Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
577/07.0TBCNT-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FREITAS NETO
Descritores: TÍTULO EXECUTIVO
LETRA DE CÂMBIO
LETRA EM BRANCO
ACORDO DE PREENCHIMENTO
Data do Acordão: 12/20/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CANTANHEDE 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 46.º, N.º 1-C) DO CPC; 28.º; 30.º E 31.º LULL
Sumário: 1. O aceite e o aval apostos numa letra de câmbio importam o reconhecimento de obrigações pecuniárias nos termos da LULL. Enquanto documento assinado pelos obrigados cambiários, a letra assume perante eles a natureza e força de título executivo, nos termos do art.º 46, nº 1, al.ª c) do CPC.
2. O reconhecimento de uma obrigação fundamental por aceitante e avalista, a par da vinculação cambiária pela assinatura inerente ao aceite e ao aval (artigos 28.º, 30.º e 31.º da LULL), não pode deixar de obstar à discussão daquela obrigação como causa do título, sem prejuízo da possibilidade de controvérsia sobre factos modificativos ou extintivos ocorridos posteriormente àquele reconhecimento.
Decisão Texto Integral: Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

Na execução para pagamento de quantia certa que no 2º Juízo do Tribunal Judicial de Cantanhede A..., LDA, move a B..., LDA, C... e mulher D... , vieram os executados deduzir oposição alegando, em síntese:

Nada devem à exequente, uma vez que a letra dada à execução lhe foi entregue em branco em garantia de uma dívida que foi oportunamente liquidada, mas sem que tivesse sido dada a correspondente quitação;

Houve preenchimento abusivo da letra, pelo que a mesma é nula como título executivo;

Os executados C...e D..., demandados na qualidade de avalistas, não renunciaram ao benefício da excussão prévia, pelo que não podiam ser nomeados à penhora os seus bens pessoais;

Além disso, a executada sociedade é detentora de um estabelecimento comercial de valor superior a € 150.000,00, que deve substituir os bens indicados à penhora.

Rematam pedindo a extinção da execução face à procedência da oposição, ou, pelo menos, a substituição dos bens penhorados.

Contestando, contrapôs a exequente ser falso que a letra exequenda se tivesse destinado a garantir uma dívida já paga; que o preenchimento do título obedeceu ao determinado numa autorização constante de confissão de dívida subscrita pelos executados, que expressamente renunciaram ao benefício da excussão prévia.

Termina com a improcedência da oposição.

Saneado o processo, requereram os oponentes no prazo do art.º 512 do CPC, além do mais, a realização de prova pericial, na modalidade colegial, para “perícia às contabilidades”, indicando como objecto respectivo o de auxiliar a resposta aos nºs 1, 3 a 24, 26, 27 e 28 da b.i., e formulando um conjunto de quesitos.

Ouvida, a exequente opôs-se argumentando que a matéria que seria objecto da perícia é totalmente irrelevante para a que se discute na base instrutória.

De seguida, foi proferido o despacho de fls. 148-148 v, nos termos do qual tal perícia foi indeferida por não se vislumbrar que fosse necessária para a prova dos factos alegados.

Irresignados, deste despacho recorreram os oponentes, recurso admitido como de agravo, com subida diferida em separado e efeito meramente devolutivo.  

Durante a audiência de julgamento, foi pelo i. mandatário dos executados requerida a reinquirição de todas as testemunhas inquiridas na sessão de 21/01/2011, a que aquele havia faltado, abrigando-se no disposto no art.º 655, nº 5 do CPC.

Indeferida tal pretensão, desse despacho interpuseram os executados recurso, admitido como de agravo, com subida diferida nos próprios e efeito meramente devolutivo.

Todavia, não foi este agravo devidamente alegado, pelo que se impõe agora declarar a sua deserção, nos termos do art.º 291, nºs 2 e 4, do CPC.

A final foi proferida sentença que julgou improcedente a oposição, determinando o prosseguimento da execução; e condenou todos os oponentes como litigantes de má-fé, sendo os executados C...e D... no pagamento, cada um deles, da multa de 10 Ucs e a executada B... na multa de 20 Ucs.

Inconformados, recorreram todos os oponentes, recurso admitido como de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e efeito meramente devolutivo.

A exequente respondeu, pugnando pela confirmação integral da decisão recorrida.

Colhidos os vistos, cumpre agora decidir.

                                                                            *

Foram os seguintes os factos dados como provados na 1ª instância:

1) A exequente instaurou acção executiva contra B..., Lda., C... e D..., dando à execução a letra junta aos autos de execução a fls. 9, cujo conteúdo para todos os efeitos se dá aqui como integralmente reproduzido.

2) Os executados C... e D... são gerentes da executada B... (cfr. fls. 121 e ss).

3) A sociedade oponente desde há vários anos que mantém transacções comerciais com a sociedade oponida.

4) Os movimentos resultantes dessas transacções comerciais eram lançados em conta corrente.

5) Por documento elaborado a 20/3/2006, denominado "Confissão de Dívida e Constituição de Garantia", junto aos autos a fls. 71 e cujo teor aqui se dá por reproduzido, assinado pelos executados C...e D..., enquanto gerentes da executada B..., Lda, a executada B...reconheceu dever à exequente a quantia de €36.192,22.

6) Que se comprometeu a pagar em 19 prestações mensais e sucessivas, de €1.800,00 e uma última de €1.992,22, vencendo-se a primeira a 15/04/2006.

7) De tal documento consta ainda que os executados C...e D... se obrigam ao pagamento da referida quantia, na qualidade de fiadores e avalistas da sociedade, e renunciando ao benefício da prévia excussão.

8) Mais se diz que, para pagamento das prestações, a executada B...aceita uma letra em branco, para ser entregue à exequente, ficando esta sociedade autorizada a preenchê-la com o valor da quantia em dívida e a data do vencimento, letra essa avalizada pelos executados C...e D....

9) A letra referida em 1) foi entregue à exequente pela executada para garantia do pagamento de quantias que se encontravam em dívida desta àquela.

10) Bem como para pagamento de quantias em dívida pelo executado à exequente do tempo em que actuava em nome individual.

11) A letra apenas continha o carimbo da sociedade executada e a assinatura do executado e da executada D....

12) A executada pagou à exequente €600,00, através do cheque 453157940, datado de 23/6/2004.

13)  €6.000,00 através do cheque 072317955, datado de 19/7/2004.

14)  €3.000,00 através do cheque 6623157970, datado de 7/8/2004.

15)  €1.497,64 através do cheque 8223157979, datado de 26/8/2004.

16)  €157,00 através do cheque 4623157983, datado de 12/9/2004.

17)  €1.000,00 através do cheque 7224964111, datado de 7/10/2004.

18)  €2.500,00 através do cheque 1824064117, datado de 9/11/2004.

19)  €2.125,00 através do cheque 5224064124, datado de 30/11/2004.

20)  €416,77 através do cheque 4324064125, datado de 8/12/2004.

21)  €1.000,00 através do cheque 0724064129, datado de 16/2/2005.

22)  €250,00 através do cheque 6424064155, datado de 23/02/2005.

23)  €1.000,00 através do cheque 9524064130, datado de 16/3/2005.

24)  €1.000,00 através do cheque 5924064134, datado de 13/4/2005.

25)  €1.000,00 através do cheque 5024064135, datado de 11/5/2005.

26)  €1.000,00 através do cheque 4124064136, datado de 15/6/2005.

27)  €2.000,00 através do cheque 3224064137, datado de 13/7/2005.

28)  €3.656,25 através da letra datada de 9/8/2005, efectuado via Finibanco no BPI.

29)  A executada pagou, em 19/03/2007, através do cheque n.º 3244716556 da C.C.A.M. de Cantanhede, €10.000,00 à exequente.

30) A exequente preencheu a letra mencionada em 1) depois do referido em 29).

31) A executada B..., Lda., tem um estabelecimento de produção e venda de flores, composto de estufas e maquinaria.

32) Até Agosto de 2002, o executado C... dedicava-se em nome individual à produção e venda de flores.

33) E era cliente da exequente.

34) Em finais de Agosto de 2002, o executado C... pediu à exequente para encerrar a conta corrente que existia entre ambos e para passar a facturar as vendas em nome da sociedade B..., Lda.

35) E por isso, a exequente encerrou a conta corrente e apurou que o executado C...lhe devia a quantia de €16.604,29.

36) O executado C...passou e entregou à exequente o cheque n.o 2484549664, no valor de €16.604,29, sacado sobre o Banco Pinto e Sotto Mayor.

37) O cheque referido em 36) foi retido em carteira pela exequente, a pedido do executado.

38) E não foi pago.

39) O executado C...repartiu a quantia de €16.604,29 por vários outros cheques e/ou letras, tendo alguns destes sido devolvidos por falta de provisão e as letras reformadas.

40) Alguns dos cheques e letras referidos em 12) a 28) foram emitidos para pagamento da quantia de €16.604,29.

41) Os cheques emitidos pela executada B... à exequente vinham muitas vezes devolvidos por falta de provisão e eram substituídos por outros cheques.

42) E outros eram devolvidos à executada a pedido desta.

43) As letras emitidas pela Executada eram muitas vezes reformadas.

44) Quando a executada não pagava as despesas e juros de reformas das letras de imediato, a exequente emitia notas de débito.

45) Quando a executava pagava de imediato as despesas e juros referentes às reformas das letras, a exequente não inscrevia esses pagamentos na conta corrente porque emitia recibo relativamente à aceitação das letras iniciais.

46) A exequente não inscrevia na conta corrente os pagamentos efectuados por cheques emitidos para substituir outros cheques porque emitia recibo relativamente às quantias referentes aos cheques iniciais.

47) Os cheques referidos em 14),15),16),18),19),20) e a letra referida em 28) são cheques de substituição de outros cheques que foram devolvidos por não serem pagos ou que não foram apresentados a pagamento a pedido da executada ou são cheques para pagamento de despesas de reformas de letras.

48) E por isso não entraram na conta corrente.

49) A exequente sempre emitiu recibos dos pagamentos efectuados pelos executados.

50) Em 15/6/2005, a conta corrente existente entre a exequente e a executada B... apresentava um saldo negativo de cerca de €24.233,22.

51) Referente a fornecimentos e a juros vencidos e despesas bancárias de reformas de letras.

52) A que acrescia €13.875,00 relativamente a 5 cheques pré-datados que haviam sido entregues pela executada à exequente e que depois foram por esta devolvidas ao executado C..., a pedido deste.

53) E a que acrescia €1.625,00 relativa a um cheque emitido em nome do executado C...e devolvido por falta de provisão.

54) E ainda €1.459,00 relativos a reforma e despesas de uma letra, aceite pela executada e reformada.

55) A exequente e os executados acordaram em como a quantia de €24.233,22 seria repartida por duas letras, de €12.116,61, aceites pelos executados e com vencimentos a 90 e a 120 dias.

56) E, por isso, os executados C...e D... assinaram as letras com os n.os 500792887044087527 e 500792887044087535, que foram entregues em branco à exequente, para esta acabar de preencher e proceder ao depósito bancário.

57) A exequente e os executados acordaram em como a quantia de €13.875,00 seria paga através de uma letra.

58) E, por isso, os executados C...e D... assinaram a letra com o n.o 500792887044083963, que foi entregue em branco à exequente, para esta acabar de preencher e proceder ao depósito bancário.

59) A exequente e os executados acordaram em como as quantias referidas em 53) e 54) seriam pagas através de uma letra.

60) E, por isso, os executados C...e D... assinaram a letra com o n.o 500792887044083190, que foi entregue em branco à exequente, para esta acabar de preencher e proceder ao depósito bancário.

61) Entre 15/06/2005 e 20/03/2006, os executados pagaram à exequente, com referência às quantias referidas em 50) a 55), cerca de €5.000,00.

62) Em 20/3/2006, a exequente e os executados acordaram em como estes emitiriam um documento no qual reconhecessem a dívida em face da exequente e garantissem o pagamento da mesma e elaborassem um pagamento.

63) E, por isso, elaboraram e assinaram todos o documento referido em 5).

64) Em virtude do referido, os executados C...e D... assinaram uma letra em branco, o primeiro na qualidade de gerente da executada B... e enquanto aceitante e ainda na qualidade de avalista da executada B... e a segunda na qualidade de avalista da executada B..., e entregaram-na à exequente.

65) E, para o efeito, utilizaram a letra referida em 59), dado que esta se encontrava na posse da exequente e que foi assinada pelos executados, nas qualidades em que se encontra.

66) A quantia a que se alude em 29) foi paga por referência às quantias referidas em 50) a 55).

67) Em audiência de julgamento, foi prestado depoimento de parte pelo executado C..., que negou todos os factos relacionados com a existência da dívida à exequente (cfr. fls. 393).

                                                                                 *

Por revestir interesse para a decisão, adita-se o seguinte à matéria de facto:

68) A letra dada à execução tem o valor de € 29.449,52, data de emissão de 20/03/2006, vencimento 13/04/2007, encontrando-se subscrita no lugar do aceite pela executada B... , Lda, e sob a indicação “dou o meu aval” pelos executados C...  e D.... 

                                                                                *

O agravo.

Nas conclusões com que encerram a respectiva alegação os oponentes põem como única questão a que se liga a saber se a perícia à contabilidade da exequente constitui uma diligência instrutória indispensável ao melhor esclarecimento dos factos articulados.

Não houve contra-alegação por banda da exequente.

O despacho recorrido foi sustentado.

Cumpre decidir.

Nos termos do disposto no art.º 265, nº 1 do CPC, cumpre ao juiz “providenciar pelo andamento regular e célere do processo, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção e recusando o que for impertinente ou meramente dilatório”.

E à luz do art.º 513 do mesmo diploma “a instrução tem por base os factos relevantes para o exame e decisão da causa que devam considerar-se controvertidos ou necessitados de prova”.

Organizada a base instrutória é a partir desta que se há-de apurar o conjunto dos factos relevantes sobre os quais recairão as diligências de prova.

Na base instrutória, nomeadamente nos nºs 1 , 3 a 24 e 26, 27 e 28, está sob averiguação a natureza garantística da letra exequenda e a efectivação um conjunto de pagamentos pela executada sociedade, mas sem que se mostre questionada qualquer conexão desses pagamentos com a dívida supostamente garantida.

Daí que a eventual comprovação desses pagamentos parcelares se antolhe como perfeitamente inócua para a relação fundamental ou subjacente à emissão do título. Acresce que a prova desses pagamentos sempre seria facilmente lograda através da demonstração do desconto dos cheques e letras aí mencionados. No que concerne à invocada natureza da letra - de mera garantia - também não seria o registo contabilístico da exequente o meio idóneo à respectiva demonstração.

Pelo que nenhuma crítica merece a decisão recorrida ao rejeitar a requerida perícia contabilística.

Improcede assim o fundamento do agravo.   

A apelação.

Os recorrentes fecham a respectiva alegação com um enunciado conclusivo em que dificilmente se conseguem ver definidas as questões a resolver no recurso. No entanto, dado que ali não é elencado um único ponto da decisão de facto que deva ser alterado, não há qualquer impugnação que a este propósito deva ser considerada.

Assim, só nos é possível descortinar as seguintes duas únicas questões:

1º - Se está demonstrado que, não obstante a assinatura em 20 de Março de 2006 do documento em que se materializa a confissão de dívida que suporta a execução, nenhuma dívida comercial da executada à exequente subsistiu após 2005 em termos que pudessem justificar a emissão de letras pela executada;

2º - Se nada demonstra a litigância de má fé dos oponentes, nomeadamente, quando estes se limitaram ao uso dos meios processuais que estavam ao seu dispor para de boa fé evidenciarem a inexistência da dívida.    

Quanto à inexistência da dívida exequenda.

Contra o decidido objectam essencialmente os recorrentes que a dívida que resulta pressuposta no título não ficou provada.

Mas não têm o mínimo apoio.

Vejamos antes de mais em que consiste o título.

Conforme está plasmado no documento, junto a fls. 71 sem impugnação dos oponentes, que as partes denominaram de Confissão de dívida e constituição de garantia, datado de 20/03/2006, a executada B..., Lda, confessa-se devedora à sociedade A..., Lda, da quantia de € 36.192,22, que se compromete a pagar em 19 prestações mensais iguais e sucessivas de € 1.800,00, vencendo-se a primeira no dia 15 de Abril de 2006. No mesmo documento “ C... e D... assumem pessoalmente, na qualidade de fiadores e avalistas, a dívida da referida sociedade ora confessada, garantindo expressa e pessoalmente o bom pagamento e pontual pagamento da dívida, obrigando-se solidariamente com ela, e como principais pagadores pessoalmente perante a sociedade (…) a pagar as prestações referidas ou a totalidade da quantia em dívida, renunciando a todo e qualquer benefício, designadamente os de prévia excussão (…). Mais aí ficou consignado que “Como garantia do bom cumprimento da obrigação e do pagamento de tais prestações a sociedade B... aceita uma letra que irá ser entregue à sociedade A..., Lda, com o valor e a data de vencimento em branco, ficando esta sociedade, desde já, autorizada a preenchê-la pelo valor da quantia em dívida ou quantia referente às prestações vencidas e não pagas e a fixar-lhe e inscrever-lhe a data do seu vencimento (…)” e que “os abaixo assinados C... e mulher D... irão avalizar a referida letra, apondo, pelo seu punho, a sua assinatura por baixo da expressão “Dou o meu aval à sociedade aceitante B..., Lda” (…).

O título dado à execução é uma letra, com o aceite da executada sociedade e os avales dos restantes executados.

O aceite e o aval apostos numa letra de câmbio importam o reconhecimento de obrigações pecuniárias nos termos da LULL. Enquanto documento assinado pelos obrigados cambiários, a letra assume perante eles a natureza e força de título executivo, nos termos do art.º 46, nº 1, al.ª c) do CPC.

Mas a letra exequenda foi entregue em branco, apenas assinada pelos executados.

Para isso ter acontecido emitiram estes a declaração de fls. 76, na qual se declaram devedor e fiadores diante da exequente em relação a uma concreta obrigação pecuniária.

A letra agora dada à execução é, por conseguinte, a mesma que foi aceite e avalizada pelos executados a partir deste documento.

Toda a letra tem na génese da sua emissão e entrada em circulação uma causa, que corresponde à vontade de alguém se constituir devedor cambiário de outrem. Entre o sacador e o sacado que apõe o aceite, há, em princípio, uma relação causal, também chamada relação fundamental, que compreende o acordo subjacente à vinculação cambiária. Esta relação fundamental ou subjacente pode não corresponder a uma obrigação pré-existente do devedor, como acontece nas chamadas letras de favor, nas quais que, apesar de tudo, o aceitante quer a circulação do título e sua utilização pelo credor cambiário como verdadeira letra. Essencial para que o devedor cambiário deva responder enquanto tal é que subjacente à intervenção no título exista a vontade de criar um crédito para aquele que se venha a revelar como titular do direito cambiário. Quando isto não sucede, a letra não pode operar como título de dívida válido perante o aceitante, visto que não há correspondência entre a relação abstracta e a situação concretamente verificada.

Na oposição que deduziram os executados - aceitante e avalistas da letra que foram, simultaneamente, subscritores do documento (acima transcrito) em que a executada B...se reconhece e declara devedora à ora exequente da quantia de € 36.192,22 em 20 de Março de 2006 - vem alegada matéria factual tendente a evidenciar um determinado relacionamento comercial que supostamente teria culminado na inexistência de qualquer dívida nessa data, em função do saldo da conta corrente entre a exequente e o oponente C...(levado a 0 em 2003) e entre esta e a sociedade B...(que seria também de 0 em 2005).

Da factualidade apurada não resultou - nem podia resultar - que a letra não tivesse na sua base uma obrigação pecuniária a cargo dos executados. É que , mesmo que se provasse tudo o que foi levado à base instrutória, nunca se saberia se os pagamentos invocados pelos oponentes tiveram por objectivo liquidar a dívida de € 36.192.22 aludida no documento de 20 de Março de 2006.

Mais: ex abundanti, dos factos provados em 62 a 65 decorre que os executados reconheceram a dívida da sociedade B...naquele montante em 20 de Março de 2006, o que não representa outra coisa senão a eficácia probatória do aludido documento.

Ao fazer acompanhar a letra assinada em branco da aludida confissão de dívida a exequente pretendeu assegurar o contrato de preenchimento do título, prevenindo-se justamente contra a eventual invocação da excepção do seu abusivo preenchimento.

No documento de Março de 2006 os oponentes autorizaram expressamente o preenchimento da letra pelo valor fixado à dívida da sociedade B...em função do plano de pagamento aí estabelecido.

É que o reconhecimento de uma obrigação fundamental por aceitante e avalista, a par da vinculação cambiária pela assinatura inerente ao aceite e ao aval (art.ºs 28, 30 e 31 da LULL), não pode deixar de obstar à discussão daquela obrigação como causa do título, sem prejuízo, como é evidente, da possibilidade de controvérsia sobre factos modificativos ou extintivos ocorridos posteriormente àquele reconhecimento.

Em todo o caso, a defesa dos oponentes restringiu-se à circunstância de não haver qualquer dívida à exequente na data do documento de fls. 71 e, em consequência, na data nunca anterior do preenchimento da letra que o acompanhou.

Pelo que esta questão tem forçosamente de improceder.     

  

Sobre a litigância de má fé.

A decisão recorrida que condenou os oponentes como litigantes de estribou-se essencialmente nas premissas de que nada do alegado pelos oponentes ficou provado, de que a dívida não se encontra paga, houve renúncia ao benefício da excussão, e de que não ficara comprovado o preenchimento abusivo. Tratar-se-ia de uma oposição conscientemente infundada e, segundo a decisão recorrida, mesmo dolosamente apresentada.

Contra isto se insurgem agora os recorrentes, e, ao que se nos afigura, com razão.

É que uma coisa é a relativa certeza de que os executados actuaram cientes da falta de fundamento da sua tese, outra, bem diversa - como aliás foi realçado naquela decisão - é o mero resultado do insucesso ou incapacidade em os executados lograrem a prova do alegado ou da sua tese jurídica.

Pois bem: não obstante os executados afirmarem que não deviam à exequente em 20 de Março de 2006 o montante inscrito na letra, não se evidencia que eles estivessem totalmente por dentro da contabilidade que emergiu do complexo relacionamento comercial entre o executado C..., a executada B.... Dessa forma, pode considerar-se plausível que estivessem convencidos de que o valor aposto na letra não seria devido, em função dos pagamentos efectuados ao longo dos anos, por aí se compreendendo a alegação do preenchimento abusivo do título. Quando muito pode detectar-se alguma displicência na forma de governo da actividade empresarial dos executados que facilmente os pôde remeter para uma situação maior fragilidade perante credores como a exequente.

Assim sendo, não se vislumbra matéria suficiente para se concluir por dolo ou negligência grave na oposição deduzida, sendo que esse elemento psicológico é inseparável do actual conceito legal de litigância de do art.º 456, nº 2 do CPC.

Donde que não seja de manter esta condenação dos apelantes.

Pelo exposto acordam em:

a) Julgar deserto por falta de alegação, nos termos do art.º 291, nºs 2 e 4 do CPC, o agravo interposto pelos executados a fls. 448, e admitido a fls. 465, com custas pelos agravantes;

b) Negar provimento ao agravo interposto a fls. 160, e admitido a fls. 168;

c) E julgar parcialmente procedente a apelação interposta da sentença, revogando esta na parte em que condenou os executados e oponentes como litigantes de má fé, mas mantendo-a no restante.

Custas do agravo pelos agravantes vencidos; da apelação na proporção de 7/8 para os apelantes e 1/8 para a apelada.      

Freitas Neto (Relator)

Carlos Barreira

Barateiro Martins