíveis, torna a decisão inatacável.

Comprometida que se mostra, pela inobservância dos ónus [totalmente omissos nas conclusões e não devidamente perfetibilizados na motivação] que sobre o recorrente impendiam, a sindicância ampla da matéria de facto, i. é, o erro de julgamento [cf. artigo 412.º, n.º 3 e 4 do CPP], vejamos as demais objeções apresentadas contra a decisão de facto.

§2.3. É pródigo o recurso enquanto imputa ao acórdão o uso de factos genéricos, conclusivos e conceitos indeterminados, os quais, aduz, deveriam ter sido dados por não escritos. E, na verdade, assistindo-lhe razão, seria essa a solução! Assim, padeceriam de semelhante patologia os termos “desacatos” [cf. pontos 3 a 12 das conclusões]; “hei-de vos foder” [cf. ponto 33 a 36 das conclusões]; “o arguido sabia que o seu teor seria transmitido àquele, o que quis” [cf. pontos 47/48 das conclusões]; “ordem de paragem” [cf. pontos 51 a 53 das conclusões]. Contudo, nenhuma das ditas expressões, no contexto em que surge descrita na matéria de facto provada, se reveste de tal natureza. É manifestamente o caso da terceira e quarta expressão, limitando-se a primeira e segunda a acolher as concretas palavras proferidas pelo arguido/recorrente nas diferentes ocasiões. Saber se as mesmas tem vocação para preencher os ilícitos típicos que lhe são imputados é questão que pertina tão só ao direito. Eventualmente com a preocupação de nada deixar por dizer, é grande a confusão espelhada no recurso não cuidando o recorrente de distinguir as diferentes realidades, convocando, em simultâneo, “imputações genéricas”, “vícios” do artigo 410.º, n.º 2 do CPP e “erros de direito”, sustentados nas mesmas – supostas – falhas.

Concluindo, também neste segmento terá o recurso de improceder.

§2.4. Não poupa igualmente o recorrente a confeção técnica da matéria de facto, dada por assente no acórdão, aos vícios do n.º 2, do artigo 410.º do CPP, apresentando-se o recurso também neste domínio profuso. Assim configuraria os vícios da alínea a) e c) do n.º 2, do artigo 410.º do CPP, designadamente: (i) a circunstância de nos factos considerados provados no acórdão – o que “já vinha da acusação” – se não “refe[rir] ou caracteri[zar] uma situação de perigo por parte do arguido”, a qual não se poderia extrair da expressão “desacatos”; (ii) a não descrição na matéria de facto provada de uma segunda chamada telefónica levada a efeito pelo arguido para o Posto da GNR; (iii) a conclusão de que não teriam ocorrido no interior do estabelecimento desacatos de monta capazes de justificar a chamada das autoridades ao local; (iv) a indevida consideração de FF e LL como integrando as pessoas contempladas na alínea l), do n.º 2, do artigo 132.º do Código Penal; (v) a omissão do elemento volitivo do dolo em relação ao crime de ameaças agravadas dos dias 05.07.2018 e de 10.07.2018; (vi) a imprecisão e natureza conclusiva da expressão “hei-de vos foder”; (vii) a omissão do elemento volitivo do dolo relativamente às ameaças do dia 12.10.2018; (viii) a contradição entre as declarações do assistente OO e da testemunha RR; (ix) a não concretização de como foi feita a ordem de paragem; (x) a não referência ao facto do militar ter levantado o braço na vertical e virado a palma da mão para a frente, bem assim o facto dado como provado no ponto 15 no que respeita ao arguido ter guinado o veículo na direção do militar, porquanto nenhuma prova, nesse sentido, haver sido produzida; (xi) a contradição entre o ponto 15 na parte em que refere “guinando-o na direção do militar” e a circunstância de a decisão recorrida referir que a testemunha TT disse que o arguido não desviou a direção do veículo; (xii) não ter resultado provado que o militar se encontrasse no centro da via.

Contudo, caso tivesse tido presente que qualquer dos vícios do artigo 410.º, n.º 2, se prende com a confeção técnica da decisão, de cujo texto – por si só, ou conjugado com as regras da experiência, sem recurso, por conseguinte, a quaisquer elementos que lhe sejam estranhos - há-de resultar (a) uma lacuna relevante no apuramento dos factos, que o tribunal devia e podia ter “investigado” por forma a garantir a correta aplicação do direito; (b) contradição irresolúvel com recurso ao texto da decisão entre factos (relevantes) e/ou entre estes e a fundamentação, de tal modo que os primeiros se anulam entre si, e/ou que de acordo com um raciocínio lógico, da fundamentação resultar precisamente uma decisão contrária àquela que mereceu acolhimento; (c) erro notório, traduzido numa falha ostensiva na apreciação da prova, violadora das mais elementares regras da experiência, contrária ao senso comum, de tal modo grosseiro que não escape ao comum do cidadão, colocando a descoberto o recurso a juízos ilógicos, arbitrários e/ou ao arrepio das regras sobre o valor da prova vinculada ou das leges artis, facilmente daria conta que as “situações”, por si configuradas, nuns casos não são suscetíveis de consubstanciar os ditos vícios, e noutros são os mesmos frontalmente contrariados pelo teor da decisão. Com efeito, e no que respeita à omissão do elemento volitivo do dolo em relação aos crimes de ameaça agravada, por certo não atentou nos factos que vem dados por assentes (provados), v.g. os descritos sob os itens 8, 12, 17, 25, 26, 28, 29, 31, 32, bem assim, quanto aos demais crimes, ainda os consignados em 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 27, 30; como desconsiderou o teor da fundamentação da decisão de facto (cf. fls. 18 a 20 v.), cuja leitura na integra sempre seria recomendável pois, certamente, daria conta da falta de fundamento e/ou irrelevância do que alega já quanto a não ter desviado o veículo; já quanto à posição do militar no centro da via; já, por fim, quanto ao modo como foi levada a efeito a ordem de paragem, o mesmo sucedendo, no contexto dos factos provados (v.g. item 3), em relação à não consideração, no seio dos mesmos, de uma segunda chamada telefónica; como antecipou razões que pertinam tão só ao direito (v.g. relativamente à “qualidade” de FF e LL); como retomou a questão dos factos genéricos, indeterminados e/ou conclusivos (matéria que já mereceu a atenção deste tribunal), em suma, quando fez tábua rasa da fundamentação da convicção que, de tão completa e clara se apresenta quanto aos vários meios de prova produzidos, conjugados e criticamente apreciados, permite a total compreensão dos factos, deixando, sem qualquer dificuldade, perceber a razão de ser do sentido da decisão.

Concluindo, não enferma a decisão de qualquer dos invocados vícios.

§2.5. Por fim, não deixa o recorrente de convocar o in dubio pro reo, cuja aplicação conduziria a que não fossem considerados provados, senão na totalidade, pelo menos em parte, os factos que levaram à sua condenação. Porém sem que, uma vez mais, lhe assista razão. Se não merece controvérsia que o princípio em questão importa que perante um acervo factual probatório incerto, o tribunal tenha como não provados os factos desfavoráveis ao arguido e, pelo contrário, como provados os factos que lhe são favoráveis; também não suscita a mínima reserva que indispensável, para tanto, é que se suscite, ou deva suscitar, no espirito do julgador a dúvida quanto à realização dos mesmos. Mas não é qualquer dúvida que pode conduzir à aplicação do princípio, antes sim, apenas, aquela que surge razoavelmente sustentada. Dito de outro modo, se da motivação da decisão de facto não ressuma que ao julgador se tenha colocado, sequer se alcançando que assim devesse ter sido, uma dúvida capaz de conduzir à aplicação do pro reo, inexiste motivo para falar em violação do princípio. Retomando o caso concreto, a análise conjugada dos diferentes meios de prova, objeto de apreciação crítica – sem que o tribunal se tenha eximido de pôr em confronto, sempre que não coincidentes e sobre aspetos relevantes, as versões apresentadas -, com recurso à livre convicção e às regras da experiência (artigo 127.º do CPP), não consente a dúvida razoável, a qual manifestamente não se colocou aos julgadores, tão pouco se colocando a este tribunal, de tão cristalino se apresenta o processo de formação da convicção, onde não se identificam momentos de indefinição, juízos ilógicos, arbitrários, contrários às ditas regras da experiência.

Soçobra, igualmente, nesta parte, o recurso.


*

Concluindo: na ausência de qualquer invalidade de conhecimento oficioso; comprometida que resultou, em consequência da não observância, em toda a sua dimensão, dos ónus de impugnação especificada, a sindicância ampla da matéria de facto (erro de julgamento); afastados os invocados vícios (artigo 410.º, n.º 2 do CPP); não se confirmando, na confeção da matéria de facto, o recurso a conclusões, conceitos vagos e/ou indeterminados que devessem ser tidos por não escritos; encerrando a fundamentação da decisão de facto uma análise exaustiva da prova produzida, criticamente apreciada, de acordo com a livre convicção e as regras da experiência comum, à margem de juízos arbitrários e sem que se tenha suscitado aos julgadores, tão pouco vendo este tribunal motivo para que assim devesse ter sido, a dúvida razoável sobre os factos relevantes, considera-se, tal como consta da sentença recorrida, definitivamente fixada a matéria de facto.

§3. Da decisão de direito

§3.1. Não se conforma o recorrente com a condenação pelo crime previsto no artigo 306.º do Código Penal, cujos elementos, na sua perspetiva não resultariam perfetibilizados. Sob a epígrafe “Abuso e simulação de sinais de perigo”, dispõe a norma em questão: “Quem utilizar abusivamente sinal ou chamada de alarme ou de socorro, ou simuladamente fizer crer que é necessário auxílio alheio em virtude de desastre, perigo ou situação de necessidade coletiva, é punido (…)”. Como, reportando-se ao bem jurídico protegido, escreve Cristina Líbano Monteiro, inComentário Conimbricense do Código Penal”, Tomo II, Coimbra Editora, pág. 1223, “À primeira vista, o enfoque parece unitário, indo as preocupações do legislador mais para o lado da ordem, do bom funcionamento das formas de auxílio em situações de perigo, do que para o alarme social que falsos pedidos de socorro possam provocar. Com efeito, em parte alguma do artigo se fala em causar alarme ou inquietação entre a população. O único resultado pedido pelo tipo – se é que de resultado se pode falar – é o que se traduz no envio/receção de uma chamada de auxílio que, parecendo séria, se vem a revelar desnecessária ou injustificada. A matéria proibida, consiste em criar dolosamente em quem deve ajudar a falsa ideia de que a sua intervenção é necessária. E por que razão se proíbe? Com que finalidade? Ao que tudo indica, a de evitar que se perturbe o bom funcionamento dos mecanismos (organizados ou espontâneos) de auxílio público”. É, em suma, nas palavras da Autora, o “normal funcionamento dos mecanismos (…) de auxílio público” que se visa salvaguardar. “Neste tipo legal (…) faz-se soar indevidamente o alarme que desencadeia um processo de auxílio. E é o desperdício dessa atividade auxiliadora que se pune quando for dolosamente provocado”. No que ao tipo objetivo de ilícito respeita o legislador faz equivaler “sinal ou chamada de alarme ou de socorro”, os quais, de acordo com a mesma, “podem ser definidos como “expressões percetíveis, acústicas ou óticas, que chamam a atenção de alguém para a existência de uma situação de necessidade ou de perigo e para a necessidade de ajuda alheia” (S/S STREE §145 4)”. Já o fazer crer simuladamente que é necessário auxílio alheio em virtude de desastre, perigo ou situação de necessidade coletiva, traduz-se, de acordo com a mesma Autora, “na convocação injustificada e por qualquer meio da solicitude dos mesmos operadores de ajuda comunitária”. Se o perigo não existir e o agente disso estiver ciente, as condutas equivalem-se, apenas se distinguindo “pelo tipo de linguagem utilizado”. Concretizando, “Fazer crer simuladamente éfazer alguém tomar como certo algo que é contrário à própria convicção do persuasor”, caso em que o agente “provoca noutra pessoa o convencimento de que a sua ajuda é necessária em virtude de desastre, perigo ou situação de necessidade coletiva, sabendo que o não é”.

Retomando o caso concreto, percorrendo a matéria de facto definitivamente assente, concretamente a descrita sob os itens 1, 2, 3, 4, 18, 19, 20 e 32 não nos suscita reserva a presença dos elementos objetivo e subjetivo do crime em referência. Com efeito, ao invés do que defende o recorrente, a chamada telefónica, efetuada pela madrugada (2h40), para o Posto Territorial da GNR, solicitando a presença “urgente” de uma patrulha no Bar, dando conta de estarem a ocorrer desacatos no interior do seu estabelecimento de diversão noturna, circunstância que conduziu, num primeiro momento, à deslocação ao local de uma patrulha às ocorrências (composta por três elementos), à qual, via rádio, foi transmitido o teor da dita chamada e, num segundo momento, de uma outra patrulha, de diferente Posto Territorial, (integrada por dois militares), igualmente acionada, como reforço da primeira, induz inequivocamente a situação de «perigo», a que se reporta o tipo incriminador. O contexto em que o recorrente levou a efeito o pedido de comparência dos agentes de autoridade - pela madrugada -, o local para o qual foi solicitada - estabelecimento de diversão noturna -, o pedido de urgência na comparência, à luz das regras da experiência, do normal acontecer, só pode ser interpretado como configurando os desacatos, em desenvolvimento, uma situação de «perigo», tal como foi percecionado pela instituição GNR, só assim se justificando a mobilização de duas patrulhas de diferentes Postos – a segunda de reforço -, compostas no total por cinco militares. Por outro lado, resultou igualmente provado haver o recorrente agido, sabendo que não se verificava (como efetivamente não se verificava) semelhante situação (de perigo), porém, simulando perante a autoridade que assim era, fazendo-a acreditar na necessidade da sua ajuda para intervir/ pôr termo a um quadro de perigo, resultante dos desacatos em curso, assim mobilizando as forças de segurança - “perturbando o bom funcionamento dos mecanismos, [no caso formais] de auxílio público” -, violando, deste modo, o bem jurídico protegido pela norma, não obstante saber que incorria em responsabilidade criminal.

Revela-se, pois, de todo acertado o acórdão recorrido enquanto teve por perfetibilizados os elementos típicos do crime em referência, o qual se basta com o dolo (no caso direto), cuja verificação também não suscita dúvida.

Improcede, neste segmento, o recurso.

§3.2. Também a punição pelos crimes de injúria agravada desencadearam a reação do recorrente, na parte em que o tribunal decidiu pela aplicação da alínea l), do n.º 2, do artigo 132.º do Código Penal em relação às ações que teriam visado FF e LL, já que, à data, apenas revestiriam a qualidade de “meros candidatos admitidos ao curso de formação de guardas”, circunstância que, não se tendo os mesmos constituído assistentes no processo, conduziria à falta de legitimidade do Ministério Público para proceder pelos ditos crimes de injúria.

Reporta-se o recorrente às condutas descritas sob os itens 8 e 12 dos factos provados, enquanto, entre outros, figuram como visados, respetivamente os Guardas provisórios [cf. itens 2 e 12] LL e FF, questão sobre a qual se debruçou o acórdão, exarando: «Importará apenas referir – atento o invocado pela Defesa – que a circunstância de os visados LL e FF, ainda não possuírem, à data, a categoria de Guardas, não afasta a verificação da circunstância agravante a que alude o art. 184ºdo Código Penal.

Efetivamente, o que decorre do disposto no art. 6.º, n.º 2 do Decreto-Lei n.º 30/2017, de 22 de março, é que os “Guardas Provisórios” correspondem já a uma das designações dos militares da Guarda, ou seja, integram já, eles próprios, a categoria de militares.

Nessa qualidade, e embora com as limitações decorrentes da formação que ainda recebiam, ou sob a supervisão dos seus superiores, certo é que LL e FF assumiam já a qualidade de militares da GNR e, na prática, encontravam-se a adquirir a adquirir a sua formação no serviço de patrulha que integravam, estando, como resultou provado, devidamente uniformizados.

Daí que, ainda que se considerasse que a circunstância de ainda não integrarem o efetivo do quadro da Guarda lhes retirava capacidade de atuação ao abrigo da autoridade pública (o que não era o caso, já que, ainda que supervisionados, os visados exerciam já funções inerentes às forças policiais), sempre seria de concluir pela verificação da circunstância agravante prevista no art. 132º, n.º 2 al. l) do Código Penal, quer porque estavam já encarregados de serviço público – e era nele que exerciam funções na data dos factos.

Entende-se, pois, que a qualidade de Guardas Provisórios em que LL e FF estavam investidos na data dos factos, as funções inerentes à qualidade de militares que desempenhavam e o facto de integrarem a patrulha daquela força militar e estarem devidamente uniformizados, constituindo-se, por isso, como representantes daquela corporação, não pode deixar de levar à conclusão de que, ao atuar nos termos descritos, o arguido incorreu, também quanto a estes, na prática do crime de injúria agravada».

Revendo-se este tribunal em semelhante apreciação, sem que o recorrente tenha cuidado de contrariar os respetivos fundamentos, redundaria num exercício tautológico a sua repetição, concluindo-se, assim, quer se encare a coisa na perspetiva da natureza das funções efetivamente desempenhadas (pese embora ainda sem vínculo ao quadro), quer na ótica da condição de militares, encarregados de serviço público [cf. o n.º 5, do artigo 6.º, do D.L. n.º 30/2017, de 22.03], pelo decesso, também nesta parte, do recurso, mantendo-se a decisão quanto aos crimes de injúria agravada – cuja presença dos respetivos elementos típicos não suscita reserva -, todos eles de natureza semi-pública [artigos 181º e 188.º do Código Penal].

§3.3. Mas tão pouco a subsunção dos factos aos crimes de ameaça agravada colhe a anuência do recorrente. Não retomando as questões já prejudicadas com a apreciação levada a efeito na parte correspondente ao recurso da decisão de facto, o que nem sempre será conseguido por via do percurso errático, que as conclusões bem ilustram, neste específico domínio contrapõe: no que respeita às ações descrita sob os itens 8, 12 e 17 a ausência do elemento volitivo do dolo; já quanto à conduta reportada no item 12, no segmento “hei-de vos foder”, tratando-se de expressão genérica e conclusiva, não seria a mesma suscetível de consubstanciar qualquer anúncio de um mal, e mesmo que assim não fosse sempre falharia o caráter futuro do mal anunciado, pois, quando muito, seria de encará-lo como iminente; do mesmo modo, pelos motivos invocados a propósito dos crimes de injúria, em relação aos visados FF e LL nunca teria aplicação a alínea l) do n.º 2, do artigo 132.º do Código Penal.

Se quanto à omissão da descrição do elemento volitivo do dolo, como decorre à saciedade da conjugação dos itens 26, 29, 31 e 32 dos factos provados, é evidente a falta de razão do recorrente, o mesmo se diga em relação à inidoneidade da expressão “hei-de vos foder” para integrar o elemento objetivo do crime de ameaça. O clima, de grande exaltação e agressividade [vide os itens 11 e 12] em que a dita expressão foi dirigida aos militares da GNR, na sequência de uma tentativa de investir contra o Comandante do Posto, não consente a dúvida sobre o anunciado propósito de vir a atentar contra a integridade física e mesmo a vida dos visados. Mostram-se, pois, de todo fundadas as seguintes passagens do acórdão recorrido: “Ora, não restam dúvidas que as expressões proferidas são adequadas a provocar no seu destinatário sentimentos de receio pela sua integridade física e pela vida. (…) Note-se que as expressões foram proferidas num contexto de evidente exaltação e descontrolo por parte do arguido, em simultâneo com diversos insultos dirigidos aos mesmos, e fazendo alusão a desentendimentos/confrontos anteriormente mantidos com outro(s) elemento(s) daquela corporação. Ao que acresce a circunstância de o arguido já registar antecedentes por crimes contra a autoridade pública e de ser do conhecimento de todos os presentes o clima de confronto com um outro militar. O que, tudo conjugado, conferia seriedade às expressões proferidas”. Por outro lado, não resultando, de algum modo, a prática de atos de execução, falece a pretensão no sentido de afastar a natureza futura da ameaça - o prenúncio do mal. Quanto ao mais, concretamente no que respeita à qualidade de militares dos Guardas LL e FF, reiteram-se as considerações a propósito já acima tecidas.

Em suma, não suscitando a este tribunal reserva o acórdão recorrido também na parte em que teve por perfetibilizados os elementos objetivos e subjetivos dos crimes de ameaça agravada, improcede o recurso.

§3.4. Manifesta-se o recorrente contra incriminação pela prática do crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto no n.º 2, do artigo 347.º do Código Penal. Aqui, como, no essencial, quanto aos demais crimes pelos quais sofreu condenação, surge o dissidio suportado na inconformação relativamente à matéria de facto, sustentado num alegado recurso a formulações genéricas, conclusivas, vícios, etc., questões que se mostram prejudicadas por via da estabilização, a esse nível, da decisão, conforme acima decidido. Resta a “ordem de paragem” que o recorrente, num exercício onde não falta a demagogia, pretende não ter ocorrido de acordo com a formulação legal resultante do Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de outubro [cf. os pontos 54 e 55 das conclusões]. Contudo, basta atentar no item 15 da matéria de facto provada para concluir que, independentemente do “modo” utilizado, a mesma aconteceu e de forma inequívoca. Que dúvida, nesse sentido [de ser destinatário de uma ordem de paragem] podia assolar o recorrente quando confrontado com um militar, equipado com colete refletor, posicionado na faixa de rodagem, manuseando, de forma cadenciada, elevando-o e baixando-o, o bastão refletor? Obviamente, nenhuma! E menos ainda se a tanto aliarmos a circunstância de tal ter ocorrido na madrugada [pelas 2h34m] da passagem do ano, no decurso de uma ação de fiscalização de trânsito, no âmbito da Operação Ano Novo. E ainda menos, considerando o facto de, no seguimento, ter imprimido maior velocidade ao veículo, conduzindo-o na direção do militar. Resultando inequívoca a ordem de paragem, bem mais eficaz nas circunstâncias, designadamente de tempo, do que “o levantamento do braço na vertical e a palma da mão para a frente”, caso em que, com grande probabilidade assistiríamos a uma defesa agora alicerçada na impossibilidade de perceção, devido à não adequação do meio utilizado, da dita ordem de paragem, é indiferente à consumação do ilícito típico o modo como se processou, posto que compreendida, como o foi, pelo arguido/recorrente.

Resultando dos factos [cf. os itens 13 a 15, 30 e 32] demonstrada a ação de desobediência ao sinal de paragem, bem como aqueloutra, levada a efeito, mediante execução vinculada, traduzida no dirigir o veículo na direção do militar para se opor a que o mesmo praticasse ato relativo ao exercício das suas funções, não suscitando reserva a presença do elemento subjetivo do crime em referência - compatível com qualquer modalidade de dolo - é de manter, também neste segmento, a decisão recorrida. 

§4. Das penas parcelares, única e acessória

§4.1. Nos pontos 69 a 74 insurge-se o recorrente contra as penas parcelares e única encontradas, as quais dizpouco criteriosas e desequilibradamente doseadas”, padecendo o acórdão, quanto à última, de nulidade por falta de fundamentação. Contudo, no que às primeiras (parcelares) respeita percorridas as conclusões e a motivação donde emergem não cuida o mesmo de esclarecer o(s) motivos(s) pelos quais assim seria. Foram indevidamente ponderadas circunstâncias que o não deveriam ter sido, ou a serem conduziriam a diferente solução? O Coletivo deixou de ponderar circunstâncias v.g. favoráveis ao recorrente, capazes de justificar um menor juízo de censura e/ou de sustentar uma diminuição das exigências de prevenção quer gerais, quer especiais? Fica sem se saber, sendo manifestamente insuficiente a alusão a um conjunto de normas, supostamente violadas – [cf. artigo 412.º, n.º 2 do CPP].

Como assim, rejeita-se, nesta parte (penas parcelares) o recurso.

 §4.2. Assistirá razão ao recorrente quando invoca a nulidade, decorrente da ausência de fundamentação da pena única? Lê-se no acórdão: «Procedendo ao cúmulo, verifica-se ser abstratamente aplicável ao arguido, nos termos do disposto no artigo 77.º do Código Penal, pela prática dos referidos crimes, uma pena situada entre o limite mínimo de 2 anos e o limite máximo de 8 anos e 11 meses de prisão.

Ponderados os critérios de determinação da medida da pena atrás referidos, e numa análise global da atividade delituosa do arguido, entende-se ajustada a aplicação, em cúmulo, da pena de 4 anos e 8 meses de prisão».

Se é certo que de tão sucinta passagem se extrai um exercício deficiente do comando inscrito no artigo 77.º, n.º 1 do CPP, enquanto na determinação da pena única manda atender, em conjunto, aos factos e à personalidade do agente, não menos verdade é que – concedendo, embora, que o tribunal a quo, para que dúvida não restasse, devesse ter, formalmente, cindindo a apreciação - não deixa o acórdão de proceder a uma análise global, que transcende os crimes de per se. Assim é que após as considerações que pertinam cada ilícito típico, consigna: «Atende-se (…) à circunstância de a grande maioria dos referidos crimes terem sido praticados em duas ocasiões, encontrando-se todos eles delimitados num período temporal de seis meses; A natureza do dolo, que além de direto foi intenso revelando um desprezo ostensivo pelas funções desempenhadas pelos visados; A conduta posterior aos factos, havendo a ponderar as condenações sofridas posteriormente (uma das quais por crime de diferente natureza, mas outra por factos anteriores e posteriores aos aqui em apreço, mas ainda relacionados com o mesmo contexto (…), ou visando também elementos da GNR); [a] postura desculpabilizante e vitimizante» assumida pelo recorrente, «sem revelar qualquer juízo crítico sobre os seus comportamentos», sopesando, igualmente, na análise global a sua integração, bem como o tempo decorrido sobre a data dos factos, reportando-se, ainda, a um certo «apaziguamento dos conflitos» que, então, se verificavam. Ora, semelhante análise – a qual enfatiza-se transcende os crimes de per se – encerra insofismavelmente uma apreciação, conjunta, dos factos e da personalidade nestes refletida, donde decorre o cabal cumprimento do inciso normativo em referência, levando, assim a que não se considere verificada a invocada nulidade do acórdão por ausência de fundamentação.

Quanto à pena única encontrada, reproduzem-se os fundamentos levados a efeito a propósito das penas parcelares – incumprimento dos ónus a que se reporta o n.º 2, do artigo 412.º do CPP -, revelando-se de todo insuficiente dizer que a mesma se mostra «desproporcionada, desnecessária e inadequada aos critérios determinantes daquela», pelo que deveria ter sido fixada «num valor muito próximo do limite mínimo da moldura do concurso». Repete-se, e porquê? Qual foi o erro de análise em que incorreu o Coletivo? O recorrente não o concretiza e ao assim proceder inviabiliza também nesta parte o conhecimento do recurso, o que implica a respetiva rejeição.

§4.3. Insurge-se o recorrente contra a aplicação da pena acessória de proibição de conduzir, cominada pela prática do crime de resistência e coação sobre funcionário, prevenido no artigo 347.º, n.º 2, do Código Penal, já que – refere - embora o modo de ação típica exija que o crime seja cometido com a utilização de veículo, não resultaria perfetibilizada a parte final da alínea b), do n.º 1, do artigo 69.º do mesmo diploma.

Atentemos no que transparece dos autos.

No decurso da audiência de julgamento o tribunal a quo, a requerimento do Ministério Público, procedeu à comunicação ao arguido da alteração da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, nos seguintes termos: «(…) em face do teor do artigo 15 da acusação assiste razão ao Ministério Público e poderão ter-se por verificados os pressupostos previstos no art.º 69.º, n.º 1, al. b) do C. Penal para aplicação da pena acessória de proibição de condução de veículos motorizados (…)», na sequência do que nada foi requerido pela defesa – [cf. ata de fls. 721-722].

Na parte respeitante à dita pena acessória ficou exarado no acórdão: «A par da sanção penal prevista no art. 347.º, prevê o art. 69.º do Código Penal que:1- É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido:

(…)

b) Por crime cometido com a utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante;”

No caso dos autos, como se viu, o arguido é condenado pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, p. e p. pelo art. 347.º, n.º 2 do Código Penal, sendo certo que decorre da própria previsão penal que o uso do veículo constitui modo de ação típico.

O que importa, naturalmente, o preenchimento do pressuposto da aplicação da pena acessória, previsto na al. b) do mencionado preceito.

(…)”.

Vejamos.

Pese embora as alterações introduzidas pela Lei n.º 77/2001, de 13 de julho e, após, pela Lei n,º 9/2013, de 21 de fevereiro, ao artigo 69.º do Código Penal, manteve-se intacta a primitiva redação da alínea b, do n.º 1, na qual se dispõe: ”1- É condenado na proibição de conduzir veículos com motor por um período fixado entre três meses e três anos quem for punido: b) Por crime cometido com utilização de veículo e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante” – [sublinhado nosso].

Por seu turno, a alínea a) do dito preceito comina a mesma sanção a quem for punido “Por crimes de homicídio ou ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário e por crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º”; pena acessória também aplicável caso a condenação o seja: “Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para deteção de condução de veículo sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.”

À luz do atual quadro legislativo [em vigor à data da prática dos factos], dúvida não resta de que o crime em questão [resistência e coação sobre funcionário, na modalidade do n.º 2, do artigo 347.º do Código Penal] não integra nenhum dos ilícitos típicos contemplados nas alíneas a) e c) do n.º 1, do artigo 69.º do mesmo diploma, sendo certo que o legislador inovou em relação à versão de 2001 [Lei n.º 77/2001] enquanto incluiu na atual redação, a par dos crimes previstos nos artigos 291.º e 292.º, os crimes de homicídio ou de ofensa à integridade física cometidos no exercício da condução de veículo motorizado com violação das regras de trânsito rodoviário. Inovação essa, a que, por certo, não foi estranha a controvérsia que se encetou, designadamente na jurisprudência, sobretudo em relação a estes últimos crimes, até então não expressamente previstos no seio do artigo 69.º - [cf., v.g. os acórdãos do TRL, de 26.01.2016 (proc. n.º 210/12.8TALNH.L1-5), 01.03.2011 (proc. n.º 404/07.8GTALQ.L1-5), 11.02.03 (proc. n.º 6271/02), 09.06.2015 (proc. n.º 393/14.2PQLSB.L1 – 5)].

Do que fica dito resulta, pois, que a pena acessória aplicada, por via da punição pela prática do crime em referência só pode subsistir caso se entenda, como no acórdão recorrido, tratar-se de situação subsumível à já transcrita alínea c), do n.º 1, artigo 69.º do Código Penal, solução que, com o respeito devido, se afigura não ser de acolher.

Com efeito, estando perante duas condições cumulativas, sem que a presença da primeira [por crime cometido com utilização de veículo] suscite, para o que ora nos ocupa, qualquer reserva, já assim não é em relação à segunda [e cuja execução tiver sido por este facilitada de forma relevante]. De facto, resulta apodítico que «só é facilitado de forma relevante pela utilização do veículo o crime que sempre poderia ser cometido sem essa utilização, mas que graças a ela se tornou significativamente de mais fácil execução, o que (…) exclui as situações em que a utilização do automóvel é elemento necessário do crime», como acontece no ilícito típico previsto no n.º 2, do artigo 347.º do Código Penal – [cf. ac. do TRL de 01.03.2011 (proc. n.º 404/07.8GTALQ.L1-5)]. De fora ficam, pois, os casos em que a utilização do veículo não é meramente instrumental em relação à execução do crime; antes configura o elemento material, objetivo e nuclear, imprescindível à sua perfetibilização – [cf., no mesmo sentido, v.g. os acórdãos do TRP, de 08.03.2006 (proc. n.º 0545077), de TRL, de 17.10.2006 (proc. n.º 7179/2006.5)].

Em suma, não se ignorando o papel que a pena acessória representa na realização das finalidades da punição - as mais das vezes de eficácia superior à da pena principal - conclui-se pela procedência, nesta parte, do recurso, o que conduz à revogação do acórdão enquanto condenou o recorrente na pena acessória de proibição de conduzir.

III. Dispositivo

Termos em que acordam os juízes que compõem este tribunal em julgar parcialmente provido o recurso, e em consequência:

i. Revogam o acórdão recorrido na parte em que condenou o arguido/recorrente AA na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de seis meses, em tudo o mais o mantendo.

ii. Sem tributação – [cf. artigo 513.º, n.º 1 do CPP].

[Texto Processado e revisto pela relatora]