Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
901/03.4PAMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: BARRETO DO CARMO
Descritores: CRIME DE BURLA
CRIME DE EXECUÇÃO VINCULADA
ERRO OU ENGANO
CRIME DE FALSIFICAÇÃO
Data do Acordão: 09/10/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA MARINHA GRANDE – 1.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 217.º E 256.º, N.º 1, AMBOS DO CÓDIGO PENAL
Sumário: I. O crime de burla configura-se como um crime de execução vinculada - a lesão do bem jurídico tem que ocorrer como consequência dos comportamentos típicos definidos pelo legislador – e que se traduz na utilização de um meio enganoso tendente a induzir a pessoa em erro, que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios, de molde a que o engano seja causa da situação de erro em que se encontra a vítima.
II. – Para que ocorra o elemento típico indutor da criação de um estado intelectivo erróneo na pessoa da vitima é necessário que o erro ou engano tenham sido provocados astuciosamente, isto é, que a conduta do agente comporte a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade que envolve a escolha dos meios idóneos para conseguir criar e obter uma representação distorcida e desfocada da realidade em que a relação estabelecida se deveria ter desenvolvido.
III. - A adequação de meios idóneos em que radica a astúcia importa uma adequação do comportamento do agente à criação desse erróneo estado de representação deformada da realidade e depende das especificas particularidades do caso concreto - a situação concreta tanto pode exigir a utilização de meios muitos sofisticados, como o menos sofisticado dos procedimentos – sendo que, a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente, se afere tomando em consideração as características do concreto burlado,
IV. – Constituindo-se o direito penal a ultima ratio da intervenção do Direito nas relações jurídicas e podendo afirmar-se que no mundo especifico dos negócios poderá sempre ocorrer uma margem de astúcia – estabelecendo-se como limites as regras próprias da boa fé, da responsabilidade de informação da outra parte e de critérios de lealdade no comércio jurídico – só um erro jurídico-penalmente relevante integrará o âmbito de protecção do art. 217º.
V. – Sendo o crime de burla um crime que ocorre com uma maior ou menor participação da vitima é necessário que se verifique um duplo nexo causal: o engano deve ser a causa da situação de erro em que se encontra a vítima e, por sua vez, esse estado de erro é a causa da prática pelo burlado dos actos de que decorrem prejuízos patrimoniais.
VI. - A aferição da existência de um prejuízo patrimonial na esfera do lesado estabelece-se pela verificação de um empobrecimento ou depreciação do conjunto de bens materiais disponíveis a que não tem que ocorrer um correspondente enriquecimento por parte do agente (embora se exija que o agente actue com a intenção de enriquecimento ilegítimo, para si ou para outrem).
VII. – Para a consumação do crime de não se exige a concretização do enriquecimento (material)do agente ocorrendo logo que ocorra o prejuízo patrimonial da vítima (crime de resultado parcial ou cortado).
Decisão Texto Integral: Vem interposto recurso por
MS
e refere-se à decisão do Tribunal Judicial de Marinha Grande, que é do seguinte teor:
Condenar o arguido MS… pela prática, em autoria material, de um crime de burla simples, p. e p. pelo art. 217º, nº 1, do CP, na pena de 8 (oito) meses de prisão;
Condenar o mesmo arguido pela prática, em autoria material, de dois crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo art. 256º, nº 1, al. a) do CP, na pena de 8 (oito) meses de prisão cada um deles;
Condenar ainda o arguido pela prática, em autoria material, de um crime de burla qualificada, p. e p. pelo art. 218o, nº 1, do CP, na pena de 12 (doze) meses de prisão;
Condenar o arguido, em cúmulo jurídico das penas ora aplicadas, na pena conjunta de 30 (trinta) meses de prisão;
Suspender a execução da pena aplicada ao sobredito arguido pelo período de 30 (trinta) meses;
Condenar o arguido no pagamento das custas criminais, fixando-se a taxa de justiça criminal em 3 UC’s, a qual acresce 1% desta nos termos do artigo 13º do D.L. 423/91 de 30/10, e nas demais custas do processo, fixando-se a procuradoria no mínimo legal, a favor do S.S.M.J. (sem prejuízo do apoio judiciário concedido -v. fls. 335);
(…)
Na motivação, diz nas conclusões:
1. O arguido deveria ter sido absolvido em relação a todos os crimes que lhe eram imputados;
2. Os factos descritos na acusação e assacados ao arguido a título do crime de burla são, na realidade, incumprimentos contratuais;
3. Os factos relativos a um ao ofendido José foram objecto de despacho de arquivamento num outro processo;
4. Houve violação de caso julgado relativamente nos factos que foram objecto do despacho de arquivamento;
5. Existe insuficiência da matéria de facto dada como provada para condenar arguido como autor material de 2 crimes de falsificação de documento;
6. A sentença recorrida violou os artigos 217°, n°1, 218°, n°1, 256°, n°1, alínea a) do Código Penal; artigos 127° e 410°, n°1, alínea a) do Código de Processo Penal e violação do principio no bis in idem
7. O tribunal a quo considerou que o arguido cometeu um tais crimes, quando deveria ter absolvido
Face a todos os fundamentos expostos neste recurso, deve o arguido ser absolvido dos crimes que lhe eram imputados
Ou caso assim não se entenda Anulando o julgamento e repetindo o mesmo
***
Da decisão recorrida, retira-se:
(...)
II. Fundamentação
Factos provados:
1. No final do mes de Setembro de 2003, em Casal da Amieira, Batalha, no stand de vendas de veículos de JC…, o arguido negociou com este a aquisição do veiculo de matricula 92-16-IB, pelo preço de. 5000;
2. O qual lhe seria entregue logo que procedesse ao pagamento do preço.
3. Porem, no inicio do mes de Outubro de 2003, convenceu o indicado JC… a entregar-lhe o veiculo para proceder a inspecção obrigatória,
4. Que, para esse fim, também lhe entregou o titulo de registo de propriedade e o livrete do IB.
5. Retendo, contudo, o requerimento – declaração para registo, visto:
- a entrega do veículo se destinar tão só a que fosse sujeito a inspecção; e
- ainda não ter recebido o preço.
6. Na posse dos apontados documentos, o arguido preencheu o requerimento - declaração para registo de propriedade de fls. 103.
7. No qual, para identificação do vendedor, apôs:
a) o nome e residência do titular inscrito no registo, JMM…;
b) o numero 12368217, como sendo o no do BI de JMM…; e
c) o numero 135721024, como sendo o no de identificação fiscal deste.
8. E no lugar destinado a assinatura do vendedor apôs o nome “JMM…”,
9. Como se fosse este a fazê-lo.
10. Fê-lo:
a) bem sabendo que aqueles números não correspondiam aos dos documentos de identificação de JMM…, titular do BI no 4137926;
b) com o propósito de vender ou trocar o veiculo por outro de valor inferior; e
c) dessa forma, receber o preço ou a diferença entre o valor dos veículos.
11. E, assim, obter um enriquecimento,
12. Como veio a obter.
13. De seguida, acompanhado pela mulher e pelos filhos, dirigiu-se ao stand de automóveis denominado ….“, Marinha Grande.
14. Onde se apresentou como dono do veiculo,
15. Exibiu os indicados documentos e aquela declaração – requerimento para registo de propriedade, por ele preenchida,
16. E propôs a AG… a troca daquele veículo (IB), por outro, em exposição no stand.
17. Este, por desconhecer que aquela declaração não tinha sido preenchida e assinada pelo legítimo proprietário do veículo, constante do registo, acordou, então:
a) receber o IB;
b) entregar, a troca, o veículo de matrícula 00-00-AA, de marca Volkswagen;
c) bem como a quantia de . 1250, correspondente a diferença dos valores dos veículos.
18. Porem, aquela quantia (. 1250) e a declaração - requerimento para registo de propriedade do AA apenas lhe seriam entregues no dia seguinte, mediante a entrega, pelo arguido, de fotocopia do bilhete de identidade do proprietário do IB, inscrito no registo (JMM…).
19. Deste modo, logrou que o aludido AG… lhe entregasse o veículo de matrícula 00-00-AA, bem como o livrete e o título de registo de propriedade.
20. Causando-lhe, assim, um prejuízo de. 4250,00, correspondente ao valor do AA.
21. Na posse destes documentos, o arguido preencheu o requerimento – declaração para registo de propriedade de fls. 29 do apenso,
22. No qual, para identificação do vendedor, apôs:
a) a residência do titular inscrito no registo, JF…; e
b) o no 12558446, como sendo o no do BI de JF…;
23. E, no lugar destinado a assinatura do vendedor apôs o nome “JF…”, proprietário inscrito no registo,
24. Seguido das menções: “contri - 226690362; Repar - 2 Leiria; BI - 12558446; Emi: 22-08-02”,
25. Como se fosse este a fazê-lo.
26. Fê-lo:
a) apesar de saber que aqueles números não correspondiam aos documentos de identificação de JF…, titular do BI no yyyyyyyyy;
b) com o propósito de vender ou trocar o veiculo por outro de valor inferior; e
c) dessa forma, receber o preço ou a diferença entre o valor dos veículos,
27. E, assim, obter um enriquecimento,
28. Como obteve.
29. Pois, de seguida, no dia 6 de Outubro de 2003, acompanhado da mulher e dos filhos, dirigiu-se ao stand de veículos de FA…, na …, Leiria, com o propósito de vender ou trocar o AA por outro veiculo.
30. Ai contactou o FM…, a quem se apresentou como proprietário do veículo e manifestou aquela intenção.
31. Que, por isso, e por desconhecer que aquela declaração não tinha sido preenchida e assinada pelo legitimo proprietário do veiculo constante do registo aceitou, então:
a) receber o AA, pelo valor de € 3.500;
b) entregar a troca o veiculo de matricula 72-48-GC, Fiat Punto, no valor de . 3250,
c) bem como a quantia de € 250,00, correspondente a diferença de valor, negociado, entre o Volkswagen e o Fiat.
32. Com o que logrou que o aludido FM… lhe entregasse o Fiat Punto, bem como os respectivos documentos e, ainda, a quantia de € 250,
33. Causando-lhe, assim, um prejuízo de € 3.500.
34. Esse veículo (GC) veio, posteriormente, a negocia-lo com PJP…, a troca por outro, acrescido da quantia de pelo menos €550.
35. Com as descritas actuações e aproveitando-se da confiança que soube criar nos identificados AG… e a FM…,
36. E do facto daqueles desconhecerem que os requerimentos – declarações para registo de propriedade não haviam sido assinadas pelos legítimos proprietários dos veículos,
37. Logrou entrar na posse dos aludidos veículos,
38. Com o que lhes quis causar prejuízo patrimonial,
39. Como causou.
40. E obter, como efectivamente obteve, um enriquecimento,
41. Que sabia ser ilegítimo.
42. Agiu sempre de forma livre, consciente e deliberada,
43. Bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei;
44. O arguido concluiu o 9o ano de escolaridade em regime nocturno;
45. Aos 16 anos começou a trabalhar na área dos moldes;
46. Em 2004 foi para a Holanda onde trabalhou como manobrador industrial na Mercedes Benz durante 4 meses; voltou a Portugal e em Março 2005 foi outra vez para aquele pais trabalhar para a mesma firma;
47. Regressou em Agosto 2005 a Portugal, trabalhando então como manobrador industrial;
48. Em 2006 trabalhou na firma Citroen onde esteve ate Marco 2007;
49. No período em que esteve na Holanda tirou formação na área da mecânica de automóveis;
50. De Julho de 2007 a 5.12.2007 esteve em cumprimento de medida de coacção de obrigação de permanência na habitação no âmbito de um processo de inquérito que tem pendente;
51. No dia 14 de Janeiro de 2008 começou a trabalhar como oficial de bancada e rectificador na firma Pressi Moldes, sita na Zona Industrial da Batalha, auferindo um salário liquido mensal de € 600,00;
52. Vive em casa arrendada, com a mulher e dois filhos (de 5 e 6 anos), encontrando-se a sua mulher grávida;
53. A mulher esta desempregada, auferindo o rendimento mínimo garantido de cerca de € 500,00.
54. O arguido já foi condenado pela prática: em 7.10.2000, de um crime de condução ilegal, na pena de 80 dias de multa; em 26.11.2003, de um crime de abuso de confiança, na pena de 600 dias de multa; em 9.11.2002, de um crime de burla simples, na pena de 240 dias de multa.
Factos não provados:
Inexistem factos por provar.
Convicção do Tribunal:
A afirmação dos factos referidos em 1 a 34 resultou da valoração critica, global e ponderada das declarações das testemunhas JC…, AM…, JM…, JF…, FA… e PJP…, conjugada com os documentos de fls. 103, 157, 182, 45, 46 e 29 do Apenso A.
Assim:
O JM… confirmou ter sido proprietário do veículo de matrícula 92-16-IB, o qual, há cerca de 5 anos, trocou por outro veículo no stand do …, em Alcobaça; na ocasião, entregou ao dito senhor a declaração de venda do IB (“requerimento - declaração para registo de propriedade junta a fls. 157 dos autos), devidamente assinada por si e contendo os seus elementos de identificação. Confrontado com o documento de fls. 103 (“requerimento - declaração para registo de propriedade do IB), diz que a assinatura que nele consta com o seu nome não foi por si aposta, nem sequer os elementos de identificação (BI e NIF) correspondem aos seus.
Cerca de um ano depois da venda aludida, recebeu um telefonema do stand do …, pedindo-lhe que junto da DGV diligenciasse pela apreensão de tal veiculo, já que tinha sido furtado e era o nome dele que ainda constava como proprietário inscrito, o que fez.
O JC… relatou de forma pormenorizada e segura o episódio ocorrido como arguido, referindo que teve um stand de automóveis, …, Batalha. Em data que situa no mes de Abril de 2003 o arguido entrou pela primeira vez no seu stand, tendo-se lá deslocado mais duas ou 3 vezes. Viu o veículo IB (de marca Seat, modelo Córdoba, o qual tinha sido por si adquirido no stand do …, em Alcobaça, tendo consigo uma declaração de venda, assinada pelo Sr. R…, que a tinha entregue aquele aquando da troca do veiculo por outro nesse stand) e perguntou-lhe se lho vendia, ao que respondeu afirmativamente e pelo preço de € 5.000,00; posteriormente a isso deslocou-se lá acompanhado de uma senhora e 2 crianças dizendo-lhe que queria comprar o carro mas que estava a aguardar o recebimento de uma quantia da companhia de seguros, o que sucederia dentro de poucos dias, ocasião em que lhe pagaria levando consigo o veículo.
Acordados assim os termos do negócio, prontificou-se logo a preparar o carro, ao que o arguido lhe disse que tinha pessoas amigas na inspecção, e que levaria consigo o carro para ser inspeccionado. Posto isto, e por ter confiado, facultou-lhe o livrete e título de registo de propriedade do IB, a fim de o mesmo o levar para esse fim; nunca lhe devolveu o carro nem os documentos que lhe facultou. Começou a achar estranho o tempo que demorava e passada uma semana contactou-o, ao que este lhe respondeu que andava bastante atarefado, mas que logo lhe entregaria o carro, pedindo desculpas pelo atraso. Voltou a contactá-lo passados alguns dias para o mesmo telemóvel, e atendeu-lhe uma senhora que se identifica como prima do arguido, que lhe disse que aquele não era dela agora e que não tinha nada que a incomodar.
A declaração de venda que tinha consigo não a chegou a entregar ao arguido, pois só o faria quando este lhe pagasse a viatura nos termos acordados.
Duas semanas depois descobriu, por intermédio do … (que lhe ligou a dar os parabéns pela venda rápida do carro), que o IB estava para venda num stand pertença do Sr. AG, na …. Ligou para este último, que lhe transmitiu que foi um senhor que lá tinha ido vender e deixou os documentos do veículo. Disse-lhe, então, que a declaração de venda estava consigo. Alias, por ter a declaração de venda verdadeira, nunca imaginou que o arguido fizesse outra.
Na ocasião em que o arguido se mostrou interessado no veiculo não lhe disse porque e que pretendia o carro - se era para ele ou para vender; mas não lhe falou nunca da existência de qualquer sociedade.
Confirma que o documento que consta de fls. 157 e o original da declaração de venda que tinha consigo e que entregou na GNR.
O AG… relatou os termos do negócio que efectivou com o arguido, há cerca de 4 anos: este dirigiu-se ao stand do qual era sócio, acompanhado da esposa e dos filhos, no sentido de fazer uma troca do veiculo que tinha (Seat Córdoba) por um outro em que estava interessado (Volkswagen Passat, matricula 76-80-AA), que era a diesel, logo menos dispendioso, já que ia trabalhar com maquinaria para a Figueira da Foz e precisava do veiculo para os transportes.
Acordaram então os termos do negócio: seria feita a troca do carro e ele seria ressarcido ainda duma parte em dinheiro, no valor de 250 contos (€ 1250,00), já que o carro que entregava tinha um valor superior àquele que recebia.
Entregou-lhe o livrete e registo de propriedade do IB, tal como a declaração de fls. 103, dizendo-lhe que não tinha consigo o original da declaração de venda do Córdoba. Por ter alguma experiência, também não lhe entregou a declaração original de venda do Passat; na verdade, também não possuía a cópia do BI e NIF do proprietário do veículo, e só com estas poderia ver se a assinatura era verdadeira.
O arguido, na ocasião, e a mulher (…), que o acompanhava, assinaram uma declaração em como se responsabilizavam pelo veiculo.
O arguido nunca entregou os documentos em falta; por várias vezes tentou contacta-lo por telefone; achou estranho e diligenciou no sentido de saber de quem era o carro. Era do Sr…. Tentou procura-lo na morada que lhe deu (Quinta …, Leiria), e não era dele. O IB ficou lá parado no stand.
Não sabe precisar se os 250 contos foram pagos ao arguido pelo seu outro sócio, pois nessa altura saiu da sociedade.
No negócio que firmou com o arguido este fazia-se acompanhar da mulher e filhos, não estando presente qualquer outra pessoa.
O valor do AA nunca seria inferior a 4.250,00 e foi esse o prejuízo que diz ter tido.
Exibido o documento de fls. 182, diz ter consigo original de tal documento, que e a declaração de venda do AA, assinada pelo Sr. JM…, que não chegou a entregar ao arguido.
O JM …diz ter sido proprietário do 76-80-AA; há cerca de 4 anos trocou-o num stand da … pelo que ainda hoje possui. Assinou na altura uma declaração de venda que entregou ao Sr. …; esta declaração e o documento que faz fls. 46 dos autos, no qual consta a sua assinatura e elementos de identificação; exibida a declaração de venda de fls. 45 diz que o nome que dele consta não e a sua assinatura.
O FA… relatou também os termos do negócio firmado com o arguido: há cerca de 5 anos deslocou-se com a mulher e 2 crianças a Quinta …, dizendo-lhe que pretendia trocar o Passat (AA) por outro mais pequeno (Fiat Punto) porque dizia que aquele era muito grande para a esposa dar as voltinhas dela. O AA valia 3500€ e o Fiat €3250; entregou o carro, levou o Fiat e recebeu 50 contos (tendo-lhe sido entregue o cheque de fls. 219). A data que consta no cheque (06.10.2003) foi aquela em que foi efectuado o negócio.
Do veículo AA o arguido entregou-lhe: livrete, registo de propriedade e modelo 2 de venda. Ficou de lhe entregar: fotocopia BI e NIF do ex-proprietário uma vez que o carro estava em nome dele.
Do Fiat entregou toda a documentação ao arguido: livrete, registo propriedade, modelo 2 assinado pelo ex-proprietário (que consta a fls. 29 do Apenso, idêntica a de fls. 45 dos autos) e fotocópia do BI e NIF deste último.
Mais tarde vendeu o AA por 4500€ ao Sr. …; no momento em que vai para transferir a propriedade do carro a pessoa que lhe trata da documentação disse-lhe que o no BI aposto na declaração entregue pelo arguido não coincide com o no do proprietário registado (que era o Sr. JM…).
O cheque que entregou ao arguido (250€) foi efectivamente descontado.
Devolveu os 4500€ ao Sr. Eliseu.
O PJP… relatou da seguinte forma o episódio sucedido com o arguido: Há cerca de 5 anos, em 2003, nas suas instalações nos …, apareceu o arguido acompanhado de uma senhora e duas crianças; disse-lhe que precisava de vender o carro (Fiat Punto branco) para fazer uma operação a uma das crianças. Disse-lhe que assim não efectuava o negócio, mas propôs-lhe dar-lhe um outro a troca (Seat Ibiza verde do ano de 92/93) e mais 200 contos. O arguido aceitou. Ficou com o Fiat Punto e entregou-lhe o Seat Ibiza; nessa ocasião o arguido entregou-lhe: livrete, registo propriedade, declaração de venda do Fiat Punto, copias NIF e BI do proprietário inscrito (conferiu e estava tudo certo); da sua parte o arguido recebeu todos os documentos referentes ao Seat Ibiza (ele e que nunca o passou para o seu nome). Foi abordado pelo proprietário do Ibiza muitas vezes porque lhe chegaram multas a casa para pagar.
A prova testemunhal e documental assim produzida foi valorada de forma critica, global e ponderada, toda ela formando um conjunto coerente e harmonioso de factos.
Os elementos expostos, assim obtidos, não fazem prova directa dos factos vertidos em 6 a 9 e 21 a 25. Tem porem o valor de indícios, isto e, de circunstâncias a partir das quais se pode, em determinadas condições, fundar a consistência de um facto desconhecido. Todos eles concorrem articuladamente para uma solução inequívoca no caso, a única que suportam, fazendo-se apelo as regras da normalidade - o preenchimento pelo arguido das declarações em causa.
Os elementos atinentes as intenções do arguido, ou ao seu dolo, não se demonstram também directamente; recolhem-se dos factos objectivos descritos, que as demonstram inequivocamente, não podendo o arguido deixar de conhecer o significado criminal da sua descrita actuação.
As declarações do arguido não se mostraram críveis e não mereceram qualquer crédito.
Pelo contrário, as testemunhas referidas, todas elas, relataram os factos de que tinham conhecimento de forma precisa, circunstanciada, segura e isenta, tudo contribuindo para a sua coerência e veracidade.
Os factos relativos a situação pessoal e económica do arguido colheram-se das suas próprias declarações, que, neste tocante, não suscitaram reservas; a testemunha de defesa, MC… (tio do arguido) pouco acrescentou nesta parte, revelando um total desconhecimento das circunstâncias actuais de vida do arguido, limitando-se a dizer que este sempre foi uma pessoa trabalhadora.
Atendeu-se ainda ao CRC do arguido junto aos autos (a fls. 319/321).
(…)
***
O Digno Procurador Adjunto na comarca considera ser de manter a sentença no que é acompanhado pelo Preclaro Procurador-geral Ajunto.
Correram os vistos.
____________ DECIDINDO
As conclusões fixam o objecto do recurso – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7/10/92, no Proc. nº. 40528 e, face ás conclusões acima transcritas,:
Discute-se neste recurso:
· A integração dos crimes e o incumprimento contratual – Cls. 1 e 2
· Caso Julgado (?) e o princípio ne bis idem – Cls. 3 e 4
· Insuficiência da matéria de facto – Cls. 5
Atentas as conclusões acima transcritas dá-se por assente a matéria de facto, que não é posta em causa neste recurso, e nem sequer se refere, a motivação, ao disposto no artigo 412º/3/4 do Código de Processo Penal.
A alusão, feita de forma não concretizada, do que as testemunhas terão dito em julgamento é inoperante.
Considerando o requerente que o que do julgamento se conclui é a existência de negócios, contratos, e não qualquer crime, haverá que analisar o tipo de crime para se saber se com os factos dados como provados fica preenchido, de molde ao arguido poder ser condenado.
No crime de burla, o bem jurídico aqui protegido consiste no património globalmente considerado.
A generalidade da doutrina contemporânea adere à concepção económico jurídica de património, entendendo o património como o conjunto de utilidades (“situações” e “posições”) de valor económico detidas pelo sujeito e protegidas pela ordem jurídica ou, pelo menos, cujo exercício e fruição a ordem jurídica não desaprova.
Assim, são algumas situações integradoras do conceito de património os direitos subjectivos patrimoniais; as expectativas jurídicas (em sentido estrito); as expectativas fácticas de obtenção de vantagens económicas; as prestações judicialmente não exigíveis, como as obrigações naturais.
Quanto à conduta a burla constitui um crime de execução vinculada (a lesão do bem jurídico tem que ocorrer como consequência dos comportamentos típicos definidos pelo legislador), traduzindo-se, na utilização de um meio enganoso tendente a induzir a pessoa em erro, que, por seu turno, a leva a praticar actos de que resultam prejuízos patrimoniais próprios ou alheios, assim, de molde a o engano deve ser a causa da situação de erro em que se encontra a vítima e, por sua vez, esse estado de erro é a causa da prática pelo burlado dos actos de que decorrem prejuízos patrimoniais.
Sobre factos que astuciosamente o agente provocou, é necessário que o erro ou engano tenham sido provocados astuciosamente, isto é, que a conduta do agente comporte a manipulação de outra pessoa, caracterizando-se por uma sagacidade, que envolve a escolha dos meios idóneos para conseguir obter tal erro ou engano, sendo assim na adequação de meios que radica a astúcia, o que implica, a adequação do comportamento do agente à criação do erro ou engano, atentas as particularidades do caso concreto (a situação concreta tanto pode exigir a utilização de meios muitos sofisticados, como o menos sofisticado dos procedimentos) – domínio do erro, sendo que, a idoneidade do meio enganador utilizado pelo agente afere-se tomando em consideração as características do concreto burlado,
É ainda essencial, atender ao conteúdo comunicacional (contexto) que, globalmente considerada, a conduta do agente, reveste na situação concreta (e não á sua configuração externa).
Procurando o âmbito de protecção da norma, anotemos que o direito penal tem natureza subsidiária (de ultima ratio), pelo que, não se pode deixar de reconhecer que, em determinadas áreas das relações patrimoniais, sobretudo no mundo dos negócios, o domínio do erro faz parte do regular funcionamento de uma economia de mercado, apresentando-se assim conforme à ordem jurídica pelo que, integrará o âmbito de protecção do art. 217º apenas um domínio do erro jurídico-penalmente relevante, isto é, introduz-se a restrição do desvalor da acção subjacente à burla. O âmbito de protecção do art. 217º/1 encontra-se condicionado pela prévia definição, em sede de direito privado, do que se apresenta permitido ou proibido à luz do princípio da boa fé “em sentido objectivo”, isto é, do critério de lealdade que deve acompanhar as relações das pessoas no comércio jurídico. A precisa delimitação do âmbito da imposição da boa fé, só poderá fazer-se em face das circunstâncias do caso, porém, haverá que ter em conta que: determinados sectores de actividade pela sua especialização técnica ou dos assuntos envolvidos, escapam ao controlo do comum das pessoas, existindo um verdadeiro “domínio de sujeição” (ex.: medicina, advocacia, informática, etc.), estão investidos, à luz do princípio da boa fé, na responsabilidade social de garantir um adequado esclarecimento da outra parte, cujo incumprimento poderá consubstanciar o crime de burla (desde que preenchidos os demais requisitos).
A doutrina aponta 3 modalidades: de execução do crime de burla, vindo ou de uma falsa representação da realidade; ou de um erro resulta de condutas que à luz de um critério objectivo – das regras da experiência comum e dos padrões ético-sociais vigentes no sector da actividade – se mostram adequadas a criar uma falsa convicção sobre certo facto (e não expressis verbis), considerando as particularidades da situação e da vítima; ou por omissão nos casos em que na formação do erro do burlado não intervém qualquer contributo “positivo” do agente, mas apenas aproveita o estado de erro em que ele se encontra.
O crime de burla é apelidado de “crime de participação da vítima”, uma vez que, a saída de valores ou de coisas da esfera fáctica do sujeito passivo, reporta-se tanto à conduta do agente, como à acção do próprio burlado.
É necessário que se verifique um duplo nexo causal: o engano deve ser a causa da situação de erro em que se encontra a vítima e, por sua vez, esse estado de erro é a causa da prática pelo burlado dos actos de que decorrem prejuízos patrimoniais.
O engano deve ser a causa da situação de erro em que se encontra a vítima – os meios enganosos devem ser adequados á produção de erro.
Estes nexos de causalidade aferem-se nos termos da teoria da causalidade adequada (art. 10º/1), isto é, tendo em conta as circunstâncias concretas, aí incluídas as características do burlado.
O prejuízo patrimonial é o requisito para a consumação:
O crime de burla é um crime material ou de resultado e um crime de dano, pelo que, só se consuma com a ocorrência de um prejuízo efectivo no património do sujeito passivo ou de terceiro, isto é, com a saída das coisas ou valores da esfera de “disponibilidade fáctica” do sujeito passivo ou de terceiro – prejuízo patrimonial.
Basta para a consumação do crime de burla que se verifique um empobrecimento (dano) da vítima, ao qual não tem que corresponder um enriquecimento por parte do agente (embora se exija que o agente actue com a intenção de enriquecimento ilegítimo, para si ou para outrem, a consumação do crime não depende da concretização de tal enriquecimento) – crime de resultado parcial ou cortado. Existirá um dano patrimonial sempre que se verifique uma diminuição do valor económico do património da vítima, em relação à posição em que estaria se o agente não tivesse realizado a sua conduta (critério objectivo-individual)
A burla é um crime que exige o dolo (art. 13º), em qualquer das suas modalidades (art. 14º).
A burla é um delito de intenção, isto é, exige-se, também a intenção do agente de conseguir, através da conduta, um enriquecimento (vantagem, lucro, proveito) ilegítimo próprio ou alheio, não obstante a sua consumação não exigir a concretização desse enriquecimento, verificando-se logo que ocorra o prejuízo patrimonial da vítima (crime de resultado parcial ou cortado).
In casu, como bem diz a sentença, em dois distintos momentos se apoderou intencionalmente de dois automóveis e, criando uma aparente situação de confiança, vestindo a pele de dono dos mesmos, ludibriar AG e FM conseguindo obter um seu enriquecimento, á custa deles, enriquecimento ilegítimo, que advém de agir sabendo que não era o dono e só fazendo-se passar por tal conseguia o enriquecimento, enganando as vítimas, e causando-lhes prejuízo.
Fica preenchido o crime, que nada tem a ver com os factos anteriores para o negócio para obtenção dos veículos.
O arguido vem ainda acusado pela prática de dois crimes de falsificação, nos termos do art. 256º, nº 1, al. a) do CP.
O que o crime de falsificação de documento protege é a verdade intrínseca do documento enquanto tal (cfr. Figueiredo Dias E Manuel Da Costa Andrade, Criminologia. O Homem Delinquente e a Sociedade Criminógena, 1985, pág. 23).
Aqui, o bem jurídico protegido é o da segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório no que respeita à prova documental (Helena Moniz, O Crime de Falsificação de Documentos, Reimp., Coimbra, págs. 41 e seguintes). Ao proteger-se a segurança do tráfico jurídico apenas relacionada com os documentos, acentua-se as duas funções que o documento pode ter: função de perpetuação que todo o documento tem em relação a uma declaração humana e função de garantia, pois cada autor do documento tem a garantia de que as suas palavras não serão desvirtuadas e apresentar-se-ão tal como ele, num certo momento e local, as expôs. São estes dois aspectos que são violados com o crime de falsificação de documentos.
Considera-se ainda que o crime de falsificação de documentos, para além de ser um crime contra a prova documental, é também um crime de fraude contra a identidade do autor do documento (cfr. Helena Moniz, Comentário Conimbricense ao Código Penal , Tomo II, págs. 680 e 681).
Tal crime constitui pois, um crime de perigo abstracto, ou seja, após a falsificação do documento ainda não existe uma violação do bem jurídico, mas um perigo de violação deste, não sendo tal perigo elemento do tipo, mas apenas a motivação do legislador; basta, pois, que o documento seja falsificado para que o agente possa ser punido, independentemente de o utilizar ou o colocar no tráfico jurídico. Para que o tipo legal esteja preenchido não é necessário que, em concreto, se verifique aquele perigo; basta que se conclua, a nível abstracto, que a falsificação daquele documento é uma conduta passível de lesão do bem jurídico aqui protegido; basta que exista uma probabilidade de lesão da confiança e segurança, que toda a sociedade deposita nos documentos e, portanto, no tráfico jurídico, verificando-se, pois, uma antecipação da tutela do bem jurídico (cfr. Helena Moniz, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, págs. 681).
No que concerne ao tipo objectivo de ilícito do crime em apreço, o documento, no sentido exposto no artigo 255º, do Código Penal, constitui o objecto de acção, na medida em que será sobre ele que incidirá a conduta do agente.
Entre as modalidades de conduta que o tipo objectivo previsto no artigo 256º, do Código Penal, comporta, integra-se o acto de fabricar documento falso. Nestes casos procede-se a uma “contrafacção total, isto é, a feitura “ex novo” e “ex integro” de um documento” (cfr. Helena Moniz, Comentário Conimbricense ao Código Penal, Tomo II, pág. 682).
A falsificação material verifica-se quando se forja, total ou parcialmente, o documento, ou quando se alteram os termos do documento já existente. É a contrafacção total que se preenche quando o agente fabrica inteiramente o documento.
Integra-se também no acto de fabricar um documento a falsificação intelectual em que o documento, isto é, declaração documentada, idónea a provar um facto juridicamente relevante, é distinta da declaração realizada (Helena Moniz, ob. cit., pág. 682).
Nos casos de fabrico de documento falso põe-se em causa a autenticidade e genuinidade da proveniência do documento. Tal actuação arrasta consigo um erro de identidade, isto é, um erro sobre a pessoa do verdadeiro emitente da declaração. Assim, o documento é falso quando dele se pode deduzir que a declaração não provém da pessoa à qual aparentemente se liga ou não proveio nas circunstâncias ou condições em que se apresenta.
A pena prevista para o crime de falsificação de documento é agravada em função do documento falsificado. A moldura penal aumenta, tendo em conta a especial perigosidade que a falsificação de certo tipo de documentos comporta para o bem jurídico.
Dado tratar-se de documento com especial credibilidade no tráfico jurídico, a pena é agravada quando se trate de documentos autênticos ou com igual força (n.º 3 do artigo 256º do Código Penal).
Constituem documento autêntico para efeitos da lei civil “os documentos exarados, com as formalidades legais, pelas autoridades públicas nos limites da sua competência ou, dentro do círculo de actividades que lhe é atribuído, pelo notário ou outro oficial público provido de fé pública; todos os outros documentos são particulares” (artigo 363, n.º 2 do Código Civil).
No que ao tipo subjectivo de ilícito se refere, o crime de falsificação de documentos é um crime intencional, isto é, o agente necessita de actuar com “intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Estado ou de obter para si ou para outra pessoa um benefício ilegítimo”.
A intenção danosa tanto pode ser de natureza patrimonial como moral ou envolver até redução de direitos ou outras garantias, em resultado da falsificação.
Constitui benefício ilegítimo toda a vantagem, patrimonial ou não patrimonial, que se obtenha através do acto da falsificação ou do acto de utilização do documento falsificado. Deve entender-se que é da essência do crime a obtenção ou possibilidade de obtenção de uma vantagem ilícita ou injusta, isto é, não protegida pelas leis em vigor. (cfr. Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal de 1982, vol. III, págs. 141 a 154).
Aquando da prática do crime de falsificação, o agente deverá ter conhecimento que está a falsificar o documento e, apesar disto, quer falsificá-lo. Ou seja, trata-se de um crime doloso, a exigir o conhecimento dos elementos objectivos típicos e a vontade de agir de forma a preenchê-los.
Neste caso, o arguido fez a assinatura de duas pessoas, acabando por elaborar documentos, (requerimento - declaração para registo de propriedade, que se encontram a fls. 103 e 45 dos autos) com os quais conseguiu vantagens patrimoniais, que sabia não serem legítimas,
Ficam preenchidos os crimes, integrando-o os tipos os factos provados.
Não se verifica, consequentemente o vício de insuficiência de factos tal como vem alegado.
Pese embora a afirmação da conclusão 3, nenhuma prova, designadamente documental, se fez de que o arguido tenha sido julgado pelos mesmos factos deste processo.
Nestes termos, acorda-se em negar provimento ao recurso.
Custas pelo requerente com 10 Ucs.