Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
279/19.4T8ACB-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ANA CAROLINA CARDOSO
Descritores: REGIME DE ACESSO AO DIREITO E AOS TRIBUNAIS
PROCESSO PENAL
PROCESSO CONTRAORDENACIONAL
SUBSTITUIÇÃO OU DISPENSA DE DEFENSOR AO ARGUIDO
INTERRUPÇÃO OU SUSPENSÃO DE PRAZO PROCESSUAL
Data do Acordão: 01/15/2020
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: LEIRIA (JUÍZO LOCAL CRIMINAL DE ALCOBAÇA)
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS. 24.º, N.º 5, 32.º, 34.º, N.º 2, 39.º, N.º 1, E 42.º, DA LEI N.º 34/2004, DE 29-07
Sumário: ISão inaplicáveis no âmbito do processo penal e na amplitude do regime contraordenacional as disposições contidas nos artigos 24.º, n.º 5, 34.º, n.º 2, e 32.º, todos da lei n.º 34/2004, de 29-07 (alterada, sucessivamente, pelas Leis n.ºs 47/2007, de 28/08, 40/2018, de 08/08, e 120/2018, de 27/12).

II – Por força do prescrito nos artigos 39.º, n.º 1, e 42.º, ambos da Lei n.º 34/2004, o pedido de substituição ou dispensa do defensor ao arguido não determina a interrupção ou a suspensão do prazo processual que, então, estiver em curso, nomeadamente o prazo para interposição de recurso da decisão judicial que conheceu da impugnação da decisão administrativa.

Decisão Texto Integral:











Acórdão deliberado em conferência na 5ª seção criminal do Tribunal da Relação de Coimbra


1. Relatório

A. interpôs recurso da decisão proferida no processo de contraordenação n.º 279/19.4T8ACB, do Juízo Local Criminal de Alcobaça, Comarca de leiria, que indeferiu a requerida suspensão/interrupção do prazo para recorrer da decisão final aí proferida, ao abrigo do disposto no art. 34º da Lei n.º 34/2004, de 29.7.

1.1.  Decisão recorrida (que se transcreve integralmente):

“A Lei n.º 34/2004, de 29 de julho (Regime de acesso ao direito e aos tribunais), com as alterações introduzidas pelas Leis n.º 47/2007, de 28 de agosto, e 40/2018, de 08 de agosto, dispõe no art. 39º, n.º 1, inserido no capítulo das disposições especiais sobre processo penal (IV), que “a nomeação de defensor ao arguido, a dispensa de patrocínio e a substituição são feitas nos termos do Código de Processo Penal, do presente capítulo e da portaria referida no nº 2 do artigo 45º”, acrescentando o n.º 10 que “o requerimento para a concessão de apoio judiciário não afeta a marcha do processo”.

Por seu turno, o art. 42º da mesma Lei preceitua que: “1 - O advogado nomeado defensor pode pedir dispensa de patrocínio, invocando fundamento que considere justo, em requerimento dirigido à Ordem dos Advogados. 2 - A Ordem dos Advogados aprecia e delibera sobre o pedido de dispensa de patrocínio no prazo de cinco dias. 3 - Enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um ato mantém-se para os atos subsequentes do processo. 4 - Pode, em caso de urgência, ser nomeado outro defensor ao arguido, nos termos da portaria referida no n.º 2 do artigo 45.º”

Atendendo agora às normas do Código de Processo Penal, por remissão doa artigo 4.º do RGCO, preceitua o art. 66º que: “1 - A nomeação de defensor é notificada ao arguido e ao defensor quando não estiverem presentes no ato. 2 - O defensor nomeado pode ser dispensado do patrocínio se alegar causa que o tribunal julgue justa. 3 - O tribunal pode sempre substituir o defensor nomeado, a requerimento do arguido, por causa justa. 4 - Enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um ato mantém-se para os atos subsequentes do processo.

Em face destes normativos apresenta-se como inquestionável que a nomeação de defensor ao arguido e a sua substituição são feitas nos termos do Código de Processo Penal, sendo que, enquanto não foi substituído, o defensor nomeado para um ato mantém-se para os atos subsequentes do processo, sem qualquer efeito no decurso do prazo que esteja em curso.

Existe, assim, em processo penal, um regime específico, que afasta a aplicação da regra geral prevista no art. 34º, n.º 2, da citada Lei, segundo a qual “o pedido de escusa, formulado nos termos do número anterior e apresentado na pendência do processo, interrompe o prazo que estiver em curso, com a junção dos respetivos autos de documento comprovativo do referido pedido, aplicando-se o disposto no n.º 5 do artigo 24.º”.Como tem sido entendido, o prazo atingido pela suspensão é o que estiver relacionado com os fins tidos em vista com o pedido de apoio judiciário formulado, e não o da interposição do recurso, alheio ao pedido.

A razão de ser para essa diferença de regimes radica na especificidade decorrente de, no processo penal, o arguido gozar, em especial, em qualquer fase do processo e salvas as exceções da lei, do direito de constituir advogado ou solicitar a nomeação de um defensor e de ser assistido por este em todos os atos processuais em que participar (arts. 61º, n.º 1, als. e) e f), do Código de Processo Penal, sendo obrigatória essa assistência nos atos e momentos processuais elencados nas várias alíneas do n.º 1 do art. 64º do mesmo código, onde se incluem os recursos [al. e]).

Assim se salvaguarda a garantia que, nos termos do art. 32º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa, o processo penal ter de assegurar ao arguido, traduzida no “direito a escolher defensor e a ser por ele assistido em todos os atos do processo, especificando a lei os casos e as fases em que a assistência por advogado é obrigatória”, bem como a garantia de defesa através de um efetivo direito ao recurso (n.º 1 do mesmo normativo constitucional).

Mantendo-se o defensor nomeado para os atos subsequentes do processo, cabe-lhe a ele, enquanto não for substituído, continuar a assegurar as funções, para que foi incumbido com a sua nomeação, de defender o arguido.

Daí que seja entendimento praticamente unanime dos nossos tribunais superiores [a titulo exemplificativo os acórdãos do STJ de 12-05-2005 (processo n.º 05P1310) e 15-01-2004 (processo n.º 03P3297), embora em casos de revogação do mandato, do TRC de 07-12-2016 (processo n.º 8785/13.8TDPRT-A.C1) e de 18-12-2013 (processo n.º 139/96.5TATND.C1), do TRE de 30-06-2015 (processo 28/08.2GBCCH.E1), do TRG de 20-03-2017 (processo n.º 1032/15.0T9TBRG.G1) e 25-05-2015 (processo n.º 1715.12.6GBBCL.G1), do TRL de 21-06-2011 (processo n.º 4615/06.5TDLSB.L1-5), e do TRP de 04-04-2018 (processo n.º 245/16.1GBSVV-A.P1), todos disponíveis em http://www.dgsi.pt] que o pedido de escusa da I. defensora do arguido não tem a virtualidade de interromper (ou suspender) o prazo de interposição de recurso em curso, por tal efeito não estar previsto na lei, a qual contém antes disposições em sentido contrário.

Pelo exposto, indefere-se a pretendida suspensão/interrupção do prazo para recorrer.”

1.2. Recurso do arguido (conclusões que se transcrevem integralmente):

1 – O Tribunal a quo determinou, conjugando o 42º da Lei 34/2004 e o artigo 66º do CPP, que o arguido ao pedir a substituição da sua defensora oficiosa, apresentando junto da Ordem dos Advogados os seus motivos e dos autos o comprovativo, dentro do prazo de recurso, não afetava a marcha do referido prazo.

2 – No entendimento do Recorrente, tal interpretação viola o principio da igualdade vertido no artigo 13º da Constituição Portuguesa tratando de forma diversa e mais desprotegida o arguido face ao representado em processo civil, o qual vê os seus prazos serem interrompidos por pedido de escusa ou substituição.

3 – De facto, será mais juridicamente adequada a interrupção do prazo de recurso aquando do pedido de substituição ou de escusa até nova nomeação, ainda que o anterior defensor assegure atos não urgentes, por forma a que o arguido não fique totalmente desvalido, sem defesa alguma no período que medeia o pedido de substitui-la-ão e a nomeação.

4 – O que em nada altera o conteúdo dos referidos artigos, deixando, no entanto, de ser feita uma interpretação literal e prejudicial ao arguido dessa forma.

5 – Sendo dessa forma, proferida Decisão que substitua a emitida em 21 de maio de 2019 e que aceite a interrupção do prazo para interposição do recurso até nomeação de novo defensora o que veio a suceder por notificação de 03 de Junho de 2019.”

1.3. Na resposta ao recurso apresentada, o Ministério Público defendeu assistir razão ao recorrente, e ainda ter perdido efeito útil o presente recurso, por ter, entretanto, decorrido o prazo para recurso da decisão final, sem que o mesmo tenha sido interposto.


1.4.  No parecer do Ministério Público nesta Relação, conclui-se pela improcedência do recurso interposto, e a consequente manutenção da decisão recorrida.

2. Conhecimento do recurso

Encontra-se o objeto do recurso limitado pelas conclusões apresentadas pelo recorrente. São as conclusões da motivação que delimitam o âmbito do recurso, pelo que se ficam aquém, a parte da motivação que não consta das conclusões não é considerada, e se forem além também não são consideradas, porque a motivação das mesmas é inexistente (v. Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, págs. 335-336).

O objeto do presente recurso resume-se à seguinte questão: a interrupção de prazo processual quando ocorra a substituição de defensor do arguido.

Em causa está a aplicabilidade da norma constante no art. 34º, n.º 2, da Lei n.º 34/2004 ao processo penal.

Conhecendo,

Com relevo para a decisão, temos o seguinte historial de atos processuais:

- O arguido impugnou judicialmente a decisão proferida pela Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária que determinou a cassação da sua carta de condução, com fundamento na perda total dos pontos que tinha atribuídos, nos termos do art. 148º, n.º 10, do Código da Estrada;

- Por sentença proferida em 8 de maio de 2019, a impugnação foi julgada improcedente;

- A 17 de maio de 2019, o arguido apresentou o requerimento em que pede a suspensão dos prazos em curso, por pretender recorrer da decisão proferida, juntando um requerimento dirigido ao Conselho Distrital da OA em que solicita a nomeação urgente de defensor em substituição do indicado com a mesma data;

- A 21 de maio de 2019 foi proferido despacho a indeferir tal pretensão – ora recorrido.

O art. 32º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29.7, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28.8, permite ao beneficiário do apoio judiciário a possibilidade, em qualquer processo, de requerer à Ordem dos Advogados a substituição do patrono nomeado, fundamentando o seu pedido. Uma vez deferido tal pedido de substituição, aplicam-se as regras constantes dos arts. 34º e ss. da mesma Lei, nomeadamente o n.º 2 do seu art. 34º, que reza o seguinte: “O pedido de escusa, formulado nos termos do número anterior e apresentado na pendência do processo, interrompe o prazo que estiver em curso, com a junção aos respetivos autos de documento comprovativo do referido pedido, aplicando-se o disposto no n.º 5 do artigo 24º”.

Poder-se-ia extrair deste preceito que o regime aí estabelecido se aplica a todos os processos. No entanto, o processo penal tem um regime próprio, que afasta a aplicação desta norma.

Na verdade, a Lei n.º 34/2004, no seu capítulo IV, contém uma série de “Disposições especiais sobre o processo penal”, desde logo, no art. 39º, o seguinte, relativamente à nomeação de defensor: “A nomeação do defensor ao arguido, a dispensa do patrocínio e a substituição são feitas nos termos do Código de Processo Penal, do presente capítulo e da portaria referida no n.º 2 do artigo 45º”.

O art. 34º referido encontra paralelo, no tocante ao processo penal, no art. 42º da Lei n.º 34/2004, que prevê a dispensa de patrocínio, a ser concedida pela Ordem dos Advogados, no caso de o advogado nomeado defensor o requerer com um fundamento que a OA considere justo – encontrando-se idêntica previsão no art. 66º, n.ºs 2 e 3, do CPP, sendo a dispensa concedida pelo tribunal a pedido do defensor ou do arguido caso seja alegada uma causa justa.

E o n.º 3 do mesmo art. 42º da Lei 34/2004 estabelece que “Enquanto não for substituído, o defensor nomeado para um ato mantém-se para os atos subsequentes do processo”. É exatamente igual a redação do n.º 4 do art. 66º do CPP.

Assim, e ao contrário do previsto nos arts. 24º, n.º 5, ex vi arts. 34º, n.º 2, e 32º da Lei n.º 34/2004, a substituição de defensor no processo penal não prevê, nem origina, qualquer interrupção ou suspensão do prazo que estiver em curso, aquando do pedido de substituição ou dispensa do defensor. Tratando-se de normas especiais, naturalmente que afastam as normas gerais referidas (no mesmo sentido, cf., entre muitos outros, os Acórdãos desta Relação de Coimbra de 18.12.2013, no proc. 139/96.5TATND.C1, de 7.12.2016, no proc. 8785/13.8TDPRT-A.C1, da Relação de Guimarães, de 25.5.2015, no proc. 1715/12.6GBBCL.G1).

Aliás, o n.º 10 do art. 39º da Lei n.º 34/2004 é expresso em afastar a suspensão ou interrupção do processo, ao estatuir que “O requerimento para a concessão de apoio judiciário não afeta a marcha do processo”.

Justifica-se a diferença de regimes, uma vez que, por um lado, no processo penal o arguido tem de estar sempre assistido por defensor, e, por outro lado, se pretendem evitar demoras no curso do processo.

Importa ainda referir que o Tribunal Constitucional se pronunciou já sobre a inconstitucionalidade invocada pelo recorrente na sua conclusão 2, nomeadamente no acórdão n.º 487/2018, publicado no DR, II Série, de 22.11.2018, da seguinte forma: “Não julga inconstitucional a norma resultante da interpretação do disposto nos artigos 39º, n.º 1, 42º, n.º 3, e 44º, n.º 1, da Lei n.º 34/2004, de 29 de julho, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 47/2007, de 28 de agosto, e do artigo 66º, n.º 4, do Código de Processo Penal, segundo a qual o prazo de interposição de recurso da decisão depositada na secretaria não se interrompe nem se suspende no caso de, no decurso do mesmo, o arguido apresentar junto da Ordem dos Advogados pedido de substituição do defensor que lhe fora nomeado no processo” – improcedendo igualmente o recurso nesta parte.

Conclui-se, pois, que o entendimento defendido pelo recorrente contraria lei expressa.


*


3. Decisão

Nos termos expostos, na improcedência do recurso, mantém-se a decisão recorrida.

Sem tributação.

Coimbra, 15 de Janeiro de 2020

Ana Carolina Cardoso (relatora)

João Novais (adjunto)