Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
43/08.6TBPPS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
PESSOA COLECTIVA DE DIREITO PÚBLICO
AUTOR
Data do Acordão: 11/03/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: PAMPILHOSA DA SERRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ALÍNEA G) DO N.º 1 DO ARTIGO 4.º DO ETAF E N.º 3 DO ARTIGO 212.º DA CRP
Sumário: 1) Os tribunais administrativos são competentes para conhecer de todas as questões relativas a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, independentemente da natureza (pública ou privada) da relação litigiosa subjacente.

2) Não se verifica esse condicionalismo quando a pessoa colectiva ocupa nos autos a posição jurídica de demandante e não de demandada.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

           

            Município de A..., pessoa colectiva de direito público, intentou acção declarativa comum, com forma de processo sumário, contra B... e mulher, C....., residentes ...., alegando, em síntese, que:

            Por escritura pública de 30.05.2008, lavrada no Cartório Notarial da Sertã, os réus rectificaram uma escritura de justificação outorgada no Cartório Notarial de Arganil em 27.03.2007, nos termos conjugados das quais se declararam donos, com exclusão de outrem, de um prédio urbano sito em Pessegueiro de Cima, com uma área coberta de 65,65 m2 e uma área descoberta de 33 m2, a confrontar de norte com Jaime Rodrigues e dos restantes lados com a via pública. 

            As declarações prestadas não correspondem à realidade dos factos, uma vez que a referida área descoberta faz, e sempre fez, parte integrante da via pública.

            Concluíram pedindo se declarasse nula a escritura de rectificação, cancelando-se qualquer registo feito com base nela, se reconhecesse que a aludida faixa com 33 m2 constitui um largo ou terreiro anexo à via pública, dele fazendo parte integrante, estando no uso directo e imediato do público desde tempos imemoriais, e se condenassem os réus a restitui-la, completamente livre de qualquer construção, designadamente de uma escadaria e de um muro de vedação na mesma edificados.

            Os réus apresentaram contestação, em que impugnaram os factos alegados na petição inicial e terminaram pela improcedência da acção.

            Findos os articulados, foi proferido despacho saneador, que julgou o tribunal absolutamente incompetente em razão da matéria, na consideração de que as acções por responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público são, nos termos do ETAF, da competência dos tribunais administrativos, em razão do que absolveu os réus da instância.

            Inconformado, o autor interpôs recurso da decisão (admitido como apelação, com efeito devolutivo), alegou e formulou as seguintes conclusões:

            1) O tribunal julgou-se materialmente incompetente com base na alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF, mas tal alínea não é aplicável, porque a responsabilidade extracontratual não é da pessoa colectiva, mas do particular;

            2) Não há lugar a responsabilidade da pessoa colectiva pública, já que a questão é de direito privado, tendo do lado activo o Município e do lado passivo o particular;

            3) O caso dos autos não vem previsto no artigo 4.º do ETAF nem é atribuído a qualquer jurisdição especial, pelo que se aplica o artigo 66.º do CPC que manda dirimir a questão no Tribunal Judicial;

            4) A sentença violou aquela norma do CPC e fez incorrecta aplicação do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF.

            Os réus não responderam à alegação do autor.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            É uma só a questão a resolver, qual seja a do foro competente para a presente acção.

            II. Os factos a ter em consideração são os que constam do relatório, que, por economia processual, se dão por reproduzidos.

            III. O direito:  

            A presente acção tem por fundamento, sem margem para qualquer dúvida, a responsabilidade civil extracontratual dos réus, que, de acordo com o teor da petição inicial, se arrogariam a titularidade do domínio de uma parcela de terreno, alegadamente pertencente ao Município da A....

            Daí que o pedido formulado consista, além do mais, na condenação dos réus a restituir tal parcela, livre e desocupada.

            O que, naturalmente, terá de funcionar como ponto de partida para a aferição da discutida competência.

            A competência é um pressuposto processual, relativo ao tribunal, resultante da circunstância de o poder jurisdicional se encontrar repartido por diversos tribunais.

            A competência de um tribunal traduz a medida da sua jurisdição, sendo que a jurisdição é o poder de julgar, genericamente atribuído ao conjunto dos tribunais, e a competência a fracção que desse poder cabe a cada tribunal (Manuel de Andrade, Noções Elementares de processo Civil, páginas 87/88, Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, volume II, páginas 17/18, e Antunes Varela e outros, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, páginas 195/196).

            Na ordem interna, a competência distribui-se, consoante a matéria, por diferentes categorias de tribunais (tribunais judiciais, tribunais administrativos e fiscais e tribunais militares, durante a vigência do estado de guerra), que se situam num plano horizontal, ou seja, sem qualquer relação de hierarquia entre si.

            Na base da competência em razão da matéria está o princípio da especialização, reconhecidamente vantajoso para a administração da justiça, em face da multiplicidade dos temas a debater e das normas a aplicar (Manuel de Andrade e Antunes Varela, obras citadas, páginas 92 e 207, respectivamente).

            A competência, diz Manuel de Andrade, afere-se em função de elementos ou índices constantes de várias normas; “para decidir qual dessas normas corresponde a cada um deve olhar-se aos termos em que foi posta a acção – seja quanto aos seus elementos objectivos (natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, facto ou acto donde teria resultado esse direito, bens pleiteados, etc.), seja quanto aos seus elementos subjectivos (identidade das partes)”[1].

            A competência dos tribunais judiciais é, pode dizer-se residual, já que lhe estão cometidas todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais (artigo 211.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa).

            Na estrita observância do princípio constitucional, estabelecem o n.º 1 do artigo 18.º da LOFTJ e o artigo 66.º do Código de Processo Civil que são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.

            Já a dos tribunais administrativos e fiscais é muito mais precisa, pois que estes julgam as acções e os recursos contenciosos que tenham por objecto dirimir os litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais (n.º 3 do artigo 212.º da CRP).

            A concretização da competência administrativa consta do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF).

            O anterior ETAF recorria à distinção entre actos de gestão pública e actos de gestão privada como elemento básico atendível para a fixação da competência; nessa perspectiva, caíam na esfera de competência dos tribunais administrativos as situações emergentes de relações jurídico-administrativas, isto é, daquelas em que a pessoa colectiva de direito público agia no uso de poderes de autoridade para o prosseguimento de um interesse legalmente definido, cabendo, por conseguinte, aos tribunais judiciais os casos em que essas mesmas entidades actuassem no âmbito do direito privado, em igualdade com os particulares, que é como quem diz, despidas da figura do “jus imperii” (acórdãos do STJ, de 13.03.2007, 08.05.2007 e 15.01.2008, CJ/STJ, Ano XV, Tomo I, página 124, e Tomo II, página 51, e Ano XVI, Tomo I, página 45, respectivamente).

            O actual ETAF, aprovado pelo decreto-lei n.º 13/02, de 19 de Fevereiro, mas alterado pelas leis 4-A/03, de 19 de Fevereiro, e 107-D/03, de 31 de Dezembro, veio alterar substancialmente este quadro.

            Não que a natureza do litígio tenha sido posta de parte, porque o artigo 1.º continua a apelar às “relações jurídico-administrativas e fiscais” como elemento de conexão definidor da medida de jurisdição dos tribunais administrativos e fiscais, em conformidade, de resto, com o que dispõe o n.º 3 do artigo 212.º da nossa Lei fundamental.  

            A diferença está em que a nova lei alargou o âmbito da jurisdição administrativa, de forma a abranger todas as hipóteses de responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, independentemente de se regerem por regime de direito público ou por regime de direito privado.

            A norma essencial acha-se contida na alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º daquele Estatuto, que atribui aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto questões em que, nos termos da lei, haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo a resultante do exercício da função jurisdicional e da função legislativa.

            Em consonância com esta nova visão das coisas, não teve transposição para o actual diploma o preceito do antigo, que retirava da competência do foro administrativo as acções que tivessem por objecto questões do direito privado, ainda que alguma das partes fosse pessoa de direito público – alínea f) do artigo 4.º.

            Pesou mais a pessoa do responsável do que a natureza do dissídio, fruto, quiçá, das dificuldades achadas, muitas vezes, em distinguir os actos de gestão pública dos actos de gestão privada, o que deu origem a inúmeros recursos para o Tribunal de Conflitos, e da consideração de os tribunais administrativos estarem mais vocacionados, e terem, até, maior sensibilidade, para lidar com questões referentes à Administração pública (acórdãos do STJ, de 13.03.2007, de 08.05.2007 e de 15.01.2008, acima referidos).

            Em face da falada disposição legal, parece claro que todos os casos que envolvam a responsabilidade extracontratual de pessoas colectivas de direito público são, agora, da competência da jurisdição administrativa.

            O problema estará em compatibilizar a alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF com o n.º 3 do artigo 212.º da CRP, que, recorde-se, atribui ao foro administrativo a competência para dirimir os litígios emergentes de relações jurídico-administrativas.

            Embora a questão se não revista de importância para o caso vertente, como se esclarecerá mais à frente, sempre se dirá que a jurisprudência não tem encontrado obstáculo nessa aparente contradição, seja por entender que a lei ordinária se limita a concretizar a cláusula constitucional, seja por considerar que o dispositivo constitucional releva para a determinação do direito substantivo aplicável, que é o administrativo ou fiscal, e não para a competência para conhecer do pleito (cfr. os acórdãos do STJ, de13.03.2007 e de 08.05.2007, supra mencionados, e, ainda, o acórdão do mesmo Tribunal, de 06.11.2008, na CJ/STJ, Ano XVI, Tomo III, página 123).

            Revertendo à situação em apreço, é clara a constatação de que nenhum elemento de conexão com a jurisdição administrativa se depara.

            Nem por via das relações jurídico-administrativas a que se refere o indicado normativo constitucional (e, por isso, se disse que a compatibilização entre o mesmo e a alínea g) do n.º 1 do artigo 4.º do ETAF era, para aqui, destituída de interesse), na medida em que o conflito desenhado, envolvendo a propriedade de uma parcela de terreno, é de âmbito meramente civil, nem por mor da qualidade do demandado, que não é pessoa colectiva de direito público.

            Na decisão recorrida raciocinou-se bem, mas concluiu-se mal; raciocinou-se bem, ao tratar a questão da competência à luz do critério objectivo da natureza da entidade demandada; concluiu-se mal, ao pretender ser indiferente a posição jurídica da pessoa colectiva de direito público no processo.

            Só se verifica o condicionalismo legal decorrente do último preceito citado, quando as pessoas colectivas em causa sejam demandadas e não, também, quando sejam demandantes; a clareza da lei – “questões em que (…) haja lugar a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público” – até dispensaria comentários.

            Não deixará, no entanto, de se chamar a terreiro a mais que abalizada opinião de Freitas do Amaral e de Mário Aroso de Almeida, plasmada nas Grandes Linhas da Reforma do Contencioso Administrativo (página 36)[2], na parte em que referem que o litígio deve ser submetido à apreciação dos tribunais administrativos quando envolva uma entidade pública, por lhe ser imputável o facto gerador do dano.

            Situação que, manifestamente, se não configura nos presentes autos, uma vez que a pessoa colectiva de direito público interveniente (Município de A...) o faz na qualidade de demandante, não lhe sendo, por conseguinte, imputável qualquer evento danoso. 

            Não havendo demanda de pessoa colectiva de direito público, nem se perfilando nos autos litígio emergente de relações jurídico-administrativas, não ocorre, é claro, qualquer dos elementos ou índices que balizam a competência dos tribunais administrativos.

            A causa é, manifestamente, da competência do foro comum, pelo que a decisão recorrida não pode manter-se.

                 

            IV. Sumário:

            1) Os tribunais administrativos são competentes para conhecer de todas as questões relativas a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, independentemente da natureza (pública ou privada) da relação litigiosa subjacente.

            2) Não se verifica esse condicionalismo quando a pessoa colectiva ocupa nos autos a posição jurídica de demandante e não de demandada.

            V. Decisão:

            Por tudo quanto se deixou exposto, acorda-se em julgar a apelação procedente e, por consequência, em revogar a decisão recorrida, que se substitui por outra que declara o Tribunal Judicial de Pampilhosa da Serra materialmente competente para conhecer da questão suscitada nos autos.

            Sem custas. 


[1] Obra citada, página 89.
[2] Invocada, também, no despacho recorrido, onde foi parcialmente transcrita, mas interpretada de forma menos boa.