Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1424/21.5T8ANS-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JOÃO MOREIRA DO CARMO
Descritores: ACÇÃO CAMBIÁRIA
AVAL
PRAZO DE PRESCRIÇÃO
Data do Acordão: 04/12/2023
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: JUÍZO DE EXECUÇÃO DE ANSIÃO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 32.º, 1.º E 2.º PARÁGRAFOS; 70.º E 77.º, 1.º PARÁGRAFO, DA LULL
Sumário: i) A acção cambiária é a que emerge directamente de uma letra/livrança, em que se pede o valor do título, isto é o pagamento dela, e em que a causa de pedir é a assinatura destas, no caso a aposição de um aval e respectiva assinatura pelo recorrido;

ii) A prescrição cambiária de 3 anos estabelecida no art. 70º da LULL também se aplica ao avalista.

Decisão Texto Integral:  

I – Relatório

 

1. Banco 1..., S.A, com sede em ..., intentou acção executiva, para pagamento de quantia certa, contra AA e BB, residentes em CC e A... SA, com sede em CC. Apresentou como título executivo uma livrança.

Alegou, em síntese, o trespasse a seu favor, pelo Banco 2..., SA, de um estabelecimento comercial e de uma cessão de créditos, sendo legitima portadora de uma livrança, subscrita pela executada sociedade e avalizada pessoalmente pelos outros dois executados, no valor de 90.267,72 €, não paga aquando do seu vencimento, mais juros e imposto de selo, mais juros vincendos.

A... e AA deduziram embargos, sustentando, em síntese, que dos documentos juntos não decorre que o crédito lhe haja sido cedido, pelo que excepciona a legitimidade da exequente; não aceitam que a convenção de preenchimento junta se refira à livrança dada à execução; não lhes foi dado conhecimento que a exequente iria preencher a livrança, nem foram interpelados para o seu preenchimento ou pagamento; desconhecem os valores apostos na livrança e não aceitam ser seus devedores; encontram-se prescritas as prestações de capital e juros vencidos de 12 de Janeiro de 2013, data em que a mutuária sociedade deixou de pagar as prestações, a 27 de Setembro de 2016, nos termos do art. 310º, d) e e), do CC, visto a acção ter dado entrada em juízo em 22.9.2021; englobando a livrança valores prescritos, concluem pelo seu preenchimento abusivo, com a data de vencimento de 22.7.2021 aposta na mesma; tendo-se extinguido o contrato em 12 de Dezembro de 2017, a partir dessa data, sobre o capital em divida são devidos juros de mora à taxa civil; a mutuária foi declarada insolvente em 2015, pelo que a livrança deveria ser preenchida logo após o incumprimento ou a declaração de insolvência; o preenchimento da livrança, no momento em que o foi, é violador da boa fé e bons costumes e, assim, abusivo; a exequente não esclarece a imputação dos pagamentos efetuados pela mutuária no âmbito do plano de insolvência; a mutuária/embargante não foi interpelada para efeitos do disposto no art. 218º do CIRE; o devedor não é obrigado a pagar juros vencidos até à apresentação efectiva a pagamento da livrança, o que só ocorreu com a citação; os juros são os civis e não à taxa de 7%/ano.

O exequente contestou, sustentando, em síntese, que a ilegitimidade, agora invocada, contraria anterior posição da sociedade embargante e do embargante, seu legal representante, visto que a embargada interveio no respetivo processo de insolvência e os embargantes reconheceram a existência do contrato e do crédito que deriva do seu incumprimento, pelo que agem em abuso de direito; a livrança, como titulo de crédito cambiário, vale por si, sem haver necessidade de alegar a relação subjacente; os embargantes reconheceram ser devedores das quantias decorrentes do contrato no processo de insolvência e procederam ao pagamento das obrigações decorrentes do plano de insolvência até Junho de 2021, pelo que só por má fé se poderá entender a alegação de prescrição; a livrança foi preenchida após o incumprimento do plano de insolvência; os embargantes foram devidamente interpelados e os montantes entregues no âmbito do plano de insolvência devidamente imputados.

B... DAC, com sede na ... foi habilitada no lugar da exequente.

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Foi proferida sentença que julgou parcialmente procedentes os embargos de executado e, em consequência, quanto à A..., determinou o prosseguimento da execução para pagamento da quantia de 86.452,55 €, a que acrescem juros civis, à taxa legal, desde 23.7.2021 até integral pagamento, e quanto ao embargante AA determinou o prosseguimento da execução para pagamento da quantia de 20.467,65 €, a que acrescem juros civis, à taxa legal, desde 23.7.2021 até integral pagamento.

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2. A exequente/habilitada recorreu, formulando as seguintes e extensas (são extensas porque são na prática a repetição do corpo das alegações) 34 conclusões:

1. A douta sentença recorrida deve ser revogada pois nela se faz, salvo o devido respeito, errada apreciação dos factos e aplicação do direito,

2. nada impedindo o prosseguimento dos autos para efectiva satisfação do crédito da Recorrente contra todos os obrigados cambiários, ora executados no presente processo.

3. Entendeu a Mma. Juiz “a quo” que “….”

4. Considerou, igualmente, que seria aplicável ao avalista Embargante o artigo 310.º al. e) do CC, e bem assim o prazo de prescrição quinquenal nele previsto, prescrevendo que o “…”.

5. Ora, o Recorrente não poderá concordar com o douto entendimento do Tribunal a quo porquanto, no presente processo nunca seria aplicável o prazo prescricional de 5 anos, mas sempre o prazo de prescrição ordinário de 20 anos (art. 309.º, do CC).

6. Entendeu a douta sentença que o “….”

7. Relembre-se, no entanto, o douto Tribunal que o crédito exequendo tem por base um contrato celebrado com a sociedade executada, no qual o embargante figura como avalista, e cujo reembolso seria feito em prestações fracionadas ou repartidas, isto é, “obrigações cujo cumprimento se protela no tempo, através de sucessivas prestações instantâneas, mas em que o objecto da prestação está previamente fixado (…)”, conforme escreveu Antunes Varela in Das Obrigações em Geral, vol. I, página 94.

8. Também neste sentido, Menezes Leitão em “Direito das Obrigações – Volume I”, 7.ª Ed., pág. 138.

9. In casu, o capital mutuado foi desde logo fixado e a obrigação de restituição dos executados era a de pagamento daquele montante, acrescido dos respetivos juros e despesas.

10. Pelo contrário, o art. 310.º, do CC, ao prever um prazo de prescrição reduzido, aplica-se, apenas, às prestações periodicamente renováveis.

11. As prestações periódicas configuram várias obrigações distintas, cujo montante global não poderá ser inicialmente fixado, uma vez que o número de prestações será determinado pelo decurso do tempo – neste sentido, veja-se novamente Menezes Leitão, in “Direito das Obrigações – Volume I”, 7.ª Ed., pág. 138.

12. Segundo, Ana Filipa Morais Antunes, “É, pois, possível afirmar que, subjacente à consagração desta prescrição de curto prazo, residiu o critério de periodicidade do direito, isto é, a circunstância de nos encontrarmos perante prestações que se constituem e se vencem, em certo de determinado tempo, levando consigo o perigo sério de acumulação de dívida. O artigo 310.º do CC não pode, nesta medida, ser dissociado da ideia de prestação periódica (…)”, “Algumas questões sobre prescrição e caducidade”, in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Sérvulo Correia, págs. 45 e 46.

13. A ratio do artigo 310.º do Código Civil, precisamente por prever um prazo curto de prescrição e, nessa medida, compreender as designadas prestações periodicamente renováveis, assenta na circunstância de, através dela, se obviar a que o credor, adiando a exigência do pagamento de prestações de abreviado quantitativo, acumule excessivamente o seu crédito, a tal ponto que torne demasiado onerosa a prestação do devedor.

14. Acontece que, ao contrário das prestações periódicas, às prestações fraccionadas aplica-se o disposto no artigo 781.º do Código Civil, isto é, o não pagamento de uma prestação implica o vencimento de todas.

15. Assim, in casu, em virtude do incumprimento dos executados ao deixarem de liquidar as prestações a que se obrigaram, deu-se o vencimento antecipado das prestações vincendas, podendo a Recorrente, em qualquer altura, solicitar o pagamento da totalidade da dívida!

16. Se no caso das prestações periódicas faça todo o sentido reduzir o prazo de prescrição, no caso dos presentes autos, por aplicação do art. 781.º, do CC, qualquer que fosse o momento da Recorrente exigir a dívida, esta teria sempre o direito de exigir a totalidade da dívida, isto é, tanto as prestações vencidas e não pagas como as prestações vincendas.

17. Apenas variam os juros devidos, que, saliente-se, mesmo em caso de eventual acionamento judicial, continuam a vencer-se até efetivo e integral pagamento da dívida.

18. Portanto, não faz qualquer sentido, que no presente caso se aplique a alínea e), do art. 310.º, do CC, uma vez que obrigação dos executados, incluindo do embargante, é uma única: o ressarcimento do capital mutuado pela Recorrente, acrescido dos respetivos juros e despesas.

19. É importante realçar a autonomia das quotas de amortização, para efeitos de prescrição quinquenal.

20. Neste sentido, veja-se o Acórdão do STJ de 04 de Maio de 1993: “III - Deixando o devedor de pagar algumas das quotas de amortização de capital mutuado, a prescrição não pode pôr-se em relação às quotas em dívida como um todo, mas em relação a cada uma delas.”

21. Ora, no caso dos presentes autos, ainda que se considerasse, hipoteticamente, que às quotas de amortização de capital pagáveis até 27/09/2016 se aplicaria a alínea e) do artigo 310.º do CC, o que não se concede, com o vencimento antecipado das prestações vincendas, no incumprimento, deixamos de ter várias prestações e passamos a ter uma prestação global em dívida.

22. Menezes Cordeiro, por referência ao citado Acórdão do STJ de 04 de Maio de 1993, realça, também, este ponto, dizendo que “ (…) a prescrição quinquenal apenas se irá aplicando escalonadamente, na medida do plano de pagamento inicial, pois é este o combinado e que as partes têm como referência; podemos acrescentar que na eventualidade do vencimento antecipado, já não se trata de quotas de amortização;”.

23. Assim, também por esta razão, bem se vê que a alíneas e) do artigo 310.º do CC, não pode ser aplicada ao crédito exequendo, devendo, sim, ser aplicado o prazo geral de prescrição de 20 anos, previsto no artigo 309.º do CC, pois não estamos perante “quotas de amortização do capital pagáveis com os juros” nem “quaisquer outras prestações periodicamente renováveis”.

24. Sem prescindir, em momento algum, a Recorrente assumiu o compromisso de fazer coincidir o preenchimento da Livrança com a data do incumprimento nem tal decorre da lei, ou da vontade das partes, muito menos porque a sociedade executada apresentou sucessivos Planos de Recuperação, que poderiam implicar – como implicaram – reestruturações de dívida e eventuais perdões de valores, o que, em abstracto, colocaria o embargante numa posição pior relativamente ao subscritor da livrança se a mesma tivesse sido logo preenchida.

25. A Recorrente ofereceu à execução uma livrança subscrita pela sociedade executada e avalizada pelo Embargante.

26. Nos termos do art.º 75.º da LULL a livrança é um título cambiário, sujeito a certas formalidades, pelo qual uma pessoa se compromete a, para com outra, a pagar-lhe determinada importância em certa data.

27. Nos termos dos art.ºs 45.º e 46.º do CPC, a livrança (título cambiário) tem força executiva desde que dela conste quem é o devedor e o que é devido, ou seja, desde que nela estejam claramente determinados os sujeitos da relação executiva e os limites da obrigação exequenda.

28. Assim, não se pode questionar que a livrança dada à execução não incorpore obrigações cambiárias, da responsabilidade dos seus subscritores, entre os quais o ora avalista, obrigações essas cujo cumprimento coercivo se pretende efetivar através da presente ação executiva.

29. Efetivamente, se o título dado à execução é uma livrança, a causa de pedir radica nessa mesma livrança, a ação é cambiária e não causal.

30. Assim, dispõe o art. 32.º da LULL, segundo o qual a obrigação não se reporta à obrigação subjacente ao negócio cambiário, mas sim à obrigação cartular, bem como, ex vi art.77º, que “o dador de aval é responsável da mesma maneira que a pessoa por ele afiançada”.

31. Pois bem, segundo, José Engrácia Antunes, in Títulos de Crédito – Uma Introdução, pág. 21, “A literalidade tem consequências pela negativa, traduzidas pela irrelevância dos elementos, exceções e convenções extra-cartulares: uma vez emitidos regularmente os títulos de crédito valem nos precisos termos deles constantes, não sendo lícito ao portador exigir ao devedor, nem este último esgrimir contra o primeiro algo que não consta do título.”

32. Por tudo o supra exposto, considera a Recorrente, com o devido respeito e salvo melhor opinião, que o Avalista é devedor, nos exactos termos em que é a sociedade executada pelo montante global peticionado na presente execução.

33. Sem prescindir, no que à sociedade executada diz respeito, a Recorrente vem pugnar pela manutenção da douta sentença, a qual, quer na sua fundamentação, quer na sua decisão, é escorreita, aplica criteriosamente o direito, fazendo uma correcta subsunção dos factos ao mesmo.

34. Isto posto, e salvo melhor entendimento, o Tribunal recorrido deveria ter decidido pela improcedência total dos Embargos de Executado apresentados, prosseguindo a instância para cobrança coerciva do crédito da Recorrente contra todos os obrigados cambiários.

TERMOS EM QUE O PRESENTE RECURSO DEVE MERECER PROVIMENTO E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A DECISÃO RECORRIDA E SUBSTITUÍDA POR, ALIÁS DOUTO, ACÓRDÃO QUE, CONTEMPLANDO AS CONCLUSÕES AQUI ELABORADAS, FAÇA Inteira e sã, J U S T I Ç A !

3. O executado/embargante A. AA contra-alegou, concluindo que:

1. Atentas as conclusões apresentadas pela recorrente, que delimitam o objecto do recurso, a única questão suscitada é a de saber qual o prazo de prescrição aplicável à divida – serão 5 (cinco) ou 20 (vinte anos)?

2. A douta sentença recorrida entendeu e bem, que o prazo de prescrição era de 5 anos.

3. Para conhecimento do recurso está pois em causa, a aplicabilidade ao caso dos autos e concretamente no que respeita ao executado/embargante AA, do disposto no art.º 310º, al. e) do Código Civil, expressamente citado na decisão recorrida, nos termos do qual prescrevem no caso de 5 anos as quotas de

amortização do capital pagáveis com juros.

4. Pode afirmar-se que na doutrina e jurisprudência maioritária não suscita particular controvérsia a aplicabilidade do prazo de cinco anos às obrigações, de natureza híbrida, que visam simultaneamente operar a amortização e a remuneração do capital mutuado.

5. No dia 2.09.2022 foi publicado no DR n.º 184/2022, Série I, o Acórdão Uniformizador de Jurisprudência n.º 6/2022, citado na decisão recorrida (mas omitido pela recorrente), com o seguinte sumário:

No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação.

II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.”

6. Acórdão que tem plena aplicação ao caso dos autos.

7. Atendendo à fundamentação de facto e por aplicação do art.º 310º, alínea e) do Código Civil, terá de se considerar, tal como decidido em 1ª instância, quanto ao embargante, ora recorrido, que se mostram prescritas as quotas de amortização de capital pagáveis com juros vencidas até 27.09.2016.

8. O que significa que, o ora recorrido apenas poderá ser responsabilizado pelo capital vencido desde Outubro de 2016 a Dezembro de 2017 no valor de € 16.958,81, acrescido de juros remuneratórios de € 795,64, moratórios de € 2.546,14 e imposto de selo sobre os juros de € 167,06.

Termos em que, com o douto suprimento de V.Exas. deverá julgar-se improcedente o recurso, mantendo-se a decisão de 1ª instância, como é de JUSTIÇA

 

II - Factos Provados

 

i. Entre o Banco 2... S.A. e a sociedade A... S.A., representada no ato pelo Embargante AA e por BB, como mutuária, foi celebrado, em 12 de Dezembro de 2001, o contrato de mútuo, cujas cláusulas constam do documento de fls. 37 a 40 dos autos e que aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.

ii. Do referido contrato consta, para além do mais, que o Banco 2... concedeu à mutuária um empréstimo no valor de Esc. 43.713.345$00 (contravalor de 215.347,74 euros) - Cláusula Primeira -, creditado na conta de depósitos à ordem da mutuária n.º ...01, sediada na dependência do Banco 2... em CC – Cláusula Segunda.

O empréstimo foi concedido pelo prazo de 16 anos, a contar da data da celebração do contrato, com termo no dia 12 de Dezembro de 2017, havendo um ano de carência relativamente ao pagamento do capital – Cláusula Quarta – e seria reembolsado em 180 prestações mensais e sucessivas de capital, com inicio em 12 de Dezembro de 2002 e juros mensais e postecipados – Cláusula Quinta.

Os juros seriam contados dia a dia, sobre o capital em divida, pagos mensal e postecipadamente relativamente ao período a que respeitam e calculados à taxa Euribor a um mês acrescida de uma margem de 1% e a TAE a aplicar seria a que vigorar para aquele período de harmonia com os artigos 4.º e 5.º do DL 220/94 de 23 de agosto – Cláusula Sétima.

No caso de mora no pagamento da prestação de capital e/ou juros remuneratórios, comissões e demais encargos, incidirá sobre o montante dessa prestação e durante o tempo em que a mora se verificar a taxa de juro fixada no contrato, acrescida de uma sobretaxa de mora de 4 % ao ano ou de outra que estiver em vigor – Cláusula Oitava.

Para garantia do bom cumprimento de quaisquer obrigações ou responsabilidades emergentes do presente contrato, a Mutuária entregou ao Banco 2... e à sua ordem uma livrança por si devidamente subscrita e avalizada por AA e de BB e autorizou-o a preencher a referida livrança pelo valor que lhe for devido, cfr. preceituado no contrato, a fixar as datas de emissão e vencimento, bem como a designar o local de pagamento – Cláusula Décima.

iii. No mesmo dia, foi celebrada “convenção de preenchimento de livrança em branco”, tendo por Primeiro Outorgante o Banco 2... S.A., como Segundo Outorgante a Embargante A... S.A. e como Terceiros Outorgantes o Embargante AA de AA e BB, como que consta de fls. 40 v.º a 41 v.º dos autos e cópia da livrança em branco a fls. 42 dos autos e que aqui se dão por integralmente reproduzidos para todos os efeitos legais.

iv. Da referida convenção decorre, para além do mais, o seguinte:

“Pela presente convenção, a livrança em anexo, subscrita pela SEGUNDA OUTORGANTE e aqui avalizada pelos TERCEIROS OUTORGANTES à ordem do PRIMEIRO OUTORGANTE destina-se a garantir o bom pagamento de todas as obrigações e /ou responsabilidades constituídas ou a constituir pela SEGUNDA OUTORGANTE decorrentes de um contrato de mútuo no montante de Esc. 43.713.345$00 (…) celebrado entre a subscritora da livrança e o PRIMEIRO OUTORGANTE em 12 de Dezembro de 2001, bem como das suas eventuais prorrogações, renovações e substituições até ao integral pagamento de todas as obrigações e ou responsabilidades decorrentes do referido contrato.

A SEGUNDA OUTORGANTE autoriza o PRIMEIRO OUTORGANTE em caso de falta de cumprimento de quaisquer obrigações ou responsabilidades inerentes às operações acima indicadas, a preencher a livrança acima referida pelo valor que for devido, a fixar as datas de emissão e vencimento, a designar o local de pagamento e, bem assim, a descontar essa livrança e utilizar o seu produto para cobrança do que constituir a totalidade do crédito do PRIMEIRO OUTORGANTE.

(…)

Os TERCEIROS OUTORGANTES na qualidade de avalistas declaram que possuem perfeito conhecimento do conteúdo das responsabilidades assumidas pela SEGUNDA OUTORGANTE do seu montante e dos termos da presente convenção, à qual dá o seu acordo, sem exceções ou restrições de tipo algum, autorizando assim o preenchimento da livrança nos precisos termos exarados e assumindo nos mesmos termos da SEGUNDA OUTORGANTE, o bom pagamento dessa livrança. (…)”.

v. A livrança referida tem o seguinte teor:

()

vi. Por escritura outorgada em 4 de Abril de 2011 no Cartório Notarial ... a cargo da Notária DD exarada de fls. 33 a fls. 38 do Livro ...30..., o Banco 2..., S.A. procedeu ao trespasse ao Exequente do “estabelecimento comercial que constitui a universalidade de ativos (intangíveis e fixos tangíveis) e passivos, nomeadamente, contratos de depósito, contratos de mútuo, e, de uma forma geral, a totalidade dos direitos e obrigações de que é titular o trespassante no âmbito da sua atividade bancária. (…) estão incluídos neste contrato de trespasse, nomeadamente:(…) h) “O restante ativo do estabelecimento, incluindo nomeadamente os créditos sobre os mutuários, devedores e restante clientela a ele afeta, acompanhados de todas as respetivas garantias e acessórios, mediante a cessão da posição contratual da sociedade trespassante ou outro título jurídico suficiente, de todos os contratos com os referidos mutuários, devedores, restante clientela, fornecedores ou quaisquer outros relacionados com a atividade do estabelecimento trespassado , os créditos sobre mutuários, devedores e restante clientela (…) ”, cfr. escritura junta de fls. 10 a 15 v.º aos autos de execução e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

vii. Por escritura outorgada em 4 de Abril de 2011 no Cartório Notarial ... a cargo da Notária DD exarada de fls. 47 a 49 do Livro de nº 130-B o Banco 2..., S.A., procedeu, enquanto titular de “conjunto de créditos vencidos e vincendos, concedidos a diversos mutuários”, à cessão dos mesmos a favor do Exequente; “(…) a cessão comporta, relativamente a cada um dos Créditos cedidos, a transmissão para o CESSIONÁRIO (Banco 1...) (…) de todos os direitos, garantias e acessórios a ele inerentes, designadamente hipotecas constituídas para sua garantia, bem como a posição processual da CEDENTE (Banco 2... S.A.) nos processos identificados na referida listagem que constitui documento complementar anexo a esta escritura, relativamente a cada um dos Créditos ora cedidos. Que se mantém em vigor todas as demais condições contratuais de cada um dos Créditos nos termos dos respetivos contratos que os titulam. (…)”, cfr. escritura junta de fls. 12 a 5 v.º e retificação de fls. 6 a 9 aos autos de execução e que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais.

viii. Os Embargantes têm conhecimento que o crédito titulado pelo contrato referido em i) foi transmitido pelo Banco 2... ao Exequente.

ix. A sociedade Embargante deixou de cumprir pontualmente obrigações emergentes do contrato referido em 4 de Janeiro de 2013.

x. Nessa data encontrava-se em divida o capital de 72.374,99 euros e juros.

xi. Correu termos, no extinto ... Juízo Cível do Tribunal ..., processo especial de revitalização com o n.º 338/13...., em que figura como Requerente a sociedade Embargante A... S.A..

xii. No âmbito desse processo foi proferida, em 20 de Julho de 2013, sentença que homologou, nos termos do artigo 17.º-F n.º 5 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, o plano de recuperação da Embargante A... S.A., vinculando todos os credores, mesmo que não hajam participado nas negociações, nos termos do artigo 17.º-F, n.º 6 do CIRE.

xiii. A sentença transitou em julgado no dia 07 de Agosto de 2013.

xiv. Correu termos, no Juízo do Comércio, J3, da Comarca ..., processo de insolvência com o n.º 1299/15...., em que figura como Requerida a sociedade Embargante A... S.A..

xv. No âmbito desse processo foi proferida, em 11 de Setembro de 2015, sentença que declarou a insolvência da sociedade Embargante A... S.A..

xvi. No âmbito desse processo foi proferida, em 3 de Outubro de 2017, sentença que homologou o plano de insolvência (consolidado) aprovado.

xvii. A Embargante A... S.A. não cumpriu pontualmente as obrigações emergentes do plano de insolvência.

xviii. Por conta do plano de insolvência, a sociedade Embargante A... S.A. entregou ao Exequente a quantia de 7.552,85 euros, alocada ao contrato referido em i).

xix. Em 08 de Junho de 2021 o Exequente comunicou aos Embargantes o incumprimento do plano de insolvência e interpelou-os para procederem ao pagamento dos montantes em divida.

xx. À data do preenchimento da livrança, encontrava-se em divida 64.822,14 euros de capital, juros de 20.798,47 euros e imposto de selo sobre estes no valor de 831,94 euros.

xxi. O capital vencido desde Outubro de 2016 a Dezembro de 2017 é de 16.958,81 euros, ao que acrescem juros remuneratórios de 795,64 euros e moratórios de 2.546,14 euros e o imposto de selo sobre juros de 167,06.

III - Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 635º, nº 4, e 639º, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, a única questão a resolver é a seguinte.

- Prescrição da obrigação.

 

2. Na sentença recorrida escreveu-se que:

“k. O artigo 310.º, al. e) do Código Civil sujeita ao prazo de prescrição quinquenal as quotas de amortização de capital pagáveis com juros.

Assim, apesar das quotas de amortização de capital e os juros serem figuras distintas, tornou-se frequente que as duas prestações pecuniárias apareçam combinadas na praxis negocial sob a forma de prestações pecuniárias híbridas ou mistas, constituídas simultaneamente por uma componente de restituição e outra de remuneração do capital.

O legislador entendeu sujeitar tais obrigações híbridas ou mistas de capital e juros a um mesmo prazo de prescrição quinquenal em homenagem à natureza unitária destas obrigações, que não são assim obrigações autónomas ou individuais de capital e de juros, consubstanciando antes uma obrigação pecuniária única e incindível com uma dupla função económica: proteger o devedor contra a acumulação excessiva da dívida e incentivo ao credor para diligenciar o exercício tempestivo dos seus créditos 14.José Engrácia Antunes, em A Moeda, Almedina, pág. 570 e ss.

Assim, o prazo de prescrição quinquenal é aplicável de forma escalonada às diversas prestações, de acordo com o plano de pagamento contratualizado e é aplicável mesmo no caso de vencimento antecipado de todas as prestações.

Neste sentido, foi proferido AUJ n.º 6/2022 de 22 de setembro, publicado no DR n.º 184/2022, Série I de 2022/09/22, com o seguinte sumário:

No caso de quotas de amortização do capital mutuado pagável com juros, a prescrição opera no prazo de cinco anos, nos termos do artigo 310.º alínea e) do Código Civil, em relação ao vencimento de cada prestação. II - Ocorrendo o seu vencimento antecipado, designadamente nos termos do artigo 781.º daquele mesmo diploma, o prazo de prescrição mantém-se, incidindo o seu termo 'a quo' na data desse vencimento e em relação a todas as quotas assim vencidas.”

Deste modo, quanto ao Embargante Avalista mostram-se prescritas as quotas de amortização de capital pagáveis com juros vencidas até 27 de setembro de 2016.

O que significa que o Embargante – avalista apenas poderá ser responsabilizado pelo capital vencido desde outubro de 2016 a dezembro de 2017 no valor de 16.958,81 euros, acrescidos de juros remuneratórios de 795,64 euros e moratórios de 2.546,14 euros.

O imposto de selo sobre juros de 167,06 euros.”.

A recorrente discorda (cfr. as respectivas conclusões de recurso), com invocação de dupla argumentação. Uma não pode ser acolhida, a outra sim.

Por um lado (conclusão 23.), diz a apelante bem se ver que a alínea e) do art. 310º do CC, não pode ser aplicada ao crédito exequendo, devendo, sim, ser aplicado o prazo geral de prescrição de 20 anos, previsto no art. 309º do CC, pois não estamos perante quotas de amortização do capital pagáveis com os jurosnem quaisquer outras prestações periodicamente renováveis”.

Se fossem estes citados normativos os que cabia aplicar, que não são, a recorrente não teria razão, pois a interpretação a levar a cabo seria a realizada pelo mencionado AUJ 6/2002, que a apelante ignora olimpicamente, apesar da sentença recorrida invocar tal acórdão uniformizador para a sua decisão. Ou seja, por aqui o recurso improcederia.

Mas por outro lado, e com inteiro cabimento, a recorrente toca no ponto essencial da questão recursiva, ao argumentar que ofereceu à execução uma livrança subscrita pela sociedade executada e avalizada pelo embargante/recorrido, não se podendo questionar que a livrança dada à execução não incorpore obrigações cambiárias, da responsabilidade dos seus subscritores, designadamente o avalista, sendo que se o título dado à execução é uma livrança a causa de pedir radica nessa mesma livrança, a ação é cambiária e não causal. (conclusões 25., 28. e 29.).

Efectivamente, estamos, face ao avalista/recorrido, perante uma acção executiva cambiária directa.  

A acção cambiária é a que emerge directamente de uma letra/livrança, em que se pede o valor do título, isto é o pagamento dela, e em que a causa de pedir é a assinatura destas, no caso a aposição de um aval e respectiva assinatura pelo recorrido (vide Abel Delgado, LULL Anotada, 5ª Ed., notas 8. e 9. ao artigo 28º, págs. 163/164 e 168/169).

Nos termos do art. 32º, 2º parágrafo, da LULL a obrigação do avalista permanece mesmo no caso da obrigação que ele garantiu ser nula por qualquer razão, salvo vicio de forma. Ou seja, salvo casos contados, que no caso não se verificam, a regra legal é a não autorização do avalista para invocar contra o credor os meios de defesa próprios do avalizado.

A prescrição a considerar é, pois, e unicamente a cambiária.

Dispõe o art. 70º da LULL, ex vi do art. 77º do mesmo diploma, no 1º parágrafo, que todas as acções contra o subscritor relativas a livranças prescrevem em três anos, a contar do seu vencimento.

Tal prazo de 3 anos é também aplicável à acção contra o avalista do subscritor que se encontra vinculado da mesma maneira que este, nos termos do art. 32º, 1º parágrafo, da LULL, ex vi do referido art. 70º. Como é, aliás, posição jurídica unânime (vide, a título de exemplo, Oliveira Ascensão, D. Comercial, Vol. III, pág. 227, Abel Delgado, ob. cit., notas 3. e 11. ao artigo 70º, págs. 389 e 393, Pinto Furtado, Títulos de Crédito, 1ª Ed., pág. 211 e Carolina Cunha, Manual de Letras e Livranças, pág. 159).

A livrança, apresentada como titulo executivo, tem data de vencimento de 22 de Julho de 2021 e a acção deu entrada em juízo em 22.9.2021. Deste modo, considerando que o prazo de prescrição começa a contar da data do vencimento, conclui-se que o direito cambiário contra o avalista não se mostra prescrito.

Duas notas mais.

Primeira. Embora seja verdade que a livrança exequenda foi emitida em branco, apenas com as assinaturas do obrigado mutuário, a mencionada sociedade, e dos respetivos avalistas não mutuários, incluindo o embargante/recorrido/avalista, para que o direito cambiário se possa dizer constituído e o titulo se configure como suporte do seu exercício é necessário que ocorra o respetivo preenchimento, pelo que até ao preenchimento da livrança não há fundamento legal para aplicar o dito regime previsto no art. 70º da LULL. Mas preenchida a livrança já há razão de ser para tanto, a contar da data aposta como sendo o vencimento.

Segunda. Observe-se, então, que uma das questões decididas na 1ª instância foi a de que inexistia abuso no preenchimento da livrança, nomeadamente quanto à data de vencimento, e o recorrido não reagiu (interpondo recurso ou ampliando o objecto do recurso), pelo que tal questão se mostra definitivamente encerrada.

Importa, por isso, revogar a decisão recorrida nesta parte e tirar as devidas consequências, que já foram retiradas na 1ª instância em relação à embargante sociedade, e que agora quanto ao avalista apelado reclamam semelhante solução.

À data do preenchimento da livrança, encontrava-se em divida 64.822,14 euros de capital, juros de 20.798,47 euros e imposto de selo sobre estes no valor de 831,94 euros (facto xx.). Em face do provado, conclui-se que o exequente inseriu no titulo uma quantia superior à devida, o que consubstancia uma mera discrepância relacionada com a configuração das menções a introduzir no titulo e cuja consequência prática se reconduz à reconfiguração da pretensão cambiária de modo a contê-la dentro dos limites excedidos. Ou seja, o valor a introduzir na livrança devia ter sido outro, apenas a quantia de 86.452,55 €. É, pois, este o valor pelo qual o avalista responderá, valor igual ao do seu avalizado (art. 32º, 1º parágrafo, da LULL).   

(…)

IV – Decisão

 

Pelo exposto, julga-se o recurso procedente quanto ao embargante AA e, consequentemente, determina-se o prosseguimento da execução contra ele para pagamento da quantia de 86.452,55 € no demais se mantendo o decidido na 1ª instância.  

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Custas a cargo de recorrente/recorrido na proporção do vencimento/decaimento, respetivamente.

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                                                                                  Coimbra, 12.4.2023

                                                                   Moreira do Carmo

                                                                                  Fonte Ramos

                                                                                  Alberto Ruço