Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
205/09.9TTVIS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUELA FIALHO
Descritores: JUSTA CAUSA DE DESPEDIMENTO
LESÃO
CULPOSA
INTERESSE PATRIMONIAL SÉRIO DO TRABALHADOR
DESCONTO
SALÁRIO
Data do Acordão: 03/21/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL DO TRABALHO DE VISEU – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTº 441º, NºS 1 E 2, AL. E) DO CÓDIGO DO TRABALHO
Sumário: I – A violação culposa de garantias e a lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador pode integrar o conceito de justa causa.

II – Em presença de um acordo remuneratório, cujo incumprimento não vem alegado e cuja maior favorabilidade é reconhecida pelo trabalhador, não é legítimo a este invocar como justa causa de resolução do contrato o não pagamento do trabalho prestado em dias de descanso e feriados em conformidade com a CCT, se a forma de remuneração foi substituída por aquele acordo.

III – Não preenche o conceito de lesão séria o desconto ilícito de quantias variáveis no salário mensal do trabalhador, alegadamente por gastos em telefone, se este não prova, em face dos proventos que aufere ao serviço da empresa, que o desconto de tais quantias lhe tenha causado algum prejuízo, e muito menos sério, na sua economia doméstica.

Decisão Texto Integral:    Acordam na secção social do Tribunal da Relação de Coimbra:

   A..., SA., Ré na acção, sedeada na ..., interpôs recurso da sentença.

   Pede a respectiva revogação.

   Assenta nas seguintes conclusões:

[…]

   B..., Autor, residente no ...contra-alegou pugnando pela manutenção da sentença.

[…]

   O MINISTÉRIO PÚBLICO junto desta Relação emitiu parecer segundo o qual a apelação deve julgar-se improcedente.


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   Para cabal compreensão, façamos um breve resumo dos autos.

[…]


***

   Das conclusões supra exaradas extraem-se as seguintes questões a decidir:

   1ª – A sentença é nula?

   2ª – Não há suporte fáctico para a condenação no pagamento da quantia de 892,00€?

   3ª- Existe contradição entre os factos e a decisão?

   4ª – Não existe justa causa de resolução do contrato?


***

   Antes de entrar na análise detalhada de cada uma das questões acima enunciadas, cumpre deixar um esclarecimento.

   É que, embora no corpo das suas alegações se alegue que através do recurso se irá impugnar a decisão de facto, percorridas as mesmas, e, bem assim, compulsadas as conclusões que, como se sabe, delimitam o objecto do recurso, não se vê que resulte impugnada, para efeitos de reapreciação por este Tribunal, a matéria de facto.

   Na verdade, conforme decorre do que dispõe o Artº 685ºB/1 do CPC, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados.

    Em parte alguma da peça trazida a recurso se vê efectuada tal especificação, que deveria ter ocorrido, dada a ausência de base instrutória, para os concretos artigos dos articulados.

   O recurso limita-se, pois, em sintonia com o que dispõe o Artº 685ºA/1 do CPC, ás questões supra enunciadas.


***

   A matéria de facto cuja prova se obteve é a seguinte:

  

[…]

  


***

   Aqui chegados podemos deter-nos sobre a primeira das questões que enunciámos – a nulidade da sentença.

   A Recrte. funda esta questão na circunstância de ter alegado factos nos Artº 71º e 72º da contestação, sendo que a sentença omite a apreciação do documento que os suporta, pelo que, por força do consignado na alínea d) do Artº 668º/1 do CPC, a sentença é nula.

   O Artº 668º/1-d) do CPC dispõe que é nula a sentença quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar.

   Esta é uma decorrência do que se dispõe no Artº 660º/2 do mesmo diploma, segundo o qual o juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas que estejam prejudicadas pela solução dada a outras.

   Para efeitos destas disposições legais as questões a resolver são as pretensões ou pedidos deduzidos pelas partes, bem como as excepções opostas a estas pretensões. Não são questões os argumentos que sustentam as teses de cada uma das partes. É que, conforme bem explicam José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, “por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida; por outro lado, o juiz não está sujeito ás alegações das partes quanto á indagação, interpretação e aplicação de normas jurídicas e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm que ser separadamente analisadas” (Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2ª, Coimbra Editora, 680).

   Assim, pelo motivo invocado, a sentença não padece de qualquer nulidade.

   Questão diversa, e que parece estar na base da alegação da Recrte., é a não valorização de algum documento enquanto meio de prova. Mas isso não fere de nulidade a sentença; antes pode levar a reapreciação da matéria de facto se para tanto invocada. Ou, ainda, a questão pode apreciar-se no sentido de insuficiência de matéria de facto se, ao invés de se ter desconsiderado o documento, se não carrearam para os autos os factos alegados com suporte no mesmo. Porém, nunca a alegação assim efectuada suporta o vício em apreciação.

   Termos em que improcede esta questão.


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   Partimos agora para a terceira questão enunciada que se prende com a invocada contradição entre os factos e a decisão.

[…]


*

   Podemos, assim, deter-nos sobre a segunda questão que enunciámos – a falta de suporte fáctico para a condenação no pagamento da quantia de 892,00€.

   Conclui a Recrte. que do elenco de factos provados não resulta que o A. deixou de gozar o descanso compensatório, pelo que não poderia ocorrer a condenação no pagamento da quantia acima mencionada.

   A esta questão contrapõe o Recrdº que do ponto 17 resulta o suporte fáctico cuja ausência se invoca, resultando dali 51 dias de descanso compensatório por ele não gozados, que, como tal lhe são devidos.

   A sentença, depois de expor as normas convencionais aplicáveis (Clª 20ª/3 e 41ª), conclui que o A. tem direito pela prestação de trabalho em dias de descanso compensatório[1] à quantia de 892,00€, tendo previamente exarado que se provou (facto 17) que o A. prestou serviço à R. em 51 dias de descanso compensatório.

   Sobre esta matéria alegava-se na PI que o A. trabalhou, no período que medeia entre 17/04/2007 e 18/03/2008 em 24 dias de descanso semanal, em 17 dias de descanso complementar e em 4 dias feriados (Artº 41º), identificando-se cada um desses dias e, mais à frente, que naquele período o A. não gozou 51 dias de descanso compensatório (Artº 46º).

   Cabia, assim, à R. provar que, contrariamente ao alegado, o A. gozou os dias de descanso (Artº 342º/2 do CC).

   Do acervo fáctico constante dos autos não resulta tal prova e resulta, tal como alegado, que o A. trabalhou nos diversos dias de descanso (nº 17).

   Donde, por força da regra do ónus da prova, se conclui pelo não gozo dos descansos invocados.

   Ocorre, porém, que consta de tal acervo, sob o número 11 que por cada viagem efectuada ao estrangeiro, em substituição do pagamento das refeições à factura, e para compensação de trabalho prestado em dias de descanso e feriados, bem como descansos compensatórios, a ré pagava ao autor a quantia de € 0,0449 por cada quilómetro percorrido nas viagens relativas a cada mês. Donde, não se pode concluir que está em dívida a quantia apurada.

   Contudo, se bem entendemos, não é isso que diz a sentença.

   A referência que aqui se faz a este montante é seguida da apreciação das consequências da nulidade do acordo de substituição remuneratória, pelo que aquele montante serve apenas para concluir que o A. tem direito, pelo trabalho prestado em dias de descanso compensatório, à quantia de 892,00€.

   Ora, o que consta do decisório da sentença é uma condenação no pagamento das quantias devidas por força das Clª 41ª/1 e 6 e 47ªA deduzido do montante recebido a título de ajudas de custo (os 0,0449€ ao Km). Assim, a quantia de 892,00€ serve de referência para aquilo que, a título de trabalho prestado em dia de descanso compensatório, era devido. Daqui se deverá, no futuro, após liquidação do montante a deduzir, concluir pela efectiva dívida.

   Só assim se compreende que esta quantia não se veja integrada no montante liquido objecto da condenação, que comporta os valores de 1.816,94€ (confessados pela R.), 502,12€ (descontos) e 1.575,00€ (indemnização posteriormente corrigida).

   Termos em que improcede a questão em análise.


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   Sob a quarta questão pretende saber-se se não é justificada a resolução do contrato.

   Alega a Recrte. que, muito embora na sentença se tenha concluído por justa causa de resolução, a solução tem de ser diametralmente oposta porquanto sempre cumpriu com o acordo remuneratório, não resulta provado que o A. tenha deixado de gozar qualquer descanso compensatório e não procedeu a descontos ilegais nas remunerações do A..

   Ponderou-se na sentença que os factos alegados pelo A. como causa de resolução resultaram provados, que, embora se desconheça o montante a pagar por força da Clª 41ª/1 e 6 e 47ª-A da CCT, a R. não organizou o tempo de trabalho do A. por forma a que este pudesse gozar dias de descanso compensatório, procedeu a descontos ilegais e que o incumprimento se prolongou por vários meses.

   A justificar a resolução o A. enviou carta na qual alegava falta de pagamento de trabalho extraordinário prestado em dias de descanso e feriados, com acréscimo legal de 200%, o facto de o legal representante da ré não permitir o gozo na íntegra de todos os dias de descanso compensatórios, ao fim de cada viagem, e antes de o autor iniciar as viagens seguintes, dias de descanso compensatório que, além de não serem gozados, também não são pagos como dias de descanso trabalhados, ou seja com o devido acréscimo; descontos ilegais e abusivos de várias quantias efectuadas pela ré nas remunerações mensais do autor, sem prévio nem posterior consentimento deste.

   É, pois, apenas com base nesta factualidade que se há-de concluir pela verificação da invocada justa causa na resolução.

   Conforme se provou, entre o A. e a R. foi celebrado um acordo remuneratório no qual este declarou a maior favorabilidade relativamente à forma de remuneração que resulta do regime legal e convencional vigente, acordo este que visa substituir a remuneração decorrente das Clª 41ª (retribuição em dias de descanso semanal e feriados), 47ª e 47ªA (refeições, alojamento e deslocações no país e fora dele), passando, assim, a receber uma quantia por quilómetro processada como ajuda de custo.

   Em presença deste acordo, cujo incumprimento não vem alegado, e tendo o A. reconhecido a sua maior favorabilidade, não lhe é legítimo invocar como causa de resolução do contrato o não pagamento do trabalho prestado em dias de descanso e feriados conforme a Clª 41ª.

   Quanto ao facto de não lhe ser permitido o gozo dos dias de descanso compensatório, a questão é diferente, porquanto o acordo apenas abarcou a substituição da fórmula remuneratória. Dele não resulta que o A. prescinda do gozo do descanso. E, assim, querendo justificar a resolução do contrato com a falta desse gozo, tem o A. que a provar. Ora, efectivamente o A. não provou que não gozou os dias de descanso compensatório.

   O A. provou que trabalhou e, tendo alegado a falta de gozo, sem que a R. provasse o gozo, conclui-se que o mesmo lhe é devido, o que, contudo, não é o mesmo que provar que o gozo não lhe foi concedido que é, no fundo, a causa invocada para resolver o contrato.

   A isto acresce que se provou, conforme acima se disse, que a quantia de 0,0449€ por Km, que a R. efectivamente pagou, também se destinava a pagar os descansos compensatórios não gozados.

   Não se vê, assim, que, por esta via, o A. possa invocar justa causa de resolução.

   Do mesmo modo, e quanto à falta de pagamento do trabalho em dias de descanso compensatório, não resulta dos autos quais estes dias trabalhados e não pagos.

   Subsistem os descontos na remuneração que persistiram ao longo de diversos meses (10), em montantes variáveis e num total de 502,12€.

   O Artº 441º/1 do CT dispõe que ocorrendo justa causa, o trabalhador pode fazer cessar imediatamente o contrato.

   O comportamento do empregador que se traduza em lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador pode integrar o conceito de justa causa (Artº 441º/2-e)).

   Contudo, a justa causa não se compadece com a simples constatação de lesão patrimonial. Não só a lesão tem que ser culposa, como séria, ou seja, grave. E só “sendo grave a actuação do empregador” se confere “ao trabalhador o direito de resolver o contrato” (Pedro Romano Martinez, Direito do Trabalho, 5ª Ed., Almedina, 1113).

   Esta característica de gravidade do incumprimento é, aliás, acentuada pelos diversos autores e constitui traço distintivo no apuramento do conceito.

   Na verdade, esta via de desvinculação “respeita a situações anormais e particularmente graves, em que deixa de ser exigível” ao trabalhador “que permaneça ligado á empresa” (Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 12ª Ed., Almedina, 604).

   Trata-se, afinal, no caso da justa causa subjectiva, de situações também apelidadas de despedimento indirecto, ou seja, “casos em que a ruptura contratual, conquanto seja desencadeada pelo trabalhador, tem como verdadeiro e último responsável, o empregador, o qual viola culposamente os direitos e garantias daquele, impelindo-o a demitir-se” (João Leal Amado, Contrato de Trabalho, Coimbra Editora, 442).

      Posto isto, vejamos como enquadrar o caso concreto.

      Durante um período que se perpetuou por 10 meses, a R. descontou quantias variáveis no salário do A., tendo atingido o montante global de 502,12€. O A. auferia mensalmente, não só o salário base de 525,00€, como também o complemento remuneratório resultante do acordo firmado que se traduzia no pagamento da quantia de 0,0449€ ao Km, bem como remuneração específica (Clª 74ª) e prémio TIR. Também está provado que as quantias indevidamente descontadas se reportavam a gastos em telefone, ou seja, não se tratava de quantias arbitrariamente descontadas, pelo que, muito embora se tendo concluído pela ilicitude nos descontos, conhece-se o motivo deles.

   Não vem alegado que o desconto de tais quantias tenha causado algum prejuízo, e muito menos sério, na economia do A..

   Conclui-se, pois, na procedência da questão que nos ocupa, que não existe justa causa para resolver o contrato.

   Desta conclusão decorre a redução da condenação no montante líquido que, assim, se altera para a quantia de 2.319,06€.


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   Em conformidade com o exposto, acorda-se em julgar a apelação parcialmente procedente e, em consequência:

a) alterar a sentença de forma a que a R. se condena a pagar a quantia de dois mil trezentos e dezanove euros e seis cêntimos (2.319,06€), acrescida de juros a contar de 20/03/2009 até efectivo e integral pagamento e

b) confirmar a sentença quanto ao mais.

   Custas por ambas as partes, na proporção do decaimento.

   Notifique.


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  Elabora-se o seguinte sumário:

   1- A violação culposa de garantias e a lesão culposa de interesses patrimoniais sérios do trabalhador pode integrar o conceito de justa causa.

   2 – Em presença de um acordo remuneratório, cujo incumprimento não vem alegado e cuja maior favorabilidade é reconhecida pelo trabalhador, não é legítimo a este invocar como justa causa de resolução do contrato o não pagamento do trabalho prestado em dias de descanso e feriados em conformidade com a CCT, se a forma de remuneração foi substituída por aquele acordo.

   3 - Não preenche o conceito de lesão séria o desconto ilícito de quantias variáveis no salário mensal do trabalhador, alegadamente por gastos em telefone, se este não prova, em face dos proventos que aufere ao serviço da empresa, que o desconto de tais quantias lhe tenha causado algum prejuízo, e muito menos sério, na sua economia doméstica.


MANUELA BENTO FIALHO (Relator)
LUÍS AZEVEDO MENDES
JOAQUIM JOSÉ FELIZARDO PAIVA


[1] Muito embora se mencione descanso complementar, percebe-se do contexto que esta quantia se reporta ao descanso compensatório