Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4231/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. SERRA BAPTISTA
Descritores: BENFEITORIA
REGIME DE COMUNHÃO DE ADQUIRIDOS
Data do Acordão: 03/23/2004
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ART. 1723º, AL. C) DO CPC
Sumário:

1. Sendo o prédio urbano bem próprio de um dos cônjuges, que haviam sido casados no regime da comunhão de adquiridos, e tendo sido feitas obras de beneficiação do mesmo no decurso de tal casamento, que aumentaram o seu valor, devem as mesmas ser tidas como bem comum do casal, salvo se efectuadas com dinheiro ou valores próprios, nas condições previstas no art. 1723º, al. c) do CPC.
2. Dissolvido o casamento por divórcio, tem o cônjuge não proprietário o direito de, em princípio, receber metade do seu valor.
Decisão Texto Integral:
Apelação nº 4231/03

ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


BB veio intentar acção, com processo ordinário, contra CC, pedindo:
a) que se declare que o imóvel que melhor identifica na p. i. é bem comum de ambos; ou,
b) que se condene a Ré a pagar-lhe quantia não inferior a metade de 30.000.000$00, ou seja, 15.000.000$00, acrescida de juros legais a contar da citação; ou, caso assim não seja entendido,
c) que se condene a mesma a pagar-lhe:
1. a quantia de 5.000.000$00 correspondente a metade do valor gasto nas benfeitorias realizadas no imóvel, a título de compensação do património próprio do A.;
2. a quantia de 1.500.000$00 correspondente á sua mea-
ção nos bens comuns gastos na melhoria do imóvel;
3. a quantia de 7.500.000$00 a título de indemnização pelo enriquecimento injusto da Ré à custa do A.,
4. juros de mora sobre estas quantias, a contar da citação.
Alegando, para tanto, e, em suma:
O prédio que melhor descreve nos arts 1º e 2º da p. i. pertencia ao património da Ré, com quem o A. foi casado, até á dissolução do vínculo conjugal por divórcio decretado por sentença transitada em julgado em 15/12/94, no regime da comunhão de adquiridos;
A. e Ré, após o seu casamento um com o outro e enquanto este durou viveram no aludido prédio;
Mas o mesmo era muito velho, tendo sido beneficiado com obras nas quais o A. despendeu, do seu património pessoal, quantia não inferior a 8.000.000$00;
Sendo certo que o mesmo, que à data das obras não valeria mais de 5.000.000$00, passou a valer mais de 30.000.000$00;
As benfeitorias, que melhor descreve na sua p. i., não podem ser levantadas;
Com as mesmas, o imóvel benfeitorizado passa a ter a natureza de bem comum.
Citada a Ré, veio a mesma contestar, alegando, também em síntese:
As obras foram realizadas no imóvel com o seu dinheiro e à sua custa.
De qualquer modo, o alegado direito de indemnização pelo R. pedido, mesmo a existir, já prescreveu.
Foi elaborado o despacho saneador, sem recurso, tendo sido fixados os factos tidos por assentes e organizada a base instrutória, sem reclamação.
Realizado o julgamento, decidiu o senhor Juiz a matéria de facto da base instrutória pela forma que do seu despacho junto aos autos consta. Também sem reclamação das partes.
Proferiu o senhor Juiz a sua sentença, na qual, julgando a acção parcialmente procedente, condenou a Ré a pagar ao A. a quanta que se liquidar em execução de sentença relativa a 50% das despesas havidas com as benfeitorias (que não ultrapassam os 8.000.000$00 no seu todo), acrescida de juros de mora, desde a citação até integral pagamento.
Inconformada, veio a Ré interpor o presente recurso de apelação, formulando, na sua alegação, as seguintes conclusões:
1ª - Provou-se que foram feitas algumas obras de benefi-
ciação no prédio urbano em causa - que é um bem próprio da Ré - na constância do seu matrimónio com o A., não se tendo apurado quem as mandou efectuar, nem quem as pagou, nem quais as datas da sua realização;
2ª - O Tribunal deu como provado que não se apurou qual o montante do valor dessas obras, não superior a 8.000.000$00, no seu todo, valor esse não constante do relatório dos peritos, nem das respostas dadas aos quesitos, nem da própria fundamentação das respostas dadas pelo Tribunal;
3ª - Não se provou que tivesse sido o A. ou a Ré que tivesse pago essas obras, nem que aquele tivesse contribuído para a realização das mesmas com o seu trabalho;
4ª - Daí que a Ré não possa ser condenada a pagar ao A. seja o que for;
5ª - De outra forma, o Tribunal ao condenar a Ré a pagar ao A. 50% das despesas de benfeitorias do que se liquidar em execução de sentença, de valor não superior a 8.000.000$00, no seu todo, violou, na sentença recorrida, o disposto nos arts 216º, nº 1 e 1726º, nº 1, al. c) do CC, 655º, nº 1 e 668º, nº 1, al. c) do CPC.
O apelado não contra-alegou.
Corridos os vistos legais, cumpre, agora, apreciar e decidir.

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Vem dado como PROVADO da 1ª instância:

O prédio urbano composto de casa de rés-do-chão, com 89 m2, logradouro com arrecadação e arrumos com a área de 911 m2, sito na Rua B, nº 17, em Cerrada Grande, Santa Maria, Torres Novas, inscrito na matriz predial sob o art. 1329 e descrito na CRP sob o nº 1149, foi adquirido pela Ré, por dissolução da comunhão conjugal e sucessão por morte de Manuel Marques, com quem ela foi casada - als A), B) e C) dos factos assentes;
Em 29/4/74 A. e Ré casaram, sob o regime da comunhão de adquiridos - al. D);
Por sentença transitada em julgado, foi decretado o divórcio entre A. e Ré, tendo aquele sido julgado único e exclusivo culpado - al. E);
Desde o seu casamento e até ao divórcio, A. e Ré fixaram residência no aludido prédio - al. F);
Por apenso ao processo de divórcio correu termos o inventário para partilha dos bens, tendo os interessados sido remetidos, por despacho transitado em julgado, para os meios comuns quanto ás benfeitorias invocadas pelo A. naquele processo - al. G);
Na constância do casamento foram feitas algumas obras de beneficiação no prédio - al. H);
Em vista à conservação e melhoramento do prédio foram feitas as seguintes obras: as paredes exteriores foram revestidas a tirolês; na cozinha foi colocado um pavimento em mosaico e as paredes levaram um revestimento de azulejo até 1,20 m.; no prolongamento da cozinha foi construída uma marquise com 15 m2; na marquise foi construído um fogão de sala e nele foi colocada uma caldeira de aquecimento, com tubo galvanizado de 20 m. que se encontra à vista; recentemente foi feita uma pintura geral a todas as divisões da casa; também recentemente a electrificação foi totalmente substituída por uma instalação eléctrica nova, com quadro eléctrico novo, diversas tomadas e interruptores; foram aplicadas uma porta e cinco janelas em alumínio e o portão à entrada do quintal que dá para a Rua das Velhas levou um remendo de 60 cms - resposta ao quesito 1º;
Após as obras o prédio ficou com um valor superior ao que tinha antes das mesmas - resposta ao quesito 6º;
As obras importaram em valor concretamente não apurado, nunca superior a 8.000.000$00 - resposta ao quesito 7º;
As obras realizadas não podem ser levantadas - resposta ao quesito 8º.

NÃO tendo ficado, por seu turno, PROVADO:

O A. pagou essas obras (os materiais referidos no art. 49º da p. i. e a mão de obra) com dinheiro seu - resposta ao quesito 2º;
O A. contribuiu para a realização das obras com o seu trabalho - resposta ao quesito 3º;
As obras foram pagas com dinheiro da Ré - resposta ao quesito 4º;
Antes das obras o prédio tinha um valor entre 4.000.000$00 e 5.000.000$00 - resposta ao quesito 5º.

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É sabido que a delimitação objectiva do recurso é feita pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso - arts 664º, 684º, nº 3 e 690º, nºs 1 e 3 do CPC , bem como, entre muitos outros, Acs do STJ de 27/9/94, de 13/3/91, de 25/6/80 e da RP de 25/11/93, CJ S Ano II, T. 3, p. 77, Act. Jur. Ano III, nº 17, p. 3, Bol. 359, p. 522 e CJ Ano XVIII, T. 5, p. 232, respectivamente.

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São duas as questões suscitadas nesta apelação:
a) a discordância da apelante quanto ao valor das obras em causa não superior a 8.000.000$00, já que o mesmo não consta do relatório dos peritos, nem das respostas dadas aos quesitos, nem da fundamentação das mesmas;
b) não se tendo provado qual dos cônjuges contribuiu para a realização das obras, não pode a mesma ser condenada a pagar ao A. seja o que for.

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Prende-se a primeira das questões, ao que julgamos saber, com a impugnação da decisão da matéria de facto, no atinente ao valor encontrado pelo senhor Juiz a quo - não superior a 8.000.000$00 no seu todo - para o das obras em causa.
A tal respeito, deu o senhor Juiz a quo como provado, alem do mais, que "as obras importaram em valor concretamente não apurado, nunca superior a 8.000.000$00" - resposta dada ao quesito 7º.
Tendo este quesito a seguinte redacção:
"As obras realizadas importaram em, pelo menos, 8.000.000$00?".
Tendo sido fundamentada a aludida resposta nos termos do despacho de fls 336 e seg., que não sofreu oportuna reclamação e que agora, em si mesma, também não é propriamente posta em causa. Não havendo, assim, lugar à aplicação do preceituado no art. 712º, nº 5 do CPC.
Ora, a resposta aqui criticada cabe perfeitamente dentro da matéria quesitada.
Tendo sido fundamentada, tal como as demais provadas, "no conjunto de toda a prova carreada para os autos, devidamente analisada e ponderada e, designadamente, no teor dos depoimen-
tos das testemunhas" a que o senhor Juiz a quo expressamente se refere naquele seu despacho, "sendo que todas, de forma clara, precisa e imparcial, convenceram o Tribunal acerca da veracida-
de dos factos a que depuseram, nos termos como ficaram supra descritos e provados".
Assim, não tendo, desde logo, havido gravação da prova, não dispõe este Tribunal, através do processo, de todos os elementos de prova que serviram de base á decisão sobre o ponto da matéria de facto em causa, não se verificando, também, in casu, qualquer um dos restantes pressupostos a que se refere o nº 1 do citado art. 712º.
Não pode, por tudo isto, sem necessidade de mais explicitações, esta Relação sindicar a convicção alcançada pelo senhor Juiz a quo sobre a matéria de facto ora posta em crise, sendo a mesma aqui imodificável.

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Quanto á segunda questão:
Não se discute aqui mais que o prédio urbano da acção é bem próprio da Ré, fazendo o mesmo parte do seu património ao tempo da celebração do seu casamento com o A., com o qual foi casada no regime da comunhão de adquiridos - cfr., ainda, art. 1722º, nº 1, al. a) do CC, sendo deste diploma legal todas as disposições a seguir citadas sem referência expressa.
Tendo ficado provado a respeito das obras questionadas:
Na constância do referido matrimónio foram feitas algumas obras de beneficiação no prédio - al. H);
Em vista à conservação e melhoramento do prédio foram feitas nele obras, melhor discriminadas na resposta dada ao quesito 1º - paredes exteriores revestidas a tirolês, colocação na cozinha de um pavimento em mosaico e nas paredes de um revestimento de azulejo até 1,20 m., construção de uma marquise com 15 m2 no prolongamento da cozinha, de um fogão de sala naquela e colocação de uma caldeira de aquecimento, com tubo galvanizado de 20 m. que se encontra à vista; recentemente foi feita uma pintura geral a todas as divisões da casa; também recentemente a electrificação foi totalmente substituída por uma instalação eléctrica nova, com quadro eléctrico novo, diversas tomadas e interruptores; aplicação de uma porta e de cinco janelas em alumínio, tendo o portão à entrada do quintal que dá para a Rua das Velhas levado um remendo de 60 cms.
Após as obras, que importaram em valor não concretamente apurado, mas não superior a 8.000.000$00, o prédio ficou com um valor superior ao que antes tinha.
Por sentença já transitada em julgado foi o casamento de A. e Ré dissolvido por divórcio.

As obras em questão, que foram feitas na constância do matrimónio, aumentaram, sem dúvida, o valor do prédio, bem próprio da Ré.
Podendo as mesmas serem consideradas como benfeitorias úteis, face à sua natureza, já que, tendo em conta esta, não parece terem tido apenas por fim evitar a perda, destruição ou deterioração da coisa - cfr. art. 216º, nºs 1 a 3.
De facto, o legislador do actual código aceitou as definições tradicionais de benfeitorias, não tendo havido modificação substancial dos conceitos que já vêm do direito romano. Distinguindo-se então, tal como agora, três espécies de benfeitorias: as necessárias, que não podiam deixar de ser feitas sem prejuízo da conservação da coisa; as úteis, que aumentavam o rendimento e a utilidade da coisa; e as voluptuárias, que aumentavam a beleza da coisa sem aumentar o seu rendimento - Rodrigues Bastos, Notas ao CC, vol. I, p. 278.

Determina o art. 1724º, al. a), acerca dos bens integrados na comunhão conjugal, no regime de bens em vigor no decurso do matrimónio do ora A. e Ré, que fazem parte da comunhão "Os bens adquiridos pelos cônjuges na constância do matrimónio, que não sejam exceptuados por lei".
Sendo também bens comuns os frutos e rendimentos dos bens próprios e as benfeitorias úteis feitas nesses bens - cfr., ainda, art. 1733º, nº 2 e Rodrigues Bastos, ob. cit., vol. VI, p. 177.
Salvo se estas forem feitas com dinheiro ou valores próprios de um dos cônjuges, nas condições previstas no art. 1723º, al. c) - P. Lima e A. Varela, CCAnotado, vol. IV, p. 428.
Considerando-se, pois, como coisa comum, com autonomia, o valor das benfeitorias úteis feitas nos bens próprios - P. Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso do Direito da Família, A. Varela, Direito da Família (Direito Matrimonial), p. 380 vol. I, p. 544 e seg. e Eduardo dos Santos, Direito da Família, p. 351.
As benfeitorias realizadas no prédio da Ré eram, pois, bens comuns do entretanto dissolvido casal que ela com seu então marido, ora A., formava.
Não tendo a Ré provado, como lhe incumbia, que tais benfeitorias foram feitas com o seu dinheiro ou com os seus valores, nos precisos termos do citado art. 1723º, al. c) - art. 342º, nº 2.

Com a dissolução do casamento cessam as relações patrimoniais entre os cônjuges (art. 1688º), podendo a partir de então proceder-se à partilha dos bens do casal.
Recebendo cada um deles os seus bens próprios e a sua meação no património comum - art. 1689º.
Mas, quanto às benfeitorias ora questionadas foram os interessados, no inventário que correu termos após o seu divórcio, remetidos para os meios comuns.
Tendo, assim, o A. direito a receber metade do seu valor.
Tal como o senhor Juiz a quo, embora com fundamentação não idêntica, decidiu na 1ª instância.
E, embora o valor das benfeitorias possa não coincidir, em si mesmo, como o valor nelas gasto - e os bens comuns são as benfeitorias úteis feitas nos bens próprios - foi em relação a este o pedido pelo A. efectuado, tendo a Ré sido condenada a pagar 50% das despesas havidas com tais benfeitorias, não superiores, no seu todo, a 8.000.000$00, a apurar em execução de sentença.
Mas não fazendo tal eventual discrepância parte do objecto deste recurso, sobre ela não nos pronunciaremos.
Assim se mantendo o decidido.

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Face a todo o exposto, acorda-se nesta Relação em se julgar a apelação improcedente, mantendo-se, embora por razões não inteiramente coincidentes, a sentença recorrida.
Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia.