Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1350/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: COELHO DE MATOS
Descritores: PENHORA
BENS COMUNS
EMBARGOS DE TERCEIRO
Data do Acordão: 06/07/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 352.º; 359.º, N.º 1 E 864.º, 2 E 3 DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: No regime jurídico da execução definido na lei processual civil, na redacção do Dec. Lei n.º 38/2003, de 8/03, não é permitido ao cônjuge do executado deduzir embargos de terceiro com função preventiva, nos termos do artigo 359.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, para obstar à penhora de bens comuns do casal; apenas lhe é facultado deduzir embargos de terceiro, nos termos do artigo 352.º, quando não tenha sido citado nos termos do artigo 864.º, n.º 2 e n.º 3, al. a) do mesmo diploma.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra

1. A... deduziu embargos de terceiro contra B... e C..., para obstar à penhora em bens comuns do casal, nos termos do artigo 359.º do Código de Processo Civil.
Alega, em síntese, que foi requerida execução apenas contra seu marido, com título executivo (documento particular) em que só ele figura como executado, sendo que é alheia à relação substantiva que lhe serviu de base e que se trata de dívida da exclusiva responsabilidade do marido.

2. Recebidos os embargos e notificados os exequentes, foi apresentada contestação. No saneador a sra. Juiz conheceu de mérito e julgou os embargos improcedentes, por considerar que a embargante, como cônjuge do executado, não tem o direito de se opor à penhora dos bens comuns do casal.

3. Inconformada com o assim decidido, a embargante recorre a esta Relação e conclui:
1) No caso dos Autos, a Execução é promovida exclusivamente contra um dos cônjuges, sem que se indique a identidade do outro, que não é devedor nem interveniente no título executivo, ignorando-se a comunicabilidade da dívida e o regime de bens do executado -assim sendo a própria Exequente que impede ou dificulta (imagina-se que conscientemente ...) o cumprimento do disposto no Art. ° 864. ° do Código de Processo Civil, no que se refere à citação do cônjuge do Executado (a ora Apelante), deixando de merecer qualquer protecção, por esse facto,
2) Tanto mais que são nomeados à penhora bens que se ignora se respondem pela dívida e essenciais à vida doméstica (também) da Embargante/ Apelante,
3) Sendo pedida (e estando deferida) a penhora com remoção previamente à citação, por douto Despacho suscitado por dúvidas da Secretaria.
4) Tais circunstâncias, criadas pela própria Exequente com as omissões praticadas, criam ao cônjuge do executado danos e humilhações de muito difícil ou impossível reparação, merecedoras da protecção do Direito, designadamente, com a possibilidade de recurso aos meios preventivos para evitar que se produzam, em que avulta, no caso concreto, o recurso aos embargos de terceiro com função preventiva, previstos no artigo 359.º do Código de Processo Civil,
5) O que se justifica plenamente, mormente quando tenha sido requerida a penhora previamente à citação, com remoção (acompanhada das inadmissíveis omissões do requerimento executivo supra apontadas).
6) Nestas circunstâncias, entender que o cônjuge não executado apenas pode recorrer aos embargos preventivos de terceiro quando seja omitida a sua citação nos termos do disposto no artigo 864.º do Código de Processo Civil, porque, nessa fase, a penhora já estará feita e os bens penhorados removidos, equivale, pura a simplesmente, à negação do uso daquele meio de defesa,
7) Que se justifica reconhecer (bem como a qualidade de terceiro) ao cônjuge do executado quando o próprio exequente, no requerimento executivo, não o identifique, não requeira a sua citação, nada diga sobre o regime de bens, a natureza dos bens cuja penhora é requerida e quando seja requerida com remoção previamente à citação, nada esclarecendo também quanto à comunicabilidade da dívida -caso em que o cônjuge do Executado deve ser considerado terceiro para efeitos do disposto no artigo 352.º do Código de Processo Civil , mesmo antes de se atingir a fase de aplicação do artigo 864.º do Código de Processo Civil, e sem curar de ocorrer a omissão da sua citação, devendo ser admitido a deduzir embargos preventivos de terceiro antes da efectivação da penhora, nos termos do disposto no artigo 359.º do CPC.
8) Assim não se entendendo, e salvo sempre o devido respeito, na douta Sentença recorrida violou-se o disposto nas citadas normas legais.
9) Termos em que e nos demais de Direito, que desde já se consideram proficientemente supridos, pede seja o presente recurso provido, por consequência se revogando a douta Sentença recorrida, em seu lugar se ordenado o prosseguimento dos Autos com produção da prova ou, quando tal se considere desnecessário, declarando-se os embargos procedentes.

4. Foram apresentadas contra-alegações pela B... em defesa do julgado. Estão colhidos os vistos. Cumpre conhecer e decidir. Os factos dados por assentes são os seguintes:
A. A...., propôs a Acção Executiva a que estes embargos estão apensos contra C..., casado, para obter o pagamento de Euros 10.822,12, com juros de mora vencidos e vincendos.
B. No requerimento executivo, não é identificado o cônjuge do executado, como não é indicado o regime de bens nem é pedida a citação deste.
C. No mesmo requerimento é pedida a penhora: - 1º) dos “bens que constituem o recheio da residência do executado, designadamente, a mobília do quarto, mobília da sala de jantar, sofás, televisor, electrodomésticos, requerendo-se a remoção dos mesmos”; - 2º) do “crédito que, eventualmente, venha a ser reconhecido ao executado nos autos de processo comum nº 249/2002, cujos termos correm junto da 3ª Secção do Tribunal do Trabalho de Aveiro”.
D. A Embargante é casada segundo o regime de comunhão geral de bens com o executado C....
E. A ora Embargante não subscreveu o documento apresentado como título executivo na Acção Executiva.
F. Os bens móveis e o direito ao eventual crédito indicados à penhora foram adquiridos na constância do casamento da Embargante com o Executado.


5. Em causa está apenas a questão de saber se a embargante, na qualidade de cônjuge do executado, pode ou não embargar de terceiro contra o acto determinativo de penhora ainda não efectuada, obstando assim a que ela se concretize em bens comuns do casal, e em execução movida apenas contra o marido com base em documento particular só por ele subscrito.
Na 1.ª instância entendeu-se que não. Por nossa parte adiantamos já que concordamos e podíamos terminar aqui o acórdão, com remissão para a sentença recorrida, nos termos do artigo 713.º, n.º 5 do Código de Processo Civil, mas preferimos não o fazer e ir um pouco mais além, para que a apelante possa ficar mais convencida do acerto da decisão recorrida.
Nela se discorreu sobre o que decorre do novo regime jurídico da execução saído da redacção dada aos artigos 825º, 864º e 864º-A pelo DL nº 38/2003, de 8/3, nos termos que nos permitimos citar:
“1º - na execução movida contra um só dos cônjuges podem ser penhorados bens comuns do casal se não forem conhecidos bens próprios suficientes ao cônjuge executado;
2º - na própria acção executiva, pode, por iniciativa do exequente (art. 825º, nºs 2 e 3) ou do executado (art. 825º, nº 6), formar-se título executivo contra o cônjuge do executado - Veja-se José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes - Código de Processo Civil Anotado, Vol. 3º (2003, Coimbra Ed.ra) - 337. 363 e 368.;
3º - a citação do cônjuge do executado deixa de ter de ser requerida pelo exequente, cabendo ao Agente da Execução a iniciativa de a ela proceder no acto da penhora, se estiver presente, ou no prazo de 5 dias sobre a realização da última penhora - art. 864º, nºs 2 e 3 a) - Veja-se José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes - CPC Anotado, Vol. 3º cit. - 367, que enumeram as alterações substanciais introduzidas no art. 825º pela reforma do DL nº 38/2003.;
4º - o cônjuge do executado “assume, após a sua citação para a acção executiva, a posição de executado, constituindo-se verdadeiro litisconsórcio necessário entre os cônjuges que é imposto pela lei em função dos bens penhorados” - Miguel Teixeira de Sousa - A Reforma da Acção Executiva cit., 179, onde podem ver-se outros poderes concedidos ao cônjuge do executado; estes poderes são também elencados por José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes - CPC Anotado, Vol. 3º cit., 502/503. .
De tudo isto se vê que, na acção executiva instaurada apenas contra um dos cônjuges, se for requerida penhora de bens comuns do casal, o cônjuge do executado não pode, à partida, considerar-se terceiro, uma vez que: em primeiro lugar, no decurso da acção, pode passar a executado; em segundo lugar, a sua qualidade de terceiro só fica consolidada pelo decurso do prazo para sua citação sem que esta tenha sido realizada, nos termos do art. 864º, nº 3 a).
Por isso é que pode dizer-se, com acerto, que “o cônjuge que é considerado terceiro é aquele que não foi citado, nos termos do art. 864º, nº 3 a)” - Miguel Teixeira de Sousa - A Reforma da Acção Executiva cit. - 175. .
Ou seja, o cônjuge do executado só pode embargar de terceiro contra a penhora de bens comuns do casal, caso não seja citado, após a penhora, para a execução, nos termos do art. 864º, nº 3 a).
E não pode embargar de terceiro, se bem vemos, precisamente pela simples razão de que, antes de tal momento e fora dessas circunstâncias, não é terceiro.
O facto de a ora Embargante não ter sido identificada no requerimento da acção executiva não pode ser erigido em óbice preclusivo; do requerimento da acção executiva consta que o executado é casado (fls. 5); ao agente executivo, cumpre, nos termos do art. 265º, nºs 1 e 2, providenciar por saber da identificação e morada do cônjuge, o que nem se antefigura particularmente difícil - o próprio executado pode e deve fornecer os necessários elementos - art. 266º, nº 1.
Temos, assim em resumo de tudo o antes exposto que:
1º - antes do decurso do prazo para citação a fazer nos termos dos arts. 825º, nº 1, e 864º, nº 3 a), a ora embargante não pode considerar-se terceiro;
2º - tal citação só poderia ter lugar no acto da penhora dos bens comuns do casal, se estiver presente, ou após a penhora - nºs 2 e 3 a) do art. 864º;
3º - a dedução de embargos preventivos tem a finalidade, como resulta logo do art. 359º, nº 1, de evitar a penhora; é esta também a finalidade confessada na petição dos presentes embargos.
4º - como o cônjuge do executado só adquire, como se mostrou (ao que nos parece), a qualidade de terceiro após o decurso do prazo do art. do art. 864º, nºs 2 e 3 a), nunca ele pode recorrer aos embargos preventivos de terceiro antes de efectuada a penhora dos bens comuns do casal;
5º - o que vale por dizer que o direito que a Embargante, como cônjuge do Executado, se arroga de recorrer aos embargos preventivos de terceiro, para evitar a penhora nos bens comuns do casal, não existe.”

6. A apelante refere que a sentença recorrida afirma que o cônjuge não executado apenas pode recorrer aos embargos preventivos de terceiro quando seja omitida a sua citação nos termos do disposto no artigo 864.º do Código de Processo Civil, o que equivale à negação do uso daquele meio de defesa, na medida em que, nessa fase, a penhora já estará feita e os bens penhorados removidos. E considera isto um contra senso.
Mas não é isso que a sentença recorrida diz: o que dela se colhe é que o cônjuge do executado só pode embargar de terceiro (por só então ser terceiro) após o decurso do prazo de citação previsto no artigo 864.º, n.º 2 e 3, a) do Código de Processo Civil, sem que a citação tenha sido efectuada. Não diz que só então pode deduzir embargos preventivos de terceiro. A sentença não diz que só então o cônjuge do executado pode deduzir embargos preventivos; o que diz é que só então pode deduzir embargos de terceiro (repressivos e não preventivos, entenda-se).
O que se verifica também é que a apelante argumenta ainda com o pensamento na preponderância da defesa dos interesses da família perante os interesses do credor, neste particular momento do litígio entre credores e devedores. Foi assim no passado ( Cfr. ). Hoje, com a redacção do Código de Processo Civil saída do Dec. Lei n.º 38/2003, de 8/03, o regime jurídico da execução inverteu-se quase totalmente nesta matéria. Agora é o interesse do credor que predomina, a par da defesa dos direitos do devedor e de terceiros colateralmente afectados pelas medidas de recuperação do crédito. Assegurados estes, pode dizer-se que a penhora é hoje um acto prioritário.
Tirados os casos de citação prévia (artigo 812.º, n.º 1 do Código de Processo Civil) a execução, logo que recebida por verificação dos seus pressupostos, é encaminhada para a penhora e só após se desencadeiam os meios de defesa dos atingidos por ela.
Assim, na execução movida contra um dos cônjuges, podem ser logo penhorados bens comuns do casal, quando não se conheçam bens próprios do executado suficientes para garantir o pagamento da dívida (artigo 825.º, n.º 1 do Código de Processo Civil), quer esta seja ou não da responsabilidade de ambos os cônjuges.
E como se defende então o cônjuge não executado, se não tiver que responder pela dívida e forem penhorados bens comuns do casal? É citado (artigo 864.º, n.º 2 e 3, al. a) do Código de Processo Civil) com vista a poder deduzir oposição à execução ou à penhora e a exercer, no apenso de verificação e graduação de créditos e na fase do pagamento, todos os direitos que a lei processual confere ao executado, sem prejuízo de poder também requerer a separação de bens do casal, nos termos do n.º 5 do artigo 825.º, diz o artigo 864.º-A do citado diploma.
E é isto que se passa no caso em apreço. Foi apresentada execução contra o marido da embargante e não se refere que a dívida é da responsabilidade de ambos os cônjuges; por isso a mulher do executado não é colocada em situação de ter que declarar que a dívida é comum (n.º 2 do artigo 825.º) e a execução nunca correrá contra ela (n.º 3 do citado artigo); mas vai ser citada pelo agente de execução, porque já sabe que o executado é casado e fica a saber, no acto da penhora, que são penhorados bens comuns do casal (artigo 864.º, n.º 2 e 3, al. a).
Até aí nunca se poderá dizer que a mulher do executado é alheia ao processo. Não se pode concluir, como faz a apelante, que para ser terceiro basta não constar o seu nome no requerimento de execução nem no título executivo; porque não obstante isso, e desde que conste ser o executado casado, ela não deixa de estar envolvida no processo. Só seguramente será alheia ao processo quando, decorrido o prazo de citação previsto no citado artigo 864.º, n.º 2 e 3, al. a) do Código de Processo Civil, não tiver sido citada. E aí sim, para defender os seus direitos é-lhe facultado o recurso aos embargos de terceiro, previstos no artigo 352.º do Código de Processo Civil. ( Cfr. Lebre de Freitas, Acção Executiva (4.ª edição) págs. 294.
) Claro que não se trata de embargos de terceiro com função preventiva, mas repare-se que o artigo 359.º do Código de Processo Civil não faz referência aos embargos de terceiro por parte dos cônjuges. A este refere-se o artigo 352.º, que não trata de embargos de terceiro com função preventiva.
Parece que assim podemos entender melhor o que foi decidido em 1.ª instância e concluir que, no regime jurídico da execução definido na lei processual civil, na redacção do Dec. Lei n.º 38/2003, de 8/03, não é permitido ao cônjuge do executado deduzir embargos de terceiro com função preventiva, nos termos do artigo 359.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, para obstar à penhora de bens comuns do casal; apenas lhe é facultado deduzir embargos de terceiro, nos termos do artigo 352.º, quando não tenha sido citado nos termos do artigo 864.º, n.º 2 e n.º 3, al. a) do mesmo diploma.
A apelação é, pois, para improceder, por não terem sido violados os preceitos legais nela citados, ou outros que abonam a tese da sentença recorrida.

7. Decisão
Por todo o exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo da apelante.
Coimbra,
Coelho de Matos; Adjuntos: Custódio Costa e Ferreira de Barros