Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1400/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CASSAÇÃO DA LICENÇA DE CONDUÇÃO
CONTRA-ORDENAÇÃO
Data do Acordão: 07/05/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE ALCOBAÇA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO 148º DO CÓDIGO DA ESTRADA
Sumário:
1. É a prática de contra-ordenações, em número e no período temporal referido no artigo 148º, nº. 2, do Código da Estrada, que releva para efeitos de cassação da carta ou licença de condução.

2. Por isso, é irrelevante que as respectivas coimas ou sanções acessórias aplicadas tenham sido efectivamente cumpridas ou que as mesmas se considerem prescritas.

Decisão Texto Integral:

Acordam , em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

Relatório

Pelo 1º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça, sob acusação do Ministério Público foi submetido a julgamento em processo comum , com intervenção do Tribunal Singular, o arguido
A..., residente na Rua José Diogo Ribeiro, n.º 44, 3º esq., Turquel, Alcobaça,
requerendo-se, nos termos do disposto nos arts. 148.º, n.º1 , al.a) e n.º2 , al. a) e b) e 149.º , do Código da Estrada, a cassação do título de condução do arguido, com a consequente interdição de concessão do mesmo.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 7 de Novembro de 2005 decidiu , ao abrigo do disposto na al. a) do n.º 1 do art. 148º do Código da Estrada e al. b) do n.º 2 do mesmo preceito legal, ordenar a cassação da carta de condução de que o arguido A... é titular, não lhe podendo ser concedida nova carta ou licença de condução pelo período de dezoito meses.

Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido A..., concluindo na sua motivação:
a) A ordenação da cassação da carta de condução aplicada ao Recorrente, foi efectuada com base no alegado preenchimento do art. 148.º do Código da Estrada;
b) Quando na realidade os seus pressupostos não se encontram reunidos.
c) Houve pois clara violação dessa norma.
d) Houve também violação do disposto nos artºs 29.º, n.º 1 als. a) e b), 17.º, 27.º als. a), b) e c) do Regime Geral das Contra-Ordenações.
e) Foram tomados em consideração processos de contra-ordenação cujas coimas e sanções de inibição de conduzir se encontravam já prescritas e que não podem por isso servir de fundamento e moldura penal para determinar o preenchimento e moldura penal do mencionado art.148.º do Código da Estrada.
f) A douta sentença recorrida é manifestamente contraditória quando ao dar como provado que as condições sócio-económicas do Recorrente se limitam a este viver apenas de um rendimento de € 500,00 mensais que este aufere como empresário do ramo da construção civil e dai ter de providenciar o sustento da esposa e de dois filhos menores, para depois, se considerar que o mesmo dispõe de meios económicos para contratar e pagar a um condutor no período de pelo menos dezoito meses em que esteja impedido de obter a licença de condução. g) A douta sentença recorrida também é contraditória quando, por um lado afirma que o Recorrente é bom condutor, e por outro, o considera um condutor perigoso na actividade de condução, sendo que não se compreende que um bom condutor é um condutor perigoso e que essa perigosidade determine a cassação da respectiva licença de condução.
h) Também não ficou provado no exame médico-legal que o arguido revele um carácter vincado da personalidade no desrespeito dos mais elementares cuidados estradais.
i) Existe uma incorrecta avaliação e valoração dos factos e uma desproporcionalidade manifesta entre os mesmos e a sanção que foi aplicada na douta sentença recorrida.
Termos em que e no mais douto suprimento de Vªs Exªs., deverá a douta sentença recorrida ser revogada e substituída por outra que não determine a cassação da licença de condução ao arguido, por terem sido tomados em conta factos prescritos, por contradições insanáveis patentes na mesma e por manifesta violação das supra citadas normas legais.

O Ministério Público respondeu ao recurso interposto pelo arguido pugnando pela improcedência do recurso e manutenção integral da sentença recorrida.

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal da Relação emitiu parecer no sentido da integral confirmação da douta decisão recorrida e consequente declaração de improcedência do recurso.

O arguido respondeu ao parecer do Ex.mo P.G.A. , mantendo a posição assumida no seu recurso.

Colhidos os vistos e realizada a audiência, cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto e respectiva motivação constante da sentença recorrida é a seguinte:
Factos Provados:
. por sentença proferida no âmbito dos autos de Processo Sumário n.º 342/99, do 1º Juízo (antigo n.º 118/99) do Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça, datada de 16.11.1998, foi o arguido A... condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 14º, n.º 1, 26º, 69º, n.º 1, al. a) e 292º, n.º 1, todos do Código Penal - CP -, na pena de 45 dias de multa, à razão diária de Esc. 1.000$00 e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 35 dias, por factos cometidos no dia 15.11.1998;
. por sentença proferida no âmbito dos autos de Processo Sumário n.º 443/00.0 GBCLD do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Caldas da Rainha, datada de 13.10.2000, foi o arguido A... condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 14º, n.º 1, 26º, 69º, n.º 1, al. a) e 292º, n.º 1, todos do CP, na pena de 40 dias de multa, à razão diária de Esc. 1.000$00 e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 40 dias, por factos cometidos no dia 03.10.2000;
. por decisão proferida pelo Sr. Delegado Distrital da Delegação de Viação de Leiria no dia 30.06.1999, nos autos de contra-ordenação n.º 303 230 975, que correram termos naquela Delegação de Viação, definitiva, foi arguido A... condenado pela prática de uma contra-ordenação grave, p. e p. pelos artigos 28º, n.º 4, 139º e 146º, al. b), todos do Código da Estrada - CE -, na coima de Esc. 30.000$00 e na sanção de inibição de conduzir pelo período de 90 dias, porquanto dia 19.10.1998, pelas 12h04m, na Estrada Nacional n.º 242, em Calhau, Nazaré, o arguido conduzia o veículo ligeiro de matrícula n.º 97-61-JS à velocidade de 81 km/h, quando naquele local a velocidade máxima permitida era de 50 km/h;
. por decisão proferida pelo Sr. Delegado Distrital da Delegação de Viação de Leiria no dia 10.04.2000, nos autos de contra-ordenação n.º 210 318 724, que correram termos naquela Delegação de Viação, definitiva, foi arguido A... condenado pela prática de uma contra-ordenação muito grave, p. e p. pelos artigos 28, n.º 4, 139º e 147º, al. h), todos do CE, na coima de Esc. 60.000$00 e na sanção de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, porquanto no dia 18.01.2001, pelas 8h41m, na EN 1, ao quilómetro 100, o arguido conduzia o veículo automóvel de matrícula n.º 73-81-IE à velocidade de 122 km/h, quando naquele local a velocidade máxima permitida era de 50 km/h;
. por decisão proferida pelo Sr. Delegado Distrital da Delegação de Viação de Leiria no dia 14.04.2000, nos autos de contra-ordenação n.º 209 731 885, que correram termos naquela Delegação de Viação, definitiva, foi arguido A... condenado pela prática de uma contra-ordenação grave, p. e p. pelos artigos 139º e 146º, al. j), ambos do CE e 60º, n.º 1, do Decreto Regulamentar n.º 22-A/98, de 1 de Outubro, na coima de Esc. 15.000$00 e na sanção de inibição de conduzir pelo período de 30 dias, porquanto no dia 10.02.2000, pelas 17h10m, na EN 8, em Lameiras, Alcobaça, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula n.º 73-81-LE e, ao efectuar a manobra de ultrapassagem, pisou e transpôs a linha longitudinal contínua separadora dos sentidos de trânsito;
. por decisão proferida pelo Sr. Delegado Distrital da Delegação de Viação de Leiria no dia 21.08.2000, nos autos de contra-ordenação n.º 210 321 938, que correram termos naquela Delegação de Viação, definitiva, foi arguido A... condenado pela prática de uma contra-ordenação grave, p. e p. pelos artigos 4º, n.º 1, 139º e 146º, al. i), todos do CE, na coima de Esc. 30.000$00 e na sanção de inibição de conduzir pelo período de 180 dias, porquanto no dia 02.03. 2000, pelas 17h52m, na EN 1, ao km 100, em Casais de Santa Teresa, Alcobaça, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, de matrícula n.º 71-16-NX, não tendo respeitado o sinal de paragem efectuado pelo agente de trânsito que se encontrava devidamente uniformizado;
. por decisão proferida pelo Sr. Delegado Distrital da Delegação de Viação de Leiria no dia 09.10.2000, nos autos de contra-ordenação n.º 212 062 549, que correram termos naquela Delegação de Viação, definitiva, foi arguido A... condenado pela prática de uma contra-ordenação grave, p. e p. pelos artigos 81º, n.º 1, 139º e 146º, al. m), todos do CE, na coima de Esc. 30.000$00 e na sanção de inibição de conduzir pelo período de 60 dias, porquanto no dia 28.06.2000, pelas 3h51m, na Rua Principal, Vimeiro, Alcobaça, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros, de matrícula 73-81-IE com uma TAS de 0,71 g/l;
. desde o dia 19.10.1998 até pelo menos ao dia 18.01.2001, o arguido comportou-se de forma adequada a criar perigos para a vida e integridade física dos demais utilizadores da estrada, resultado de acções voluntárias e conscientes, desrespeitadoras das normas que regem a circulação rodoviária;
. revelou indiferença, desrespeito e insensibilidade à advertência que lhe deveria ter servido a primeira condenação, revelando-se uma ineptidão para a condução de veículos automóveis em obediência às regas estradais;
. o arguido utiliza diariamente o veículo automóvel;
. o arguido é conhecido como pessoa boa condutora e utiliza o veículo automóvel no exercício da sua profissão;
. o arguido aufere € 500,00 mensais, sendo a única fonte de rendimentos da família;
. reside em casa dos pais;
. tem dois filhos menores a cargo;
. para além das condenações em penas referidas, o arguido foi condenado pelo Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça, por sentença datada de 16.11.1998, na pena de 45 dias de multa à taxa de Esc. 1.000$00 diários pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art. 292º do Código Penal e na sanção acessória de 35 dias de inibição de conduzir;
. foi ainda condenado pelo Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, por sentença datada de 03.02.2003, na pena de 4 meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de 2 anos pela prática de um crime de condução de desobediência, p. e p. pela al. b) do art. 348º Código Penal.
Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa não está demonstrado que:
. o arguido revele uma predisposição do foro psiquiátrico para a ingestão voluntária de bebidas alcoólicas antes de iniciar a condução;
. o arguido tenha actuado sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que as suas descritas condutas eram censuradas, proibidas e punidas por lei.
Fundamentação da matéria de facto
Para a decisão da matéria de facto o Tribunal procedeu a uma análise global e criteriosa de toda a prova produzida, que foi interpretada, conjugada e ponderada segundo cânones de razoabilidade, adequação e sempre em observância das regras por que se pauta o processo penal.
Assim, considerou, desde logo, os documentos juntos aos autos, nomeadamente de fls. 13, 14, 23, 24, 32, 33, 40, 41, 62, 63, 81 a 88 e 101 a 103.
Por outro lado, atendeu ainda às declarações do arguido, que reconheceu, na essência, os factos que lhe são imputados, negando, contudo, a sua perigosidade para a condução de veículos automóveis. Informou ainda da sua necessidade da carta de condução, pois que necessita do veículo automóvel para a sua profissão.
Foi ainda ouvido André Vicente, que, na essência, foi abonatória e informou que o arguido necessita da carta de condução para poder trabalhar.
Os antecedentes criminais resultam do certificado do registo criminal junto aos autos e os antecedentes contra-ordenacionais do registo individual de condutor igualmente ínsito nos autos.
No tocante à matéria de facto dada como não provada, o tribunal atendeu, na essência, o teor do relatório médico-legal de fls. 193 e 194, do qual resulta que o arguido não apresenta uma sintomatologia psicopatológica produtiva, assim evidenciando não apresentar um distúrbio do foro psiquiátrico conducente a uma dependência do álcool.
Relativamente aos termos de cada uma das suas actuações, dos documentos juntos aos autos resulta que nem sempre actuou com dolo, o que não obsta a que a sua culpa haja sido afirmada em cada um desses comportamentos, o que bem se compreende dado inexistir a aplicação de uma sanção sem a afirmação da culpa do agente.
De resto, este acaba por ser um facto que acaba por não relevar, dado que, conforme analisaremos infra, a aplicação da sanção de cassação da carta de condução prende-se com a reiteração de determinados comportamentos e não com as condutas consideradas uti singuli.

*
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , o Ac. do STJ de 19-6-96 , no BMJ 458º , pág. 98 ).
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .
No caso dos autos , face às conclusões da motivação do recorrente A... as questões a decidir são as seguintes :
- se o Tribunal recorrido violou o disposto nos art.s art.148.º do Código da Estrada e 29.º, n.º 1 als. a) e b), 17.º, 27.º als. a), b) e c) do Regime Geral das Contra-Ordenações , ao tomar em consideração os processos de contra-ordenação cujas coimas e sanções de inibição de conduzir se encontravam já prescritas;
- se a douta sentença é manifestamente contraditória ao dar como provado que o arguido vive apenas de um rendimento de € 500 mensais e dai ter de providenciar o sustento da esposa e de dois filhos menores, para depois, considerar que o mesmo dispõe de meios económicos para contratar e pagar a um condutor no período de pelo menos dezoito meses em que esteja impedido de obter a licença de condução;
- se a douta sentença recorrida também é contraditória quando, por um lado afirma que o Recorrente é bom condutor, e por outro, o considera perigoso na actividade de condução; e
- se o Tribunal recorrido fez uma incorrecta avaliação e valoração dos factos , havendo uma desproporcionalidade manifesta entre os mesmos e a sanção que foi aplicada na douta sentença recorrida.
Passemos à apreciação da primeira questão.
O art. 148º do Código da Estrada , na redacção do Decreto-Lei n.º 2/98 de 03 de Janeiro, aqui aplicável estatui , nomeadamente, o seguinte:
« 1- O tribunal pode ordenar a cassação da carta ou licença de condução quando:
a) Em face da gravidade da contra-ordenação praticada e da personalidade do condutor, este deva ser julgado inidóneo para a condução de veículos a motor".
b) O condutor seja considerado dependente ou com tendência para abusar de bebidas alcoólicas ou de substâncias legalmente consideradas como estupefacientes ou psicotrópicas.
2 - É susceptível de revelar a inidoneidade para a condução de veículos a motor a prática, num período de cinco anos, de:
a) três contra-ordenações muito graves;
b) cinco contra-ordenações graves ou muito graves.».
A cassação da carta de condução visa impedir o exercício da condução a quem , que em face das gravidade das contra-ordenações e da sua personalidade, se revela inidóneo para a condução de veículos a motor.
O recorrente defende nas conclusões da motivação que foram tomados em consideração processos de contra-ordenação cujas coimas e sanções de inibição de conduzir se encontravam já prescritas e que não podem por isso servir de fundamento e moldura penal para determinar o preenchimento e moldura penal do mencionado art.148.º do Código da Estrada.
No ponto n.º 8 da motivação do seu recurso , o arguido A... refere que na sentença recorrida foram tidas em consideração as condenações nas contra-ordenações n.ºs 303 230 975 , 210 318 724 , 209 731 885 , 210 321 938 e 212 062 549, onde lhe foram aplicadas coimas e sanções acessórias de inibição de conduzir.
De seguida , no ponto n.º 9, diz que “ o cumprimento de pelo menos estas três coimas aplicadas está prescrito” e conclui , no ponto n.º 11 , que face ao valor das coimas aplicadas , por força do disposto no art.29.º, n.º 1 , alíneas a) e b) do RGCOC , as coimas aplicadas nos cinco processos têm de ter-se por forçosamente prescritas.
No ponto n.º 11 da motivação alega que quer do disposto no art.27.º, al. a) e b) à contrario , quer mais directamente do disposto na al.c) do mesmo art.27.º , resulta que a prescrição dos procedimentos contra-ordenacionais é de 1 ano , pelo que foi extemporânea a instauração dos processos.
Vejamos.
Para invocar a prescrição do procedimento contra-ordenacional relativamente às contra-ordenações que lhe foram aplicadas nos cinco processos mencionados nos factos provados limita-se o arguido a invocar o disposto no art.27.º, alíneas a) e b), à contrario, e al.c) , directamente , do RGCOC., de onde resulta que o prazo de prescrição do procedimento das ditas contra-ordenações é de apenas 1 ano.
Antes de mais diremos que a alínea c) do art.27.º do RGCOC apenas foi introduzida neste regime legal com a Lei n.º 109/2001, de 24 de Dezembro e o arguido foi condenado nos ditos processos de contra-ordenação em data anterior a esta redacção.
De todo o modo , à data das condenações , face ao regime legal então vigente ( art.27.º, al.b) do RGCOC ) , também era de 1 ano o prazo de prescrição da contra-ordenação a que fosse aplicável uma coima igual ou inferior 750 000$00.
No presente caso , mesmo sem atender às diversas causas de suspensão e de interrupção do procedimento por contra-ordenação previstos na lei e dos prazos que eram bem mais alargados que os actuais , por então lhes serem aplicáveis subsidiariamente os regimes dos art.s 120.º e 121.º do Código Penal , uma simples leitura dos factos provados na sentença permite concluir que em nenhum dos processos ocorreu a prescrição do procedimento, pois em todos a decisão definitiva foi proferida em data inferior a 1 ano , considerando a data dos factos .
No proc. n.º 303 230 975 , os factos são de 19-10-98 e a condenação é de 30-6-1999 ; no proc. n.º 210 318 724 , os factos são de 15-01-2000 ( sendo lapso evidente a referência à data de 18-01-2001, conforme resulta do respectivo processo junto aos presentes autos de folhas 18 a 24 ) e a condenação é de 10-04-2000 ; no proc. n.º 209 731 885 , os factos são de 10-02-00 e a condenação é de 14-04-2000; no proc. n.º 210 321 938, os factos são de 02-03-00 e a condenação é de 21-8-2000 ; e no proc. n.º 212 062 549, os factos são de 28-06-00 e a condenação é de 09-10-2000.
Quanto à prescrição das coimas e sanções de inibição de conduzir , importa deixar claro que dos factos provados da douta sentença não resulta , em lado algum , se as coimas e sanções acessórias de inibição de conduzir , aplicadas nos processos de contra-ordenação , foram cumpridas ou se acabaram por prescrever.
Apenas pela consulta dos documentos, para que se remete na fundamentação da matéria de facto provada, se pode saber que, por o arguido não ter cumprido voluntariamente as decisões condenatórias aplicadas nos processos n.ºs 303 230 975 , 210 318 724 e 209 731 885, as coimas e sanções acessórias prescreveram.
Pelo facto das coimas e sanções terem prescrito nesses 3 processos – e não já nos outros , uma vez que foram cumpridas embora com recurso à execução através do Tribunal – já não se verificam os pressupostos de aplicação da cassação da carta de condução previstos no art.148.º do Código da Estrada ?
Entendemos que não.
O art.148.º, n.º 2 do Código da Estrada , deixa bem claro que a inidoneidade para a condução de veículos a motor é susceptível de ser revelada pela “prática” , num período de 5 anos , designadamente , de cinco contra-ordenações graves ou muito graves.
É a prática dos factos e não o cumprimento da coima e da sanção acessória que releva para o julgamento da inidoneidade do condutor.
Nem podia ser de outro modo , sob pena de se estar a premiar o arguido que não cumpria as decisões condenatórias, em prejuízo do condutor que acatando a condenação paga voluntariamente a coima e entrega a carta de condução.
É que , na posição defendida pelo recorrente só este condutor , cumpridor das decisões , podia ser objecto de cassação da carta de condução.
Embora em situação diversa , não deixamos de aqui apontar a primitiva redacção do art.76.º, n.º 1 do Código Penal, que estabelecia que só era reincidente quem tivesse cumprido total ou parcialmente prisão. Tendo-se o legislador apercebido que assim o arguido fugitivo não podia ser reincidente, sendo privilegiado em relação a quem cumpria a pena de prisão , o DL n.º 48/95 , de 15 de Março , deixou de exigir o cumprimento da pena para a reincidência , bastando-se hoje o art.75.º, n.º1 do Código Penal , para este efeito, com a condenação do arguido em pena de prisão efectiva.
Que a prescrição da pena não apaga a condenação di-lo expressamente o art.75.º, n.º 4 do Código Penal ao estatuir que “ a prescrição da pena, a amnistia , o perdão genérico e o indulto, não obstam à reincidência.”.
Pelo exposto, improcede esta questão.
A questão seguinte consiste em saber se a douta sentença é manifestamente contraditória ao dar como provado que o arguido vive apenas de um rendimento de € 500 mensais e dai ter de providenciar o sustento da esposa e de dois filhos menores, para depois, considerar que o mesmo dispõe de meios económicos para contratar e pagar a um condutor no período de pelo menos dezoito meses em que esteja impedido de obter a licença de condução.
Esta contradição, no dizer do arguido A... , é insanável e deverá levar à revogação da sentença e substituição da mesma por outra que não determine a cassação da licença de condução.
Vejamos.
O art.410.º n.º 2 , al. b) , do Código de Processo Penal , estatui que mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito , o recurso pode ter por fundamento , desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida , por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão.
O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão existirá quando se afirmar e negar ao mesmo tempo uma coisa.
Duas proposições contraditórias não podem ser , ao mesmo tempo , verdadeiras e falsas.
“Só existe , pois , contradição insanável da fundamentação quando , de acordo com um raciocínio lógico, seja de concluir que essa fundamentação justifica uma decisão precisamente oposta ou quando , segundo o mesmo tipo de raciocínio , se possa concluir que a decisão não fica esclarecida de forma suficiente , dada a colisão entre os fundamentos invocados”- Cfr. Cons. Simas Santos e Leal Henriques , in “Código de Processo Penal anotado” , 2ª ed., pág. 739.
Havendo contradição insanável , ou os factos inconciliáveis podem ser postos de lado, por não afectarem a essência da questão a decidir e , então , o tribunal de recurso julgará sem eles, ou são necessários para a decisão e , então, impondo-se a clarificação dessa contradição , não sendo possível decidir da causa , o Tribunal da Relação determina o reenvio do processo – cfr. art.426.º do C.P.P..
No caso em análise , o Tribunal recorrido deu como provado que o arguido A...
aufere um rendimento de € 500 mensais , é a única fonte de rendimentos da família , reside em casa dos pais e tem dois filhos menores a cargo.
Aquando da determinação da medida da sanção , considerando que nos termos do n.º1 do art. 149º do Código da Estrada , “ quando ordenar a cassação da carta (...) de condução, o tribunal determina que não pode ser concedida ao seu titular nova carta (...) de condução de veículos a motor, de qualquer categoria, pelo período de um a cinco anos” , referiu-se a dado momento que “ não pode o Tribunal igualmente descurar as condições socio-económicas do arguido, que é empresário, o que lhe permite colocar à disposição uma pessoa que o conduza caso não pretenda delegar em terceiro as sua funções.”.
Embora de um modo não muito claro , o que o Tribunal a quo pretendeu dizer é que importa conciliar a cassação da carta e consequente proibição de concessão de nova carta de condução entre 1 e 5 anos , com o trabalho do arguido , que necessita de utilizar o veículo no exercício da sua profissão.
Ao dizer-se na sentença , para determinar o período em que não poderá obter nova carta de condução, que ou o arguido como empresário coloca à disposição uma pessoa que o conduza ou delega em terceiro as suas funções , não está a incorrer em qualquer contradição , e menos ainda insanável. Apenas faz notar , para a fixação do aludido período , as dificuldades que irão resultar para o arguido do seu comportamento estradal, tomando-as para o efeito em consideração.
Improcede , pois , também esta questão.
A questão seguinte não merece também acolhimento.
Na matéria de facto provada , ao dizer-se que “ o arguido é conhecido como pessoa boa condutora e utiliza o veículo no exercício da sua profissão” , não está a dizer-se que o arguido tem idoneidade para conduzir.
O que se diz é que quem o conhece o tem como pessoa boa condutora. Quem assim o considera , certamente que não presenciou os factos que constituem ilícitos criminais pelos quais foi condenado , nem os graves factos que integram as contra-ordenações descritos na matéria de facto provada.
Por fim , defende o arguido que o Tribunal recorrido fez uma incorrecta avaliação e valoração dos factos , havendo uma desproporcionalidade manifesta entre os mesmos e a sanção que foi aplicada na douta sentença recorrida.
Da matéria de facto provada resulta que o arguido praticou 4 contra-ordenações graves - nos processos n.ºs 303 230 975; 209 731 885; 210 321 938 e 212 062 549 - e uma contra-ordenação muito grave - no proc. n.º 210 318 724.
Para além destas condenações o arguido foi ainda condenado , em 16.11.1998 , por sentença proferida no Processo Sumário n.º 342/99, do 1º Juízo (antigo n.º 118/99) do Tribunal Judicial da Comarca de Alcobaça, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 14º, n.º 1, 26º, 69º, n.º 1, al. a) e 292º, n.º 1, todos do C.P. , na pena de 45 dias de multa, à razão diária de Esc. 1.000$00 e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 35 dias, por factos cometidos no dia 15.11.1998 e por sentença proferida no Processo Sumário n.º 443/00.0 GBCLD do 3º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca de Caldas da Rainha, datada de 13.10.2000, foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 14º, n.º 1, 26º, 69º, n.º 1, al. a) e 292º, n.º 1, todos do CP, na pena de 40 dias de multa, à razão diária de Esc. 1.000$00 e na sanção acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 40 dias, por factos cometidos no dia 03.10.2000.
Está dado como facto provado que , em face dos factos descritos, o arguido revelou indiferença, desrespeito e insensibilidade à advertência que lhe deveria ter servido a primeira condenação, revelando-se uma ineptidão para a condução de veículos automóveis em obediência às regas estradais.
As condutas do arguido ao longo dos anos em apreciação passam por condução de veículo automóvel sob o efeito do álcool, condução em excesso de velocidade, desrespeito de marcas proibitivas de transposição e desrespeito de sinalização de paragem.
São comportamentos especialmente censuráveis , que põem em risco a vida, a integridade física , o património e a segurança das pessoas que circulam nas estradas ou nas proximidades delas.
Tal risco e as várias condenações não obstaram à repetida prática de factos censuráveis a nível contra-ordenacional e penal no exercício da condução.
Considerado a gravidade dos comportamentos punidos, assim como ao lapso temporal durante o qual foram praticados , concluímos , tal como a douta sentença recorrida , pela inidoneidade do arguido para a condução de veículos a motor, preenchendo claramente , com a sua conduta o disposto no art.148.º, n.º 1, al. a) do Código Penal e respectivo n.º2 .
Quanto à proporcionalidade do período de interdição de concessão de novo título de condução de veículos com motor , de qualquer categoria, que o arguido diz ter sido violada, não sufragamos tal tese .
Sendo o período de interdição , em abstracto, de 1 a 5 anos e tendo o Tribunal recorrido fixado em 18 meses esse período , portanto próximo do seu limite mínimo, com invocação de adequado enquadramento jurídico, o Tribunal da Relação nada tem a censurar à decisão recorrida quanto a este aspecto , pelo que é de manter não só a cassação do título de condução, como o período em que não pode ser concedido ao arguido novo título de condução de veículos com motor , de qualquer categoria.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido A... e manter a douta sentença recorrida.
Nos termos do art.380.º, n.º1 , al.b) e 2 do Código de Processo Penal procede-se à correcção do evidente lapso existente na sentença recorrida ( folhas 238 ) , quanto à data dos factos no âmbito dos autos de contra-ordenação n.º 210 318 724 , referida nos factos provados , de modo que onde consta “ porquanto no dia 18.01.2001, pelas 8h41m” , passe a constar “ porquanto no dia 15.01.2000 , pelas 8h41m”.
Custas pelo recorrente, fixando em 7 UCs a taxa de justiça.

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Coimbra,