Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
348/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: DOCUMENTO
CRIME DE FALSIFICAÇÃO DE DOCUMENTO
Data do Acordão: 03/01/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 255º, AL. A) E 256º, DO C. PENAL
Sumário: Uma “participação de sinistro” não integra o conceito de documento por não se tratar de declaração idónea para provar facto relevante para efeito do crime da falsificação.
Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM CONFERÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

A assistente A... apresentou queixa contra a arguida B..., imputando-lhe a prática de um crime de burla na forma tentada p. e p. pelos artigos 217º, nº1 e 23º e de um crime de falsificação de documento p. e p. pela al. b) do n.º 1 do artigo 256º, todos do C.Penal.
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Realizado o inquérito preliminar, o Ministério Público determinou o arquivamento dos autos, nos termos do nº 4 do art. 277º do CPP, relativamente ao crime de burla por considerar extinto o respectivo direito de queixa, pelo decurso de mais de 6 meses entre o conhecimento dos factos e a apresentação da queixosa; e, relativamente ao crime de falsificação, por entender existir concurso aparente de crimes, não punível, por consumpção com o crime de burla.
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Conformando-se com o arquivamento dos autos relativamente ao crime de burla, a assistente requereu a abertura da instrução pretendendo que a arguida fosse pronunciada pelo crime de falsificação de documento.
Após debate instrutório foi proferido despacho de não pronúncia quanto ao referido crime de falsificação de documento.

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Recorre a assistente do referido despacho de não pronúncia, formulando as seguintes CONCLUSÕES
1 - Não pode a Recorrente conformar-se com a douta decisão instrutória de fls. ora posta em crise, nos termos da qual decidiu-se não pronunciar a Arguida B... pelo crime de falsificação de documentos.
2 - Ora, vem a douta decisão recorrida fundamentar tal decisão no entendimento de que, tendo existido apenas uma resolução criminosa, a falsificação do documento de participação havia sido um meio para cometer o crime de burla, pelo que o crime de burla estava numa relação de consumpção para com o crime de falsificação de documento.
3 - O entendimento acima aludido violou o disposto no art. 256º, n.º1 alínea b) do Código Penal que prevê o tipo de crime de falsificação de documento,
4 - Bem como o disposto no artigo 30º, n.º 1 do Código Penal.
5 - Ainda contraria, sem qualquer menção ou fundamentação da razão da divergência, a a jurisprudência fixada no Assento n.º 8/2000 (publicado no Diário da Republica 1-A, n.º 119 de 23.05.00), nos termos do artigo 445º, n.º3 do C.P.P.
6 - Foi tido como assente, tanto no douto despacho de acusação como na douta decisão instrutória, que os elementos objectivos do crime de falsificação de documentos, encontram-se preenchidos: dúvidas não restam de que a Arguida quis falsificar o documento próprio da participação do acidente. Tendo-o na sua posse, fez dele constar factos falsos com relevância jurídica, agindo com a intenção de obter para si benefício ilegítimo.
7 – Também foi aceite que os factos denunciados integravam o crime de burla simples na forma tentada p. p. pelo art. 2l7º do CP, embora o procedimento criminal nesta parte esteja extinto, por a queixa ter sido apresentada extemporaneamente.
8 - Com efeito, a Arguida cometeu efectivamente dois crimes (o de falsificação de documento e o de burla)
9 - O crime de burla e o crime de falsificação de documento tutelam bens jurídicos distintos: o crime de burla protege o património globalmente considerado, enquanto que o crime de falsificação de documento é um crime contra a vida em sociedade, em que é protegida a segurança e confiança do tráfico probatório, a verdade intrínseca do documento enquanto tal, como bem jurídico.
10 - E sendo os bens jurídicos tutelados, como se disse, diferentes naqueles dois tipos de crime, ter-se-á que dar cumprimento ao estatuído na aludida norma contida no art. 30, 1 do CP, não existindo nada que permita excepcionar a aplicação desta norma jurídica: “o número de crimes determina-se pelo número de crimes efectivamente cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela conduta do agente.
11 - De referir ainda, a título subsidiário, e sem prejuízo de todo o exposto, que não existiu no caso sub judice uma só resolução criminosa, mais antes duas resoluções criminosas. Quando a Arguida preenche e assina a participação de sinistro, dela fazendo constar factos falsos, estava bem ciente do acto que assim praticava, e de que assim iludir a confiança que a seguradora deposita naquele documento. Embora a Arguida almejasse mais do que isso, certo é que bem sabia e estava ciente naquele momento que fazia constar da participação factos falsos relevantes juridicamente.
12. Com vista a fixar jurisprudência nos casos em que a agente falsifica um documento e o usa para enganar e induzir em erro o burlado (como no caso sub judice) o Supremo Tribunal da Justiça, com a introdução da nova Lei, através do Assento 8/2000 (publicado no Diário da República 1-A n.º 119 em 23.05.00), decidiu que, neste tipo de casos, existe um concurso real ou efectivo entre o crime de burla e de falsificação de documentos, e não uma relação de consumpção do crime de burla para o crime de falsificação de documentos.
13 - Ora, não se vislumbram no presente caso razões ou fundamentos novos que justifiquem a não aplicação ou reafirmação do entendimento fixado em tal Assento.
14 - Pelo que, atento o exposto, deve considerar-se existir concurso real e efectivo entre o crime de burla e o de falsificação.
Nestes termos, deve dar-se provimento ao presente recurso, revogando-se a douta Decisão Instrutória recorrida, c pronunciando-se a Arguida pelo crime de falsificação de documento p. e p. no artigo art. 256º, n.º1 alínea b) do Código Penal.
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Respondeu o digno magistrado do M.P junto do Tribunal recorrido, pugnando pela manutenção do despacho recorrido, louvando-se nos argumentos ali aduzidos.
Respondeu também a arguida louvando-se na mesma argumentação.
Neste Tribunal o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual se pronuncia pela improcedência do recurso na medida em que os autos evidenciam que a falsidade constante da declaração de sinistro constitui elemento objectivo do crime de burla, sendo por isso a pretensão da recorrente inviável.
Corridos os vistos e realizado o julgamento, em conferência, cumpre apreciar e decidir.

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Está em causa a pronúncia, ou não, apenas pelo crime de falsificação de documento, uma vez que não são questionados os fundamentos do arquivamento relativamente ao crime de burla na forma tentada.
Os factos denunciados pela recorrente qualificados como crime de falsificação de documento, consistem no seguinte: Sendo titular de uma apólice de um contrato de seguro de riscos dentro da residência familiar (apólice junta a fls. 9), a arguida preencheu e assinou uma “participação de sinistro” (junta a fls. 10 dos autos) que apresentou na agência da assistente da área da sua residência. Dessa participação fez constar a destruição dos “óculos da explicadora de sua filha”, quando, em verdade, os óculos danificados pertenciam à própria arguida, pretendendo assim obter o pagamento dos mesmos sem que estivessem cobertos pela apólice.
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A fundamentação jurídica do despacho de não pronúncia assenta em que a falsidade da declaração constante da participação de sinistro constitui já de si o elemento essencial do tipo objectivo do tipo do crime de burla, pelo que a sua punição autónoma violaria o princípio ne bis in idem. Ou de que não pode a declaração inverídica ser autonomizada daquela que serve para a integração do crime de burla (na forma tentada, uma vez que nas averiguações a que procedeu a assistentes descobriu o engano e recusou pagamento).
Por sua vez a fundamentação do recurso coloca o acento tónico na existência de concurso efectivo entre o crime de falsificação e o crime de burla.
A questão do concurso aparente, por relação de consumpção, foi objecto de um acórdão para harmonização de jurisprudência na vigência da redacção originária do C. Penal de 1982 -Acórdão STJ 19.02.92, publicado no DR IIS de 09.04.1992.
E, tendo-se suscitado novamente divergências na jurisprudência após a revisão de 1995, foi proferido novo acórdão uniformizador – Ac. de 04.05.2000, publicado no DR IS-A de 23.05.
Não havendo argumentos consistentes nem pelo decurso do tempo, nem pelo surgimento de novas perspectivas sobre o tema que permitam questionar o entendimento ali consagrado.
Sendo certo que a mesma acção integrar vários crimes, o agente comete tantos quantos os bens jurídicos protegidos por várias normas violadas pela mesma acção, face ao disposto no arty. 30º, n.º1 do C. Penal.
Aliás o crime de falsificação está “a meio caminho entre os crimes contra bens colectivos e os crimes patrimoniais”, na expressão de FIGUEIREDO DIAS, citada no Comentário Conimbricence, p. 675. Tratando-se na expressão de outros autores de um crime “pluri-ofensivo” por violar diversos bens jurídicos - o interesse público da genuinidade e autenticidade dos documentos em si e ainda os interesses de conteúdo patrimonial das pessoas ou instituições prejudicadas, em concreto, com a falsificação.
Subjacente à decisão recorrida está porém a constatação de que a actuação da arguida se “esgotou” ou foi totalmente absorvida ou “consumida”, para efeitos penais, no crime de burla.
Sendo incontroverso, no caso, em termos de prova indicaria, que a arguida fez constar da “participação do sinistro” dados não correspondentes à verdade – concretamente a atribuição da titularidade dos óculos a um terceiro, quando pertenciam à própria arguida.
Não sofrendo dúvida, por outro lado, que a arguida não preencheu a “participação de sinistro” em questão, em formulário próprio, disponibilizado pelos serviços da assistente, tendo como objectivo a criação de um documento falso enquanto tal, mas antes e apenas com o objectivo de vir a obter um pagamento, indevido, da companhia de seguros.
No entanto afigura-se que o cerne da questão está em saber se tal “participação de sinistro” constitui um verdadeiro documentos para feito do disposto no art. 256º.
Porque tratando-se de mera “participação” de acidente não constituirá, em si e por si, meio de prova nem se destina a provar o acidente, mas apenas a “participá-lo” à Companhia de Seguros, como o nome sugere.
O conceito de documento consta do art. 255º al. a) do C. Penal, na versão saída da revisão de 95. Postula tal disposição que “Para efeito do disposto no presente capítulo, considera-se: a) Documento: a declaração corporizada num escrito (...) que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente; e bem assim o sinal materialmente feito, dado ou posto numa coisa para provar facto juridicamente relevante e que permite reconhecer á generalidade das pessoas ou a um cero círculo de pessoas o seu destino e a prova que dele resulta”.
O legislador consagrou um conceito de documento que não coincide com o do art. 362º do C. Civil, porque demasiadamente vago para o direito penal, sujeito ao princípio da tipicidade e ainda porque no momento em que o Projecto do Código Penal foi elaborado não se encontrava ainda em vigor o C. Civil – cfr. MAIA GONÇALVES, cit. no Comentário Conimbricence, anotação ao art. 255º.
Enquanto o direito civil dá um relevo primordial á função do documento como objecto de representação ou reprodução, no direito penal o papel principal cabe ao documento como declaração.
No entanto, como resulta do enunciado do art. 255º descrito a declaração, além de corporizada em documento, deve ser idónea para provar facto jurídico relevante.
No caso, não há dúvida que estamos perante uma declaração corporizada em escrito. Faltando apenas saber se tal declaração, incorporada no documento, constitui, em si e por si, meio idóneo para provar o facto ali descrito.
Como refere HELENA MONIZ (Comentário Coninmbricence, p. 667) “segundo von Liszt, facto juridicamente relevante era um facto que só por si ou ligado a outros, dá origem a relações jurídicas, as extingue altera (…) Documento, para efeito do direito penal, não é o material que corporiza a declaração mas a própria declaração, independentemente do material em que está corporizada; e declaração enquanto representação de um pensamento humano (função de perpetuação) (…) Documento é pois a declaração de um pensamento humano que possa constituir meio de prova; só assim e compreendendo que o crime de falsificação de documento proteja o específico bem jurídico que é a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório.
Ora a declaração não se confunde com o facto que visa provar, constituindo meio de prova do mesmo. No caso em apreço a “participação do sinistro”, em si e por si, não constitui meio de prova, nem se destina a provar, autonomamente, o acidente participado. Trata-se de uma declaração que se esgota na “participação” ou comunicação da existência do sinistro, a qual será objecto de apreciação e decisão posterior, no âmbito de processo aberto para o efeito. Em si e por si a dita “participação” e as declarações nele ínsitas nada provam nem pretendem provar. A participação destina-se aliás a ser averiguada e investigada em função dos elementos de prova que venham a revelar-se pertinentes – como sucedeu aliás no caso, em que a assistente, em face dos elementos fornecidos pela arguida, após averiguação sumária, recusou o pagamento.
A “participação” constitui uma mera declaração do emitente que não tem outra virtualidade que não seja a de desencadear a subsequente averiguação da Companhia de Seguros, finda a qual esta aceitará, ou não, conforme os elementos que recolher, a existência do sinistro enquadrável na apólice.
Nem se trata sequer de uma “declaração”, prestada sob juramento ou não, para valer como e enquanto tal, que se destine a confirmar, certificar ou atestar o facto relatado, nessa medida servindo de prova do mesmo, sujeita a valoração como meio de prova do facto participado. Não se trata, tão pouco, de declaração em nome de outra pessoa, a que se pretendesse conferir a força probatória de uma declaração atribuída e terceiro não interessado no assunto. Constitui um mero requerimento/pedido que intrinsecamente não prova nem se destina a provar o facto declarado. Facto esse que terá que ser provado por outros meios de prova, em ultima instância por declaração do próprio requerente prestadas no âmbito do processo desencadeado, prestadas com essa finalidade específica. Não se destina a provar, mas apenas a participar, comunicar, dar conhecimento. A fim de o sinistro ser submetido à apreciação, após investigação no processo que a Companhia de Seguros irá desencadear para o efeito.
Tudo para concluir que “a participação” em causa não integra o conceito de documento, o mesmo é dizer não se trata de declaração idónea para provar facto, relevante para efeito do crime de falsificação. Não merecendo, por isso, censura o despacho de arquivamento recorrido.

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Termos em que, ainda que com base em argumentos diferentes, se acorda em negar provimento ao recurso. -----
Custas pela assistente com 5 UC de taxa de justiça.