Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
313/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JORGE ARCANJO
Descritores: ARRENDAMENTO RURAL
DENÚNCIA DO CONTRATO DE ARRENDAMENTO RURAL
Data do Acordão: 01/20/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: FUNDÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: ANULADO O JULGAMENTO
Legislação Nacional: ART.º 20º E 35º Nº 3 DO DEC. LEI 385/88 DE 25/10 (LAR) E ARTº 334 DO CC
Sumário:
I – O art.º 20º n.º 1 da LAR ao permitir ao senhorio a denúncia do contrato de arrendamento rural para exploração directa do prédio, durante o prazo mínimo de cinco anos, tem subjacente a sua afectação à agricultura, ou seja, a um fim agrícola, na qual se compreende a exploração pecuária, mesmo que não fosse essa a actividade desenvolvida pelos arrendatários, mas não pode, salvo caso de força maior, destiná-lo, ainda que parcialmente, a outra finalidade não agrícola, designadamente, vendendo uma parte do prédio arrendado.

II – Não actua com abuso de direito (art.º 334 do CC) o arrendatário, cujo contrato foi denunciado ao propor uma acção contra o senhorio com vista a exercer o direito de indemnização e reocupação do prédio, iniciando-se novo contrato, nos termos do art.º 20º n.º 4 da LAR, mesmo que anteriormente apenas se cultivasse parte do prédio arrendado.

Decisão Texto Integral:
Acordam no Tribunal da Relação de COIMBRA


I - RELATÓRIO


Os Autores – A e mulher B – instauraram, no Tribunal do Círculo da Covilhã, acção declarativa, com forma de processo ordinário, contra os Réus:
1) –C;
2) - D e marido E;
3) - F e mulher G;
4) - H e mulher I.

Alegaram, em resumo:
Desde 29 de Setembro de 1951 que eram arrendatários rurais do prédio denominado Quinta do Convento, hoje Quinta da Calçada do Convento, Fundão.
Em 31 de Janeiro de 1992 receberam dos senhorios, através de notificação judicial avulsa, a denúncia do arrendamento para exploração directa da Quinta pelos próprios proprietários.
Intentaram contra os Réus acção para que fosse declarado que tal denúncia não era válida nem eficaz, ou caso assim se não entendesse, que não assistia aos Réus o direito de denúncia para exploração directa ou subsidiariamente que os Réus fossem condenados a não dar o prédio, nos cinco anos subsequentes ao despejo, outro destino que não fosse essa mesma exploração directa.
Esta acção foi julgada improcedente e, em 6 de Janeiro de 1994, os Autores viram-se compelidos a entregar o prédio aos Réus, que para o efeito haviam solicitado mandado de despejo.
Os Réus nunca cultivaram a Quinta, deixando-a ao abandono e à especulação imobiliária, com divisão em lotes para futura venda.
Com fundamento no art. 20 nº3, 4 e 5 do DL 385/88 de 25/10 ( LAR ), pediram cumulativamente:
a) - Serem reconhecidos aos Autores, respectivamente, o direito legal a reocuparem de imediato o prédio, aludido no seu articulado, que lhes tinha sido arrendado, bem como o direito a receberem a indemnização legal;
b) - A condenação dos Réus a pagarem solidariamente aos Autores a indemnização correspondente ao quíntuplo das rendas relativas ao período de tempo em que os autores estiveram ausentes do aludido prédio, a qual, na data de entrada em juízo da presente acção era de 137.500$00;
c) - A condenação dos Réus a celebrarem outro contrato de arrendamento com ora Autores, a iniciar aquando da reocupação por parte destes do aludido prédio, reocupação essa imediata.

Contestaram os Réus, defendendo-se, em síntese:
Arguíram a incompetência funcional do tribunal, e o erro na forma do processo, suscitando ainda o incidente do valor da acção.
Alegaram que, após a entrega da Quinta, a destinaram à pecuária, obtendo forragens para alimentarem os seus cavalos, vacas, ovelhas e cabras.
Nos últimos anos, os Autores limitaram-se a cultivar um pequeno leirão para dele extraírem produtos hortícolas para auto-consumo, ficando o remanescente da Quinta inculta e as árvores de fruto deterioraram-se na totalidade.
Na réplica os Autores, contraditaram as excepções e o incidente, alteraram o pedido, requerendo, em alternativa, a condenação dos Réus a pagarem-lhe, a título de compensação pela não celebração do novo contrato e reocupação da Quinta, o montante de 30.000.000$00, e pediram a condenação dos Réus como litigantes de má fé, em multa e numa indemnização a fixar pelo tribunal, tendo estes apresentado tréplica.

O Tribunal de Círculo da Covilhã, por decisão de fls.106v., transitada em julgada, determinou que à acção correspondia a forma de processo sumário, nos termos do art.35 nº2 do LAR, e declarou-se incompetente, remetendo os autos ao Tribunal da Comarca do Fundão.
Aqui, por decisão de fls.191 e 192, indeferiu-se a alteração do pedido formulado pelos Autores na réplica e fixou o valor da causa em 143.000$00.
Os Autores agravaram deste despacho, o qual foi mantido, pela Relação ( fls.267 a 278 ) e pelo Supremo Tribunal de Justiça ( fls.305 a 310 ).
No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.
Realizada a audiência de julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente e absolveu os Réus do pedido.

Os Autores, inconformados com a sentença absolutória, dela interpuseram recurso de apelação, formulando quinze conclusões, que se passam a resumir:
1º) – O tribunal a quo não apreciou correctamente toda a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, e ainda a carreada para os autos, bem como violou designadamente os arts. 352, 355, 364, 371, 393 nº2 todos do Código Civil, arts. 514 nº1, 515, 519 nº2, 522, 567, 456 todos do C.P.C., e ainda arts.1º, nº1, 3 e 4, 20 nº 3, 4 e 5, todos do D. L.nº385/88 de 25 de Outubro.

2º) – Impugnam a decisão da matéria de facto constante das respostas aos quesitos 1º a 7º, 9º, 10º a 12º da base instrutória.

3º) - Todas as testemunhas dos Apelantes, ao contrário das testemunhas arroladas pelos Apelados, tinham conhecimento directo dos factos, conhecendo os ora Apelantes, à excepção da 1ª testemunha Sr.Arq. Horta, há muitos anos, tendo prestado um depoimento verdadeiro, imparcial e credível, não tendo os ora Apelados impugnado de algum modo o depoimento das testemunhas;

4º) - Já as testemunhas arroladas pelos ora Apelados, não mostraram conhecer bem os factos, tendo apenas um conhecimento superficial e vago dos mesmos, entrando amiúde no campo das hipóteses, alegando factos contrariados pela documentação junta e o elementar bom senso, tendo sido confusos nos seus depoimentos, designadamente, no que respeita aos factos que se referiam à quinta arrendada e os actos referentes a outras quintas dos Apelados, mas que nada tinham a ver, com os autos;

5º) – O tribunal a quo não valorou minimamente a prova documental, pois de contrário teria dado como provados os quesitos 1º, 2°, 3° e 12°, e como não provados os quesitos 5º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º da Base Instrutória.

6º) - Os Réus não destinaram o prédio à exploração directa, nem sequer à agricultura, como estão obrigados por lei, durante, pelo menos cinco anos, e feita para exploração directa, designadamente, pelo disposto no n°3 do art.20 do D.L.385/88 de 25 de Outubro, mas sim ao abandono, repita-se, e à especulação imobiliária, e não ocorre nenhuma razão para que os Réus não cumpram a obrigação da exploração directa;

7º) - Saliente-se que na aludida comunicação de 31/1/92 que os ora Autores receberam, os ora Réus informavam que ” -pretendem, querem e podem explorar directamente o prédio que lhes está arrendado -, ao abrigo do art°20° do D.L. 385/88 de 25/10, denunciam para o dia 29/9/93 o supra referido contrato de arrendamento que vigora sobre tal prédio e, se por qualquer motivo, que se não descortina, não proceder a denúncia para esta data, nesta hipótese e também para o explorarem directamente, o denunciam para o dia 29 de Setembro do seu último ano de vigência posterior a 1993, atenta a renovação automática a que o mesmo tem estado sujeito e cumprido que se encontre o prazo estabelecido no n°5 do art°36° do citado D.L.”;

8º) - Assiste aos Autores o direito legal a reocuparem o prédio, bem como o direito a receberem uma indemnização, nos termos da lei.

9º) - Quanto à litigância má fé, a mesma foi pedida pelos Autores porque os Réus faltaram claramente à verdade, designadamente, nos arts. 3° e 4° da tréplica, e, por outro lado, mais de uma vez recusaram-se a colaborar com o tribunal não entregando, designadamente, os contratos promessas ou escrituras das compras e vendas efectuadas.

Os Réus contra-alegaram sustentando que tendo a acção sumária o valor de 143.000$00, só admite recurso de direito ( art.35 nº3 do DL 385/88 de 25/10 ) e não há razões para revogar a sentença recorrida.


II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. - O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes ( arts. 684 nº3 e 690 nº1 do CPC ), impondo-se decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras ( art.660 nº2 do CPC ).

Considerando as conclusões que os apelantes extraíram da motivação, as questões essenciais suscitadas no recurso são as seguintes:
a) - Impugnação da matéria de facto;
b) - Se assiste aos Autores o direito de reocuparem o prédio, iniciando-se outro contrato de arrendamento, bem com a indemnização, nos termos do art.20 nº4 do DL 385/88 de 25/10 ( LAR ).
c) – A litigância de má fé por parte dos Réus.


2.2. – QUESTÃO PRÉVIA:

Pretendendo os Autores, através da presente acção, exercer o direito conferido pelo art. art.20 nº4 do DL 385/88 de 25/10 ( LAR ), o processo refere-se a arrendamento rural ( art.35 nº2 ), como está subjacente nos acórdãos desta Relação e do Supremo Tribunal de Justiça, ao decidirem o recurso de agravo sobre o incidente do valor da causa.
Ao contrário da posição assumida pelos Autores na réplica e nas alegações dos respectivos recursos, a causa de pedir não consubstancia uma mera relação possessória, mas na reocupação do prédio com base num novo contrato de arrendamento rural e respectiva indemnização.
Nesta perspectiva, impõe-se trazer à colação a norma do art.35 nº3 da LAR - “ É sempre admissível recurso para o tribunal da relação quanto à matéria de direito, sem prejuízo dos recursos ordinários, consoante o valor da acção, tendo sempre efeito suspensivo o recurso interposto da sentença que decrete a restituição do prédio “.
Constituindo uma excepção ao regime geral do art.678 nº1 do CPC, neste tipo de processos e independentemente do seu valor, haverá sempre recurso para a Relação, mas se o valor não exceder a alçada da 1ª instância, o recurso está limitado à matéria de direito, entendida como as versada na decisão final, ficando, por isso, vedado o recurso da matéria de facto ( cf., por ex., Ac do STJ de 13/2/92, BMJ 414, pág.123, Ac RE de 26/4/92, C.J. ano XV, tomo II, pág.295 ).
Como à data da propositura da acção ( 15/4/98 ), o valor da alçada do tribunal da 1ª instância era de 500.000$00 ( art.20 da Lei 38/87 de 23/12 ) tendo o valor da causa sido fixado em 143.000$00, é evidente que não o excede.
Sendo assim, como pertinentemente objectaram os apelados, não é admissível o recurso sobre a matéria de facto, logo a Relação não pode conhecer do mesmo, mas não lhe está vedado utilizar a faculdade conferida pelo art.712 nº4 do CPC, designadamente, a anulação da decisão com vista à ampliação dos factos, se for indispensável à decisão da causa, por ser de conhecimento oficioso.
Deste modo, permanece intangível a factualidade provada descrita na sentença recorrida, que se passa a discriminar por ordem lógica e cronológica.




2.3. – OS FACTOS PROVADOS:

1) - Os ora Autores intentaram contra os ora Réus, em 31 de Março de 1992, acção judicial, com processo sumário, emergente de arrendamento rural, a qual correu seus termos pela 1.ª secção do Tribunal Judicial da Comarca do Fundão, com o n.º 46/92, nos precisos termos que constam da certidão judicial junta aos autos como Doc. 1, com a PI., e cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos ( A/).
2) - O arrendamento rural teve início em 29 de Setembro de 1951, por um período de 1 ano, sucessivamente renovável, e foi celebrado entre os ora As e os então proprietários e legítimos possuidores, em 2 de Julho de 1952, respeitava ao prédio então denominado “ Quinta Do Convento”, limite do Fundão, a partir do nascente com Albergue, Estrada Nacional, e João Ventura, poente com Dr. Guilhermino Da Cunha Vaz e Herdeiros de Eduardo Gaiolas, norte com caminho público e estrada nacional e do sul, com estrada nacional, que se compõe de terra de regadio, e centieira, com árvores de fruto, e casa de habitação ( B/).
3) - Este prédio de que são os ora Réus, seus actuais proprietários e possuidores, corresponde actualmente ao prédio misto sito em Ribeiro de Guimarães, na freguesia e concelho do Fundão, denominado “ Quinta da Calçada do Convento”, ou “Quinta do Convento”, descrito na conservatória do Registo Predial do Fundão, actualmente sob o n.º 00053, anterior, 21.590, freguesia do Fundão, nos precisos termos que constam do Doc. junto aos autos como Doc. 2, com a PI., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido ( C/).
4) - Nesta acção solicitavam os autores ao tribunal os pedidos referidos no art.º 4.º da P.I. cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, nos precisos termos que constam da PI. junta aos autos no DOC. 1 junto com a P.I., cujo teor aqui se dá por reproduzido, nesta parte ( D/).
5) - Os Réus contestaram a referida acção nos precisos termos que constam do Doc. junto aos autos como Doc. 1, junto com a P.I., cujo teor aqui se dá por reproduzido nesta parte, referindo, em síntese, que a denúncia que tinham efectuado – para exploração directa – e nos precisos termos que constam do Doc. junto com a PI. – notificação judicial avulsa – não admitia qualquer tipo de oposição (E/ )
6) - Com efeito, através de notificação judicial avulsa os Réus comunicaram aos Autores o que constam de fls. 21 dos autos correspondente a parte do Doc. 1 junto com a P.I. cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (F/).
7) - Por sentença de 13 de Julho de 1992, foi decidido, no saneador, que o arrendatário não podia, no caso opor-se à denúncia, julgando-se a oposição à mesma ineficaz, por não admissível e, em consequência, julgou-se a acção improcedente, com a absolvição dos ora Réus dos pedidos, tudo nos precisos termos que constam do saneador sentença junto aos autos a fls., da certidão junto como Doc. 1 com a PI ( G/).
8) - Os Réus interpuseram recurso alegando, em síntese, o que consta do art.º 7.º da PI., cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para os legais efeitos (H/).
9) - O tribunal de recurso confirmou a decisão da 1.ª instância, tudo nos precisos termos que constam do Doc. junto aos autos com a PI. como Doc. 1., por acórdão de 25 de Maio de 1993, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido (I/).
10) - Em 30 de Novembro de 1993 os Réus solicitam a passagem de mandados de despejo, do prédio objecto da denúncia (J/).
11) - Tendo os ora Autores, em 6 de Janeiro de 1994, vindo a entregar aos ora Réus aquela de acordo com requerimentos juntos aos autos na certidão que é o Doc. 1 junto com a PI. cujo teor aqui se dá por reproduzido, nesta parte para os legais efeitos (L/).
12) - A renda anual do prédio arrendado era de 5.500$00 ( r.q.4º ).
13) - Os Autores nos últimos anos que estiveram como arrendatários do prédio identificado na matéria de facto assente cultivaram apenas uma parte da quinta para dela extraírem produtos para auto - consumo ( r.q.5º).
14) - Os Réus destinaram parte da quinta à pecuária pois tinham cavalos, vacas, ovelhas e cabras (r.q.1ºe 7º ).
15) - Os Réus obtiveram da quinta forragens para alimentarem o seu gado ( r.q.8º ).
16) - Assim extraindo forragens, com o valor de cerca de 100.000$00, por ano ( r.q.9º ).
17) - Em data que não é possível precisar os Réus venderam os animais supra referidos ( r.q.10º ).
18) - Porque abruptamente os seus trabalhadores se despediram e não foi possível a contratação de outros por inexistência objectiva dos mesmos nesta zona ( r.q.11º ).
19) - A quinta foi, em parte, vendida a Carlos Lindeza ( r.q.7º ).
20) - Na data da contestação, que entrou em juízo em 1.06.98, os Réus tinham a intenção de afectar a parte poente da Quinta a construção civil (M/).

2.4. - De Direito:

Os Réus, na qualidade de senhorios, em 31 de Janeiro de 1992, denunciaram o contrato de arrendamento rural celebrado com os Autores ( arrendatários ), tendo por objecto a Quinta do Convento, hoje Quinta da Calçada do Convento, situada no Fundão, para exploração directa pelos próprios proprietários.
Os Autores deduziram oposição, instaurando, para o efeito, acção judicial, que foi julgada improcedente e, na sequência de mandado de despejo, em 6 de Janeiro de 1994, foi o prédio entregue aos Réus.
Nos termos do art.20 nº3 da LAR, o senhorio que invocar a denúncia do contrato de arrendamento rural fica obrigado, salvo motivo de força maior, à exploração directa, por si ou pelos filhos que satisfaçam as condições de jovem agricultor estipulada na lei, durante o prazo mínimo de cinco anos.
A inobservância desta obrigação, confere cumulativamente ao arrendatário, cujo contrato foi denunciado, o direito de indemnização, correspondente ao quíntuplo das rendas relativas ao período de tempo em que esteve ausente e de reocupação do prédio, se assim o desejar, iniciando-se outro contrato ( art. 20 nº4 e 5 da LAR ).
Sustentam os apelantes que os Réus não destinaram o prédio à exploração directa, nem sequer à agricultura, mas sim ao abandono e à especulação imobiliária, pelo que lhes assiste o direito à indemnização e à reocupação do prédio ( conclusões 9ª a 11ª ).

Desde logo, esta genérica asserção parte do pressuposto do erro de julgamento quanto à matéria de facto, visto que as conclusões 9ª a 11ª estão na sequência das anteriores e tanto assim que os apelantes não atacam os tópicos argumentativos da sentença recorrida, designadamente o abuso de direito.

À primeira vista, poder-se-ia dizer que os recorrentes não problematizaram directamente a questão de direito, mas estando subjacente que a sentença recorrida violou o art.20 nº4 e 5 da LAR, mesmo que não expressamente invocado, impõe-se aquilatar da pretensão recursal, quanto a saber se a factualidade apurada na sentença permite concluir que Réus não exploraram directamente o prédio.

Segundo a “ teoria da norma “, a não exploração directa do prédio pelos Réus, no prazo estipulado por lei, é um facto constitutivo do direito dos Autores, competindo-lhe, por isso, o ónus de alegação e prova, muito embora se trate de um facto negativo ( art.342 nº1 do CC ).

A sentença recorrida considerou que, não obstante os Réus destinarem parte da quinta à pecuária, pois tinham cavalos, vacas, ovelhas e cabras, tal insere-se na noção de “ exploração directa “, enquanto actividade agrícola, nela se incluindo a pecuária.
A exploração directa é um regime de exploração em que a empresa agrícola ou o empresário é o proprietário do prédio, onde funciona o respectivo estabelecimento agrícola, não se tornando necessário que o senhorio trabalhe ou cultive a terra pessoalmente, como o faz o agricultor autónomo, pois o que releva é que seja feita por conta e risco do proprietário ( cf. ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, vol.II, 3ª ed., pág.473; Ac RP de 2/10/97, C.J. ano XXII, tomo IV, pág.204 ).
O art.20 nº1 da LAR, ao permitir ao senhorio a denúncia do contrato de arrendamento rural para explorar directamente o prédio, tem subjacente a sua afectação à agricultura, ou seja, a um fim agrícola, não exigindo que ele utilize métodos de produção idênticos ao do anterior arrendatário.
Sendo esta a finalidade precípua da lei, tal afectação compreende a exploração pecuária, como decorre do art. 3º da Lei n.º 109/88 de 26 de Setembro( Lei de Bases da Reforma Agrária ) ao definir a actividade agrícola como toda a actividade agrícola, em sentido estrito, e ainda a pecuária e florestal e do art. 1º da LAR, dada a noção legal do contrato de arrendamento rural.
Com efeito, o legislador procurou tutelar os interesses do senhorio, enquanto proprietário da terra, possibilitando-lhe a denúncia, mas porque esta implica a extinção do contrato, e com isso a própria sutentabilidade do arrendatário, protegeu também o arrendatário, ao conferir-lhe o direito de oposição quando o despejo põe em risco sério a subsistência económica e do seu agregado ( art.19 nº1 ), e no caso de incumprimento, os direitos previstos no art.20 nº4 e 5 da LAR.
Em situação similar, para o arrendamento urbano, a lei ao permitir a denúncia para habitação do senhorio, atribui ao arrendatário o direito de indemnização e reocupação, nos termos do art.72 do RAU.
Em ambas as situações, a denúncia como que está sujeita a uma espécie de condição resolutiva, pois o senhorio fica adstrito ao cumprimento das respectivas obrigações, para que não seja defraudada a especial protecção conferida aos arrendatários.
Porém, ainda que a lei não estabeleça qualquer sanção para a má exploração, não impedindo que o senhorio possa praticar impunemente actos enunciados nas alíneas b), c), d) e f) do art.21 da LAR ( ARAGÃO SEIA, Arrendamento Rural, 1989, pág.77 ), o certo é que ele não pode destinar parte do prédio a um fim não agrícola, a menos que demonstre existir caso de força maior.
É que a denúncia do contrato de arrendamento inclui obrigatoriamente todo o seu objecto ( art.18 nº2 da LAR ), pelo que a afectação agrícola durante o prazo mínimo de cinco anos terá necessariamente que se reportar à totalidade do prédio arrendado, ou seja, o senhorio não pode destiná-lo, mesmo parcialmente, a outro fim.
Comprovando-se que os Réus venderam parte da Quinta a Carlos Lindeza ( r.q.12º ), o tribunal a quo considerou que eles exploraram directamente apenas uma parte da mesma, estando implícito aquela que não foi vendida, mas julgou a acção improcedente com fundamento no abuso de direito ( art.334 do CC ) pelos Autores, com base nos seguintes tópicos argumentativos:

a) - Provou-se que os Autores nos últimos anos que estiveram como arrendatários do prédio identificado na matéria de facto assente cultivaram apenas uma parte da quinta para dela extraírem produtos para auto - consumo.

b) - Nessa medida, faltaram ao cumprimento de uma obrigação legal, com prejuízo directo para a produtividade, substância ou função económica e social do prédio confere ao senhorio o direito de resolução do contrato ( art.21 do LAR ).

c) - Era reduzidíssimo o contributo do prédio, com a utilização feita pelos arrendatários, para o rendimento global do sector agrícola e para a economia do país.

Não obstante estar dogmaticamente correcta a dissertação teórica exposta na sentença recorrida, os elementos factuais disponíveis não são suficientes para consubstanciarem o abuso de direito.
O art.334 do CC diz que é ilegítimo o exercício de um direito, quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito.
Aceitando o legislador a concepção objectiva, não é preciso que o agente tenha consciência da contrariedade do seu acto à boa fé, aos bons costumes ou ao fim social e económico do direito exercido.
O instituto do abuso de direito surge como uma forma de adaptação do direito à evolução da vida, servindo como válvula de escape a situações que os limites apertados da lei não contemplam por forma considerada justa pela consciência social em determinado momento histórico e a jurisprudência tem exigido que o exercício do direito se apresente em termos clamorosamente ofensivos da justiça.
Pois bem, o direito exercido pelos Autores arranca da violação por parte dos Réus do dever de explorarem directamente todo o prédio, objecto do contrato de arrendamento denunciado, visto que não afectaram parte dele um fim agrícola.
A circunstância dos Autores nos últimos anos em que estiveram como arrendatários cultivarem apenas uma parte da quinta para dela extraírem produtos para auto – consumo, por si só, não é seguro que legitimasse a resolução do contrato, nos termos do art.21 da LAR, até porque não se sabe quais as razões, para o efeito, e sempre exigiria que os Réus a requeressem judicialmente, logo, não o tendo feito, pode presumir-se até que condecenderam com tal situação.

Por outro lado, é temerário inferir-se que com a reocupação do prédio os Autores se limitem à mesma utilização.
Não há que afrontar o problema em sede da tutela da confiança e do venire contra factum proprium, como uma das manifestações do abuso de direito, como transparece da sentença recorrida.
Esta variante do abuso de direito equivale a dar o dito por não dito e radica numa conduta contraditória da mesma pessoa, ao pressupor duas atitudes antagónicas, sendo a primeira ( factum proprium ) contrariada pela segunda atitude, com manifesta violação dos deveres de lealdade e dos limites impostos pelo princípio da boa fé.

O Prof. BAPTISTA MACHADO ( Obra Dispersa, vol.I, pág.415 a 419 ), depois de afirmar que a ideia imanente na proibição do venire contra factum proprium é a do “ dolus praesens “, pelo que é sobre a conduta presente que incide a valoração negativa, sendo a conduta anterior apenas o ponto de referência, para se ajuizar da legitimidade da conduta actual, enuncia três pressupostos que caracterizam o instituto: (1) uma situação objectiva de confiança – uma conduta de alguém, entendida como uma tomada de posição vinculante em relação a dada situação futura; (2) o investimento na confiança – o conflito de interesses e a necessidade de tutela jurídica surgem quando uma contraparte, com base na situação de confiança criada, toma disposição ou organiza planos de vida de que lhe surgirão danos, se a confiança legítima vier a ser frustrada; (3) a boa fé da contraparte que confiou – a confiança do terceiro ou da contraparte só merecerá protecção jurídica quando de boa fé tenha agido com cuidado e precauções usuais no tráfico jurídico.
No mesmo sentido, também PAULO MOTA PINTO, “Sobre a Proibição do Comportamento Contraditório”, BFDUC, Volume Comemorativo, 2003, pág.269 e segs., com referências doutrinárias e jurisprudenciais mais actualizadas.
O direito de reocupação e de indemnização, não se apresenta contraditório com o facto anteriormente praticado pelos Autores, ao agricultarem apenas uma parte do terreno arrendado, pois dele não se pode inferir, ainda que tacitamente, que jamais exercitariam tais direitos, ou seja, não houve sequer uma situação objectiva de confiança que levasse os Réus a criar uma justificada expectativa de que o direito jamais seria exercitado.
Por seu turno, também não é consistente o tópico do desequilíbrio objectivo das prestações, que parece sobressair na fundamentação, adrede aduzida.
Ao discorrer sobre a tipologia dos actos abusivos, MENEZES CORDEIRO aponta como uma das categorias o “ desequilíbrio no exercício de posições jurídicas “, designadamente pela desproporcionalidade entre a vantagem auferida pelo titular e o sacrifício imposto a outrém, fundado dogmaticamente no “ princípio da primazia da materialidade subjacente ” que se reporta a exercícios de puro desequilíbrio objectivo ( Tratado de Direito Civil Português, I, Parte Geral, 1999, pág.211 a 213 ).
A pretensão dos Autores não traduz uma clara e excessiva desproporção objectiva entre a utilidade obtida ( reocupação e indemnização ) e o sacrifício para os Réus, pelo facto daqueles haverem utilizado apenas uma parte do arrendado, tanto mais que foram estes quem alegadamente não cumpriram a obrigação inerente à denúncia do arrendamento.
Por isso, os factos provados não são suficientes para configurarem o abuso de direito por parte dos Autores, contrariamente à solução encontrada na sentença impugnada.
Contudo, a postergação do abuso de direito não implica inevitavelmente a procedência da apelação, pois há que indagar determinados factos alegados que não foram devidamente ponderados para a justa resolução da causa, bem como para a alegada litigância de má-fé, designadamente a data, os motivos que levaram os Réus a venderam parte da quinta a Carlos Lindeza e se os Autores disso tiveram conhecimento e não se opuseram.
Os Autores alegaram na petição inicial que os Réus não exploraram directamente a Quinta, destinando-a à especulação imobiliária, tendo inclusive já dividido em lotes para futura venda.
Na contestação, os Réus negaram tal facto, afirmando, no entanto, ser sua intenção afectarem a Quinta à construção civil.
Na réplica, os Autores alegaram que os Réus já venderam toda a Quinta, ou pelo menos prometido vender a Carlos Manuel Barata Pereira, que também usa o nome de Carlos Barata, residente no Fundão, o qual está já proceder à venda dos lotes.
Treplicaram os Réus, alegando que venderam um pedaço de terra que os Autores há muito tiveram conhecimento e não puseram em causa, pelo facto de necessitarem irremediavelmente de custear o sustento e a educação dos três filhos dos segundos Réus.
Refira-se que, apesar de se corrigir a forma de processo e indeferir a alteração do pedido formulada pelos Autores na Réplica, não se determinou a anulação deste articulado e da tréplica, nem o seu desentranhamento.
O tribunal a quo considerou assente que “ Na data da contestação, que entrou em juízo em 1.06.98, os Réus tinham a intenção de afectar a parte poente da Quinta a construção civil (M/)” e levou à base instrutória o facto alegado pelos Autores no art.17º da réplica, através do quesito 12º - “ A Quinta já foi vendida a Carlos Barata para construção civil? ”.
A este quesito respondeu o tribunal – “ A Quinta foi em parte vendida a Carlos Lindeza “.
Contudo, face à alegação dos Autores, impõe–se indagar se a venda da parte da Quinta a Carlos Lindeza ocorreu após a denúncia, ou seja entre 31/1/92 e 15/4/98 ( data da proprositura da acção ), pois só assim se pode saber da pretensa violação pelos Réus.
Por outro lado, e tendo em conta a correspondente alegação dos Réus, há que apurar se os Autores tiveram conhecimento dessa venda e a ela se não opuseram.
É que, caso se comprove tal facto, então sim, estar-se-á perante um claro abuso de direito por parte dos Autores, na modalidade de “venire contra factum proprium “, de conhecimento oficioso.
Para além disso, importa ainda saber se os Réus procederam a essa venda por necessitarem irremediavelmente de custear o sustento e a educação dos três filhos dos segundos Réus, pois a provar-se este facto reconduzir-se-á a um caso de força maior, como facto extintivo do direito dos Autores, expressamente ressalvado no art.20 n.3 da LAR.
Para o efeito, a noção de “caso de força maior” não se extrai da norma do art.790 nº1 do CC, reportada à impossibilidade objectiva da prestação, como causa extintiva da obrigação, por não existir qualquer relação história ou correlação substancial, pois essencial é que o facto se torne compreensível, perfeitamente razoável aos olhos de um julgador compreensivo e avisado que legitime a venda de parte da quinta ( cf. ANTUNES VARELA, RLJ ano 119, pág.253 e segs., em anotação ao Ac do STJ de 6/1/83, a propósito do art.1093 nº1 al.i) e nº2 al.a) do CC ).
Daí que, só a indagação destes factos controvertidos viabilize um julgamento equitativo da causa, bem como a questão da litigância de má-fé, que assim, fica prejudicada, impondo-se a anulação da sentença recorrida, nos termos do art.712 nº4 do CPC, com vista à ampliação da matéria de facto, devendo aditar-se à Base Instrutória os seguintes quesitos:
13º) – A venda, referida na resposta ao quesito 12º), foi realizada em data anterior a 31 de Janeiro de 1992?
14º) – Ou entre 31 de Janeiro de 1992 e 15 de Abril de 1998?
14º) – Os Autores tiveram conhecimento desta venda?
15º) – E não se opuseram a ela?
16º) – A venda, referida na resposta ao quesito 12º), foi efectuada pelo facto de necessitarem irremediavelmente de custear o sustento e a educação dos três filhos dos segundos Réus?

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Não conhecer do recurso sobre a matéria de facto.
2)
Anular a sentença recorrida e a repetição do julgamento, se possível pelo mesmo Juiz, com vista à ampliação dos factos controvertidos, acima referidos.


3)
Condenar os apelantes nas custas, na parte em que decaíram no recurso.
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COIMBRA, 20 de Janeiro de 2004 ( processado por computador e revisto ).