Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1859/07.6TBPBL-D.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: ALIMENTOS A MENORES
FUNDO DE GARANTIA DE ALIMENTOS DEVIDOS A MENORES ( FGADM )
CESSAÇÃO
CASA ABRIGO
INTERNAMENTO
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 01/28/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA - POMBAL - JUÍZO FAM. MENORES
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: LEI Nº 75/98 DE 9/11, DL Nº 164/99 DE 13/5, LEI Nº147/99 DE 1/9, LEI Nº 112/2009 DE 16/9, LEI Nº 129/2015 DE 3/9.
Sumário: A permanência da requerente e das menores suas filhas em Casa Abrigo (integrada na rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica) poderá determinar a cessação das prestações alimentícias a cargo do FGADM no decurso do período do acolhimento, pois, nos termos do art.º 3º, n.º 6 do DL 164/99 de 13.5 (na redacção conferida pela Lei n.º 64/2012, de 20/12), os menores que estejam em situação de internamento em estabelecimentos de apoio social, públicos ou privados sem fins lucrativos, cujo funcionamento seja financiado pelo Estado ou por pessoas colectivas de direito público ou de direito privado e utilidade pública, bem como os internados, designadamente, em centros de acolhimento, não têm direito à prestação de alimentos atribuída pelo Fundo, com a consequente cessação da intervenção do FGADM e que poderá ser retomada quando terminar o apoio de emergência social (cf., ainda, nomeadamente, os art.ºs 50º, n.º 1; 54º, n.º 1; 63º; 65º, n.ºs 1 e 3; 70º e 74º da Lei n.º 112/2009, de 16.9 e 30º, n.ºs 1 e 3; 36º e 40º do Decreto Regulamentar n.º 2/2018, de 24.01).
Decisão Texto Integral:









            Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:       

I. Nos autos de incumprimento das responsabilidades parentais em que é requerente M (…), em representação de suas filhas menores M (…) e B (…) sendo requerido P (…), pai das menores, notificada a decisão de 11.12.2018, que declarou cessada a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores (FGADM), quanto à menor M (…) (apenso D) e consequente extinção da instância por impossibilidade superveniente, a requerente, inconformada, apelou, terminando com as seguintes “conclusões”:

- O Tribunal por decisão proferida no apenso D, relativa à menor M (…) e no seguimento de uma outra relativa à menor B (…) no apenso E, declarou a imediata cessão da intervenção do FGADM, e consequentemente declarou extinta a instância por impossibilidade superveniente, bem como, a comunicação ao FGSS-IP, para efeitos de reembolso das prestações entretanto pagas desde Janeiro de 2018.

2ª - Tal decisão, teve por base a interpretação feita pelo Tribunal a quo, de que, nos termos do art.º 3º, n.º 6 do DL 164/99 de 13/5, as menores, encontrando-se acolhidas desde Janeiro de 2018 em Casa Abrigo, tal situação integra, sem mais, a referida previsão, prejudicando liminarmente a continuação da intervenção do FGADM.

3ª - Estando para mais em causa o superior interesse de duas menores e, pela responsabilidade constitucional do próprio Estado, e moral da Sociedade em si, de protecção das crianças, principalmente as mais desprotegidas, e tendo em vista o seu crescimento integral e saudável, tal decisão vai contra todos os princípios e génese legal de protecção das crianças, aliás, também plasmados no próprio sumário do diploma que veio regular a garantia de alimentos devidos a menores.

4ª - Com base nestas premissas, o legislador não ia retirar e logo com as duas mãos, o que deu com uma, criando situações incompreensíveis, como fossem os casos como os dos autos, de, abranger, como fazendo parte do leque dos internados em Instituições, também as pessoas (umas vítimas, outras apenas ao seu encargo) acolhidas, ainda que por necessidade, mas sempre por sua vontade, e com autonomia própria, em casas abrigo.

            5ª - O Tribunal faz assim uma interpretação tremendamente extensiva, ademais injusta e deveras incompreensível, do referido art.º 3º, n.º 6 do invocado DL 164/99 de 13.5, estendendo a sua aplicabilidade aos casos de acolhimento, quando, até pela escolha literal da palavra “internamento” feita pelo legislador, parece claro e lógico, que o n.º do art.º em questão apenas se aplica a esses mesmos, de facto, casos de internamento.

6ª - Com tal interpretação inexplicável violou o Tribunal os referidos princípios constitucionais de obrigação e protecção do Estado às crianças, nomeadamente o art.º 69º da Constituição da República Portuguesa (CRP).

7ª - A menor M (…)e também a sua irmã menor B (…) não estão em situação de internamento, mas sim de abrigo ou acolhimento temporário, e por isso, sempre provisório, ou seja, sujeito a terem de o abandonar a qualquer momento, independentemente de qualquer decisão judicial no processo, que as levou a terem de, juntamente com a sua progenitora, solicitarem refúgio e protecção, para evitarem eventuais males maiores, acolhendo-se assim em Casa Abrigo.

8ª - As menores não estão internadas ou institucionalizadas em Estabelecimento de Apoio Social, por imposição legal e/ou judicial, a que pensamos o preceito se aplica.

9ª - Foi propositado que a referida disposição legal não tivesse previsto os casos, de acolhimento ou refúgio, ou outras formas de abrigo e protecção, que como as palavras indicam, e sendo a língua portuguesa tão rica, têm sempre subjacentes, uma componente de liberdade de escolha, no pedido de ajuda, de solidariedade, e hospitalidade humana, de alguém que precisa de auxílio, de refúgio, e abrigo, e que a ele resolve apelar temporária e transitoriamente, não porque, no caso das crianças isso seja o melhor para o seu são crescimento, mas apenas por questões de segurança para que esse crescimento não seja prejudicado, e pelo facto de, ainda que pudessem não ser elas próprias vitimas directas, têm, logicamente, de acompanhar o progenitor que tem a sua guarda.

10ª - Tendo ainda assim, as crianças de abdicar de tudo, principalmente da sua área de conforto, como são sempre o seu lar, a sua família, os seus amigos, a sua escola, os seus professores, a sua catequese, etc.

11ª - As menores não estão assim internadas nem institucionalizadas, nem têm de obedecer a nenhum programa especial que lhes promova a sua educação, o seu são crescimento e bem estar, em prol do seu superior interesse, que seja ou tenha de ser velado, zelado e suportado, a qualquer título, pela instituição de acolhimento, e em última análise pelo Estado ou Sociedade, que implique não poderem as menores receber o apoio do FGADM como até aqui, e que por isso, nada tem a ver com o presente acolhimento, por razões lógicas de segurança.

12ª - Aliás, nenhum proveito, podem as crianças retirar de tal acolhimento, ficando em pior situação da que estavam, e neste caso, com eventuais e sérios traumas de não conseguirem, não só, entender, como, suportar esse afastamento imprevisível (nem um recomeçar é, pois é provisório, e por isso transitório e acidental este acolhimento, podendo causar sérios transtornos no seu crescimento).

13ª - E tudo isto, não só, quanto ao modo e lugar, mas principalmente quanto ao tempo de duração, e com o risco de as crianças terem de sair a qualquer momento da casa de acolhimento, e da “nova” escola que ainda estavam a conhecer.

14ª - Bem basta, pois, a dupla “punição” das menores, pois o seu progenitor é simultaneamente o incumpridor dos seus deveres parentais nos presentes autos, como o suposto causador dos seus afastamentos das suas rotinas, da sua família, dos seus amigos, da sua terra natal, que tanto as podiam ajudar no seu são crescimento.

15ª - Se a mãe e as suas filhas menores, já se encontravam em situação precária, por aquela estar desempregada, pelo menos, em sua casa, na sua terra, sempre podiam contar com a ajuda de familiares, amigos, e até simples conhecidos (em géneros alimentares, roupas e até medicamentos, mas até em encontrar trabalho).

16ª - Tal precariedade ainda mais se agudizou, porque, logicamente, em território estranho, acolhida em local provisório com regras até de recolhimento/entrada, mais difícil é aí conseguir encontrar actividade remunerada, (não pode por exemplo a mãe das menores trabalhar em horário nocturno).

17ª - Sendo que por outro lado, e até por aí, não cumprindo os acolhidos as regras da Instituição de acolhimento, são convidados a sair (diferente de estando institucionalizadas, em que aí, sofreriam, isso sim, os internados, sanções).

18ª - Para mais, a Casa Abrigo, o que fornece, é isso mesmo, abrigo e comida, não providenciando, nem podendo, as outras necessidades básicas das crianças aí acolhidas, no caso com a sua mãe/Recorrente, como sejam, roupas, livros e restante material didático e escolar (por exemplo), ou seja o que se entende global e legalmente por prestação de alimentos, como sejam a instrução e educação.

19ª - Tem de ser pois a mãe a suportar essas mesmas necessidades, a providenciar esse mesmo sustento, e nesse particular, não tendo actividade remunerada, e tendo feita a prova de reunião dos pressupostos para poder beneficiar da intervenção do FGADM, a poder contar assim com essas prestações, para o devido sustento das menores.

20ª - As menores continuam à guarda e cuidados da mãe/requerente, que mantém assim plena autonomia na gestão e educação das filhas menores ao seu encargo, e não da instituição, ou de qualquer outra entidade.

21ª - O referido preceito legal em que se baseia o Tribunal para declarar de imediato e sem mais, a cessação da intervenção do FGADM, não tem, nem pode ter, aplicação ao caso concreto, até pela natureza das prestações em causa, da própria protecção das crianças que o legislador pretendeu com a criação do FGADM e da sua regulamentação, ou, tê-lo-ia expressamente previsto o mesmo legislador, se não no próprio diploma inicial (ou nas revisões posteriores), ao menos quando a problemática da violência doméstica se veio a acentuar, nos últimos anos, e com a necessidade de se criarem outros mecanismos de solidariedade social para com as vítimas directas e indirectas da mesma, que sejam, não restritivos ou limitadores dos anteriores já existentes, mas pelo contrário complementares aos mesmos.

22ª - Bem se percebe que até a própria Segurança Social, conhecendo cabalmente, a situação concreta, no relatório apresentado se tenha pronunciado em sentido favorável à continuação da intervenção do fundo, mesmo sabendo da situação actual das menores.

23ª - Não nos parece fazer qualquer sentido a ordenação da promoção para notificação do IGFSS-IP, para reembolso das prestações pagas pelo Fundo, posto que as mesmas, não só não foram indevidamente pagas, como foram legítima e legalmente aplicadas, e nunca colocadas em causa, dentro da autonomia parental que assistiu e assiste à progenitora/recorrente, no bem estar e superior interesse das duas menores, que ainda por cima, apesar das dificuldades, são excelentes alunas.

24ª - Para mais, a mãe das menores/requerente encontra-se já em fase de autonomização, perspectivando-se a saída do acolhimento, ou seja, da Casa Abrigo, num curto espaço de tempo.

            Remata pugnando pela revogação da decisão recorrida, determinando-se a continuação do pagamento da prestação de alimentos às menores M (…) e B (…) pelo FGADM, revogando-se também a ordem de notificação do IGFSS-IP, tendo em vista o reembolso das prestações pagas.

            O M.º Público respondeu concluindo pela improcedência do recurso, considerando, além do mais, que “as menores, com a mãe, são utentes efectivas dos referidos estabelecimentos de apoio social (…), cujo funcionamento é suportado em termos económicos pelo Estado ou por pessoas colectivas de direito público ou, então, de direito privado e de utilidade pública, (…) sendo justamente o mesmo Estado que, por via do IGFSS, financia o FGA, em vista da protecção dos menores e da salvaguarda do seu direito a alimentos”.

            Na sequência de despacho do Relator de 26.7.2019, o recurso foi considerado devidamente interposto para apreciação conjunta da situação das menores M (…) e B (…)(cf. despachos de fls. 275 e 283 e apenso G).

Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objecto do recurso, importa apreciar e decidir, apenas, se a permanência das menores em Casa Abrigo determinou a cessação das prestações alimentícias a cargo do FGADM durante o período do acolhimento.

*
            II. 1. Para a decisão do recurso releva ainda o seguinte:

            a) As menores M (…) e B (…) nasceram em 20.01.2005 e 15.01.2008, respectivamente.

b) Por sentença de 18.3.2009 foi determinado que o Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social (IGFSS), na qualidade de gestor do FGADM, assegurasse o pagamento da prestação de alimentos vincendos à menor M (…), no montante de € 100, enquanto se verificassem as circunstâncias subjacentes à sua concessão e até que cessasse a obrigação a que o devedor (pai da menor) estava obrigado.

c) Tal pagamento iniciou-se em 21.5.2009, com referência a 01.4.2009; por sentenças de 23.4.2015, 21.9.2016 e 12.10.2017 foi renovada a prestação alimentar fixada a cargo do FGADM, anualmente actualizada.

d) Por decisão de 05.01.2011 foi ordenado que o FGADM pagasse o valor mensal de € 125, a actualizar anualmente, a título de prestação alimentar a favor da menor B (…); por sentença de 16.6.2015 manteve-se essa prestação alimentícia mensal, a cargo do FGADM, então, no valor mensal de € 128,45.

e) Em Dezembro de 2018 foi informado nos autos que as menores residiam com a progenitora em “Casa Abrigo”, no (...).

f) No apenso D, em 11.12.2018, foi proferida a seguinte decisão: «Nos termos do art.º 3º, n.º 6 do DL 164/99 de 13/5, os menores que estejam em situação de internamento em estabelecimentos de apoio social, públicos ou privados sem fins lucrativos, cujo funcionamento seja financiado pelo Estado ou por pessoas colectivas de direito público ou de direito privado e utilidade pública, bem como os internados em centros de acolhimento, centros tutelares educativos ou de detenção, não têm direito à prestação de alimentos atribuída pelo Fundo./ Conforme resulta da informação de fls. 250 e 251, a menor M (…) e a mãe, estão acolhidas desde Janeiro de 2018 em Casa Abrigo,[1] no (...), situação que integra a previsão do art.º 3º-6 do DL 164/99 de 13.5, prejudicando liminarmente a continuação da intervenção do FGA./ Em face do exposto, declara-se a imediata cessação da intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores quanto à menor M (…)e consequentemente declara-se extinta instância por impossibilidade superveniente (art.º 277º, al. e) do CPC). (…)»

g) Na Declaração incluída no requerimento de 10.12.2018 junto ao apenso E, fez-se constar: «CASA ABRIGO PARA VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA[2] declara, para os devidos efeitos, que M (..) se encontra acolhida desde 18/01/2018. Dado que as Casas Abrigo são, nos termos da alínea a) do artigo 2º do Decreto regulamentar n.º 2/2018, unidades residenciais destinadas a acolhimento temporário de vítimas de violência doméstica, acompanhadas ou não de filhos menores ou maiores com deficiência na sua dependência, as suas filhas menores M (…) e B (…) encontram-se também a residir nesta Casa Abrigo./ Nos termos do artigo 70º da Lei n.º 112/2009, considerando este acolhimento, à vítima e às suas filhas é garantido o alojamento e alimentação e a usufruir de um espaço de privacidade e de um grau de autonomia na condução da sua vida pessoal./ Mais se refere que M (…) se encontra já em fase de autonomização, perspectivando-se a sua saída num curto espaço de tempo

h) Relativamente à menor B (…) a 07.01.2019, foi proferido no apenso E o seguinte despacho: “(…) Encontrando-se as menores em situação de acolhimento em Casa Abrigo, mantém-se a decisão de 22/11/2018 que declarou cessada a intervenção do Fundo de Garantia de Alimentos devidos a Menores, sem prejuízo de a mesma poder vir a ser retomada, logo que cesse tal acolhimento, o que deverá ser reportado aos autos”.

i) Em 22.11.2019, a Instituição dita em g) emitiu a seguinte Declaração: «Para os devidos efeitos declara-se que M (…) cessou na presente data acolhimento em casa abrigo para mulheres vítimas de violência doméstica onde se encontrava, juntamente com as suas filhas menores M (…) e B (…), desde o dia 18.01.2018./ Mais se informa que lhe foi cedida uma habitação no distrito do (...) onde residirá temporariamente com as suas filhas menores e até que lhe seja concedida casa no âmbito do protocolo CIG/IHRU na resposta habitacional a vítimas de violência doméstica

2. Cumpre apreciar e decidir com a necessária concisão.

Os menores que estejam em situação de internamento em estabelecimentos de apoio social, públicos ou privados sem fins lucrativos, cujo funcionamento seja financiado pelo Estado ou por pessoas coletivas de direito público ou de direito privado e utilidade pública, bem como os internados em centros de acolhimento, centros tutelares educativos ou de detenção, não têm direito à prestação de alimentos atribuída pelo Fundo (art.º 3º, n.º 6 do DL n.º 164/99, de 13.5, que regula a garantia de alimentos devidos a menores, na redacção conferida pela  Lei n.º 64/2012, de 20/12).

3. a) Cabe ao Estado promover a criação, a instalação, a expansão e o apoio ao funcionamento das casas de abrigo e restantes estruturas que integram a rede nacional (art.º 50º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16.9, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica e à protecção e à assistência das suas vítimas[3]).

Os serviços prestados através da rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica são gratuitos (art.º 54º, n.º 1).

As casas de abrigo são as unidades residenciais destinadas a acolhimento temporário a vítimas, acompanhadas ou não de filhos menores (art.º 60º, n.º 1

As respostas de acolhimento de emergência visam o acolhimento urgente de vítimas acompanhadas ou não de filhos menores, pelo período necessário à avaliação da sua situação, assegurando a proteção da sua integridade física e psicológica (art.º 61º-A, aditado pela Lei n.º 129/2015, de 03.9).

São objetivos das casas de abrigo: a) Acolher temporariamente vítimas, acompanhadas ou não de filhos menores; b) Nos casos em que tal se justifique, promover, durante a permanência na casa de abrigo, aptidões pessoais, profissionais e sociais das vítimas, suscetíveis de evitarem eventuais situações de exclusão social e tendo em vista a sua efetiva reinserção social (art.º 63º).

As casas de abrigo são organizadas em unidades que favoreçam uma relação afetiva do tipo familiar, uma vida diária personalizada e a integração na comunidade (art.º 64º, n.º 1).

As casas de abrigo podem funcionar em equipamentos pertencentes a entidades públicas ou particulares sem fins lucrativos (art.º 65º, n.º 1, na redacção conferida pela Lei n.º 129/2015, de 03.9). Tratando-se de entidades particulares sem fins lucrativos, o Estado apoia a sua ação mediante a celebração de acordos de cooperação (n.º 3).

O acolhimento nas casas de abrigo é de curta duração, pressupondo o retorno da vítima à vida na comunidade de origem, ou outra por que tenha optado, em prazo não superior a seis meses (art.º 68º, n.º 3, na redacção conferida pela Lei n.º 129/2015, de 03.9). A permanência por mais de seis meses pode ser autorizada, a título excecional, mediante parecer fundamentado da equipa técnica acompanhado do relatório de avaliação da situação da vítima (n.º 4). O disposto no presente artigo não prejudica a existência de acolhimento de crianças e jovens, decidido pelo tribunal competente, nos termos dos art.ºs 49º a 54º da Lei de Proteção das Crianças e Jovens em Perigo (n.º 5).

Constituem causas imediatas de cessação de acolhimento, entre outras: a) O termo do prazo previsto nos n.ºs 3 e 4 do artigo anterior; b) A manifestação de vontade da vítima; c) O incumprimento das regras de funcionamento da casa de abrigo (art.º 69º).

A vítima e os filhos menores acolhidos em casas de abrigo têm os seguintes direitos: a) Alojamento e alimentação em condições de dignidade; b) Usufruir de um espaço de privacidade e de um grau de autonomia na condução da sua vida pessoal adequados à sua idade e situação (art.º 70º, n.º 1). Constitui dever especial da vítima e dos filhos menores acolhidos em casas de abrigo cumprir as respetivas regras de funcionamento (n.º 2).

Aos filhos menores das vítimas acolhidas nas casas de abrigo é garantida a transferência escolar, sem observância do numerus clausus, para estabelecimento escolar mais próximo da respetiva casa de abrigo (art.º 74º, n.º 1).

b) Segundo o Decreto Regulamentar n.º 2/2018, de 24.01 (sobre as condições de organização e funcionamento das estruturas de atendimento, das respostas de acolhimento de emergência e das casas de abrigo que integram a rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica), as entidades promotoras devem articular-se entre si ou com as outras entidades que integram a rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica, de forma a garantir, designadamente, o acolhimento das vítimas de violência doméstica acompanhadas ou não de filhos menores ou maiores com deficiência na sua dependência; (art.º 4º, n.º 1, alínea b)).

O alojamento consiste no apoio residencial prestado às vítimas, acompanhadas ou não de filhos menores ou maiores com deficiência na sua dependência, por um período de tempo determinado, em instalações coletivas ou apartamentos, conforme a situação e as necessidades da vítima e dos filhos (art.º 30º, n.º 1). O alojamento compreende, ainda, a prestação de serviços básicos, nomeadamente alimentação, higiene, proteção e segurança (n.º 3) (cf., ainda, o art.º 40º).

São objetivos das casas de abrigo: a) Acolher temporariamente vítimas, acompanhadas ou não de filhos menores ou maiores com deficiência na sua dependência; b) Assegurar o acompanhamento das vítimas, acompanhadas ou não de filhos; c) Proporcionar às vítimas e filhos acolhidos as condições necessárias à sua educação, saúde e bem-estar integral, num ambiente de tranquilidade e segurança; d) Desenvolver, durante a permanência na casa de abrigo, aptidões pessoais, profissionais e sociais das vítimas, no sentido de alcançar a sua plena autonomia; e) Promover o restabelecimento do equilíbrio emocional e psicológico das vítimas e filhos acolhidos, tendo em vista a sua reinserção ou autonomização em condições de dignidade e de segurança (art.º 36º).

4. Com similitude que ajuda a uma melhor interpretação e aplicação dos normativos indicados em II. 2. e 3., supra, a Lei de Protecção de Crianças e Jovens em Perigo/LPCJP [aprovada pela Lei n.º 147/99, de 01.9 - que tem por objecto a promoção dos direitos e a proteção das crianças e dos jovens em perigo, por forma a garantir o seu bem-estar e desenvolvimento integral/art.º 1º], prevê, nomeadamente, a medida de acolhimento residencial (art.º 35º, n.º 1, alínea f)), que é uma medida de colocação (n.º 3) que tem lugar em casa de acolhimento e obedece a modelos de intervenção socioeducativos adequados às crianças e jovens nela acolhidos (art.º 50º, n.º 1).

Por seu lado, a Lei Tutelar Educativa [aprovada pela Lei n.º 166/99, de 14.9], prevê, entre as medidas tutelares, o internamento em centro educativo (art.º 4º, n.º 1, i)). 

5. A Constituição da República Portuguesa consagra expressamente o direito das crianças à protecção, como função da sociedade e do Estado, tendo em vista o seu desenvolvimento integral (art.º 69º) - direito que impõe ao Estado os deveres de assegurar a garantia da dignidade da criança como pessoa em formação a quem deve ser concedida a necessária protecção.

Desta concepção resultam direitos individuais, desde logo o direito a alimentos, pressuposto necessário dos demais e decorrência, ele mesmo, do direito à vida (art.º 24º). Este direito traduz-se no acesso a condições de subsistência mínimas, o que, em especial no caso das crianças, não pode deixar de comportar a faculdade de requerer à sociedade e, em última instância, ao próprio Estado as prestações existenciais que proporcionem as condições essenciais ao seu desenvolvimento e a uma vida digna.

A protecção à criança, em particular no que toca ao direito a alimentos justifica que o Estado crie mecanismos que assegurem, na falta de cumprimento daquela obrigação, a satisfação do direito a alimentos. Daí que se tenha criado uma nova prestação social (plenamente justificada pelo objectivo de reforço da protecção social devida a menores), cabendo ao FGADM assegurar o pagamento das prestações de alimentos em caso de incumprimento da obrigação pelo respectivo devedor.[4]
            6. A problemática dos autos não é isenta de dificuldades.

Pensamos, contudo, que a Mm.ª Juíza a quo decidiu com acerto.

Na verdade, subjaz ao preceituado no art.º 3º, n.º 6 do DL n.º 164/99, de 13.5, o propósito de evitar que o Estado, directa ou indirectamente, seja chamado a suportar duplamente a satisfação das necessidades dos menores nessa situação.

Estamos, assim, perante uma limitação objectiva à atribuição da prestação de alimentos pelo FGADM, pela simples razão de que os alimentos de que os menores carecem estão, no essencial, a ser satisfeitos pelas entidades aí referidas, cujo funcionamento é financiado pelo Estado ou por pessoas colectivas de direito público ou de direito privado e utilidade pública, como sucede no caso em análise (cf. II. 1. g) e i), supra)[5], Estado que, por via do Instituto de Gestão Financeira da Segurança Social, financia o FGADM, em vista da protecção dos menores e da salvaguarda do seu direito a alimentos (cf. a Lei n.º 75/98, de 19.11 e o DL n.º 164/99, de 13.5).

7. No caso vertente, releva, pois, a circunstância de as menores e a requerente/recorrente, durante mais de um ano e 10 meses (de 18.01.2018 a 22.11.2019) terem sido utentes efectivas do mencionado estabelecimento de apoio social, de utilidade pública, e que beneficia da cooperação, principalmente a nível económico, por parte do Estado.

A requerente/recorrente e as menores deram entrada e foram acolhidas no estabelecimento em causa para assistência, abrigo e protecção; fizeram-no em razão do estado de emergência social em que se viram envolvidas, que não em virtude de qualquer imposição legal e/ou judicial, o que, contudo, não implicará o diferente tratamento pretendido pela recorrente, desde logo, face à semelhança no apoio a prestar (aos menores), inclusive, no domínio da instrução e educação (cf. as disposições legais aludidas em II. 3., supra, e o art.º 2003º do Código Civil/CC).[6]

O que decorre do quadro normativo atrás mencionado em tudo se ajustará às circunstâncias e ao conteúdo do acolhimento da recorrente e menores suas filhas na dita Casa Abrigo, não se podendo olvidar o contributo do Estado para o funcionamento de tal estabelecimento de apoio social, maxime, mediante o correspondente financiamento, de harmonia com o ordenamento jurídico vigente (cf., sobretudo, II. 3., supra).

Por conseguinte, incluindo-se aquele estabelecimento na previsão do art.º 3º, n.º 6 do DL n.º 164/99 (cit.), enquanto estabelecimento de apoio social, nada será de objectar ao decidido, com a consequente suspensão da intervenção do FGADM no decurso do acolhimento das menores na dita Casa Abrigo (não têm direito à prestação de alimentos atribuída pelo Fundo) e que poderá ser retomada quando terminar o apoio de emergência social (demonstrados os correspondentes requisitos).

            8. Salvo o devido respeito por entendimento contrário, esta a solução que respeitará o ordenamento jurídico aplicável e os princípios gerais da interpretação consagradas no art.º 9º do CC[7], e não se vislumbra que possa desrespeitar as normas ou os princípios da Lei Fundamental, inclusive, decorrentes do explanado em II. 5., supra.

9. Relativamente à questão de saber se e como devam ser restituídas prestações pagas (indevidamente) pelo FGADM, dir-se-á, apenas, que se trata de matéria não tratada nas decisões recorridas e que caberá à Segurança Social proceder em conformidade com a factualidade/realidade (as particularidades e as vicissitudes) do caso concreto, com razoabilidade e bom senso, e atendendo ao quadro legal aplicável (cf., v. g., o art.º 10º do DL n.º DL n.º 164/99, de 13.5).

10. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso.


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III. Em face do exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.

Custas pela apelante, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário concedido a fls. 17.


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28.01.2020

Fonte Ramos ( Relator )

Alberto Ruço

Vítor Amaral


           


[1] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[2] Decorre dos documentos juntos aos autos que a “Casa Abrigo” em causa será uma resposta social promovida pela Santa Casa da Misericórdia do (...), instituição de caridade e assistência social, de fins filantrópicos e de utilidade pública.
[3] Definindo as estruturas e as respostas que integram a rede nacional de apoio às vítimas de violência doméstica - assim reza o preâmbulo do Decreto Regulamentar n.º 2/2018, de 24.01.

[4] Cf. o preâmbulo do DL n.º 164/99, de 13.5
[5] Cf. a “nota 2”, supra e, entre outros, o acórdão do STJ de 26.4.2007-processo 07B723, publicado no “site” da dgsi.
[6] Cf. ainda, com interesse, o “voto de vencido” do Conselheiro Fernandes do Vale levado ao acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 5/2015, de 19.3.2015-processo 252/08.8TBSRP-B-A.E1.S1-A (publicado no DR, 1ª Série, 85, de 04.5.2015 e no “site” da dgsi), onde se refere: «Têm diferente natureza a prestação alimentícia prevista nos art.ºs 2003º e segs. do Código Civil e a que fique a cargo do FGADM: enquanto aquela é de índole ou raiz familiar, esta tem um cariz social/assistencial, na prossecução de uma das programáticas metas humanas e constitucionais de que o Estado Português não pode demitir-se, atenta a imposição constitucional da salvaguarda do mínimo de dignidade humana, sobretudo da criança (Cf., designadamente, os art.ºs 1º e 69º, nº/s 1 e 2 da CRP). (…)»
[7] Que preceitua: «1. A interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada. 2. Não pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso. 3. Na fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados
   Sobre a matéria, vide ainda, designadamente, Antunes Varela, RLJ, anos 122º, 248 (nota 1) e 127º, 308 e, de entre vários, os acórdãos do STJ de 23.4.1998, 18.12.2008-processo 08B3907 e 12.11.2009-processo 2822/06.0TBAGD-A.C1.S1, publicados no BMJ 476º, 317 e “site” da dgsi, respectivamente.