Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
94/14.1T8LRA.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MARIA TERESA ALBUQUERQUE
Descritores: INCAPACIDADE ACIDENTAL
ÓNUS DA PROVA
ANULAÇÃO DO ACTO
VÍCIO DE FORMA DA DECLARAÇÃO
NULIDADE
ROGADO
Data do Acordão: 10/22/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LEIRIA – J.C. CÍVEL DE LEIRIA – JUIZ 3
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 257º E 947º DO C. CIVIL; 41º, Nº 2, 70º, Nº 1, ALS. C) E E), E Nº 2, E 154º DO CÓD. NOTARIADO
Sumário: I - Não incumbe ao A. fazer prova inequívoca de que a doadora no momento da celebração da doação não se encontrava na plenitude das suas faculdades intelectuais, mentais e cognitivas que lhe permitissem entender o sentido da sua declaração negocial, mas apenas demonstrar ser altamente provável que assim tivesse sido, visto que a prova stricto sensu se basta com essa alta probabilidade.

II - Na incapacidade acidental há declaração e há vontade, mas esta apresenta-se, no momento da prática do acto, viciada por insuficiente esclarecimento e liberdade.

III - Tendo-se provado que a doadora, no dia e hora da doação, não tinha o discernimento e a vontade suficientes para proceder à doação em causa, e tendo-se provado, igualmente, que essa falta de discernimento e vontade eram notórias, impunha-se, à luz do art 257º C. Civil, a anulação de tal doação.

IV - Mas a doação em causa, alem de anulável, mostra-se também nula por sofrer de vício de forma, na medida em que tendo sido realizada por documento particular, este carecia, por razões de forma (cfr. art 947º CC, na redacção do DL 116/2008, de 4/7, e arts 22º e 24º desse DL), e de conteúdo (arts 373º/1, 3 e 4 CC, visto que a doadora não podia assinar e não sabia ler), de ser autenticado e se verifica que o termo de autenticação se mostra ele próprio nulo.

V - Com efeito, na sua segunda folha, e na 1ª linha desta, está rasurada uma data, não tendo tal rasura obedecido ao disposto no nº 2 do art 41º CN, o que, nos termos da al c) do nº 1 do art 70º e nº 2 desta norma, implica a nulidade do acto notarial em causa.

VI - Por outro lado, não foi ressalvado todo o texto entrelinhado que se encontra entre a expressão «Este termo foi lido e explicado o seu conteúdo aos outorgantes» e as assinaturas, o que implica que todo esse texto se tenha por não escrito, e que, consequentemente, não conste do termo de autenticação o nome completo, a naturalidade, o estado e a residência do rogado, e tão pouco, e mais relevantemente, a menção de que o rogante confirmou o rogo no acto da autenticação, tudo em desarmonia com os arts 152º e 154º do CN.

VII - A não confirmação, perante o notário, da assinatura a rogo, acarreta a sua invalidade e, por acréscimo - já que ela é elemento integrante essencial e formalidade ad substantiam do documento particular onde consta - a nulidade da declaração negocial neste ínsita — art°s 373º, n°s 1 e 4, 220º e 286º do C. Civil e 154° do C. Notariado, outra não podendo ser a conclusão perante a importância que no acto em causa o rogante desempenha.

VIII - Ao rogado deve atribuir-se uma posição idêntica à do rogante/outorgante, na medida em que, por definição, a assinatura daquele é destinada a suprir a falta da assinatura deste, pelo que é natural que a falta de assinatura do primeiro tenha o mesmo efeito do da segunda, devendo assim entender-se, nos termos da alínea e) do nº 1 do artigo 70º do CN, que a falta de assinatura do rogado no termo de autenticação é causa de nulidade do mesmo.

IX - É causa de nulidade do acto notarial a circunstância da rogada ser funcionária do solicitador autenticador do acto, pois se, nos termos do nº 2 do art 71º do CN, a incapacidade ou a inabilidade dos intervenientes acidentais determina a nulidade do acto notarial - sendo que é causa de incapacidade ou inabilidade relativamente a «abonadores, intérpretes, peritos, tradutores, leitores ou testemunhas» a circunstância de, nos termos da al d) do art 68º do CN, corresponder nessas pessoas a qualidade de funcionários em exercício no cartório notarial - ter-se-á de concluir, por maioria de razão, que será causa de nulidade do acto notarial a circunstância da rogada ser funcionária do solicitador autenticador do acto.

X - Esta nulidade não pode ser sanada ao abrigo do art 71º/3 al c) do CN, visto que a rogada tem uma função única, que se move num plano superior ao daqueles intervenientes acidentais, pelo que a idoneidade destes não pode suprir a falta de idoneidade desta.

Decisão Texto Integral:








I – M..., interpôs ação declarativa de processo comum contra G... e I..., pedindo que a condenação das mesmas a:
a) reconhecerem que o documento particular de doação outorgado a seu favor padece de vício de forma, por falta de cumprimento dos requisitos legais do termo de autenticação que o compõe e, em consequência, ser aquele declarado nulo;
b) para o caso de assim não se entender, sejam as mesmas condenadas a reconhecerem que o contrato de doação outorgado a favor delas foi efectuado sem que a A... tivesse consciência do seu conteúdo ou pretendesse a ela vincular-se e, em consequência, ser o mesmo declarado nulo;
c) ou ainda serem as RR. condenadas a reconhecerem que, na data e no momento em que foi outorgada a doação por A... a favor delas, esta se encontrava incapacitada de entender e querer, designadamente quanto ao sentido das declarações que prestou e à vontade de a elas se vincular e, por consequência, seja declarada a anulação da doação outorgada a favor delas, RR., condenando-se as mesmas a restituírem à herança da doadora todos os direitos/bens doados de que beneficiaram;
e) e que, em qualquer caso, seja ordenado o cancelamento de todos os registos a favor das RR. constantes dos prédios registados a favor da doadora ou da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito do seu falecido marido, inscritos nas competentes Conservatórias de Registo Predial.
Alegou, em síntese, que ela e as RR. são irmãs e filhas de A..., que veio a falecer em 23/11/2013, viúva, intestada, e deixando-as como únicas herdeiras, e que a mesma, em 23/10/2013, celebrou no Hospital de Leiria, no respectivo serviço de urgências, onde dera entrada na véspera, um contrato de doação às RR. do quinhão hereditário e da meação que lhe pertencia na herança aberta por óbito de seu marido, e pai daquelas, tendo tal documento sido assinado a rogo, constando dele a impressão digital da donatária e a assinatura, como rogada, de P..., bem como a das duas RR., como beneficiárias e segundo outorgantes, contrato este que foi acompanhado de termo de autenticação realizado por solicitador presente. Sucede que este termo não contém todas as menções necessárias para que seja considerado válido, nomeadamente no que respeita à identificação do rogado, nos termos previstos na lei, pois constata-se que no mesmo foi aposto, por punho do Sr. Solicitador, a menção do nome, local de residência e estado civil da rogada (P...), que aquele refere como sendo sua conhecida, mas não consta a naturalidade da mesma, a morada completa e ainda a forma como efectivamente foi verificada a sua identidade (art 46º/1 al. d), do Código do Notariado), sendo manifestamente insuficiente a menção de “minha conhecida”, bem como, a rogada não assinou o mesmo, como se impunha, concluindo, por isso, ser o termo de autenticação em causa nulo por vício de forma, mais referindo que a mencionada nulidade retira ao documento particular (deficientemente autenticado) a aptidão para se considerar o contrato de doação validamente efectuado, atendendo ao disposto no art 22º do Decreto-Lei 116/2008, de 04 de Julho, sendo a mesma nula por falta de cumprimento dos requisitos legais, devendo a nulidade em causa ser declarada e em consequência, a doação efectuada ser considerada inválida e sem qualquer efeito.
Mais alegou que o contrato de doação é igualmente nulo, na medida em que, à data de 23/10/2013, a doadora não se encontrava capaz de entender e querer, pois que entrara no serviço de urgências do Hospital de Leiria na véspera, e pelas 9h 10 m do dia 23 o médico que a observou classificou o estado da doente como de “prognóstico muito reservado”, tendo referido à aqui A. e à 1ª R. que a situação clinica da doente era muito grave e que esta poderia vir a falecer a qualquer momento, tudo indicando – desde logo o facto do termo de autenticação se encontrar aposto em inscrição caligráfica manuscrita e de não se mostrar possível ou razoável a presença de oito pessoas num espaço físico como o das urgências – que o contrato em causa foi “pré-fabricado”, não tendo a doadora intervindo na elaboração do respectivo texto que, aliás, não entenderia, muito menos no estado em que se encontrava, tendo-lhe apenas sido colhida a sua impressão digital.
Ainda que assim não se entenda, deverá concluir-se pela anulabilidade do dito contrato, em função da notória incapacidade da doadora, referindo, para o efeito, a A., que ela e a sua irmã no dia da realização do mesmo tinham verificado o estado de confusão e desorientação em que a mãe se encontrava, sendo notório que esta não se encontrava capaz de prestar quaisquer declarações. Mais refere que o médico que a examinou nesse dia, Dr. ..., confirmou o estado confusional da paciente, avançando que a situação de saúde desta era muito grave. Entende, por isso, a A. que a incapacidade estava medicamente identificada e era notória, pelo que no momento da celebração da doação existia uma manifesta incapacidade por parte de A... para entender e querer o sentido da declaração negocial que formalmente prestou com a aposição de impressão digital e assinatura a rogo.
Contestaram ambas as RR, em separado, alegando, em suma, que a doadora, de acordo com o registo clínico, estava “consciente e colaborante”, e que, apesar do seu estado grave de saúde, a mesma sempre esteve consciente nos dias 22 e 23 de Setembro, com reacção à estimulação e tentando colaborar com a equipa médica, tendo a necessária capacidade para entender e querer a declaração negocial que prestou, sendo, por isso, que, no momento em que fez a doação estava consciente e lúcida para entender o conteúdo do acto em causa, o qual, para além de ter lido, o solicitador também explicou, sendo que a mesma referiu a terceiros e ao solicitador que queria fazer aquela doação e que há muito a queria fazer, tendo insistido com as RR. para que a mesma fosse concretizada. Referem ainda que os médicos, ..., fizeram os necessários exames para averiguar o estado mental da doadora - a sua capacidade de entender e o domínio da sua vontade.
Relativamente aos vícios do termo de autenticação as RR. alegaram que não se encontra verificada qualquer nulidade, porque apenas podem ocorrer as nulidades taxativamente previstas no artigo 70.º do CN, vigorando o princípio da tipicidade, sendo que, nos termos do art 152º CN, não tem sequer que constar do termo de autenticação a assinatura da rogada.

Foi realizada audiência prévia, na qual, gorada a conciliação das partes, foi proferido despacho saneador e seleccionada a matéria de facto.
Realizada a audiência final, foi, na sua pendência, ordenado pelo Exmo Juiz a realização de uma perícia singular.
A fls 659 encontram-se as conclusões dessa perícia, relativamente às quais veio a incidir subsequente esclarecimento por parte do perito.

Após foi proferida sentença que julgou a ação parcialmente procedente, condenando as RR. a reconhecerem que no momento da realização da doação a favor delas, por A..., esta se encontrava incapacitada de entender e querer o sentido das declarações que prestou e à vontade de a elas se vincular, e por assim ser, declarou anulada a doação outorgada em 23 de Outubro de 2013 a favor das RR., e, em consequência, condenou-as a restituírem à Herança da doadora A... todos os direitos/bens doados de que aquelas beneficiaram, ordenado ainda, em consequência, o cancelamento de todos os registos a favor das RR. constantes dos prédios registados a favor da doadora ou da herança ilíquida e indivisa aberta por óbito de seu falecido marido, inscritos nas competentes Conservatórias de Registo Predial, absolvendo as RR. dos demais pedidos formulados, condenando em custas ambas as RR. (cfr. art. 527º/1 do CPC).
II – Do assim decidido, apelou a R. G..., que concluiu as respectivas alegações nos seguintes termos:
...
xlvi. Termos em que deverá a sentença proferida ser revogada e substituída por outra que, dando como provados os factos constantes de I a VI retro referidos e como não provados os factos A) a E) [igualmente retro-referidos], absolva as Rés do peticionado, com as legais consequências.

Apresentou a A. contra alegações à apelação das RR., em que conclui, em síntese, no sentido de que se deve manter inalterada a matéria de facto, improcedendo o recurso apresentado.
IV - E, por sua vez, recorreu subordinadamente, concluindo as respectivas alegações do seguinte modo:
....
20- Deve, por todo o exposto, ser julgado procedente o presente Recurso, condenando-se as Recorridas, e caso mereça provimento o recurso já apresentado pela Recorrida G..., a reconhecer que o documento particular de doação outorgado a favor daquelas padece de vício de forma, por falta de cumprimento dos requisitos legais do termo de autenticação que o compõe, atendendo ao vício de nulidade de que padece;
21 -Nestes termos, deve ser dado provimento ao presente recurso, por provado, e em consequência, condenar-se as Recorridas, a reconhecer que o documento particular de doação outorgado a favor daquelas, padece de vício de forma, por falta de cumprimento dos requisitos legais do termo de autenticação que o compõe, atendendo ao vício de nulidade de que padece, tudo com as legais consequências.

A R. produziu contra-alegações à apelação subordinada da A., que concluiu nos seguintes termos:
...
XVI – Termos em deve o presente recurso subordinado ser julgado improcedente, com as legais consequências.

V – O tribunal da 1ª instância julgou provados os seguintes factos:
...
IV – Do confronto da decisão recorrida, com as conclusões de uma e outra das apelações, advêm para apreciação, correspondendo ao objecto desses recursos, as seguintes questões:
- Na apelação da R. G..., a alteração da matéria de facto no sentido por ela pretendido, e saber se em função dessa alteração se impõe a improcedência do pedido no referente à anulação do contrato de doação; e se, de todo o modo, a decisão de custas deve ser alterada.
-na apelação da A., se o termo de autenticação se deve ter como nulo e em consequência dessa nulidade, se deve ter nulo o contrato de doação.

Pretende a R/apelante que este Tribunal, essencialmente em função da consideração das conclusões da perícia que entende que o tribunal a quo desconsiderou, altere a matéria de facto, de tal modo que julgue como não provados os factos 41 a 45 da mesma, e, em contrapartida, provados os respectivos factos constantes das als a) a e) e g).
Concreta e respectivamente:
...
Para a reavaliação da prova no referente aos pontos de facto impugnados importa ter presente o conteúdo do relatório da perícia realizada nos autos e, naturalmente, o depoimento das testemunhas, mas não apenas do convocado pela apelante – o de ... – mas também os das testemunhas ...
Importando, antes de mais, e para o efeito, fazer acrescer à matéria de facto provada as seguintes circunstâncias factuais extraíveis do processado e do conteúdo do relatório pericial:
- O Exmo Juiz a quo, que determinou oficiosamente a realização da perícia, fez-lhe corresponder o seguinte objecto: saber se no momento da celebração da escritura de doação realizada no dia 23/10/2013, considerando o quadro clinico objectivo resultante da documentação clinica, A... estava com a necessária capacidade e consciência de entender e querer o sentido da declaração negocial que formalmente prestou com a aposição de impressão digital – assinatura a rogo?
-Determinou que se solicitasse à Ordem dos Médicos em Lisboa a indicação de um médico da especialidade que a mesma entendesse ser o mais adequado para a realização da perícia em causa, considerando o seu objecto – acta da sessão de julgamento de 23/6/2016, cfr fls 609 – determinando ainda que lhe fossem remetidos os documentos de fls 55 a 68, fls 551 e 552, fls 383 a 386 e da escritura constante de fls 50 a 52 (que se referem, respectivamente, às observações registadas no serviço de urgência geral referentes à falecida A..., desde a sua entrada no hospital até 24/10/2013, bem como dos fármacos ministrados, o resultado de análises feitas à mesma pedidas no dia 23, a nota de alta, o contrato de doação e o respectivo termo de autenticação).
- A fls 634 mostra-se junta a resposta da Ordem dos Médicos, na qual se refere; «…encarrega-me o Senhor Bastonário de informar que com os dados fornecidos não é possível à Ordem dos Médicos indicar qualquer especialista como perito para o processo».
-Tendo sido solicitada à referida Ordem informação a respeito «dos ou dos elementos necessários para poder ser indicado medico idóneo para a concretização da perícia /parecer pretendido (para avaliação da capacidade) fazendo-se destacar que a visada faleceu, e que, por isso, resta apenas a análise dos registos clínicos da mesma à data dos factos», veio a mesma informar, a fls 648, que «(…) consultado o Colégio de Medicina Interna este nos informou que “o Conselho Directivo do Colégio de Medicina Interna, na sua última reunião, analisou o pedido de parecer acerca da capacidade de A... para assinar documentos, entendendo que um parecer dessa natureza exige um cuidadoso exame psiquiátrico, o que não se enquadra no âmbito do nosso Colégio. Além disso, pela consulta dos dados do processo clinico que nos foram fornecidos, em que não consta parecer pericial do foro da psiquiatria, não nos é possível emitir opinião fundamentada como especialistas de Medicina Interna».
- Em função da demora da Ordem dos Médicos a responder, o Exmo Juiz a quo tinha já, entretanto, determinado, que se averiguasse junto do Centro Médico-Legal Prof. Dr. ... se era possível realizar a perícia solicitada, e tendo este respondido positivamente – fls 645 –, perante a indisponibilidade manifestada pela Ordem dos Médicos, o Exmo Juiz atribuiu a tal Centro a realização da referida perícia – fls 649.
- Em 3/11/2017 foi junto aos autos o relatório da perícia efectuada.
- Do item “DISCUSSÃO”, constante da avaliação efectuada, consta o seguinte: “O compromisso cognitivo é condicionado pela alteração hemodinâmica, e é perfeitamente possível dada a flutuação do estado de consciência e a melhoria progressiva ao longo de 48 horas e atendendo à natureza tratável do choque séptico e forma reversível como compromete as capacidades cognitivas do individuo, concluir-se que é possível que a doente estivesse capaz de compreender o ato em que participou; no entanto, acrescento que não consta da documentação nenhuma observação do estado mental da paciente , nem está expressa a hora da assinatura, o que é relevante neste caso , esclarecimentos que poderão ser solicitados aos dois peritos médicos que foram intervenientes .
Relativamente às análises é natural que a melhoria clínica possa anteceder a melhoria laboratorial, pelo que a observação clinica é de primazia.
Na altura do internamento no SU, a intervenção fulcral seria reverter a situação clinica, pelo que os dados fornecidos não se focalizaram na observação da capacidade cognitiva, nem na capacidade em termos de pensamento, sendo por isso muito difícil um parecer á posteriori».
Do item “CONCLUSÕES” constante da avaliação efectuada, consta o seguinte: “1. Diagnóstico compatível com quadro de choque séptico/urossépsis e pneumonia esquerda. 2. Existe nexo de causalidade entre o ocorrido e o compromisso cognitivo. 3. Ao longo das 48 horas (dia 22 a 23/10/2013) houve flutuação do estado de consciência e melhoria progressiva ao longo deste período. 4.Atendendo à natureza tratável do choque séptico e forma reversível como compromete as capacidades cognitivas do individuo, pode concluir-se que é possível que a doente estivesse capaz de compreender o ato em que participou. 5. Pelo que a resposta ao quesito de saber se “no momento da celebração da escritura de doação realizada no dia 23/10/2013, considerando o quadro clinico objectivo, resultante da documentação clinica fornecida, relativa a A..., e se esta estava com a necessária capacidade e consciência de entender e querer o sentido da declaração negocial que formalmente prestou com a aposição de impressão digital-assinatura a rogo?” A resposta é sim, é possível que estivesse, embora tal não possa ser inequivocamente afirmado com base na documentação fornecida”.
- Foi solicitado ao Exmo Solicitador a indicação da hora da realização da escritura e, tendo este respondido que «terá sido entre as 16 h e 30 e as 17 h e 30, uma vez que a minha funcionária,..., me acompanhou e assinou a rogo da doadora no contrato em apreço, e o seu horário de expediente é até às 18 h», pediu-se ao Sr Perito que esclarecesse «se, considerando que a doação em causa foi realizada entre as 16h30m e as 17h30m, bem como que, como consta do acto de doação, a visada não podia assinar, se tais factos alteram as conclusões do relatório apresentado».
- O esclarecimento solicitado foi prestado pelo Sr. Perito, por comunicação de 18/04/2018, referindo o mesmo: «Em resposta à vossa referência ..., relativa a processo comum 94/14.1TLRA, em que foi solicitado pedido de esclarecimento, relativo a informação dada a posteriori de que a doação foi realizada entre as 16.30 e as 17.30 do dia 23.10.2013, tendo sido feita assinatura a rogo com aposição de impressão digital da visada. Questiona-se se tais factos alteram a conclusão do relatório. A resposta é não. Mantenho as conclusões elaboradas no parecer de 15/10/2017. Conforme descrito no relatório (página 4), no decurso do dia 23 o descrito no diário clinico é de que a paciente estaria consciente, ao contrário do escrito no dia anterior. Esta constatação relatada no diário clinico foi feita por mais de uma técnico de saúde. Para além deste aspecto, quando da realização da doação estariam presentes dois médicos que terão constatado a capacidade da paciente em questão (A...)».
Entende a R/apelante ter sido «inexplicavelmente» desconsiderado o valor probatório do resultado desta perícia - conclusão 6ª - insistindo nessa «inexplicável desconsideração» na conclusão 27, onde sugere que o Exmo juiz a quo não teria justificado o seu afastamento relativamente às conclusões da perícia.
Ora, não é exactamente isso que resulta da fundamentação da decisão da matéria de facto, onde o Exmo Juiz a quo, reportando-se às conclusões da perícia, pôs o acento tónico na circunstância de, do esclarecimento fornecido pelo perito, resultar que o mesmo, afinal, terá concluído, como concluiu, muito em função da presença no acto notarial de dois médicos que «terão constatado a capacidade da paciente em questão», referindo concretamente aquele Julgador: «Ou seja, esta última afirmação do perito significa que na sua perspectiva já estavam presentes dois médicos que constataram a capacidade da visada; o problema é que o perito nessa altura não estava na posse do conhecimento da circunstância de que os dois médicos (Dr....) que atestaram a sua capacidade não possuíam a necessária credibilidade, pelas razões já acima expostas».
Como é sabido – e a apelante, apesar de tudo, não o oblitera - a prova adveniente da perícia é livremente apreciada pelo tribunal - cfr art 489º CPC - livre apreciação esta que significa que o juiz não está obrigado a decidir em função do resultado da perícia, antes o deve conjugar com a demais prova produzida sobre os factos que dela foram objecto, podendo o seu juízo final a respeito desses factos vir a ser em absoluto contrário ao advindo da perícia. O resultado de uma perícia não é nunca vinculativo estando sempre sujeito à livre apreciação do julgador feita perante o confronto de todas as provas produzidas. E se, de facto, deve o julgador justificar o afastamento daquele resultado, não pode dizer-se que o Exmo Juiz a quo não tenha sido claro relativamente às razões, em função das quais, e no seu essencial, postergou o resultado pericial: as testemunhas ... não mereceram do tribunal a necessária credibilidade.
No que respeita à testemunha ... é muito fácil compreender porquê, visto que a mesma assumiu claramente no seu depoimento que não verificou os registos clínicos referentes à paciente e que não procedeu a uma mínima observação da mesma.
Com efeito, perguntada se tinha chegado ver a ficha clínica da paciente, respondeu, «não, não cheguei a ver», e perguntado se analisou em que estado estava a mesma, referiu, «Não, não analisei, não.» (…) Repetindo essas considerações mais adiante -«Não, não, não, não. Parte clínica não. (…) Não, não analisei a ficha clínica, não. Não analisei ficha clínica nenhuma, não», referindo ainda que não perguntou nada relativamente ao estado da mesma ao médico assistente - apenas «falei com a doente». Toda a sua intervenção no acto em causa resulta resumida nestas suas palavras: «Eu fui ao hospital, no final da tarde, entrei e aproximei-me da cama da senhora, cumprimentei-a e perguntei…, ela olhou para mim e eu disse, sabe quem eu sou, sei, e eu disse, sabe o que é que eu venho fazer, sei, sei, vem ajudar-me a fazer aquilo que prometeu, pronto». Tendo afirmado que, várias vezes, em consultas domiciliárias, a A... lhe tinha pedido a sua colaboração para atestar a sua lucidez em acto que era da sua vontade vir a fazer para «corrigir uma injustiça» - afirmação esta que não se afigura, desde logo, crível, na medida em que a própria médica em questão afirmou que a doente sempre tinha estado lúcida e nenhum motivo tinha para duvidar da sua lucidez… - a testemunha em causa justificou a sua presença no acto em referência enquanto mero cumprimento de um compromisso anteriormente assumido nessas visitas domiciliárias. Para o efeito, entendeu bastar que a doente estivesse «lúcida», como entendeu que o estava em função da pequena troca de palavras que se referirá, tendo-lhe sido indiferente o conteúdo concreto do acto a realizar, e de cuja aptidão para corrigir a injustiça que referira de que aquela se queixara, também não cuidou minimamente, como resulta destas suas afirmações: «A senhora está lúcida, a senhora falou comigo, a senhora conheceu-me, portanto. A senhora soube o motivo, portanto, de porque é que eu estava ali», referindo mais adiante: «(…) depois houve uns senhores que fizeram lá uns papéis, não sei, pronto, e eu assinei, em como a senhora estava… » Não escondeu a testemunha em causa que era amiga da família há muito tempo (foi “médica de família” da mesma) e que se prontificou a intervir no acto a pedido da R. G..., que a contactou para esse efeito, de manhã, «para ir atestar a sanidade da A...».
Justifica-se, pois, a observação do Exmo Juiz a quo a respeito da atitude «algo displicente» desta testemunha, dando «de barato» que A... estaria «perfeitamente lúcida, até porque já a conhecia».
Resulta assim esvaziada de conteúdo a abonação desta testemunha a respeito da sanidade mental da «primeira outorgante» constante do termo de autenticação, já que, como é por demais evidente, o que dela se pretendia – que assegurasse a capacidade da paciente, naquele dia e hora para proceder a uma doação – não foi cabalmente feito.
No que se reporta à testemunha ..., a sua não credibilidade não advém de imediato do conteúdo do seu depoimento, mas da circunstância, primeira, de ser, então, namorado da filha do solicitador (sendo à data do depoimento já marido da mesma), e da sua presença no acto se dever precisamente à solicitação deste (ainda que se desse o caso - que não foi comprovado - desse médico estar efectivamente de serviço nesse dia e hora, como referiu). A verdade é que, pese embora a muita circunspecção com que depôs, aspectos houve no seu depoimento que não conseguiu justificar: não sendo naturalmente simples o parecer que lhe estava a ser confiado, e não podendo desconhecer a importância do mesmo sobretudo perante a atitude displicente da outra médica convocada para igual função à dele, a prudência e ponderação que fez questão de mostrar ao longo do seu depoimento, justificariam que o não tivesse fornecido sem se fazer valer de outra opinião médica, mais ainda porque não podia desconhecer que sobre ele pudesse vir a recair futura suspeição visto o seu laço com a filha do solicitador, autenticador do acto. Não obstante, assumiu que não falou com qualquer médico do hospital, apesar de, trabalhando nele, lhe ser certamente fácil aceder a uma outra opinião, porventura mesmo dos médicos que tinham acompanhado até aí o episódio de urgência em causa.
Por outro lado, veja-se que o resultado da perícia – para lá de, em última análise, implicar o endossamento da responsabilidade para os dois já referidos médicos – não implica, de todo, uma resposta positiva à questão colocada. Afinal o que responde à questão de saber se, “no momento da celebração da escritura de doação realizada no dia 23/10/2013, considerando o quadro clinico objectivo, resultante da documentação clinica fornecida, relativa a A..., e se esta estava com a necessária capacidade e consciência de entender e querer o sentido da declaração negocial que formalmente prestou com a aposição de impressão digital-assinatura a rogo?”, é que, «é possível que estivesse, embora tal não possa ser inequivocamente afirmado com base na documentação fornecida». Resposta esta que não correspondendo a um «sim», acaba por nada ser, na medida em que sendo possível que estivesse com a necessária capacidade e consciência de entender e querer o sentido da declaração negocial, é igualmente possível que não estivesse … o que nos remete para a mesma dúvida de que se partiu.
Há ainda outra circunstância que, a nosso ver, não pode deixar de desvalorizar o resultado da perícia, e que advém do facto da Ordem dos Médicos ter entendido «pela consulta dos dados do processo clinico que nos foram fornecidos, em que não consta parecer pericial do foro da psiquiatria não lhe ser possível emitir opinião fundamentada como especialistas de Medicina Interna». Se não foi possível para um Colégio de Medicina Interna aceitar dar um parecer da natureza do pretendido perante a ausência indiscutível de um («cuidadoso») exame psiquiátrico, haver-se-á de concluir que o parecer em causa – de modo a ser conclusivo - não seria possível.
Ora, em face das dúvidas que o relatório pericial necessariamente propicia e em face da falta de credibilidade, já analisada, dos dois médicos que «abonaram, sob compromisso de honra, a sanidade mental da primeira outorgante», como consta do termo de autenticação, emerge necessariamente a circunstância de os médicos que observaram A... - certo que, me momentos temporais algo antecedentes ao acto em causa – ..., terem entendido ser altamente improvável que a mesma tivesse a necessária consciência para realizar negócios jurídicos como a doação em causa.
Veja-se com brevidade.
... – médico internista, autor da referência na ficha clinica da A..., pelas 9,46, da expressão «prognóstico muito reservado», cfr fls 61 dos autos - referiu, logo no início do seu depoimento: «Esta senhora foi uma senhora que de facto nos foi transmitido de manhã que tinha uma situação clínica muito preocupante, talvez fosse a situação mais preocupante, pelo menos na área amarela onde esta senhora se encontrava (…) Estaria numa situação algo critica, atendendo a que o diagnóstico mais provável na altura, que nos foi transmitido, seria um choque séptico, um choque séptico é uma situação grave, uma situação de hipotensão severa em que há compromisso de diversos órgãos e esta senhora tinha particularmente compromisso na função renal, portanto era uma senhora que estava no limite da falência renal total e portanto de eventual morte, em falência renal». Confirmou o médico em causa que pela hora do almoço falou com a família – como resulta da ficha clinica da doente, onde se refere, p 66 dos autos, pelas 12,55: «Mantém vigilância. Prognóstico explicado às filhas» -referindo ter a vaga ideia que se dirigiu para esse efeito a duas pessoas. Explicou essa sua atitude referindo que «devemos informar a família que o fim de vida está próximo, não sabemos dizer a que horas». Foi esta testemunha do entendimento – pese embora não tenha feito uma avaliação à paciente em ordem a avaliar o seu raciocínio (« a minha avaliação foi directamente ao órgão, ao dano de órgão, particularmente à dinâmica renal e à parte respiratória, essas são as funções vitais que me importa a mim manter») – que, com um valor de 7.4 de creatinina e com um de ureia de 44.9, «a capacidade decisória poderia estar alterada, poderia não estar alterada», opinando no sentido de 60%, 40% , num sentido ou no outro. Sublinhando que «uma pessoa no estado da A... tem flutuações, pode, nesta circunstância, neste quadro clínico, pode ter alterações do estado de consciência», concluindo que uma doação feita por pessoa no estado daquela paciente implicava que tivesse de ser «muito bem circunstanciado e muito bem documentado por quem teve essa atitude (…) Eu diria, se eu tivesse de quantificar, eu diria e devo sublinhar isso, quantificar uma coisa desta natureza é uma coisa muito subjectiva, não é? mas transmitir aquilo que me parece ser o quadro clinico da utente para este valor, admitiria um 60, 40 no sentido da dificuldade em que a senhora tivesse de fazer esse raciocínio».
Perante a objecção das RR. de que o registo na ficha clinica da paciente que se mostra mais próximo da hora em que teria sido realizada a escritura – 16,36, fls 66 dos autos – referia «doente consciente, calma, pouco comunicativa» e o anterior constante das 12,28 – fls 65 dos autos - «doente consciente e colaborante, refere não ter dores abdominais», explicou a testemunha em referência que, «consciente não significa lúcido (…): é capaz de localizar a dor, é capaz de se queixar da dor, é capaz de dizer que a tem e eventualmente ser capaz de a classificar. Se perguntarmos dói muito ou dói pouco, a pessoa pode eventualmente ser capaz de o dizer».
... que observou A... no dia 23 pelas 16,42 e que fez constar da respectiva ficha clinica, «Doente incapaz de fornecer história», «Prostrada, não reactiva a estímulos verbais, reage à dor», a respeito da “consciência” mencionou, entre o mais: «Consciente…ora bem, eu da minha interpretação, não sei o que é que eu escrevi, mas da minha interpretação, o estado de consciência define a capacidade de um doente estar ciente do meio que o rodeia e de si próprio (…)». Precisando mais adiante: «Do ponto de vista neurológico, um doente para estar consciente deverá ter noção de si e do meio e portanto não basta estar vígil e alerta. Portanto eu distingo as duas situações (… ) Na minha interpretação o doente pode estar vígil, reactivo e comunicar, mas se aquilo que diz for totalmente absurdo, desconexo e não fizer sentido… o doente não está consciente». Concluindo que «o doente está vígil, se está acordado, se está reactivo, se está de olhos abertos, de uma forma muito grosseira (…). Outra coisa é eu comunicar com o doente e ele dizer-me o seu nome, dizer-me o estado, que está no hospital e saber o dia, isso é um doente que está consciente, orientado no tempo e no espaço», explicando ainda, que, «quando digo que o doente está consciente» (…) essa informação só se dirige à capacidade cognitiva do doente saber que está ali e que está orientado do ponto de vista de si próprio e do ambiente. Exclui se o doente tem capacidade de fazer compras por exemplo, se tem capacidade de avaliar o seu dinheiro se tem capacidade de nomeadamente assinar» (…) «Uma coisa é uma doente estar consciente, sabe quem é, que idade tem, que está ali, outra coisa é ter capacidade para ter autonomia nas decisões do dia a dia, tomar conta do seu dinheiro, fazer as compras ou ter noção do que é que é necessário para o fazer ou fazer», concluindo que «uma doente consciente e colaborante é uma doente, analisando a expressão é uma doente que está consciente de si e do ambiente, que colabora naquilo que nós lhe pedimos, nomeadamente naqueles testes que nós fazemos, levante os braços, aperte-nos os dedos, o doente colabora nesse tipo de acções simples». Conclui, por isso: «Pode estar consciente, mas para executar tarefas complexas num momento desses acho difícil».
A respeito da conteúdo a dar a “consciente”, a opinião desta testemunha coincide com a de ..., que foi a autora da acima mencionada referência na ficha clínica de, «Doente, consciente e colaborante refere não ter dores abdominais». Também para esta testemunha uma doente “consciente” apenas significa que sabe responder com acerto a perguntas muito simples, «sabe onde é que está? , como se chama, onde mora, com quem mora, que dia é hoje?»
Com o que excluiu que a circunstância da ficha clinica referir a A... como consciente implicasse que a mesma estivesse capaz de outorgar um contrato.
..., médico, especialista em saúde pública, como é assinalado na fundamentação da decisão da matéria de facto, «explicou no essencial que 24 horas não é tempo suficiente para recuperação do estado de consciência de A... considerando o seu quadro clínico». Com efeito, explicou as consequências de um choque séptico, referindo entre o mais: «Na minha opinião é que esta senhora desenvolveu um quadro de uma sepsis, de uma septicémia, portanto uma infecção generalizada com choque, portanto um choque séptico, que o choque independentemente da causa, são cinco as causas que nós temos de choque, todas têm uma coisa em comum, que é a alteração do estado de consciência, que pode ser maior ou menor consoante a patologia e é revertida ou reversível também, independentemente da susceptibilidade individual de cada pessoa, da idade, das outras patologias que possam estar associadas, mas em que os diferentes estados de choque são reversíveis, uns, podemos dizer quase instantaneamente, mas há um que nunca é instantaneamente, nem é em meia dúzia de horas, que é caso do choque séptico. Porquê? Porque o choque séptico resulta de atingimento por toxinas ou bactérias de, de um modo geral, de diversos órgãos, nomeadamente o cérebro, pulmão, rim, fígado, e quando nós temos choques conseguimos revertê-los, ou seja a pessoa está em choque e num minuto conseguimos pôr a pessoa a falar, no choque séptico isso nunca é possível (…) se a pessoa tem uma quantidade de oxigénio muito baixa no sangue se está no sangue também não chega ao cérebro e o principal alimento do cérebro é o oxigénio, cerca de 24 horas depois (…) a pessoa não pode estar lúcida».
Do que se veio de referir, dever-se-á concluir que a A. logrou provar ser muito provável que no momento da realização do aludido contrato de doação A... estivesse incapaz de prestar as declarações que constam do respectivo documento, como se refere no facto 45.
Vê-se conveniência em intercalar aqui, a propósito do que se acabou de referir, uma consideração de carácter jurídico para melhor se compreender a prova em causa..
È sabido que no que respeita às relações entre a vontade exteriorizada na declaração negocial e os efeitos jurídicos do negócio, ultrapassadas que foram a teoria dos efeitos jurídicos e a dos efeitos práticos a esse respeito, aceitando a doutrina como mais correcta a teoria dos efeitos prático jurídicos, em função desta teoria assume-se que os autores dos negócios jurídicos «têm uma vontade de efeitos jurídicos», isto é, têm vontade de atingir certos resultados práticos, materiais, e têm vontade que esses efeitos práticos sejam juridicamente vinculativos, «bastando no entanto, uma representação global prática – de profanos – dos efeitos jurídicos e fundamentais do negócio» - «Teoria Geral do Direito Civil», Mota Pinto, 4ª ed, p 463.
Cita Mota Pinto, em nota, Manuel de Andrade - que foi quem propôs a síntese daquelas duas teorias opostas-quando refere que «a teoria dos efeitos prático jurídicos basta-se com a volição dos efeitos jurídicos na sua consideração prática, como um mera representação “de profanos”.
O que significa, nas palavras de Pais de Vasconcelos, «que não é exigível que tenham uma percepção dos efeitos jurídicos do negócio próprio de especialistas; basta que dela tenham a consciência comum de leigos» - «Teoria Geral do Direito Civil», 2012, p 357.
Para Castro Mendes, «a teoria dos efeitos prático jurídicos exige na vontade funcional dois elementos - vontade dos efeitos práticos e vontade de os submeter à ordem jurídica». «Teoria Geral do Direito Civil», ed AAFDL,1973, p 114
Do que de vem de referir resulta que seria suposto que, no mínimo, A..., no momento em que proferiu a declaração negocial em apreço, compreendesse basicamente os efeitos práticos inerentes a tal declaração. Repare-se, no entanto, que essa declaração não é a de doar este ou aquele bem a A e a B, mas algo obviamente muito mais complexo do ponto de vista prático e jurídico: tratou-se de doar a (apenas) duas das suas três filhas, «livre de ónus ou encargos, com dispensa de colação, o quinhão hereditário e a meação que lhe pertence aberta por óbito do seu marido».

Continuando a apreciação da prova, há que referir ainda, que as RR. prestaram declarações na audiência e nelas foram propositada e repetidamente muito pouco explicitas relativamente à questão que lhes foi colocada relativa à “logística” que terá permitido que oito pessoas (as RR. donatárias, os dois peritos médicos, duas testemunhas, o solicitador e a sua empregada) se tenham reunido na mesma hora naquele inusitado local para o efeito em causa. Ficou-se a saber pelo depoimento da testemunha ... que a sua presença lhe foi pedida pela R. G... . Já a R. G... excluiu ter feito quaisquer contactos, referindo que quem os fez foi a irmã; esta apenas admitiu ter telefonado ao solicitador, referindo, para justificar esse seu telefonema, que a «doação estava a ser preparada tempos antes». E é verdade, como o aponta a Exma Juiza a quo na fundamentação da decisão da matéria de facto, que a R. G... referiu que a mãe estava sentada na hora da doação e que a R. I... referiu que a mesma estava deitada – contradição que no enquadramento em causa não é despicienda, antes se mostra significativa – acrescentando a R. G... que a mãe só não assinou, «porque tinha fios nas mãos, não tinha óculos e estava muito trémula». Mas o depoimento desta R. torna-se todo ele pouco credível quando refere que «não lhes foi dito nesse dia que a mãe podia morrer», quando, como acima se mencionou, o Dr ... admitiu que o tinha feito, dirigindo-se, segundo tem ideia, a duas pessoas da família, e essa menção acaba por estar contida na ficha da paciente.
Impõe-se lembrar também que a prova “stricto sensu” – que é a que está em causa nos factos em apreço - se basta com a probabilidade.
Referindo Teixeira de Sousa: «A prova stricto sensu não impede que o tribunal forme a sua convicção com base na probabilidade estatística da realidade do facto. O que é relevante é que o grau de convicção permita excluir, segundo o padrão que na vida prática é tomado como certeza, outra configuração da realidade que foi considerada provada». De tal modo que um facto provável com esse grau de convicção tornar-se-á um facto provado. Acrescentando: «Um facto considerado provado com base numa regra de probabilidade é um facto verdadeiro e não um facto provavelmente verdadeiro».
No mesmo sentido se pronuncia Anselmo de Castro, referindo: «Não se trata de certeza absoluta, que elimine a possibilidade do facto não ter ocorrido, nem também de mera probabilidade da sua verificação, mas de algo intermédio – uma probabilidade forte (…) este será o grau de certeza exigido para todos os casos em que a decisão haja de valer com eficácia de caso julgado». - «Direito Processual Civil Declaratório», 1982,Vol III, p 344/345
Não é por isso correcto dizer-se, como o diz a apelante, que incumbia à A. «fazer prova inequívoca de que a doadora A..., no momento da celebração da doação, não se encontrava na plenitude das suas faculdades intelectuais, mentais e cognitivas que lhe permitissem entender o sentido da sua declaração negocial», e que essa prova não foi feita.
È que não lhe incumbia tal prova – em termos, já se viu, de inequivocidade- antes cabia às RR. em função da contraprova, «neutralizarem» (a expressão é de Anselmo de Castro) aquela alta probabilidade, «repondo o juiz no estado de dúvida ou incerteza inicial», excluindo, por isso que, num quadro circunstancial como aquele em que terá decorrido o acto em referência, a doadora, A..., no momento da celebração da doação se não encontrasse na plenitude das suas faculdades intelectuais, mentais e cognitivas que lhe permitissem entender o sentido da sua declaração negocial.

Assim, em função do “grau” de prova exigível à A. – isto é, a medida da convicção que é necessária para que o tribunal possa julgar determinado facto como provado - face à prova produzida e acima analisada, pode afirmar-se que a Drª. ... era médica de família de A... e das relações pessoais de ambas as Rés e o Dr. ... era das relações pessoais do solicitador que elaborou a doação, e que nem um nem outro observaram A... de modo adequado e completo (facto 44 dos factos provados); que no momento da celebração da doação – 23 de Outubro de 2013, entre as 16h30m e as 17h.30m – existia uma manifesta incapacidade por parte de A... para entender e querer o sentido da declaração negocial que formalmente prestou com a aposição de impressão digital e assinatura a rogo (facto 41 do factos provados); e que o referido estado momentâneo de A... era conhecido de ambas das Rés e de qualquer pessoa com normal diligência (facto 43 do factos provado); bem como, que a realização da doação em causa, naquele momento e lugar, foi previamente concertada entre as Rés, que organizaram os actos necessários, contactaram o solicitador e a médica de família da doadora, apresentando tal documento a A... que, considerando o seu estado de saúde, não teve consciência do seu conteúdo e nunca pretendeu a ele vincular-se (facto 42 dos factos provados).
Pese embora do que se veio de decidir resulte genericamente a improcedência da impugnação da matéria de facto também no que respeita à matéria não provada que a apelante pretendia ver provada, vejamos, no entanto, se algum segmento desta, merecerá a prova pretendida.
Como é evidente de tudo o que se consignou não pode ter-se como provado que no momento em que fez a doação a A... estava consciente e lúcida para entender o conteúdo do acto em causa [facto a) dos factos não provados]; igualmente, que, para além de ter lido, o solicitador também explicou à doadora, de modo que esta percebesse, o conteúdo da doação [facto b) dos factos não provados]; que o estado clinico de A... não afectou as suas capacidades mentais [facto d) dos factos não provados) e que os médicos, Drª. ..., fizeram os necessários exames para averiguar a sanidade mental de A... e a sua capacidade de entender e o domínio da sua vontade [facto g) dos factos não provados].
Também este Tribunal entende que não se provou a matéria dos factos c) e e) da matéria de facto não provada, isto é, e respectivamente, que A... referiu a terceiros e ao solicitador que queria fazer aquela doação [facto c) dos factos não provados]; e que há muito que a A... queria fazer aquela doação, tendo insistido com as Rés para que a mesma fosse concretizada [facto e) dos factos não provados].
Com efeito, as referências feitas pelas RR. a estes aspectos, bem como a feita pela testemunha ..., não mereceram credibilidade pelas razões já referidas.
Por isso, improcede totalmente a impugnação da matéria de facto.

Tendo sido correta, do ponto de vista deste tribunal, a apreciação da prova levada a cabo pelo tribunal recorrido, como se veio de constatar, correta é também a subsunção dos factos provados ao regime da incapacidade acidental.
Não podendo falar-se, em face dos factos provados, de falta de consciência da declaração, como se pressuporia no primeiro pedido formulado na acção - Tudo indica que o que a A. pretendeu, em primeira linha, foi excluir a existência de qualquer declaração por parte da A..., pelo que, o que pretenderia ver reconhecido em termos principais, seria que os documentos em causa – contrato de doação e termo de autenticação – haviam sido fabricados: quer dizer, não apenas realizados previamente em relação à presença de todas aquelas pessoas no hospital para o efeito em causa, mas que aquelas pessoas não teriam sequer chegado a estar presentes no hospital, não tendo, no entanto, o pedido em referência sido claro a respeito deste real desiderato.
Note-se, no entanto, que a prova não foi tal que permitisse a total exclusão do encontro das pessoas em causa no hospital – ou pelo menos de parte delas – pois que a neta da A... e o seu companheiro, respectivamente, ..., depuseram com credibilidade no sentido de A... ter referido «ter estado no hospital um senhor todo de preto com uns papéis do Banco», e a testemunha ... pareceu credível no que se referiu à sua presença no hospital. - «sejam as mesmas condenadas a reconhecerem que o contrato de doação outorgado a favor delas foi efectuado sem que a A... tivesse consciência do seu conteúdo ou pretendesse a ela vincular-se» - pois que a falta de consciência da declaração implica que «a pessoa emita voluntariamente uma declaração objectivamente negocial sem o querer fazer», por outras palavras, que «o autor do comportamento declarativo actue sem vontade ou, melhor até, sem a consciência de emitir uma declaração negocial» - Castro Mendes, obra referida, p 231 dá o exemplo clássico de numa sala de leilões, onde levantar o braço é tomado como lance, alguém levantar o braço mas para cumprimentar um amigo - os factos enquadram-se facilmente na incapacidade acidental, em que há declaração e há vontade, mas esta se apresenta viciada.
Diz o art 257º do CC, sob a epigrafe “incapacidade acidental” que: «1- A declaração negocial feita por quem, devido a qualquer causa, se encontrava acidentalmente incapacitado de entender o sentido dela ou não tinha o livre exercício da sua vontade é anulável, desde que o facto seja notório ou conhecido do declaratário», acrescentando o nº 2 que «o facto é notório, quando uma pessoa de normal diligência o teria podido notar».
Comenta Castro Mendes a respeito deste vício na vontade que «o regime actual é de equiparação aos restantes vícios da vontade, até no prazo: indefinidamente não estando o negócio cumprido; um ano a contar do momento em que cessou a anulabilidade desde que o negócio haja sido cumprido (art 287º)». - Obra referida, p 204
Já Mota Pinto assinala que «o novo Código prevê e regula a incapacidade acidental, não na secção das incapacidades, mas entre a falta e os vícios da vontade, dado o facto de não se tratar de uma situação permanente do individuo, mas antes de um desvio no processo formativo da sua vontade em relação às circunstâncias normais do seu processo deliberativo».
Sendo a capacidade das partes um dos pressupostos do negócio jurídico, é sempre suposto para a validade do mesmo, como o acentua Pais de Vasconcelos, que as partes tenham capacidade de gozo, de exercício e não se encontrem em incapacidade acidental; isto é, «não haja deficiência, na prática do acto, de suficiente esclarecimento e liberdade por parte do autor» - Obra referida, p 369/370, pois havendo, e sendo essa falta ou deficiência notória ou conhecida do declaratário, a declaração negocial mostra-se anulável.
E note-se, como o faz sobressair Pais de Vasconcelos, que sendo a liberdade e o esclarecimento pressupostos da validade negocial, a verdade é que «não existem liberdade e esclarecimento que sejam absolutos, que sejam perfeitos e ilimitados». A autonomia privada contenta-se com a liberdade e o discernimento normais, isto é, que são próprios de pessoas normais, das pessoas comuns. Para celebrar um negócio jurídico não é, por isso, necessário estar completamente livre de constrangimentos (…) O grau de discernimento necessário não é superior ao da normalidade das pessoas. Para celebrar negócios jurídicos não é preciso ser dotado de uma inteligência excepcional, nem ter formação superior, nem sequer saber ler, escrever e contar. Basta ter o discernimento suficiente para se compreender o que se está fazer e a liberdade suficiente para se poder optar entre celebra-lo ou não». - Obra referida, p 559
Ora, provou-se, em função da já referida alta probabilidade, que A..., no dia e hora da doação não tinha o discernimento e a vontade suficientes para proceder à doação em causa, e provou-se também que essa falta de discernimento e vontade eram notórias, confirmando-se, pois, o juízo da 1ª instância, ao condenar as RR. a reconhecerem que no momento da realização da doação a favor delas por A... esta se encontrava incapacitada de entender e querer o sentido das declarações que prestou e sem vontade de a elas se vincular, declarando anulada a doação outorgada em 23 de Outubro de 2013 a favor das RR., improcedendo, em consequência, a apelação interposta pela R. G...
Resta saber se o referido contrato de doação merecerá um valor negativo superior ao da respectiva anulação, por se impor, precedentemente, a declaração da sua nulidade, como o pretendeu a A. na formulação do pedido, e como vem aqui insistir através do recurso subordinado.
Com efeito, a A. sustenta na petição inicial que o termo de autenticação não contém todas as menções necessárias para que seja considerado válido, nomeadamente no que respeita à identificação do rogado (...), relativamente a quem, constando pelo punho do Sr. Solicitador a menção do respectivo nome, local de residência e estado civil, já não consta a sua naturalidade e morada completa, tão pouco a forma como foi verificada a sua identidade, invocando a este respeito o disposto no art 46º/1 al d) do Código do Notariado. Mais refere, e ainda na petição inicial, que a referida rogada deveria ter assinado o termo de autenticação, o que não fez. E por isso pediu que as RR. fossem condenadas a reconhecerem que o documento particular de doação outorgado a seu favor padece de vício de forma, por falta de cumprimento dos requisitos legais do termo de autenticação que o compõe e, em consequência, que seja o contrato de doação que corporiza declarado nulo.
Decidiu a 1ª instância pelo infundado deste pedido, julgando-o improcedente.
Sucede que não obstante ter julgado improcedente este pedido – e procedente aquele outro já acima analisado – fez incidir sobre as RR. a totalidade das custas, contra o que estas se insurgem no seu recurso.
E com razão, visto estar em causa, no que se reporta ao pedido julgado improcedente, um pedido autónomo, que até foi configurado pela A. como principal e em que a A. saiu vencida, razão por que se impunha fazer incidir sobre a mesma custas.
Porém, estando em causa nesta instância reapreciar (também) a decidida improcedência desse pedido, apenas a final se verá se a A. deverá também ser condenada em custas e, nessa circunstância, em que medida.
Impõe-se, pois, conhecer do recurso subordinado, salientando-se, à partida, e no que respeita ao correspondente objecto, que a A. nas alegações do mesmo passou a invocar outros fundamentos para lá dos que invocara na petição inicial para vir a concluir, como pretende, pela invalidade do termo de autenticação, e consequentemente, pela invalidade do contrato de doação.
Assim, invocou a A./recorrente, na sua apelação, que na segunda folha do termo de autenticação o Exm.º Sr. Solicitador rasurou o prazo de validade de um documento de identificação, escrevendo por cima do texto anterior, o que levou a que eliminasse o texto que se encontrava escrito, sem permitir a sua leitura, o que viola o disposto no nº 2 do artigo 41º do Código Notariado (daqui para a frente, CN); e que desse termo consta um bloco de texto, redigido pelo punho do Sr. Solicitador, escrito em cursivo de letra minúscula e muito apertada, sendo que dele não consta nenhuma ressalva, como expressamente impõe o art 41º do CN.
A circunstância destes invocados vícios do termo de autenticação se repercutirem no contrato de doação gerando a nulidade formal deste, como melhor se analisará adiante, implica que sendo a nulidade de conhecimento oficioso (art 286º CC) se imponha a este tribunal, nos termos da segunda parte do nº 2 do art 608º CPC, também a apreciação dos vícios em causa.
Dispõe o art 947º CC, no seu nº 1, na redação que lhe foi dada pelo DL 116/2008, de 04/07 - diploma que adoptou medidas de simplificação, desmaterialização e eliminação de actos e procedimentos no âmbito do registo predial e actos conexos – que, «sem prejuízo do disposto em lei especial, a doação de coisas imóveis só é válida se for celebrada por escritura pública ou por documento particular autenticado».
Como resulta das próprias alegações das RR. nos autos, a herança indivisa de seu pai era composta, entre o mais, por imóveis.
Por outro lado, o referido DL 116/2008, de 4/7, no seu art 24º, veio determinar que «os documentos particulares que titulem actos sujeitos a registo predial devem conter os requisitos legais a que estão sujeitos os negócios jurídicos sobre imóveis, aplicando-se subsidiariamente o Código aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto» (que corresponde ao CN) .
E o nº 2 desse preceito legal dispõe que «a validade da autenticação dos documentos particulares, referidos no número anterior, está dependente de depósito electrónico desses documentos, bem como de todos os documentos que os instruam».
O contrato de doação em causa nos autos foi outorgado por documento particular que foi autenticado e após submetido a depósito electrónico, cumprindo verificar, na sequência do assinalado pela A., se foi deficientemente autenticado e se os vícios nessa autenticação importam a nulidade da mesma.
De acordo com o nº 3 do art 363º CC no seu nº 3 «os documentos particulares são havidos por autenticados, quando confirm0ados pelas partes, perante notário, nos termos prescritos nas leis notariais», valendo antes de mais a este respeito o art 150º CN (que refere que os documentos particulares adquirem a natureza de documentos autenticados desde que as partes confirmem o seu conteúdo perante o notário e que apresentado o documento para fins de autenticação, o notário deve reduzir esta a termo), sendo que desde o DL 76-A/2006 de 29/3 (respectivo art 38º/1) que advogados e solicitadores podem autenticar documentos particulares.
Importa registar, no entanto, que se a autenticação do documento em apreço se impunha como formalidade ad substantiam em função das normas do art 947º do CC (e 22º do DL 116/2008), se impunha também enquanto exigência autónoma em função do disposto no art 373º CC.
Com efeito, de acordo com o nº 1 dessa norma, «os documentos particulares devem ser assinados pelo seu autor, ou por outrem a seu rogo, se o rogante não souber ou não puder assinar». Acrescenta o seu nº 2 que «se o documento for subscrito por pessoa que não saiba ou não possa ler, a subscrição só obriga quando feita ou confirmada perante notário, depois de lido o documento ao subscritor», sendo que, nos termos do nº 4 da mesma norma «o rogo deve (…) ser dado ou confirmado perante notário, depois de lido o documento ao rogante».
Ora, desde o momento que A... não podia assinar (e não sabia ler, consoante o referiu a neta), sempre seria necessária a autenticação do documento, a qual se destina a que, mediante o cumprimento das várias exigências constantes da lei notarial uma entidade dotada de fé pública confira ao documento particular as garantias de verdade e autenticidade.
Note-se, consoante resulta do art 154º CN, que a assinatura feita a rogo só pode ser reconhecida como tal por via de reconhecimento presencial, sendo que o rogo deve ser dado ou confirmado perante o notário, no próprio acto do reconhecimento da assinatura e depois de lido o documento ao rogante, devendo o reconhecimento da assinatura a rogo fazer expressa menção das circunstâncias que legitimam o reconhecimento e a forma como foi verificada a identidade do rogante, sendo aplicável à verificação da identidade do rogante o disposto no artigo 48.º.
Resulta, por sua vez, do art 51º/1 CN que «os outorgantes que não saibam ou não possam assinar devem apor, à margem do instrumento, segundo a ordem por que nele foram mencionados, a impressão digital do indicador da mão direita».
Refere ainda o nº 2 do art 152º CN que se o documento que se pretende autenticar estiver assinado a rogo, devem constar, ainda, do termo o nome completo, a naturalidade, o estado e a residência do rogado e a menção de que o rogante confirmou o rogo no acto da autenticação.
Ainda a respeito do termo de autenticação, dispõe genericamente o art 151º do CN que «o termo de autenticação, além de satisfazer, na parte aplicável e com as necessárias adaptações, o disposto nas alíneas a) a n) do n.º 1 do artigo 46.º, deve conter ainda os seguintes elementos: a) A declaração das partes de que já leram o documento ou estão perfeitamente inteiradas do seu conteúdo e que este exprime a sua vontade; b) A ressalva das emendas, entrelinhas, rasuras ou traços contidos no documento e que neste não estejam devidamente ressalvados», referindo o seu nº 2 que «é aplicável à verificação da identidade das partes, bem como à intervenção de abonadores, intérpretes, peritos, leitores ou testemunhas, o disposto para os instrumentos públicos».
Por sua vez, o referido art 46º/1, nas respectivas alíneas a) a n) dispõe a respeito do que o instrumento notarial deve conter, relevando para a situação dos autos o disposto nas suas al c), d), h), l), m) e n), respectivamente do seguinte conteúdo: «(…) c) O nome completo, estado, naturalidade e residência habitual dos outorgantes, (…) d) A referência à forma como foi verificada a identidade dos outorgantes, das testemunhas instrumentárias e dos abonadores; (…) h) O nome completo, estado e residência habitual das pessoas que devam intervir como abonadores, intérpretes, peritos médicos, testemunhas e leitores; l) A menção de haver sido feita a leitura do instrumento lavrado, ou de ter sido dispensada a leitura pelos intervenientes, bem como a menção da explicação do seu conteúdo; m) A indicação dos outorgantes que não assinem e a declaração, que cada um deles faça, de que não assina por não saber ou por não poder fazê-lo; n) As assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibamassinar, bem como de todos os outros intervenientes, e a assinatura do funcionário, que será a última do instrumento».
Impõe-se ainda mencionar que nos termos do art 68º, «não podem ser abonadores, intérpretes, peritos, tradutores, leitores ou testemunhas: (…) al d)- «os funcionários e o pessoal contratado em qualquer regime em exercício no cartório notarial».
É verdade que, como a apelante o acusa, na segunda folha do termo de autenticação, e na 1ª linha desta, está visivelmente rasurada a data referente ao cartão de cidadão de ... que interveio como abonadora da identidade das outorgantes, apenas se vendo “03-5-2016”, mas não o que estava colocado na origem, sendo pois, exacto que “o Exm.º Sr. Solicitador rasura um prazo de validade de um documento de identificação, escrevendo por cima do texto anterior, o que levou a que eliminasse o texto que se encontrava escrito, sem permitir a sua leitura”.
E que, como igualmente o acusa a apelante, no espaço que intermedeia entre a expressão «Este termo foi lido e explicado o seu conteúdo aos outorgantes» e as assinaturas, foi colocado pelo Exmo Solicitador, de forma manuscrita, em caracteres minúsculos e de modo graficamente condensado, os seguintes dizeres (que, dispondo-se nos autos apenas da fotocópia do documento em causa não nos são inteiramente perceptíveis, podendo até suceder que a leitura que se faz dos que se nos afiguram perceptíveis não seja a correcta): «EM TEMPO –Pelo facto da primeira outorgante não poder assinar, confirma o rogo dado por ..., casada, residente no .., (não se percebendo a palavra seguinte), minha conhecida, tendo a rogante confirmado perante mim o conteúdo do documento anexo e do presente termo que lhe li, tendo ela rogante e primeira outorgante que (não se percebe o vocábulo seguinte) o documento anexo, Doação, como o presente termo de autenticação respeita (?) a sua vontade». E à frente foi colocado: “EMENDEI:03-5-2016”.
O art 41º do Código do Notariado estabelece no seu nº 1 que «As palavras emendadas, escritas sobre rasura ou entrelinhadas devem ser expressamente ressalvadas.» E no seu nº 2 estabelece a forma como deve ser feita tal ressalva, dispondo que «a eliminação de palavras escritas deve ser feita por meio de traços que as cortem e de forma que as palavras traçadas permaneçam legíveis, sendo aplicável à respectiva ressalva o disposto no número anterior».
Decorre da al c) do nº 1 do artigo 70º do CN que «O acto notarial é nulo, por vício de forma, apenas quando falte algum dos seguintes requisitos: (…) c) A observância do disposto na primeira parte do n.º 2 do artigo 41º».
Desde o momento em que visivelmente o Exmo Solicitador não procedeu à eliminação do escrito que estaria sob o que agora consta – 03-5-2016 - fazendo-o por meio de traço que o tivesse cortado, mas de forma que tal escrito permanecesse legível, dever-se-á concluir que não observou a primeira parte do nº 2 do art 41º, pelo que, em consequência, o termo de autenticação se terá que ter como nulo por vício de forma, não obstando, obviamente, a esse resultado a circunstância de na parte final do texto manuscrito e acima referido ter sido colocado « EMENDEI:”03-5-2016”»
Por outro lado, resulta do nº 2 do acima referido art 70º do CN, por exclusão de partes, que a nulidade prevista na al c) do número anterior não é sanável - Dispõe o n.º 2 do referido art. 70.º do CN, que «as nulidades previstas nas alíneas a), b), d), e), f) e g) do número anterior consideram-se sanadas, conforme os casos …»: a) Se, em face da omissão do dia, mês, ano ou lugar da celebração do acto, for possível proceder ao averbamento nos termos previstos no n.º 7 do artigo 132.º; b) Se as partes declararem, por forma autêntica, que foram cumpridas as formalidades previstas nos artigos 65.º e 66.º; c) Se os intervenientes acidentais, cujas assinaturas faltam, se encontrarem devidamente identificados no acto e declararem, por forma autêntica, ter assistido à sua leitura, explicação e outorga e que não se recusaram a assiná-lo; d) Se os outorgantes, cujas assinaturas faltam, declararem, por forma autêntica, que estiveram presentes à leitura e explicação do acto, que este representa a sua vontade e que não se recusaram a assiná-lo; e) Se o notário cuja assinatura está em falta declarar expressamente, através de documento autêntico, que esteve presente no acto e que, na sua realização, foram cumpridas todas as formalidades legais; f) Se em face da inobservância do disposto na alínea g) do n.º 1 do artigo 46.º, ou da incorrecta menção dos requisitos nele exigidos, for comprovado, mediante exibição da certidão de registo ou do correspondente código de acesso, que a mesma já existia à data da celebração do ato.
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Tem também razão a A. no que se reporta ao que designa pela colocação no termo de autenticação, de “um bloco de texto, redigido por punho do Sr. Solicitador, que, certamente por esquecimento se não consignou no texto anterior, escrito em cursivo de letra minúscula e muito apertada”, quando conclui que – e outra conclusão não é possível – “terá sido introduzida após as assinaturas dos outorgantes e intervenientes (apertando-se a letra para que coubesse)”.
Dispõe o atrás referido art 41º CN, agora nos seu nº 4 que «As palavras emendadas, escritas sobre rasuras ou entrelinhadas que não forem ressalvadas, consideram-se não escritas, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 371.º do Código Civil».
O art 371º CC no seu nº 2 estabelece que «Se o documento contiver palavras emendadas, truncadas ou escritas sobre rasuras ou entrelinhas, sem a devida ressalva, determinará o julgador livremente a medida em que os vícios externos do documento excluem ou reduzem a sua força probatória».
Repare-se que a consequência primeira estabelecida no transcrito nº 4 do art 41º é a de se terem a palavras entrelinhadas como não escritas, do que resulta que apenas depois, perante a ausência dessas palavras, deverá o julgador ajuizar da força probatória do documento.
Na situação do documento em apreço não há qualquer ressalva relativamente à presença de todo aquele bloco de palavras – em parte imperceptíveis – colocadas depois da expressão, «Este termo foi lido e explicado o seu conteúdo aos outorgantes» e as assinaturas, não se podendo deixar de referir que, tal como a apelante também acusa, a impressão digital da rogante se encontra ao nível desse texto manuscrito, quando deveria estar abaixo dele, como resulta da atrás mencionada norma do art 51º/1 do CN.
Considerando-se que todo o referido texto se deve ter por não escrito, daí resulta que do termo não consta e o nome completo, a naturalidade, o estado e a residência do rogado e tão pouco a menção de que o rogante confirmou o rogo no acto da autenticação, tudo em desarmonia com os acima referidas normas dos arts 152º e 154º do CN.
Não pode deixar de se concordar com a apelante quando, citando o sumário do Ac. R. Porto de 17/2/2009 (Carlos Moreira), conclui que, «a não confirmação, perante o notário, da assinatura a rogo, acarreta a sua invalidade e, por acréscimo - já que ela é elemento integrante essencial e formalidade ad substantiam do documento particular onde consta - a nulidade da declaração negocial neste ínsita — art°s 373º n°s 1 e 4, 220º e 286º do CC e 154° do C. Notariado».
Não pode ser outra a conclusão perante a importância que no acto em causa o rogante desempenha. Não é já a ausência do nome completo, naturalidade, estado e residência do rogado, é a própria essência da assinatura a rogo, a finalidade a que a mesma se destina que é substantivamente posta em causa pela circunstância do rogante não ter confirmado o rogo no acto da autenticação - Sem embargo, obviamente, de se aceitar que quando o rogo não tenda sido dado na presença do notário, possa ainda vir a ser confirmado na presença dele, como se se tratasse de um reconhecimento presencial de assinatura, caso em que a presença do rogante é essencial, devendo, nas palavras do A c desta Relação de 12/12 /2017 (Mª João Areias) o rogante confirmar na presença do autenticante que a assinatura a rogo foi efectivamente nele aposta a seu pedido e que o autenticante faça constar tal declaração do documento de autenticação.
Sucede que na situação dos autos não se mostra já possível esse “suprimento” , visto que a rogante se mostra falecida. .
Evidentemente que essa omissão formal exclui toda a força probatória ao termo de autenticação, não podendo deixar de acarretar a sua insuprível nulidade, e por via dela, a do contrato de doação, por falta da observância da forma devida, não sendo necessário para assim se concluir que a situação em causa se subsuma a alguma das causas de nulidade feitas constar do art 70º CN, até porque não se analisa, em rigor, num vicio de forma, mas de substância. -No Ac STJ 17/3/1998 (BMJ nº 475, p 649) diz-se que «a assinatura a rogo apenas tem os mesmos efeitos da assinatura rogada quando sejam respeitadas as exigências legais, conforme prevê o C N» (art 166º do CN de 1967 e actualmente art 154º)
Acresce que também se regista a falta de assinatura da rogante no termo de autenticação.
E constitui também requisito de presença obrigatória no termo de autenticação, por força da remissão do proémio do artigo 151º do CN para o disposto nas alíneas a) a n) do n.º 1 do artigo 46.º, «as assinaturas, em seguida ao contexto, dos outorgantes que possam e saibam assinar, bem como de todos os outros intervenientes (…)»
É certo que nesta alínea não se prevê a assinatura do rogante, mas como o defende a apelante, ao rogado deve atribuir-se uma posição idêntica à da rogante/outorgante, na medida em que, por definição, a assinatura daquela é destinada a suprir a falta da assinatura desta, pelo que é natural que a falta de assinatura da primeira tenha o mesmo efeito da da segunda, devendo, pois entender-se que, nos termos a alínea e) do nº 1 do artigo 70º do CN - Onde se dispõe ser caso de nulidade do acto notarial por vício de forma a assinatura de qualquer dos outorgantes que saiba e possa assinar , a falta de assinatura da rogada no termo de autenticação é causa de nulidade do mesmo.
Por último, e aqui fará todo o sentido apelar-se a um argumento a fortiori, se, nos termos do nº 2 do art 71º do CN, a incapacidade ou a inabilidade dos intervenientes acidentais determina a nulidade do acto notarial - sendo que é causa de incapacidade ou inabilidade relativamente a «abonadores, intérpretes, peritos, tradutores, leitores ou testemunhas» a circunstância de, nos termos da al d) do art 68º, corresponder nessas pessoas a qualidade de funcionários em exercício no cartório notarial - então, ter-se-á de concluir, por maioria de razão, que será causa de nulidade do acto notarial a circunstância da rogada ser funcionária do solicitador autenticador do acto, como sucede relativamente à pessoa de ...
Afigura-se-nos que a apelante tem também razão quando exclui que a nulidade em causa possa ser sanada ao abrigo do art 71º/3 al c) do CN (da qual resulta que «Quando o vício se referir apenas a um dos abonadores ou a uma das testemunhas se possa considerar-se suprido pela idoneidade do outro interveniente»), como o entendeu a decisão recorrida, visto que a rogada tem uma função única que se move num plano superior ao daqueles intervenientes acidentais, pelo que a idoneidade destes não pode suprir a falta de idoneidade desta .
Tudo razões – cada qual de per si – para se concluir que o termo de autenticação não pode ser considerado validamente efectuado, sendo nulo nos termos das disposições consideradas, implicando a sua nulidade que a doação – que deveria ter sido realizada através de documento particular autenticado nos termos do art 947º CC – tenha sido realizada à margem dessa exigência formal e por isso seja nula nos termos do art 220º CC .
Assim se conclui pela procedência também do primeiro pedido formulado nos autos - pedido esse, o principal - e pela consequente procedência da apelação subordinada, impondo-se, ao invés de declarar a anulabilidade do contrato de doação nos termos acima expostos, declarar a sua nulidade (visto este valor negativo subsumir, pela sua maior gravidade, aquele outro), por se reconhecer que o documento de doação padece de vício de forma, por falta de cumprimento dos requisitos legais do termo de autenticação que o compõe.
Procedência esta que implica que afinal sejam as RR. as únicas responsáveis pelas custas da acção na 1ª instância, e nesta, apenas a R. G..., por apenas ela ter recorrido.
V - Pelo exposto, acorda este tribunal em julgar improcedente a apelação da R. G... e procedente a apelação subordinada da A., declarando a nulidade do contrato de doação por carecer da forma legalmente prescrita, ao invés da sua anulabilidade em função da incapacidade acidental de A..., mantendo no demais o decidido na 1º instância.
Custas na 1ª instância pelas RR., e nesta, pela R. G...
Coimbra, 22/10/2019
(Maria Teresa Albuquerque)
(Manuel Capelo)
(Falcão de Magalhães)