Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2572/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: EMBARGO DE OBRA NOVA
AUTORIZAÇÃO PARA A SUA CONTINUAÇÃO
PREJUÍZO RESULTANTE DA PARALIZAÇÃO
Data do Acordão: 11/15/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA GUARDA - 2º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: REVOGADA (ANULADA)
Legislação Nacional: ARTº 419º DO CPC .
Sumário: I – A autorização da continuação da obra embargada, a requerimento do embargado, legitimada pelo segundo fundamento previsto no artº 419º do CPC, implica uma ponderação casuística no conflito de interesses entre o dono da obra na continuação e o do embargante na sua suspensão, dando a lei prevalência ao interesse mais valioso, sacrificando o prejuízo menor ao maior, segundo o critério da superioridade, como emanação do princípio da proporcionalidade .
II – O prejuízo resultante da paralisação da obra abrange todo e qualquer prejuízo a que fica exposto o dono da obra pelo facto de ela não continuar, não só o prejuízo que se repercute na obra em si mesma (p.ex., porque a demora inutiliza os materiais ou põe em perigo a construção), como os extrínsecos à mesma, derivados da suspensão .

III – O prejuízo adveniente da continuação para o embargante não se reduz apenas ao “dano jurídico”, pressuposto do decretamento do embargo, que, por isso mesmo, não carece de valoração autónoma, pois de alguma forma já está ínsito na ofensa do direito, mas é todo aquele que se repercute na esfera jurídica do embargante por causa da continuação .

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra
I – RELATÓRIO

Os requerentes – A... e esposa B... – instauram na Comarca da Guarda procedimento cautelar de ratificação de embargo de obra nova, contra os requeridos – C... e mulher D....
Alegaram, em resumo, que num prédio urbano de que são proprietários, os requeridos, abusivamente, cortaram determinadas árvores, escavaram e removeram terras e pedras, pretendendo nele implantar um muro, pelo que os requerentes embargaram extrajudicialmente a obra.
Pediram a ratificação do embargo de obra nova e a condenação dos requeridos a reconhecerem o direito de propriedade dos requerentes sobre o prédio e que as obras em causa violam esse direito, abstendo-se de as continuar.
Os requeridos deduziram oposição, por excepção ( ilegitimidade passiva) e impugnação, requerendo a continuação das obras, mediante prévia caução.
Realizada a audiência, decidiu-se:
a) - Julgar improcedente a arguida excepção dilatória de ilegitimidade passiva;
b) – Ratificar o embargo extrajudicial da obra, na parte respeitante às obras fora dos limites do levantamento de fls. 29;
c) - Autorizar a continuação das obras mediante a prestação de caução, no montante de 2500 euros, no prazo de 10 dias.

Inconformados, os requerentes agravaram da decisão - na parte em que autorizou a continuação das obras mediante prestação de caução -, formulando as seguintes conclusões:
1º) – Provado que o prédio dos Autores confina a poente com a EN 16, estrada para qual abriram, há mais de 20 anos, uma rodeira que vai da EN 16 à sua casa e que o lote de terreno dos Réus confina do sul com a mesma EN 16, é evidente que os Réus podem aceder ao seu lote directamente com a EN 16, sem passarem pelo prédio dos Autores.
2º) – Ao pretenderem implantar um muro do terreno dos Autores, os Réus, além do abuso de violação do direito daqueles, vão impedir os Autores de acederem à sua casa de habitação.
3º) – Este impedimento causará incómodos e prejuízos incalculáveis e sempre maiores do que os que resultarão para os Réus, que não podem ser verdadeiros.
4º) – A permissão de construção do muro no prédio dos Autores equivale a inutilizar a providência cautelar decretada.
Não foram apresentadas contra-alegações.
II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. - Os factos provados:

1) Os A.A. são donos e legítimos possuidores do prédio urbano localizado no sítio do Prado, da freguesia de Maçaínhas, concelho e distrito da Guarda, composto por uma casa destinada a habitação, composta de R/C e 1.º andar, com logradouro, inscrita na matriz respectiva sob o art.º 679, e descrita na CRP da Guarda sob o n.º de ficha 00005/191184.

2) O prédio dos AA. tem a configuração que exibe a fotografia que se junta como doc. n.º 2 e confina, de Norte com caminho, de Sul e Nascente com José Bonito e de Poente com EN. 16.

3) Há mais de 20 anos que os AA. estão na posse do identificado imóvel,

4) Habitando a casa, nela tomando as refeições, dormindo e tomando banho,

5) Cedendo o uso da casa a familiares seus,

6) Nela acolhendo os amigos e pessoas que os visitam.

7) No logradouro do imóvel, há mais de 20 anos, os AA. abriram uma rodeira que vai desde a Estrada Nacional 16 até à sua casa;

8) Nele (logradouro) plantaram árvores de fruto e de jardim,

9) Vedaram-no por meio de esteios e arame, e

10) Nele construíram muros de suporte de terras.

11) Em finais do ano de 1999, os RR. adquiriram por compra a Miguel Alexandre Monteiro Tasqueira, um lote de terreno, destinado à construção urbana, inscrito na matriz predial da freguesia de Maçaínhas de Baixo sob o art.º 862 e descrito na Conservatória do Registo Predial da Guarda sob o n.º de ficha 498/19920327;

12) Este Lote dos RR. confronta de Sul com a Estrada Nacional 16, de Nascente e Poente com Alfredo Carlos Pires Ferreira (hoje AA) e de Norte com José Bonito;

13) O lote dos RÉUS tem a configuração que exibe o levantamento topográfico de fls. 28 e 29 e nestes precisos termos se encontrava demarcado por sinais e estacas quando os RR. o adquiriram .

14) Sem que nada o fizesse prever, os RR., no dia 6 de Dezembro de 2004, entraram na propriedade dos AA., abusivamente e sem o consentimento destes, e

15) Nele colocaram os pedregulhos com o auxílio de uma máquina retro escavadora;

16) Cortaram as pernadas do pinheiro nórdico, plantado pelos AA. há mais de 20 anos;

17) Arrancaram um outro pinheiro nórdico que se encontrava junto do pinheiro atrás referido em 16) e arrastaram-no para o seu lote (dos RR.).

18) No dia sete de Dezembro de 2004, pelas 9H00, os RR. prosseguiram na execução de obras sobre o terreno propriedade dos AA., nele escavando e removendo terras e pedras;

19) Propondo-se alterar a localização de postes de electricidade, com vista a modificarem o traçado da rodeira;

19) Pretendendo implantar um muro dentro do terreno dos AA.

20) Os AA. intervieram procedendo ao embargo da obra, na presença de duas testemunhas, o qual foi notificado ao respectivo encarregado, na pessoa António José Paulo Bernardo, a quem foi expressamente referido para não continuar a obra;

21) Os requeridos obtiveram alvará de licenciamento de obras n.º 347, processo de obras n.º 01/2002/3904, para a construção de muro com as características constantes do projecto de fls. 47.

22) Os requeridos solicitaram à EDP a alteração do local de implantação dos postes de electricidade.

23) A EDP requisitou tais serviços à Egitécnica.

24) A suspensão das obras é impeditiva da conclusão da habitação.

2.2. - De Direito:

O art.419 do CPC permite a autorização da continuação da obra embargada, a requerimento do embargado, legitimada em qualquer dos seguintes fundamentos:

a) - Quando se reconheça que a demolição restituirá o embargante ao estado anterior à continuação;

b) - Quando se apure que o prejuízo resultante da paralisação da obra é consideravelmente superior ao que pode advir da sua continuação.

Em ambos os casos, a continuação da obra está condicionada à prestação de caução prévia às despesas de demolição total.

A decisão recorrida autorizou a continuação da obra embargada com base no segundo fundamento, que é posto em causa em sede de recurso, consagrando um critério semelhante ao postulado no art.387 nº2 do CPC para as providências inominadas, e ao do art.941 nº2 do CPC, no âmbito da execução de prestação de facto.

Ao decidir sobre a continuação da obra, o juiz terá de ponderar os dois prejuízos em confronto: por um lado, o que resulta da paralisação da obra, e, por outro, o que deriva da continuação dela.

O prejuízo resultante da paralisação da obra abrange todo e qualquer prejuízo a que fica exposto o dono da obra pelo facto de ela não continuar, não só o prejuízo que se repercute na obra em si mesma ( por ex., porque a demora inutiliza os materiais ou põe em perigo a construção ), como os extrínsecos à mesma derivados da suspensão.

O prejuízo adveniente da continuação para o embargante não se reduz apenas ao “dano jurídico”, pressuposto do decretamento do embargo, que por isso mesmo não carece de valoração autónoma, pois de alguma forma já está ínsito na ofensa do direito, mas é todo aquele que se repercute na esfera jurídica do embargante por causa da continuação.

Havendo um conflito de interesses entre o dono da obra na continuação e o do embargante na sua suspensão, a lei dá prevalência ao interesse mais valioso, sacrificando o prejuízo menor ao maior, segundo o critério da superioridade, como emanação do princípio da proporcionalidade.

Para tanto, a lei empregou o conceito operativo de “consideravelmente superior”, em substituição do antecedente “ muito superior “, e por se tratar de um conceito objectivo-normativo, carece de preenchimento valorativo, em face das circunstâncias concretas e daí o apelo ao pensamento tópico.

As obras realizadas pelos agravantes, em 7 de Dezembro de 2004, sobre o terreno dos embargantes consistiram na escavação e remoção de terras e pedras, propondo-se alterar a localização de postes de electricidade, com vista a modificarem o traçado da rodeira de acesso à habitação, através do logradouro, pretendendo implantar um muro dentro do terreno dos requerentes.

A decisão recorrida autorizou a continuação da obra, mediante a prestação de caução no montante de 2.500 euros, justificando genericamente que, face à factualidade apurada, os prejuízos para os requeridos são superiores aos que possam advir para os requerentes.

Embora não explicitado, depreende-se que a superioridade dos prejuízos assentou no facto de a suspensão das obras ser impeditiva da conclusão da habitação.

Desde logo, este facto, tal como se apresenta formulado, parece ser conclusivo, por ausência de concretização factual, não obstante haver sido alegada.

Por outro lado, o tribunal a quo exorbitou o conteúdo da respectiva alegação feita pelo requerido na contestação, já que nela não se alegou que as obras se destinassem a concluir a habitação do requerido, mas apenas aos arranjos exteriores de uma moradia unifamiliar levadas a cabo no logradouro ( cf. arts.13º e 24º ), cuja indagação omitiu.

É que a alegação constante no art.29º da contestação deve ser interpretada em conformidade com a antecedente nos arts.13º e 24º, e pese embora se refira que os requeridos “se verão impedidos de concluir a sua casa de família”, a alegada conclusão parece reportar-se, não à casa de habitação em si mesma, mas aos arranjos exteriores.

Nesta perspectiva, o facto provado revela alguma obscuridade e deficiência, pois impunha-se concretizar factualmente em que consiste a “conclusão da habitação”, bem como a indagação do alegado nos arts.30º e 31º da contestação.

Para se aquilatar do prejuízo derivado da continuação da obra para os requerentes, dever-se-ia averiguar se a construção do muro vai ou não impedi-los de acederem à sua casa de habitação pela rodeira que, através do logradouro, faz ligação entre a EN 16 e a habitação, como está implícito na alegação dos requerentes na petição inicial.

Na verdade, caso se comprove que a construção do muro torna impeditivo o acesso à habitação dos requerentes, será obviamente um facto relevante para se apurar da superioridade dos prejuízos.

Por conseguinte, e salvo o devido respeito, os factos provados, já mencionados, padecem do vício da deficiência e obscuridade, inviabilizando uma correcta e justa valoração para se aferir da natureza e superioridade dos prejuízos.

Obscuridade, porquanto o factos provados, tal como aparecem descritos e contextualmente interpretados, são equívocos e imprecisos, não comportando um sentido exacto, e simultaneamente deficientes, por exigirem o correcto esclarecimento, maxime quando relacionados com o teor da alegação subjacente, deficiência também extensível à omissão de factos alegados.

Desde modo, a supressão de tais vícios de facto implicam a anulação oficiosa da decisão e do julgamento, apenas quanto ao pedido de continuação das obras, por imperativo do disposto no art.712 nº4 do CPC, aplicável ao agravo por remissão do art.749 do CPC.


III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:

1)

Anular a decisão recorrida e o julgamento, nos termos dos arts.712 nº4 e 749 do CPC, apenas quanto ao pedido de continuação das obras embargadas, devendo proceder-se à repetição, se possível pelo mesmo Ex.mo Juiz, em conformidade com a fundamentação aduzida.

2)

Custas pela parte vencida a final.

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