Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
17/06.1FANZR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO ANDRADE
Descritores: JOGO DE FORTUNA E AZAR
Data do Acordão: 10/22/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS ART.º 108º, N.º 1,159º, 161º, 163º DO DL N.º 422/89, DE 02/12, ALTERADO PELO DL N.º 10/95, DE 19/01 , 6º, Nº 1 DO DECRETO-LEI Nº 48/95, DE 15 DE MARÇO
Sumário: 1. Para efeitos de regime do jogo e sancionamento das suas violações, o legislador distingue entre jogos de “fortuna e azar” e “modalidades afins”: Os primeiros (jogos de fortuna e azar) são definidos, de forma genérica, pelo artigo 1º e exemplificados (…nomeadamente) no art. 4º, apenas podendo ser explorados e praticados nos casinos (artigo 3º), ou, excepcionalmente em locais previamente autorizados de interesse turístico (artigos 6º e 7º), sendo a respectiva exploração e prática fora dos locais autorizados sancionada como crime – art. 108º (exploração) e 110º (prática); As segundas (modalidades afins), definidas no art. 159º são regulados nos arts. 160º e art.161º, cujas violações constituem “Contra-ordenações” sancionadas pelo artigo 163º.
2. Apesar da aparente contradição entre as duas asserções estabelecidas nos art. 1º e do 159º (exclusivamente a sorte/somente da sorte), surpreende-se como critério da distinção: - os jogos de fortuna e azar dependem “fundamentalmente” da sorte, tendo por referência como critério de densidade e carência de tutela penal, os exemplos típicos do art.4º; - as modalidades “afins” dependem da sorte e da perícia do jogador, ou da sorte cumulativamente com a atribuição de prémios constituídos por objectos, tendo por referência os exemplos típicos previsto no art. 159º.
3. No caso dos autos, tratando-se de um cartaz com várias quadrículas em que o jogador, mediante o pagamento de € 0,30, tem direito a “furar” uma daquelas quadrículas que individualiza de forma imediata (pela cor ou pelo algarismo postos a descoberto pelo “furo”) o prémio (constituídos exclusivamente por objectos incorporados em cartaz anexo) não se trata de jogo de fortuna e azar mas, quando muito, de “modalidade afim” - “rifa”, o que leva à absolvição do crime p e p no citado art. 108º.
4. A condenação pela contra-ordenação correspondente prevista no art. 163º exigia que estivesse demonstrado que existem várias quadrículas a que não corresponde qualquer prémio - se todas as quadrículas tivessem prémio (um dos expostos) nem haveria, verdadeiramente jogo.1.
5. Como no caso dos autos nem a sentença recorrida nem a peritagem realizada nos autos apuraram aquele ponto, o apuramento da eventual responsabilidade contra-ordenacional terá que ser realizado em processo autónomo de contra-ordenação, com possibilidade de exercício do contraditório, sem prejuízo da absolvição, desde já, da prática do crime.
Decisão Texto Integral: I. Relatório

O digno magistrado do MºPº recorre da sentença mediante a qual o tribunal recorrido decidiu:
- Condenar o arguido RH pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto no art.º 108º, n.º 1 do DL n.º 422/89, de 02/12, alterado pelo DL n.º 10/95, de 19/01, na pena de 40 (quarenta) dias de prisão, substituída por igual tempo de multa à taxa de € 6,00 (seis euros) por dia e na multa de 60 (sessenta) dias à mesma taxa, condenando-o, nos termos do disposto no artº 6º, nº 1 do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, na pena única de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o total de € 600,00 (seiscentos euros).
- Condenar o arguido JA pela prática de um crime de exploração ilícita de jogo, previsto no art.º 108º, n.º 1 do DL n.º 422/89, de 02/12, alterado pelo DL n.º 10/95, de 19/01, na pena de 6 (seis) meses de prisão, substituída por igual tempo de multa, a que equivalem 180 (cento e oitenta) dias, à taxa de € 6,00 (seis euros) por dia e na multa de 150 (cento e cinquenta) dias à mesma taxa, condenando-o, nos termos do disposto no artº 6º, nº 1 do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, na pena única de 330 (trezentos e trinta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00 (seis euros), o que perfaz o total de € 1.980,00 (mil novecentos e oitenta euros).
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Na motivação apresentada formula as seguintes CONCLUSÕES:
A - Foram violados os artigos 108º, nº1 e 159º, do DL 422/89, de 02.12, alterado pelo DL 10/95, de 19 de Janeiro;
B - O Tribunal interpretou erradamente o referido artigo 108º, no sentido de que tal norma abrange todos os jogos em que o resultado depende exclusivamente da sorte
C - Porém, os jogos ou operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente da sorte, e que atribuem como prémios coisa com valor económico não poderão ter aquele enquadramento jurídico-penal;
D - O jogo dos autos é apenas uma modalidade afim dos jogos de fortuna e azar a que se refere o art. 159º, nº1 e 2, do DL 422/89, de 02.12, alterado pelo DL 10/95, de 19 de Janeiro;
E - E como tal, constituindo a conduta dos arguidos apenas e tão somente uma contra-ordenação, deveriam ter sido absolvidos e, consequentemente, determinada a extracção de certidão para enviar ao Governo Civil competente, a fim de processar o respectivo processo contra-ordenacional.
Termos em que, deve conceder-se provimento ao presente recurso, devendo ser alterada a sentença recorrida por forma a que os arguidos sejam absolvidos.
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Não foi apresentada resposta.
No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex. Mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deve proceder, qualificando-se a conduta dos arguidos como mera contra-ordenação, condenando-se os mesmos nas respectivas coimas.
Foi cumprido o disposto no art. 417º, n.º2 do CPP.
Corridos os vistos e realizado o julgamento, mantendo-se a validade e regularidade afirmadas no processo, cumpre conhecer e decidir.
De acordo com as respectivas conclusões, que definem o objecto do recurso, está em causa, exclusivamente, matéria de direito – apurar se a matéria de facto descrita nos autos integra o conceito de jogo proibido.
A apreciação obriga a que se tenha presente a matéria de facto provada.

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II. Fundamentação

1. A decisão do tribunal recorrido quanto á matéria de facto é a seguinte:
A) Factos provados
1) No dia 9 de Maio de 2006, pelas 16.00 horas, no interior do estabelecimento de café das bombas de combustível “S….”, sito na Estrada Nacional n° 8, em C…., área deste Concelho e Comarca de Alcobaça, explorado pelo arguido RH, na qualidade de sócio-gerente da “S…. – Sociedade Abastecedora de Combustíveis, Ldª”, encontrava-se um cartaz em cartão com a designação “Divertimentos”, no qual se encontravam, expostas 10 (dez) facas, 16 (dezasseis) canivetes, 1 (uma) faca de cozinha da marca “Ivo”, 6 (seis) relógios de pulso, de marca “Giogio-Giani” e 1 (uma) esferográfica, e uma outra caixa, em cartão na qual se encontravam acondicionados 267 (duzentos e sessenta e sete) lápis de várias cores e 250 (duzentos e cinquenta) esferográficas de vários formatos e cores.
2) O cartaz de cartão apresenta no seu topo a designação “DIVERTIMENTOS” e do seu lado esquerdo o preço de cada “furo”: € 0,30 (trinta cêntimos).
3) De seguida visionam-se oito quadrados com figuras alusivas à Tauromaquia, sendo que cada um dos quadrados é composto por noventa e seis círculos, que se destinam a ser “furados” pelos jogadores, perfazendo um total de setecentos e sessenta e oito círculos.
4) Na base do cartaz encontra-se a tabela de prémios, que apresenta a seguinte estrutura:
- Se sair a bucha azul receberá um lápis; se sair a bucha vermelha receberá uma caneta;
- O cliente que fizer um furo de cada receberá um prémio brinde;
- O cliente que fizer o último furo do cartão receberá um brinde final.
5) No cartaz de prémios encontram-se expostas diversas navalhas e relógios, sendo que cada um deles tem colado uma pequena etiqueta com a inscrição de um número.
6) Os referidos expositor e cartaz tinham sido propriedade do arguido JA que os vendera ao arguido RH, na qualidade de representante da sociedade “S…. – Sociedade Abastecedora de Combustíveis, Ldª” no dia 8 de Março de 2006, pelo preço de € 130,00 (cento e trinta euros).
7) O jogo desenvolvido pelos referidos expositor e cartaz processa-se da seguinte forma:
O jogador escolhe um dos círculos que compõem os oito quadrados do cartaz, perfurando-o. Em seguida apenas tem que verificar a cor ou os números que se encontram inscritos no verso do círculo que perfurou, sendo que:
- se sair um círculo vermelho o jogador ganha uma caneta;
- se sair um círculo com a inscrição de um algarismo, o jogador terá direito a receber o prémio correspondente, prémio este que se encontra exposto no respectivo cartaz e que poderá ser um relógio, ou uma navalha.
8) Os referidos expositor e cartaz encontravam-se expostos ao público, em perfeitas condições de funcionamento e de utilização pelos clientes do estabelecimento e, desde a data da sua colocação naquele local, e até ao momento da sua apreensão, o arguido RH auferiria os lucros resultantes da utilização daqueles pelo público que frequenta o estabelecimento.
9) Bem sabiam os arguidos que não possuíam qualquer licença de exploração dos referidos expositor e cartaz supra descritos, nem sequer diligenciaram no sentido de a obterem, porquanto tinha o arguido JA conhecimento de que, em caso algum, a conseguiriam.
10) O arguido JA conhecia quais as características daqueles objectos e bem sabia que a cessão, colocação, divulgação, existência e exploração daqueles só era permitida, em certas condições, designadamente em zonas de jogo legalmente reconhecidas e autorizadas.
11) O arguido JA actuou sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a sua descrita conduta era censurada, proibida e punida por lei.
12) O arguido RH tinha consciência e conhecimento de que era proibido explorar jogos de fortuna e azar.
13) Não tinha, no entanto, conhecimento de que o jogo supra descrito carecia de autorização ou fosse proibido.
14) O arguido RH não procurou informar-se, por qualquer forma, se o descrito jogo era ou não proibido ou se carecia ou não de autorização para o seu funcionamento.
15) O arguido RH, é chefe de vendas auferindo o vencimento mensal no montante de € 1.200,00 (mil e duzentos euros).
16) Vive em casa da companheira, tem dois filhos com 12 (doze) e 8 (oito) anos de idade e paga mensalmente a quantia de € 450,00 (quatrocentos e cinquenta euros) de pensão de alimentos para os filhos.
17) Paga também a quantia de € 260,00 (duzentos e sessenta euros) mensais pela aquisição de móveis e tem como habilitações literárias o 8º ano de escolaridade.
18) O arguido JA é comerciante, auferindo por semana cerca de € 200,00 (duzentos euros).
19) Vive em casa própria com a mulher e dois filhos com 11 (onze) e 8 (oito) anos de idade e tem como habilitações literárias o 6º ano de escolaridade.
20) Paga mensalmente as quantias de € 115,28 (cento e quinze euros e vinte e oito cêntimos) e de € 159,15 (cento e cinquenta e nove euros e quinze cêntimos) de créditos pessoais.
21) O arguido RH não tem antecedentes criminais.
22) Do certificado do registo criminal do arguido JA constam as seguintes condenações:
Processo Comum Singular nº......FCPNI, do 1º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras, pela prática do crime de exploração ilícita de jogo, por sentença datada de 24/03/2003, na pena única de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 4,00 (quatro euros);
Processo Comum Singular nº ....FATVD, do 2º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras, pela prática do crime de exploração ilícita de jogo, por sentença datada de 11/04/2003, na pena única de 120 (cento e vinte) dias de multa, à taxa diária de € 4,00 (quatro euros);
Processo Comum Singular nº....FCPNI, do 3º Juízo do Tribunal Judicial de Torres Vedras, pela prática do crime de exploração ilícita de jogo, por sentença datada de 28/05/2004, na pena única de 180 (cento e oitenta) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros).
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B) Factos não provados
Não se provou que: o arguido RH conhecesse quais as características daqueles objectos e bem soubesse que a cessão, colocação, divulgação, existência e exploração daqueles só era permitida, em certas condições, designadamente em zonas de jogo legalmente reconhecidas e autorizadas.
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2. Como se viu na definição do objecto do recurso, está em causa o enquadramento jurídico da matéria de facto provada:
- no tipo legal de crime de jogo proibido tipificado pelos artigos 108º, nº1 do DL 422/89, de 02.12, alterado pelo DL 10/95, de 19 de Janeiro, como fez o tribunal recorrido; ou
- no art. 159º do mesmo diploma, com a consequente qualificação como mera contra-ordenação, como sustenta o digno recorrente,.

O artigo 108º citado estabelece que: Quem, por qualquer forma, fizer exploração de jogos de fortuna ou azar fora dos locais legalmente autorizados, será punido com pena de prisão até dois anos e multa até 200 dias.
Remete assim para o conceito de jogo de fortuna ou azar. Conceito que é definido pelo artigo 1º do mesmo diploma nos seguintes termos: Jogos de fortuna ou azar são aqueles cujo resultado é contingente por assentar exclusiva ou fundamentalmente na sorte.
Dispõe, ainda com relevo, o artigo 4º do mesmo diploma, sob a epígrafe “Tipos de jogo de fortuna e azar”:
1- Nos casinos é autorizada a exploração, nomeadamente, dos seguintes tipos de jogos de fortuna ou azar:
a) Jogos bancados em bancas simples ou dupla: bacará ponto e banca, banca francesa (….) roleta francesa e roleta americana;
b) Jogos bancados em bancas simples: blac-jack/21, chuckluck e trinta e quarenta;
c) (…) keno
d) (…) bacará, écarté e bingo
g) Jogos em máquinas que, não pagando directamente prémios em fichas ou moedas, desenvolvam temas próprios dos jogos de fortuna e azar ou apresentem como resultado pontuações dependentes exclusiva ou fundamentalmente da sorte.
Por último, ainda no âmbito dos jogos de fortuna e azar, o artigo 3º do mesmo diploma estabelece que «A exploração e a prática dos jogos de fortuna e ou azar só são permitidos nos casinos existentes em zonas de jogo permanente ou temporário criadas por decreto-lei».

Em contrapartida o art. 159º do mesmo diploma prevê outras modalidades de jogos que define como “afins dos jogos de fortuna e azar”. Postulando:
1. Modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar são as operações oferecidas ao público em que a esperança de ganho reside conjuntamente na sorte e perícia do jogador, ou somente da sorte, e que atribuem como prémios coisa com valor económico.
2. São abrangidos pelo disposto no número anterior, nomeadamente, rifas, tômbolas, sorteios, concursos publicitários, concursos de conhecimentos e passatempos.
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O legislador distingue assim entre jogos de “fortuna e azar” e “modalidades afins”. Distinção que releva para efeitos da autorização da respectiva exploração (arts. 160º e 161º) bem como para efeito das proibições do seu exercício e respectivas sanções (arts. 108º e 163º).
Os primeiros (jogos de fortuna e azar) são definidos, de forma genérica, pelo artigo 1º e exemplificados (…nomeadamente) no art. 4º. Apenas podendo ser explorados e praticados nos casinos (artigo 3º), ou, excepcionalmente em locais determinados previamente autorizados, em locais de interesse turístico (artigos 6º e 7º). Sendo a respectiva exploração e prática fora dos locais autorizados sancionada como crime – art. 108º (exploração) e 110º (prática).
Os segundos (modalidades afins) são regulados, sob a aludida epígrafe “modalidades afins dos jogos de fortuna ou azar” no Capítulo XI, e definidos no citado art. 159º. Sendo as respectivas “Condicionantes” definidas no art. 160º e as “proibições” no art.161º. Cujas proibições cujas violações são definidas como “Contra-ordenações” pelo artigo 163º.
Os jogos proibidos nos locais “não autorizados” são os mesmos cuja exploração é lícita, apenas nos referidos “locais autorizados” – os jogos de fortuna e azar definidos no art. 1º e exemplificados no art. 4º supra reproduzidos, cujas regras padronizados de execução foram objecto de minuciosa regulamentação pela Portaria n.º217/2007 de 26.06 que substituiu a Portaria 817/2005 de 12.09
Os jogos de fortuna e azar têm uma regulamentação muito mais restritiva que as modalidades afins. Apenas autorizados em estabelecimentos concessionados, na perspectiva de que a álea assumida, ou a sorte, assumem carácter “fundamental” (art. 1º - fundamentalmente …) no resultado e que, não sendo possível erradicá-los, o legislador permite a sua prática, em locais restritos, pré-definidos (casinos e excepcionalmente em locais de interesse turístico), sujeitos e fiscalização e deveres específicos e regime fiscal próprio. Porque, para além dos prémios que podem em abstracto proporcionar, de forma predominantemente aleatória, a mira de ganho imediato e fácil induz o jogador a assumir riscos não calculados.
Já os jogos afins, “tipificados” no art. 165º, são autorizados em locais os mais variados, a quaisquer entidades sem fins lucrativos (art. 161º), mediante autorização “ad hoc” do membro do Governo responsável, decidida caso a caso - cfr. art. 160º. Porque o patamar de risco é muito moderado (não fundamental), em regra com prémios pré-definidos, sempre dentro de um quadro em que o lucro líquido reverte para “fins de assistência ou outros de interesse público” prosseguidos pelos promotores – cfr. ainda o art. 160º.
A redacção do art. 159º, n.º1 (relativo às modalidades afins) quando refere ganho reside (,,,) ou somente da sorte, e que atribuem como prémios coisa com valor económico”, tomando-se a expressão “somente na sorte” separada da segunda parte do preceito seria mais restritiva que o art. 1º, definidor dos jogos de fortuna e azar o qual se basta apenas com o resultado que assenta exclusiva ou fundamentalmente na sorte”. O que redundaria numa definição mais restritiva para as modalidades afins do que para os verdadeiros jogos de fortuna e azar, contraditória com a maior densidade destes últimos. Apontando a sorte como o “único” factor influenciador do resultado, quando nos verdadeiros jogos de fortuna e azar se admite que a sorte constitua “apenas” factor “preponderante”.
Em função da ratio e do enquadramento sistemático do preceito, parece existir uma “vírgula a mais” no citado art. 159, n.º1, a seguir a “ sorte”. Sendo claramente o sentido lógico dos dois requisitos ali previstos o de serem exigidos cumulativamente, ou seja “ou somente pela sorte e que atribuem como prémios coisas em valor”.
Contendo assim o preceito duas afirmações distintas: a primeira relativa às modalidades em que actua “conjuntamente a sorte e perícia do jogador”; e a segunda relativa aos casos em que actuando somente a sorte se exige cumulativamente que o jogo atribua como prémio coisas predeterminadas.
Não fazendo sentido – por contraditória com a do artigo 1º - a afirmação isolada de que os “jogos afins” podem ter como factor “somente da sorte”. Mas já o tendo se, funcionando somente da sorte se exigir, cumulativamente, que os prémios sejam “coisas em valor” assim minimizando o respectivo risco.
Tanto mais atenta a natureza dos jogos “afins” enumerados tipicamente no n.º2 do mesmo preceito em que, precisamente, quando a sorte é o único factor de atribuição de prémios estes são constituídos por objectos previamente identificados perante o eventual apostador – rifas, tômbolas, sorteios, concursos.
Surpreendendo-se assim, apesar da aparente contradição entre as duas mencionadas asserções do art. 1º e do 159º (exclusivamente a sorte/somente da sorte) como critério da distinção: - os jogos de fortuna e azar dependem “fundamentalmente” da sorte, tendo por referência como critério de densidade e carência de tutela penal, os exemplos típicos do art.4º; - as modalidades “afins” dependem da perícia do jogador, ou, dependendo apenas da sorte exige-se cumulativamente a atribuição de prémios constituídos por objectos, tendo por referência os exemplos típicos previsto no art. 159º.
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Isto posto, dentro do quadro referido, vejamos a subsunção do caso concreto, passando pela aludida destrinça entre jogos de fortuna ou azar e “modalidades afins”.
O jogo dos autos consiste num cartão com 8 quadrados (melhor dizendo rectângulos, uma vez que não têm 4 faces iguais, como evidencia a fotografia e o n.º diferente de quadrículas em altura e largura), cada um dos quais com 96 círculos (melhor dizendo quadrículas são quadrados) num total de 768 quadrículas, correspondentes a outras tantas possibilidades de “furos” que podem ser efectuados pelos jogadores mediante o pagamento de € 0,30 por cada furo - cfr. matéria de facto provada, complementada pelo documento fotográfico n.º1, a fls. 76 e pelo n.º4, a fls. 77.
Por outro lado o mesmo jogo não é tipificado como jogo de fortuna e azar pelo artigo 4º do diploma. Nem constitui jogo de natureza e ou “densidade” de risco/sorte, e como tal de identidade de carência de tutela semelhante aqueles, susceptível de subsunção no critério do art. 1º. Precisamente por não haver um factor de sorte significativo ou preponderante.
Com efeito não atribui qualquer prémio em dinheiro, mas apenas objectos perfeitamente identificados (fisicamente incorporados) no cartaz anexo – para além da descrição da matéria de facto provada cfr. as figuras 2 e 3, a fls. 77. Tratando-se de facas, canivetes, relógios de pulso, esferográficas, lápis – cfr. documentos fotográficos n.º2 e 3, a fls. 77. Todos eles objectos de pequeno valor, perfeitamente proporcionado ao valor das apostas e ao n.º total de quadrículas disponíveis.
Acresce que uma vez efectuado o “furo” o jogador sabe, imediatamente, se lhe cabe algum dos objectos expostos, identificando sem margem para dúvidas qual o objecto concreto atribuído – identificado através da cor ou do algarismo postos a descoberto pelo furo de cada quadrícula. Com efeito se sair um círculo azul recebe um lápis; se sair um círculo vermelho receberá uma caneta; o cliente que fizer um furo de cada receberá um prémio brinde; o cliente que fizer o último furo do cartão receberá um brinde final; se sair um círculo com a inscrição de um algarismo receberá o prémio correspondente que poderá ser um relógio, ou uma navalha. Prémios que se encontram expostos e identificados por referência à cor dos círculos ou aos algarismos saídos de – cfr. pontos 4 e 7 da matéria provada.
Assim o factor sorte apenas determina qual dos objectos – expostos e identificados de forma linear e inconfundível pelas “cores” e “algarismos” em que estão agrupados no expositor – cabe a cada “furo” do cartão. Tratando-se aliás de objectos de valor e utilidade semelhantes e valor aproximado igual ou superior ao do “investimento” – 30 cêntimos”, alguns deles de valor notoriamente superior àquele valor.
Nas modalidades afins existe algum risco, mas perfeitamente calculado – objectivado nos prémios previamente definidos, em valor proporcional ao valor global das apostas. Assumindo o conjunto dos apostadores o risco correspondente ao valor dos prémios expostos com que alguns serão contemplados.
Conclui-se assim que, atribuindo apenas prémios em objectos identificados pela cor ou algarismo portos á vista pelo furo de cada quadrícula não se trata de jogo de fortuna e azar mas, quando muito, de “modalidade afim” - “rifa” (no pressuposto de que nem a todas as quadrículas corresponde um prémio, pois que se todas tivessem prémio nem jogo haveria verdadeiramente), o que arreda a subsunção no crime p e p no citado art. 108º.
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No entanto, no caso dos autos, para a condenação pela contra-ordenação correspondente prevista no art. 163º exigia-se que estivesse demonstrado que existem várias quadrículas a que não corresponde qualquer prémio.
Com efeito se todas as quadrículas tivessem prémio (um dos expostos) nem haveria, verdadeiramente jogo – a cada quantia paga correspondia coisa certa e determinada, do mesmo género, apenas sujeita a especificação no expositor que estabelece a correspondência entre os quadrados e os objectos
A este respeito, o n.º das quadrículas a “furar” (768), superior ao dos prémios exibidos (na contagem que é possível fazer através das fotografias), aponta no sentido de que nem todas têm prémio e a ser assim estaria verificada a contra-ordenação.
No entanto, ao contrário do que é afirmado nas alegações de recurso, a matéria de facto provada não permite concluir que o jogador obtenha “sempre” um prémio. O mesmo é dizer que “todos os furos” tenham algum dos prémios.
Do mesmo modo o exame pericial realizado (cfr. o respectivo relatório a fls. 76-79) não refere, em circunstância alguma, que a todas as quadrículas (a que correspondem os furos a realizar) corresponda um prémio.
Pelo que a condenação pela contra-ordenação exige o esclarecimento prévio deste ponto (desnecessário para a decisão do recurso, uma vez que está em causa a responsabilidade criminal já afastada), em processo próprio onde possa ser exercido o contraditório, atento o não esclarecimento deste ponto quer pela sentença quer da perícia.
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III. Decisão:
Nos termos e com os fundamentos expostos decide-se julgar procedente o recurso, revogando-se a sentença a absolvendo-se os arguidos da prática dos crimes pelos quais vêm condenados, sem prejuízo do eventual apuramento da responsabilidade de natureza contra-ordenacional, em processo próprio, onde possa ser discutido, designadamente, se a rifa atribui prémios a toda e qualquer uma das 768 quadrículas que a compõem. ---
Sem custas.