Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1053/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: BELMIRO DE ANDRADE
Descritores: PENA ACESSÓRIA
INIBIÇÃO DA FACULDADE DE CONDUZIR
CONTEÚDO E ÂMBITO
IMPOSSIBILIDADE DE O TRIBUNAL AUTORIZAR OU CONSENTIR A CONDUÇÃO PARA CERTAS TAREFAS OU ACTIVIDADE PROFISSIONAL
Data do Acordão: 05/04/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE ÍLHAVO - 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ARTIGO 69º, DO CÓDIGO PENAL E 105º A 113º E 123º, DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário: I - A previsão do art. 69º, n.º2 do C. Penal de que a proibição de conduzir “pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria” refere-se às categorias de veículos definidas pela lei, nomeadamente nos artigos 105º a 113º e 123º do C. E.: motociclos, automóveis ligeiros ou pesados, de mercadorias ou de passageiros.
II - Não é o que sucede no caso de, apesar de decretada a proibição de conduzir (com obrigação de entrega da carta de condução respectiva) se permitir, durante o período de vigência da pena acessória a condução de toda e qualquer categoria de veículos, desde que dentro da actividade profissional do arguido.

Não sendo de aceitar tal solução, sem previsão legal que a consinta, a qual levaria a que sempre e quando o agente fosse condutor por conta de outrem, ou mesmo condutor profissional por conta própria, deixasse de cumprir a referida pena acessória, além de tornar impossível a respectiva fiscalização.

Decisão Texto Integral: ACORDAM, EM AUDIÊNCIA, NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA
Em processo sumário foi o arguido A... condenado:

- pela prática de um crime de condução em estado de embriaguês p e p pelo art. 292º, n.º1 do C. Penal, na pena de 35 dias de multa, à taxa diária de €4,00 (quatro euros), bem como na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses, podendo, no entanto, durante esse período, conduzir enquanto motorista da segurança social e apenas nesta condição.

Recorre a digna magistrada do MºPº de tal decisão – na parte em que permite ao arguido continuar a conduzir enquanto motorista da segurança social e apenas nesta condição – formulando as seguintes conclusões:

1. O perigo que a condução de veículos em estado de embriaguês desencadeia e gera só é prevenível com a execução efectiva da sanção inibitória imposta ao respectivo agente.

2. A interpretação que é feita na decisão recorrida do art. 69º do C. Penal não é admissível, não sendo possível a condenação do arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados com determinadas ressalvas, designadamente a possibilidade de condução, durante o seu horário de serviço, dos veículos inerentes á sua profissão.

3. A circunstância de um indivíduo condenado pela prática de um crime de condução em estado de embriaguês necessitar da carta de condução para exercer a sua profissão torna ainda mais censurável o seu comportamento.

4. A proibição de conduzir, atendendo as regras gerais de interpretação das normas, bem como à natureza e finalidade, tem que ser executada de forma continuada e sem qualquer ressalva.

5. A sentença recorrida, na medida em que condenou o arguido na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses, ficando no entanto autorizado a conduzir, durante esse período, enquanto motorista da segurança social, violou o disposto no art. 69º do C. Penal.

Respondeu o arguido pugnando pela manutenção da decisão recorrida, louvando-se na sua argumentação, sustentando ainda que aplicando-se a sanção da inibição de conduzir e ela tivesse por efeito a proibição de trabalhar, tal implicaria a desintegração do arguido, quando uma das finalidades da punição é precisamente a reintegração do agente na comunidade.

No visto a que se reporta o art. 416º do CPP o Ex. mo Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de que o recurso deve proceder, pelas razões aduzidas na respectiva fundamentação, destacando três pontos: - a sanção acessória pode abranger apenas uma categoria de veículos, mas não é o que ocorre no caso; - a impossibilidade legal de o arguido, entregando a carta, como foi determinado, poder conduzir fazendo-se acompanhar dela; - constitui jurisprudência firme que a necessidade da utilização do veículo e do inerente documento que o habilite a conduzir nem a nível do Código da Estrada constitui ou pode constituir causa determinante do não cumprimento da sanção, quanto mais quando estamos em presença de crime.

Corridos os vistos legais e realizada a audiência, não se verificando obstáculos ao conhecimento de mérito, cumpre conhecer e decidir.


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São as questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões que o tribunal de recurso tem que apreciar, sendo o âmbito do recurso definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação – Cfr. Germano Marques as Silva, Curso de processo Penal, 2ª ed., III, 335 e jurisprudência uniforme do STJ (cfr. Ac. STJ de 28.04.99, CJ/STJ, ano de 1999, p. 196 e jurisprudência ali citada), bem como Simas Santos / Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 5ª ed., p. 74 e decisões ali referenciadas.

Assim, no caso, a única questão a decidir consiste em determinar se é possível, como decidiu a sentença recorrida, que durante o período de vigência da pena acessória de proibição de conduzir veículos automóveis, o arguido possa continuar a conduzir (todo o tipo de veículos para que esteja habilitado) desde que no exercício da sua profissão, ao serviço da sua entidade patronal, no caso a Segurança Social.


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A decisão da matéria de facto é a seguinte:

A) Factos Provados:

1. No dia 16 de Dezembro de 2004, pelas 17h.41m., o arguido conduzia o veículo de serviço particular, ligeiro de mercadorias, na zona da Praça da República, em Ílhavo

2. Conduzia então com uma taxa de alcoolemia de 1,24gr/l.

3. Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, o arguido embateu num outro veículo, dai resultando danos materiais em ambos e ainda um ferido ligeiro.

4. O arguido não parou num semáforo que, depois de ter emitido Luz amarela, a que se seguiria a vermelha, ficou, de repente, sem Luz, tendo então aberto o sinal para os veículos que seguiam no sentido daquele em que o arguido viria a embater.

5. Nas circunstâncias espácio-temporais em apreço, o arguido, que recebera a noticia de que a sua esposa havia conseguido emprego na função pública, vinha de um café onde havia pago um lanche a três colegas para comemorar aquela noticia, tendo então ingerido três copos de vinho.

6. Ao almoço, havia ingerido também um copo de vinho.

7. O arguido agiu de forma Livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a condução em estado de embriaguez é punida por lei.

8. Até essa data, a esposa do arguido encontrava-se sem trabalhar, sendo que há uns anos a esta parte sofre de depressão.

9. O arguido tem tido problemas de saúde, tendo sido submetido a intervenção cirúrgica no inicio do ano.

10. Vive com a esposa e um filho de dois anos, e aufere cerca de € 600,00 por mês.

11. Paga ma prestação mensal de €253,00 de amortização de empréstimo contraído para a aquisição de habitação.

12. Confessou os factos integralmente e sem reservas, mostrou-se muito arrependido e reprovou fortemente a sua conduta.

13. Não tem antecedentes criminais

14. É motorista da Segurança Social e corre sérios riscos de perder o emprego com a condenação

B) Factos não provados: Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa.


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O art. 69º do C. Penal prevê no seu n.º2 que a proibição de conduzir “pode abranger a condução de veículos com motor de qualquer categoria”.

No entanto, no caso, como bem se salienta no douto parecer, não se trata de limitar a proibição a uma determinada categoria de veículos, nos termos definidos pala lei – artigos 105º a 113º do C. E. e artigo 123º do mesmo Diploma, este para efeito de habilitação legal para conduzir: motociclos, automóveis ligeiros ou pesados, de mercadorias ou de passageiros.

Ora não é o que sucede no caso, em que, apesar de decretada a proibição de conduzir, com obrigação de entrega da carta, se permitir, durante o período de vigência da penas acessória (e sem a detenção da carta de condução cuja entrega foi ordenada), a condução de toda e qualquer categoria de veículos, desde que dentro da actividade profissional do arguido.

O argumento invocado na decisão recorrida é o de que, cumprindo o arguido a pena acessória fica impossibilitado de exercer a sua profissão, o que violaria o disposto no art. 65º n.º2 do C. Penal.

Tal preceito estabelece que a lei pode fazer corresponder a certos crimes a proibição do exercício de determinados direitos ou profissões.

Sustenta-se que não é o que sucede no caso, em virtude a proibição de exercício da profissão não emergir de previsão legal expressa.

Ora a pena acessória em causa é prevista expressamente na lei no artigo 69º do C. Penal, em conformidade com o princípio nula poena sine lege.

Sendo certo que o invocado art. 65º, n.º2 do C. Penal acima transcrito, refere que a lei pode restringir o exercício de profissão ou direitos.

De onde resulta que, sendo a proibição de conduzir uma proibição – meramente temporária - do exercício de um direito, como tal expressamente prevista pelo citado art. 69º, cai pela base o citado argumento de falta de previsão legal expressa a prevê-la.

Por outro lado o arguido não foi proibido de exercer uma profissão. Mas tão-só e apenas de, temporariamente, poder conduzir veículos automóveis. Isto tendo em virtude de ter cometido um crime no exercido de tal actividade, crime que constitui uma das causas mais relevantes dos elevadíssimos índices de sinistralidade rodoviária – estando a comprove-lo, no caso, a existência de um acidente.

Acresce que, mesmo que exercendo profissionalmente a actividade da condução, não fica o arguido automaticamente impedido de exercer a sua profissão – pode designadamente aceitar voluntariamente exercer outras actividades ao serviço da entidade patronal, ou a própria entidade patronal atribuir-lhe temporariamente outras funções, dentro o chamado jus variandi da entidade patronal.

Pelo contrário, a solução adoptada pela decisão recorrida impedia na prática, sem previsão legal que a consinta, a aplicação da pena acessória sempre e quando o agente fosse condutor por conta de outrem, ou mesmo condutor profissional por conta própria. Levando a que, na prática, deixasse de cumprir a referida pena acessória. Precisamente quando, como “profissional da estrada”, lhe é exigido maior rigor na condução, por fazer dela modo de vida.

Mesmo quando, como no caso, procedesse ao transporte regular de pessoas, ao serviço de uma entidade pública, em missões de utilidade pública.

Para além de que, sendo tal entendimento aplicado – por identidade de razão - ao condutor profissional por conta própria, inviabilizaria a distinção entre actividade profissional e não profissional.

Não sendo o critério da necessidade da carta, critério relevante para o não cumprimento efectivo da sanção acessória. Sob pena de se esvaziar a mesma de sentido. Até porque nem só quem exerce profissionalmente a actividade da condução necessita do automóvel para o exercício da profissão.

Acresce, como bem salienta o douto parecer, que, estando o arguido obrigado a entregar a carta de condução durante o período de vigência da pena acessória (nos termos do art. 69º do CPP e 500º, n.º2 do CPP), não podia fazer-se acompanhar da mesma no exercício da condução ao serviço da entidade patronal. E por outro lado se permanecesse com a disponibilidade da carta, tal inviabilizaria o cumprimento da sanção fora da actividade profissional.

Refere o arguido que o cumprimento da pena acessória impede a sua ressocialização na medida em que o impede de exercer a sua actividade profissional.

Para além de a medida aplicada apenas o inibir temporariamente de conduzir, o efeito de socialização não pode ser visto numa perspectiva formal, mas antes no sentido no sentido de evitar que o arguido volte a praticar o crime, em especial o crime por que foi condenado. Sendo certo que esta medida tem um especial efeito no condutor, privando-o temporariamente do meio que possibilitou a prática do crime.

Por outro lado, não estabelecendo a lei critérios distintos para a definição da medida concreta da pena e da pena acessória, a determinação desta deve operar-se mediante recurso aos critérios gerais constantes do art. 71º do CP, com a ressalva de que a finalidade a atingir pela pena acessória é mais restrita, na medida em que a sanção acessória tem em vista sobretudo prevenir a perigosidade do agente, ainda que se lhe assinale também um efeito de prevenção geral – cfr. entre outros Ac. RC de 07.11.1996, na CJ/1996, t. 5, p. 47; Ac. RC de 18.12.1996, na CJ/1996, t. 5, p. 62; e Ac. RC de 17.01.2001, CJ/2001, t. 1, p. 51.

Sendo certo que a actual redacção do art. 40º do C. Penal (redacção introduzida pelo DL 48/95 de 15.03) erige como finalidade primeira da pena a protecção dos bens jurídicos, consagrando o entendimento mais recente do Prof. Figueiredo Dias sobre os fins das penas (cfr. Liberdade, Culpa e Direito Penal, Coimbra editora, 2ª ed., e Direito Penal Português, As Consequência Jurídicas do Crime, Editorial Notícias, p. 227, este tendo já por referência o projecto que veio a ser plasmado no art. 40º da redacção actual do Código Penal): “A justificação da pena arranca da função do direito penal de protecção dos bens jurídicos; mas esta função de exterioridade encontra-se institucionalmente limitada pela exigência de culpa e, assim, por uma função de retribuição como ressarcimento do dano social causado pelo crime e restabelecimento da paz jurídica violada; o que por sua vez implica a execução da pena com sentido ressocializador – só assim podendo esperar-se uma capaz protecção dos bens jurídicos”.

Não satisfazendo o entendimento perfilhado na decisão recorrida o efeito de protecção dos bens jurídicos violados e de prevenção geral positiva.

Diga-se a este respeito que não tem sido admitida a possibilidade de suspensão da pena acessória cominada pelo art. 69º do CP. Como refere o Ac. RC de 17.01.2001, publicado na CJ, tomo I/2001, p. 51, citando outros no mesmo sentido, “A jurisprudência desta Relação, bem como dos demais tribunais superiores vai no sentido de que a pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados não pode, em caso algum, ser substituída por outra, designadamente por caução de boa conduta ou pela suspensão da sua execução”.

Entendendo-se, do mesmo modo, que não é possível, tão-pouco, o cumprimento fraccionado durante os fins-de-semana, devendo antes ser cumprida em dias seguidos ou de forma contínua – cfr., entre outros: Ac. TRC de 04.02.1999, na CJ t. 2/99, p. 40; AC. RTC de 29.11.2000, na CJ, t. V/2000, p. 49; Ac. TRC proferido no recurso 1511/04 no âmbito do processo sumário 347/03.4GTCTB DO 2º Juízo do Tribunal da Covilhã; Ac. do T.R. Guimarães de 10.03.2004, CJ, t. II/2004, p. 285.

Concluindo, carecendo a decisão recorrida, na parte impugnada, de cobertura legal, o recurso tem que proceder.


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Termos em que se acorda conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida na parte em que permite que durante o período de vigência da pena acessória de proibição de conduzir o arguido continue a exercer a condução enquanto motorista da segurança social, mantendo-a em tudo o mais. -------

Custas pelo arguido (deduziu oposição), fixando-se a taxa de justiça, nos termos dos artigos 513º, n.º1 do CPP e 82º, n.º1 e 87º, n.º1, al. b) do CCJ, em 4 UC.