Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
255/10.2T2AVR-E.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FONTE RAMOS
Descritores: INSOLVÊNCIA
GRUPOS DE SOCIEDADES
APENSAÇÃO DE PROCESSOS
Data do Acordão: 01/18/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: AVEIRO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTS.275 CPC, 17, 85, 86, 194 CIRE, 491, 501, 503, 504 CSC
Sumário: 1. As normas do CPC apenas se aplicam aos processos de insolvência na medida em que não contrariem as normas do CIRE.

2. A apensação de todos os processos de insolvência de sociedades que se encontrem em relação de domínio, na previsão do art.º 86º, n.º 2, do CIRE, depende de requerimento do administrador da insolvência nesse sentido.

3. A apensação dos processos de insolvência não implica uma liquidação conjunta de todo o património das sociedades em relação de domínio.

4. A referida interpretação não é inconstitucional.

Decisão Texto Integral:       Acordam na 2ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra:

               

            I. No processo de insolvência n.º 255/10.2T2AVR em que é insolvente “I (…) SGPS, S.A.”[1], pendente no Juízo de Comércio de Aveiro, da Comarca de Baixo Vouga, a credora “A (…) Holding, LLC”, veio requerer, em 27.5.2010, a apensação de todos processos de insolvência relativos às sociedades do “Grupo I (…)”, alegando, em síntese:

            - As sociedades (…), SGPS, S.A., (…), SGPS, S.A., (…) Lda. e (…) S.A., formam um grupo societário constituído por domínio total no qual a primeira das sociedades controla as restantes.

            - As várias sociedades têm sede no mesmo local, administrações comuns e o Administrador da Insolvência é o mesmo em todos os processos do grupo.

            - O próprio Administrador da Insolvência, conhecendo todos os processos e todas as sociedades, é peremptório ao afirmar, nos vários relatórios de insolvência que apresentou, que as sociedades em questão constituem um grupo societário e que foi também devido à má prestação de umas sociedades que as outras se tornaram insolventes.

            - Tendo em conta que estamos perante um grupo societário constituído por domínio total, resulta do art.º 501º do Código das Sociedades Comerciais (CSC) que a sociedade dominante responde com o seu património perante os credores das sociedades dominadas.

            - Com as declarações de insolvência das sociedades dominadas, cessa a relação de grupo destas com a sociedade dominante, deixando o património daquelas de ser considerado no activo desta. No entanto, apesar da cessação da relação de grupo, e da separação e individualização dos patrimónios das várias sociedades, não termina a responsabilidade da sociedade-mãe para com os credores das sociedades-filhas – art.º 501º do CSC.

            - A apresentação à insolvência, de forma separada, ainda que simultânea, de várias sociedades de um mesmo grupo apenas aproveita aos credores das sociedades dominadas, uma vez que estes vêem os credores da sociedade dominante serem excluídos do concurso ao património da sua devedora, ao passo que continuam a poder concorrer, em pé de igualdade, com os credores da sociedade dominante, ao património desta.

            - Este resultado é contrário às disposições do CSC e do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (CIRE)[2], colidindo com a boa fé, aqui materializada no princípio par conditio creditorum, segundo o qual o processo de insolvência deve ser norteado pela igualdade de tratamento entre credores.

            - É exactamente para prevenir estas manipulações do sistema, e a prevalência do critério da personalidade jurídica sobre o critério da unidade patrimonial, que o legislador do CIRE atribuiu ao Administrador da Insolvência um poder/dever de apensar os processos de insolvência que digam respeito a várias sociedades constituídas em relação de domínio total – art.º 86°, n.° 2, do CIRE.

            - Todos os processos de insolvência relativos às sociedades do Grupo I (…) deveriam ser apensados procedendo-se a uma liquidação conjunta do património do grupo, única forma de cumprir o princípio da igualdade de tratamento entre credores que norteia a legislação do CIRE.

            - O poder de o Administrador da Insolvência requerer ao Tribunal a apensação de processos é um verdadeiro dever, verificados que estejam os pressupostos acima expandidos, como se verificam no caso em apreço.

            - A Requerente já por diversas vezes interpelou o Administrador da Insolvência, pedindo-lhe que requeresse a apensação dos processos; no entanto, este não desenvolveu qualquer diligência nesse sentido.

            - Se considerarmos que o requerimento de apensação de processos é um poder discricionário do Administrador da Insolvência, será forçoso considerar que este não tem legitimidade exclusiva para requerer a apensação de processos.

            - Nessa situação deverá ser aplicado subsidiariamente, por força do art.º 17º do CIRE, o art.º 275° do CPC, nos termos do qual o requerimento de apensação dos processos pode ser requerido por qualquer parte com interesse atendível na acção.

            - Caberá posteriormente ao juiz, como cabe sempre, ordenar, ou não, a apensação.

            - Não é possível interpretar o art.º 86°, do CIRE, no sentido em que o requerimento de apensação de processos de insolvência é da exclusiva responsabilidade do Administrador da Insolvência.

            - Tal entendimento violaria o art.º 2° do CPC, por remissão do art.º 17° do CIRE, uma vez que impediria a ora Requerente de ver analisada em juízo a sua pretensão de que sejam apensados os processos.

            - Tal interpretação do art.º 86° do CIRE, considerando que o Administrador da Insolvência tem, em exclusivo, o poder discricionário de requerer a apensação dos processos, é também inconstitucional, por violação do art.º 20° da Lei Fundamental, porquanto impede que a ora Requerente aceda ao direito e aos tribunais para ver analisada uma sua pretensão e sindicada a actuação de um órgão da insolvência que não é um órgão de soberania.

            - Por essa mesma razão, o art.º 86° do CIRE, nessa mesma interpretação, viola também, o art.º 202° da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual cabe aos tribunais - por serem órgãos de soberania - administrar a justiça em nome do povo e assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

            - Os processos de insolvência visam garantir a igualdade de tratamento entre credores - a decisão de apensar, ou não, processos de insolvência relativos a sociedades em relação de domínio total pode ter, e tem, o maior impacto nas quantias que cada um dos credores vai receber a final, aquando da liquidação do património da, ou das, sociedades.

            - Trata-se, por isso, de uma situação de direitos e de interesses legalmente protegidos. E, nos termos da Constituição, cabe ao Tribunal, e não a um Administrador da Insolvência, decidir acerca desses direitos e interesses, de acordo com a Lei.

            - É manifesto que não se pode interpretar o art.º 86° do CIRE como tratando-se de um poder discricionário do Administrador da Insolvência, sem que os interessados tenham qualquer possibilidade de reagir contra a omissão deste - uma vez que se o Administrador da Insolvência requerer a apensação, essa será apreciada pelo Tribunal, que decidirá em conformidade com a lei.

            - O problema coloca-se assim na situação de o Administrador da Insolvência não requerer a apensação de processos, cortando pela raiz toda e qualquer possibilidade de os interessados verem o Tribunal pronunciar-se sobre o caso, sem que essa omissão seja susceptível de recurso ou análise por um Tribunal.

            - É por isso que, verificadas as condições exigíveis para a apensação de processos, o Administrador da Insolvência tem um dever, e não um mero poder, de requerer ao Tribunal a apensação de processos. Em última análise, caso o Tribunal conclua que a apensação não é devida, indeferirá o requerimento. Só assim se pode cumprir a lei e a Constituição, deixando ao Tribunal o poder de decidir sobre direitos e interesses legalmente protegidos, como o são os direitos dos credores.

            - Considerando-se que o art.º 86° do CIRE estabelece um verdadeiro dever de o Administrador da Insolvência requerer ao Tribunal a apensação de processos, o problema coloca-se quando, como sucede no caso em apreço, o não o faça.

            - Nestes casos em que o Administrador da Insolvência não cumpra os deveres que por lei lhe cabem, deve ser o juiz a providenciar esse cumprimento.

            - Com efeito, a actividade do Administrador da Insolvência deve ser fiscalizada pelo juiz, nos termos do disposto no art.º 58° do CIRE.

            - O Administrador da Insolvência não é um órgão omnipotente e está, também ele, sujeito à legalidade. Daí que, em última análise, o juiz possa destituir o Administrador da Insolvência.

            - No caso em apreço, é manifesto que o Administrador da Insolvência tinha o dever de requerer a apensação dos processos de insolvência das sociedades do Grupo I.... Não o fez porque, propositadamente, pretende evitar uma liquidação conjunta do património do grupo, o que levaria a que todos os credores fossem tratados por igual.

            - Estando o Administrador de Insolvência a violar um dever que lhe incumbia, vem a ora Requerente, na qualidade de parte interessada e afectada pela omissão, requerer a apensação de processos, ao abrigo do art.º 275° do CPC, subsidiariamente aplicável por força ao art.º 17º do CIRE.

            - Atentos estes factos, deve o Tribunal ordenar a apensação dos processos e a liquidação conjunta dos patrimónios das várias sociedades, uma vez que “só assim se realiza o objectivo material do artigo 86º/2 de garantir a igualdade dos credores”.

            - Caso o Tribunal entenda que não o pode fazer, esbarraremos novamente na negação à ora Requerente do acesso ao Direito, nomeadamente no direito de ver analisada e decidida a sua pretensão de, enquanto credora, ser tratada em igualdade de circunstâncias com os demais credores.[3]

            Sobre este requerimento, depois de exercido o contraditório, recaiu o seguinte despacho (de 14.6.2010):                                                                                                                                                                                  “Requerimento da credora A (…) Holdings, LLC, em que requer a apensação de todos os processos de insolvência das sociedades do Grupo I (…), nos termos do disposto no art.º 275.º do C.P.C., por remissão do art.º 17.º do CIRE, a fls. 790 e ss. – ref.ª 4688140, e respostas de fls. 825 – ref.ª 4742535; fls. 845 e ss. – ref.ª 4751703; 851 e ss. – ref.ª 4757402; e de fls. 863 e ss.:

            Indefiro a requerida apensação de processos, nos termos do disposto no art.º 275.º do C.P.C., por o entender que tal norma é inaplicável aos autos, uma vez que o CIRE prevê normas expressas que regulamentam a matéria em causa nos artigos 85.º e 86.º, pelo que são inaplicáveis (subsidiariamente) as normas do C.P.C. (ex vi do disposto no art.º 17.º do CIRE), cabendo, antes, de acordo com aquelas normas do CIRE (artigos 85.º e 86.º) ao Sr. Administrador de Insolvência requerer a apensação de processos.

            Notifique.”

            Inconformada, a A (…) Holding, LLC interpôs o presente recurso de apelação formulando as seguintes conclusões (reformuladas, mas ainda extensas[4]):

            1ª - A norma do art.º 86°, n.° 2, do CIRE vem dar uma resposta e adequar o processo de insolvência à realidade dos grupos de sociedades, de forma a que patrimónios que em vida são tratados, sob tantos aspectos, como um só, sejam, no momento da “morte”, tratados também unitariamente.

            2ª - Lendo-se no art.º 86° do CIRE que “A requerimento do Administrador da Insolvência [...]” são apensados os processos, a norma contida no art.º 86°, n.° 2, do CIRE, só pode ser interpretada no sentido de que o poder do Administrador é também e simultaneamente um dever.

            3ª - Tal interpretação é a que resulta da conjugação daquela norma com as normas do CIRE (art.ºs 1º e 194°), do Código Civil (art.º 604°), do Código das Sociedades Comerciais (art.ºs 501° e seguintes), do Código Penal (art.ºs 227° a 229°-A) e da Constituição da República Portuguesa (CRP) (art.º 13°) que impõem a igualdade de tratamento dos credores.

            4ª - A não constituir um dever para o Administrador da Insolvência, deixando a apensação à livre escolha e arbítrio deste, então, e porque não é admissível que num processo judicial haja outra pessoa - que não o Juiz - que tenha a única e última palavra sobre as pretensões dos sujeitos processuais, o art.º 86°, n.° 2, do CIRE, só pode ser interpretado como admitindo a possibilidade de o juiz ordenar a apensação de processos tal como o pode fazer em todos os outros processos judiciais, de acordo com as regras previstas para o efeito no CPC.

            5ª - O processo de insolvência tem por objectivo fundamental a satisfação dos créditos na maior medida possível e com um tratamento igual.

            6ª - O processamento do processo de insolvência de um grupo de sociedades pode fazer-se de duas formas: ou analisando e liquidando o património de cada uma das sociedades separadamente, ou apensando os processos e liquidando o património das sociedades como se de um só se tratasse. Esta opção tem as maiores implicações no produto final que os credores das várias sociedades receberão a final.

            7ª - Tenhamos, por exemplo, o caso de uma sociedade-mãe (uma SGPS, que nada tem senão as participações nas sociedades filhas acrescidas de um activo de 1 000 €) com 10 credores de créditos no valor total de 10 000 € (1 000 € cada um). E uma sociedade-filha também com 10 credores de créditos no valor total de 10 000 € (1 000 € cada um).

            8ª - O activo da sociedade filha é de 5 000 €. O valor do activo da sociedade-mãe, já englobando o da sociedade filha, é, por isso, de 6 000 €.

            9ª - O processamento das insolvências em separado e a consideração de cada uma isoladamente tem o seguinte resultado, neste exemplo:

            - o activo da sociedade filha, que é de 5 000 €, é inferior ao passivo de 10 000 €, pelo que a mesma deve ser declarada insolvente, sem qualquer indagação acerca do património da sociedade-mãe, apesar de esta responder por todas as suas dívidas. O seu activo (que corresponde a 50 % do montante devido aos credores) não chega para todos os seus credores, por isso será rateado à razão de 500 € (50 %) para cada um;

            - com a declaração da insolvência da sociedade filha, a sociedade-mãe, que tinha um activo de 6 000 €, reduziu o seu activo para 1 000 €. A sociedade-mãe é declarada insolvente. À sua massa falida de 1 000 € poderão concorrer não só os seus 10 credores (reclamando 1 000 € cada um), como também os 10 credores da sociedade filha, pelos 5 000 € que não conseguiram receber da sociedade filha (reclamando 500 € cada um). O activo da sociedade-mãe (que corresponde a 6,66% do montante reclamado) não chega para todos os seus credores, por isso será rateado à razão de 66,66 € para cada um dos 10 credores iniciais da sociedade-mãe, e à razão de 33,33 € para cada um dos 10 credores da sociedade filha que vieram reclamar os seus créditos à sociedade-mãe ao abrigo do art.º 501° do CSC.

            10ª - Neste cenário, de um activo global do grupo de 6 000 €, cada um dos 10 credores da sociedade filha recebe 533,33 €, ao passo que cada um dos 10 credores da sociedade-mãe recebe 66,66 €.

            11ª - A soma dos dois activos (6 000 €) é insuficiente para fazer face à soma dos dois passivos (20 000 €) mas o tratamento dado aos credores, num e noutro cenário, é completamente díspar, sendo que no cenário das insolvências separadas o que se consegue é um ilícito e intolerável favorecimento dos credores da sociedade filha, com total frustração dos créditos dos credores da sociedade-mãe.

            12ª - É que, se a insolvência da sociedade filha não pudesse ser declarada sem a insolvência da sociedade-mãe, nem separada ou independentemente desta, e nenhuma das sociedades do grupo pudesse apresentar-se à insolvência senão em conjunto com todas as sociedades do grupo, o activo de 6 000 € seria considerado como um só, num só processo de liquidação, e seria rateado pelos 20 credores do grupo, à razão de 300 € para cada um.

            13ª - Ou se, tendo sido apresentadas separadamente, os processos fossem apensados e tramitados conjuntamente, com liquidação conjunta dos dois patrimónios, as distorções e discriminações seriam também evitadas. Neste segundo cenário, de um activo global de 6 000 €, cada um dos referidos 20 credores recebe 300 €, todos sendo tratados por igual.

            14ª - Da relação de domínio total resulta que a insolvente (…), SGPS, S.A., responde, com o seu património, pelas dívidas das sociedades filhas, constituídas antes ou na vigência da relação de domínio total, conforme resulta do disposto no art.º 501° do CSC.

            15ª - O sentido desta norma é o seguinte: no equilíbrio estabelecido pelo legislador no âmbito dos grupos de sociedades de jure, o património das sociedades totalmente dependentes está inteiramente à mercê do interesse da sociedade dominante e, indirectamente, dos credores desta, o que tem como contrapartida a responsabilidade ilimitada da sociedade dominante pelas dívidas das suas participadas (art.º 501°, n.° 1, do CSC) e a obrigação de compensação pelas perdas anuais (art.º 502° do CSC).

            16ª - Disto resulta que os credores de uma - a sociedade dominante - e de outra - a sociedade dependente - contam, em cada momento, com os patrimónios de ambas as sociedades como garantia geral dos seus créditos, em resultado da consagração legal da situação material de verdadeira unidade daqueles patrimónios, afectos a uma direcção unitária e a um interesse único: o interesse do grupo, ou seja, o interesse da sociedade-mãe.

            17ª - Um grupo societário é, pois, uma só empresa, formada por várias sociedades e por patrimónios ligados por vasos comunicantes.

            18ª - Tal como é reconhecido no preâmbulo do CIRE: “(…) apresenta-se no artigo 2º do novo Código um elenco aberto de sujeitos passivos do processo de insolvência. Aí se tem como critério mais relevante para este efeito, não o da personalidade jurídica, mas o da existência da autonomia patrimonial (…)“.

            19ª - Tal como salienta CATARINA SERRA, o critério da autonomia patrimonial é “o mais adequado para delimitar o âmbito de aplicabilidade da falência, devendo ser definitivamente afastado o critério da personalidade jurídica (...)”, uma vez que “(…) a finalidade principal do processo (pagamento aos credores através da liquidação do património responsável) torna suficiente o critério da autonomia patrimonial (…)“ - resulta do disposto no art.º 2° do CIRE um “(…) conceito amplo de «património autónomo», que dispensa o «preciosismo» respeitante à qualificação jurídica de cada um dos patrimónios referidos (i. é., indiferente à sua titularidade ou não por alguém e, no caso afirmativo, ao número de titulares)“.

            20ª - Também um grupo societário, que constitui uma unidade económica empresarial, embora titulada por diversas pessoas jurídicas, pode ser objecto de um processo de insolvência, ou de recuperação de empresa. Isto porque, além de se tratar de uma só actividade económica e de uma só organização empresarial (como sucede no caso do grupo I...), é o conjunto dos patrimónios de todas as sociedades do grupo que, por força do disposto no CSC, responde pelos créditos dos credores de qualquer das sociedades do grupo, em regime de vasos comunicantes.

            21ª - Se, por algum motivo, as várias sociedades do grupo se apresentarem separadamente à insolvência, os respectivos processos devem imediatamente ser apensados, no exercício do poder, que é também um dever, que o art.º 86° do CIRE confere ao administrador da insolvência.

            22ª - Se durante todo o período de existência de um grupo societário, o património afecto à empresa considerada globalmente foi sendo afectado e realocado consoante as necessidades em cada momento verificadas (necessidades de solvabilidade, para pagamento a credores, necessidades de investimento, o que fosse), não é admissível que, no momento final, na insolvência, se cristalize essa alocação tal como está e se separem as diversas componentes da empresa, deixando os credores das várias pessoas jurídicas titulares da empresa sujeitos, “à sorte”, à existência ou inexistência de garantia patrimonial geral para os seus créditos.

            23ª - Tudo em grave violação do princípio da igualdade de tratamento de credores decorrente dos art.ºs 1º e 194° do CIRE, 604° do Código Civil e 13° da Constituição, princípio de tal forma fulcral que é penalmente tutelado pelos art.ºs 227° e seguintes do Código Penal. Normas estas todas violadas pelo Despacho recorrido, através da interpretação errada que no mesmo se faz do art.º 86° do CIRE.

            24ª - A manter-se o Despacho recorrido, apenas os credores das participadas serão pagos pelo produto da liquidação do património do Grupo (…), credores esses que teriam ainda, no caso de insuficiência do património da sociedade dependente para a integral satisfação dos seus créditos, a possibilidade de concorrer, em pé de igualdade com os credores da sociedade dominante, ao que restasse do património desta, por força do disposto no art.º 501°, n.° 1, do CSC.

            25ª - Tendo sido separadamente apresentadas à insolvência diversas sociedades do grupo (…), o Administrador das várias insolvências - que é o mesmo em todas elas - tem, nos termos do art.º 86° do CIRE, o dever, e não apenas o poder, de requerer a apensação dos processos; só assim se materializa o espírito do legislador ao eleger o critério da autonomia patrimonial em detrimento do critério da personalidade jurídica, e só assim é possível compatibilizar o regime do CIRE com o regime dos grupos de sociedades regulado no CSC.

            26ª - A mais recente doutrina - e a primeira que verdadeiramente se debruçou em Portugal sobre o tema das insolvências dos grupos de sociedades - veio corroborar tudo o que se acaba de referir, nomeadamente associando à apensação de processos a necessária liquidação conjunta.

            27ª - ANA PERESTRELO DE OLIVEIRA, in Revista de Direito das Sociedades, “A insolvência nos grupos de sociedades: notas sobre a consolidação patrimonial e a subordinação de créditos intragrupo”, pp. 1001 e segs., refere que: “(…) a apensação dos processos constitui, simplesmente, o instrumento processual da realização do princípio material da igualdade de tratamento entre os credores (...)“; “deve reconhecer-se que a via mais adequada para garantir a igualdade entre os credores da sociedade-mãe e os credores da sociedade-filha é a consolidação das obrigações e das massas insolventes, procedendo-se à liquidação em conjunto (...)“; “é o próprio Direito das sociedades comerciais que pretende a anulação das fronteiras ditadas pela personalidade societária no que toca à responsabilidade por dívidas, criando a unidade de responsabilidade que reclama que, em contexto de insolvência, a apensação de processos seja acompanhada de uma liquidação comum”.

            28ª - A mesma autora ensina como deve ser interpretado o art.º 86° do CIRE: “(...) artigo 86º/2, do CIRE: ao admitir a apensação dos processos de insolvência das várias sociedades do grupo, esta regra vem precisamente fornecer o amparo processual para uma liquidação conjunta (...)”.

            29ª - O CIRE veio, num caminho de crescente “desjudicialização” (expressão constante do respectivo preâmbulo), alargar os poderes do Administrador da Insolvência, atribuindo-lhe tarefas que anteriormente estavam confiadas ao juiz. Essa atribuição de novas competências é feita sem, no entanto, prejudicar a função jurisdicional do juiz ou diminuir o seu poder de intervenção, tal como consta também do preâmbulo do CIRE.

            30ª - A norma constante do art.º 86° do CIRE atribui ao Administrador da Insolvência um poder-dever de requerer a apensação de processos, quando se encontrem verificados certos pressupostos, e sempre tendo como critério orientador o do tratamento igual dos credores.

            31ª - Como se articula este poder-dever do Administrador da Insolvência com os poderes do juiz e com a legitimidade das partes interessadas para requerer, nos termos gerais, a apensação dos processos?

            32ª - No CPC a apensação de acções é regulada pelo art.º 275°, que prevê que a apensação seja ordenada pelo juiz, seja a requerimento das partes, seja oficiosamente, verificados os legais pressupostos da apensação estabelecidos no n.° 1.

            33ª - A interpretação de que as normas constantes do art.º 86° do CIRE substituem e afastam a aplicação do art.º 275° do CPC levaria a que uma função jurisdicional - como é a decisão sobre a apensação de processos e a decisão sobre quaisquer pretensões deduzidas em juízo - fosse cometida ao Administrador da Insolvência.

            34ª - Dizer que o juiz só pode ordenar a apensação a requerimento do Administrador da Insolvência e que, ainda para mais, está vinculado a ordená-la, quando requerida pelo Administrador da Insolvência é o mesmo que dizer que é o Administrador da Insolvência quem determina e decide se os processos são apensados ou não.

            35ª - E, como não é juiz, isto leva ao resultado aberrante de que, depois de vários requerimentos de apensação apresentados pela ora Recorrente ao Administrador e da recusa, por parte deste, em apensar os processos, a Recorrente nada possa fazer. A decisão do Administrador, por não ser judicial, não é recorrível, nem a ela a Recorrente pode reagir de nenhuma forma.

            36ª - É por tudo isto que nenhum sentido faz que a decisão acerca da apensação ou não dos processos, quer se trate de um poder-dever, quer se trate de um mero poder, caiba exclusivamente ao Administrador da Insolvência e que o juiz esteja impedido de se pronunciar sobre a apensação e de a ordenar nos termos gerais.

            37ª - O Despacho recorrido violou o art.º 2° do CPC, aplicável por remissão do artigo 17° do CIRE, uma vez que impediu a ora Requerente de ver analisada em juízo a sua pretensão de que sejam apensados os processos.

            38ª - Por outro lado, o art.º 86° do CIRE, na interpretação segundo a qual o Administrador de Insolvência tem, em exclusivo, o poder discricionário de requerer a apensação dos processos, não sendo aplicável nos processos de insolvência o disposto no art.º 275° do CPC é inconstitucional, por violação do art.º 20° da Lei Fundamental.

            39ª - Por essa mesma razão, o art.º 86° do CIRE, na referida interpretação, viola também, o art.º 202° da CRP, segundo o qual cabe (em exclusivo) aos tribunais - por serem órgãos de soberania - administrar a justiça em nome do povo e assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos.

            40ª - O art.º 86° assim interpretado leva a que seja atribuído ao Administrador da Insolvência um verdadeiro poder jurisdicional. E esse poder é, nessa interpretação, exercido sem possibilidade de revisão por um segundo grau de decisão ou de qualquer outra sindicância.

            41ª - Quando o Administrador da Insolvência não requeira a apensação dos processos, devendo fazê-lo, deve ser o juiz a providenciar esse cumprimento, sob pena de se permitir intoleráveis discriminações de credores resultantes da não apensação, mas sobretudo, permitindo-se que alguém que não é juiz tenha a palavra final sobre uma pretensão de um cidadão relativa à tutela dos seus direitos.

            42ª - A Recorrente tinha, pois, legitimidade para requerer a apensação à Mm.ª Juiz e esta tinha o poder de a ordenar, sendo que, neste caso, tal apensação, com a liquidação conjunta dos patrimónios, não só responde às legítimas pretensões da Recorrente como constitui a única forma de salvaguardar o tratamento igual de todos os credores do grupo I..., legal e constitucionalmente imposto.

            43ª - O art.º 86° e o art.º 17° do CIRE, conjugados com o art.º 275° do CPC, são ilegais e inconstitucionais, se interpretados no sentido de que o Tribunal apenas pode ordenar a apensação de processos de insolvência quando esta for requerida pelo Administrador da Insolvência, ainda que tendo este o dever de o fazer, não o faça, viola o art.º 2° do CPC e os art.ºs 20° e 202º da CRP.

            A Insolvente (…)e as credoras (…) apresentaram contra-alegações, concluindo, a 1ª, pela inadmissibilidade do recurso, e, todas as recorrentes, pela sua improcedência.

            O recurso subiu imediatamente, em separado e com efeito devolutivo.[5]

Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.

            Atento o referido acervo conclusivo (delimitativo do objecto do recurso nos termos dos art.ºs 684º, n.º 3 e 685º-A, n.ºs 1 e 3 do Código de Processo Civil, com a redacção conferida pelo DL n.º 303/07, de 24.8) e face à posição da recorrida, importa saber, fundamentalmente, se o recurso é admissível e, sendo-o, se a apensação poderia ser determinada pela Mm.ª Juíza a quo independentemente de prévio requerimento do Administrador da Insolvência, bem como se, apensados os processos, era legalmente admissível a liquidação conjunta dos patrimónios.


*

II. 1. Para além do que resulta do relatório supra (ponto I) e tendo em atenção o objecto do recurso e os documentos juntos aos autos, considerar-se-á ainda a seguinte factualidade:

            a) A 04.5.2010, no Juízo de Comércio de Aveiro, da Comarca de Baixo Vouga, realizou-se assembleia de credores para apreciação do relatório do Sr. Administrador Judicial no processo de insolvência n.º 255/10.2T2AVR, em que é insolvente a (…) SGPS, SA e, no decurso dessa assembleia, foi submetido à votação esse relatório que se pronunciou, designadamente, no sentido do termo da administração da insolvente e apreensão de bens e liquidação do activo, sendo o mesmo aprovado com os votos favoráveis de 96,68 % dos credores presentes e com o voto contra da aqui recorrente.

            b) (…)Holding, LLC, inconformada com essa deliberação reclamou contra a mesma, referindo, nomeadamente:

            “(…) Entende o credor (…) Holding, LLC, que estando perante uma insolvente sociedade gestora de participações sociais, a qual só exerce actividade económica indirecta por meio das sociedades em que participa e considerando que esta sociedade constitui, como é expressamente reconhecido no relatório do Sr. Administrador da Insolvência, um grupo referido nesse relatório como grupo I... e referindo-se também à situação económica e financeira do grupo, só através da apensação/junção de todos os processos de insolvência da sociedade cabeça do grupo e das sociedades que integram esse grupo é que pode ser cumprida a lei, e assim e nos termos da lei satisfeitos os interesses dos credores.

            Nos termos do Código das Sociedades Comerciais os artigos 448.º e seguintes, “maxime” artigo 501.º, a sociedade (…) Sgps, S.A., constitui um grupo directa e indirectamente com outras sociedades, que detém a 100 % e a mais de 90 %.

O Código das Sociedades Comerciais permite a desfuncionalização das sociedades anónimas e por quotas tendo elas um sócio único, e podendo portanto constituir um grupo único sempre sem prejuízo da sua unidade em favor da tutela dos interesses dos credores, como resulta inequívoco do disposto no artigo 501.º do Código das Sociedades Comerciais e também por isso do artigo 85.º e 86.º do CIRE, impõem ao Sr. Administrador da Insolvência ao qual atribui um poder/dever vinculado, o de requerer a apensação de todos os processos de insolvência sempre que sendo a insolvente uma sociedade comercial ela domine ou com ela se encontre em situação de grupo outras sociedades e que a apensação dos processos diga respeito a essas. Assim, não é possível reunir, apreender e liquidar património, único e unitário do grupo e fazer a sua liquidação em favor dos credores desse mesmo grupo.

(…)

            Razão pela qual se reclama para a Sr.ª Juiz destes autos, requerendo que a mesma deliberação seja dada sem efeito e seja ordenada ao Sr. Administrador da Insolvência que proceda às diligências legalmente devidas, segundo os poderes que a lei lhe atribui, e que se destinam apenas a reunir todo património e a liquidá-lo exclusivamente a favor dos credores e não de qualquer terceiro.

            Termos em que se pede e espera deferimento desta reclamação.

            c) Facultado o exercício do contraditório aos restantes credores e ao Sr. Administrador da Insolvência, a Mm.ª Juíza veio a entender que “a argumentação da requerente (…) constitui uma exposição sobre a actuação que entende ser exigível ao Sr. Administrador da Insolvência no sentido de, nomeadamente, ao abrigo do disposto nos artigos 85.º e 86.º do CIRE, requerer a apensação dos autos de insolvência de sociedades participadas da insolvente, (…) criticando ainda a actuação no âmbito da actividade desenvolvida em processo de insolvência de sociedade do grupo.

            (…)

            (…) ao contrário do que pretende a reclamante, não pode o Tribunal determinar que o Sr. Administrador da Insolvência proceda à reunião de todo o património da insolvente mediante apensação de processos de sociedades suas subordinadas, cuja iniciativa processual cabe nos termos do disposto no artigo 85.º do CIRE ao Sr. Administrador da Insolvência.         

Assim, concluindo que a reclamação apresentada não passa de uma exposição de motivos, baseada em alguns factos que não decorrem totalmente dos presentes autos, não se configurando como uma verdadeira reclamação que ponha em causa a deliberação da presente assembleia no sentido de determinar o encerramento da actividade insolvente, nos termos do disposto no artigo 156.º do CIRE, com consequente prosseguimento dos autos para liquidação, indefiro a mesma.

d) Após esta decisão de indeferimento, (…) Holding, LLC propôs à assembleia de credores a alteração da deliberação tomada nesse dia e, em sua substituição, incumbir o Sr. Administrador da Insolvência da elaboração de um plano de insolvência, partindo da “inventariação de todo o património existente, nomeadamente do objecto nuclear da sociedade, as suas participações sociais, (…) de modo a poder deliberar com o mínimo de informações sobre se deve requerer ao Administrador da Insolvência que apense os processos e proceda a uma insolvência única no caso de ele entender assim não fazer no exercício do poder/dever vinculado e se deve aprovar um plano com vista à liquidação e partilha da massa insolvente ou não (…).

            e) (…) SGPS, S.A. é titular de 100 % das participações sociais de (…) Lda. e de 100 % das participações sociais de (…) SGPS, SA sendo esta última sociedade titular de 98,18 % das participações sociais de (…), Lda..[6]

            f) No processo n.º 214/10.5T2AVR do Juízo de Comércio de Aveiro, da Comarca do Baixo Vouga, foi declarada a insolvência de (…) Lda..

            g) No processo n.º 213/10.7T2AVR do Juízo de Comércio de Aveiro, da Comarca do Baixo Vouga, foi declarada a insolvência de (…), Lda..

            h) No processo n.º 212/10.9T2AVR do Juízo de Comércio de Aveiro, da Comarca do Baixo Vouga, foi declarada a insolvência de (…) SGPS, SA.

            i) Em resposta aos requerimentos da recorrente de 06.4.2010 e 24.5.2010[7] (e ao pedido de informações, solicitado ao abrigo do art.º 79º do CIRE, apresentado na Assembleia de Credores de 27.5.2010), o Sr. Administrador da Insolvência disse, designadamente:

Com o devido respeito por toda a argumentação apresentada, bem como pela interpretação dada por ilustres juristas, mas não unânime, não terá sido por acaso que o legislador competiu ao Administrador de Insolvência a possibilidade e não o dever, de requerer a apensação de processos de insolvência, não tendo criado nenhum automatismo nem tão pouco a possibilidade de qualquer outro interessado o requerer, cabendo aquele a avaliação dos benefícios da apensação.

Naturalmente, que uma análise matemática primária concluirá que a apensação de processos não acrescenta valor às Massas Insolventes, ou seja, o todo é igual à soma das partes, sendo que no meu entendimento, no caso em concreto, também não trará qualquer vantagem em termos de tramitação processual, a contrário, se assim sucedesse ocorreriam diversos inconvenientes, como o da eventual confundibilidade das Massas Insolventes, do possível entendimento pelos credores que, com a apensação, ganhariam a faculdade de concorrer ao somatório das Massas e o eventual distúrbio no entendimento acerca da personalidade jurídica das insolventes, que naturalmente mantêm, não só perante a Administração Fiscal.

Permita-me ainda adiantar que casos existem em que considero vantajosa a apensação de processos, de resto administro insolvências de grupos de empresas com diversos[8] processos apensados, existindo contudo, nesses casos, uma estratégia única de recuperação de diversas sociedades insolventes, do mesmo grupo.

Tal manifestamente não se passa nos 4 processos de insolvência sub judice, que se encontram todos em fase de liquidação.

(…)

Não posso deixar de fazer alusão, com bastante desagrado, ao tom ameaçador com que é tratada a minha competência profissional, baseada em alegados prejuízos provocados a credores, quando, a teoria desenvolvida pelo requerente, tem como objectivo nortear a actuação do Administrador de Insolvência a prosseguir uma conduta prejudicial a outros credores (…), pois não será muito difícil perceber que se a intenção do Aerogroup é juntar as Massas Insolventes para poder receber, terá obrigatoriamente a intenção prejudicar outros credores (…).

Não haverá cominação que retire ao Administrador de Insolvência nomeado neste processo, a atitude que considera melhor defender os interesses dos credores (…).

No tocante aos repisados argumentos utilizados pelo (…) mormente os que parecem indiciar a prática de crimes, importa referir alguns aspectos que poderão, finalmente, esclarecer as questões apresentadas:

a) Não tenho conhecimento que a (…) tenha sido constituída, directamente ou “por interpostas pessoas” pela (…);

b) O projecto de venda do estabelecimento industrial da (…) (e não de todos os activos) será rodeado de todas as garantias de transparência que se exigem no caso, procurando obter-se o melhor valor que o mercado esteja disposto a dar por aquele estabelecimento;

c) Desconheço que haja qualquer projecto de venda das outras 3 sociedades insolventes à (…);

d) A cessão de exploração por dois meses à (…), por 1 Euro mensal, foi altamente vantajosa para a massa insolvente da (…), permitindo-lhe estancar a exploração deficitária do estabelecimento, única forma, aliás, de não ter encerrado a unidade industrial e acabado com a totalidade dos postos de trabalho existentes, essa sim uma actuação altamente prejudicial ao universo de credores existente e socialmente condenável;[9]

e) Não só o acordo de reestruturação financeira celebrado com as Instituições Bancárias[10] e o acordo com a (…) como também o Post-Termination of License Agreement, celebrado com o (…) serão alvo de aprofundada análise, com vista à possível resolução em benefício da Massa Insolvente, de acordo com os Art. 121° e seguintes do CIRE;

Quanto ao pedido de informações apresentado pelo (…) na continuação da Assembleia de Credores ocorrida a 27 de Maio passado, cumpre-me informar:

1 - O Património da insolvente será arrolado e apreendido no âmbito da actuação do Administrador de Insolvência, recorrendo às normais diligências de apuramento de património das sociedades comerciais, através da contabilidade elaborada de acordo com as normas em vigor e devidamente certificada por Revisor Oficial de Contas, recorrendo em simultâneo a diversas pesquisas patrimoniais junto dos serviços de finanças competentes e conservatórias de registo predial, comercial e automóvel.

(…)

7 - Com respeito a outra e melhor opinião, a (…) S.A. não poderá exigir às suas[11] participadas, em situação de insolvência, que lhe liquidem os seus créditos.

            Fico ao dispor para qualquer esclarecimento adicional (…).”[12]

            2. A recorrida/insolvente considera que o presente recurso devia ser liminarmente rejeitado, porquanto a decisão que a recorrente veio colocar em crise é já a segunda decisão que o Tribunal a quo profere no mesmo sentido: indeferimento da pretensão da recorrente em ver apensados todos os processos de insolvência do Grupo lnvestvar - o despacho recorrido foi proferido em 14.6.2010, já depois do Tribunal a quo se ter pronunciado sobre a mesma questão, suscitada pela aqui recorrente na assembleia de credores de dia 04.5.2010; a ora Recorrente já impugnou o despacho proferido na primeira sessão da assembleia de credores por recurso interposto a 24.5.2010, o que deu origem ao apenso B dos presentes autos; com a apreciação do presente recurso, este Tribunal da Relação encontrar-se-á na situação de apreciar duas vezes a mesma questão de direito e que conduz ao mesmo efeito jurídico (apensação, para posterior liquidação conjunta de patrimónios, dos processos n.ºs 212/10.9T2AVR, 213/10.7T2AVR e 214/10.5T2AVR), nos mesmos autos de insolvência (proc. n.º 255/10.2T2AVR, apensos B e E), suscitada pela mesma parte (a aqui Recorrente), contra as mesmas partes (a insolvente e os demais credores), com o inerente risco de contradição de julgados e consequências para a marcha do processo, cuja economia e celeridade resultaria fortemente prejudicada. Verificando-se identidade das partes, do pedido e da causa de pedir, é manifesto que estamos perante um caso de “litispendência de recursos” (nos mesmos autos), sendo certo que apenas o que foi interposto em primeiro lugar, a 24.5.2010 [proc. n.º 255/10.2T2AVR-B.C1, pendente na 2ª Secção de processos, no Tribunal da Relação de Coimbra], pode ser apreciado.

            Na sequência da decisão sumária proferida nesta Relação no dia 27.7.2010 (depois impugnada nos termos do art.º 700º, n.º 3, do CPC[13]), a recorrida veio reafirmar aquela sua perspectiva, aduzindo que já havia pronúncia sobre o thema decidendi do recurso deste apenso, no sentido da inadmissibilidade legal de o tribunal ordenar a apensação de processos de insolvência de sociedades em relação de domínio ou de grupo sem que tal seja requerido pelo administrador da insolvência (i), bem como da impossibilidade legal de liquidação conjunta dos patrimónios das sociedades (…) ainda que os processos viessem a ser apensados (ii) (fls. 181).

            Na sequência de reclamação para a conferência foi depois proferido, nesta 2ª Secção, o acórdão de 12.10.2010 mantendo a decisão proferida singularmente.

            Dada a similitude das questões suscitadas e a dita posição da recorrida, o aqui relator decidiu convidar a recorrente a esclarecer se mantinha o interesse no julgamento do recurso, tendo a mesma referido manter todo o interesse no julgamento deste recurso[14].

            Independentemente da propriedade ou adequação do enquadramento traçado pela recorrida e daquele “convite” por parte deste Tribunal, afigura-se, salvo o devido respeito por opinião em contrário, que não se justifica a rejeição da apelação em apreço, desde logo porque, não obstante a invocação de uma mesma razão de ser para a actuação processual da recorrente (a pretenso propósito de garantir a igualdade dos credores), a pretensão formulada, por último, assentou num parcialmente diverso argumentário, mormente no que tange aos normativos invocados [v.g., advogando-se, agora, que a apensação dos processos pode ser requerida por qualquer parte com interesse atendível na acção, ao abrigo do art.º 275° do CPC, subsidiariamente aplicável por força ao art.º 17º do CIRE][15], e foi directa e imediatamente colocada perante a Juíza do processo, tendo o Tribunal recorrido proferido um novo despacho que não se confunde com os proferidos aquando da assembleia de credores de 04.5.2010.

            Acresce que, tal como refere a recorrente, os pedidos num e noutro recurso são parcialmente distintos: o recurso do apenso B tinha por objecto a questão de saber se a deliberação tomada pelos credores era ou não contrária ao interesse comum dos credores (tendo a recorrente aí aduzido que a apensação requerida junto do Administrador da Insolvência propiciava tal desiderato), enquanto que o presente recurso tem por objecto a questão de saber se deveria ou não o Tribunal a quo ter ordenado a apensação dos processos de insolvência do grupo I... na sequência de requerimento apresentado pela recorrente, perante a recusa do Administrador da Insolvência em requerer essa apensação.

            Assim e dadas as demais vicissitudes processuais, impõe-se conhecer do recurso em apreço.

            3. Segundo o art.º 17º, do CIRE, o processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie as disposições do presente Código.

            E nos termos do art.º 86º, do CIRE, a requerimento do administrador da insolvência são apensados aos autos os processos em que haja sido declarada a insolvência de pessoas que legalmente respondam pelas dívidas do insolvente ou, tratando-se de pessoa singular casada, do seu cônjuge, se o regime de bens não for o da separação (n.º 1); o mesmo se aplica, sendo o devedor uma sociedade comercial, relativamente aos processos em que tenha sido declarada a insolvência de sociedades que, nos termos do Código das Sociedades Comerciais, ela domine ou com ela se encontrem em relação de grupo (n.º 2); quando os processos corram termos em tribunais com diferente competência em razão da matéria, a apensação só é determinada se for requerida pelo administrador da insolvência do processo instaurado em tribunal de competência especializada (n.º 3).

            Já no domínio de aplicação do Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência (CPEREF), aprovado pelo DL n.º 132/93, de 23.4, se entendia que o recurso subsidiário ao CPC para integrar a regulamentação dos processos de recuperação da empresa e de falência contemplados no referido código, encontrava suficiente fundamento no disposto no n.º 1 do art.º 463º, do CPC[16].

            O citado art.º 17º surge porventura para deixar a matéria ainda mais indiscutível, embora fosse desnecessário face ao aludido preceito da lei civil adjectiva (e ao disposto nos art.ºs 465º e 466º, n.º 3, do CPC, quanto aos processos executivos especiais)[17] - as normas do CPC apenas se aplicam aos processos de insolvência na medida em que não contrariem as normas do CIRE.

            Ainda que o adjectivo (“especial”) tenha desaparecido da designação do Código, dúvidas não restam de que o processo de insolvência continua a revestir a natureza de processo especial.[18]

            O n.º 2 do art.º 86º, do CIRE, prevê um regime particular da apensação do processo de insolvência, quando estejam em causa sociedades comerciais entre as quais se verifiquem, nos termos do CSC, relações de domínio ou de grupo.

            Visto o preceituado nos n.ºs 2 e 3 do referido art.º, caberá ao Administrador Judicial aquilatar das vantagens e dos inconvenientes da apensação de processos; porque lhe cabe avaliar o benefício da apensação, não se encontra vinculado ao dever de a requerer - verificada uma situação legitimadora da apensação, verificados os pressupostos de que depende, ela terá ou não lugar conforme seja ou não requerida pelo administrador, cuja decisão traduz um acto discricionário do mesmo; o juízo de mérito sobre os benefícios da apensação ficou confinado, em exclusividade, ao administrador do processo onde deve ser feita a apensação, decerto na convicção de que a sua independência será garante suficiente da razoabilidade do que decidir e que as implicações que daí possam decorrer, mormente na sua dimensão económica e nos procedimentos de liquidação, serão adequadamente ponderadas e avaliadas por quem terá a competência técnica, a equidistância e a independência exigidas ao bom desempenho do encargo.

            O citado normativo do CIRE prevê assim, de forma clara e peremptória, quem pode requerer e em que casos a apensação de processos no direito da insolvência, preceito legal esse que contém um regime especial que, como tal, deve prevalecer e afastar a aplicabilidade do regime processual previsto na lei geral, o CPC.

            Esta a interpretação que melhor corresponde à letra da lei e ao seu espírito – quanto à letra, se o legislador tivesse querido outra coisa, decerto não deixaria de, pelo menos, atribuir legitimidade para o requerimento a qualquer interessado e não apenas ao administrador; em relação ao espírito, basta ter presente o regime do Direito anterior (v. g., art.ºs 13º e 126º, do CPEREF) para se ver que se pretendeu afastar qualquer tipo de automatismo ou de ligação necessária entre insolvência de pessoas jurídicas distintas.[19]

            Depois da apensação, os processos mantêm autonomia formal e substancial - cada um segue os seus próprios termos, e as vicissitudes não se comungam.

            Permite-se, outrossim, uma perspectiva generalizada que, para lá das vantagens gerais que isso proporciona, em virtude dos elementos de conexão que legitimaram a apensação, favorece o cumprimento de certas exigências da lei, como seja, por exemplo, a do não recebimento por nenhum credor de mais do que lhe é devido, o que, obviamente, pode ser favorecido pelo concurso simultâneo às diversas massas insolventes responsáveis pela dívida.[20]

            4. Sendo aquele o enquadramento jurídico da apensação de processos de insolvência à luz do CIRE, nenhuma razão assiste à recorrente para invocar o disposto no art.º 275º da lei processual civil geral, que não se aplica ao caso vertente, sob pena de se desvirtuar completamente os poderes do administrador da insolvência e a desjudicialização parcial do processo que esteve subjacente na elaboração do CIRE.[21]

            A recorrente dirigiu a sua alegação no sentido de qualificar a não apensação de todos estes processos de insolvência em ordem a uma liquidação conjunta do património das referidas insolventes como uma ofensa ao interesse comum dos credores, perspectiva que não deverá ser acolhida por razões de ordem processual e substantiva.[22]

            A sociedade insolvente nestes autos é uma sociedade gestora de participações sociais (SGPS), tendo assim por único objecto contratual a gestão de participações sociais noutras sociedades, como forma indirecta de exercício de actividades económicas [cf. art.º 1º, n.º 1, do DL n.º 495/88, de 30.12 e II. 1. alínea e), supra]; o regime jurídico das Sociedades Gestoras de Participações Sociais não prejudica a aplicação das normas respeitantes a sociedades coligadas, constantes do título VI do CSC (art.º 11º, n.º 1, do mesmo DL); a sociedade insolvente acha-se numa relação de domínio total das sociedades (…). e (…), tendo um domínio indirecto e quase total da sociedade (…). [cf. II. 1. alínea e)].   

            Às sociedades em relação de domínio total aplicam-se, por remissão legal, as disposições dos art.ºs  501º a 504º do CSC e as que por força destes artigos forem aplicáveis (art.º 491º do CSC).         Neste circunstancialismo pode concluir-se que o Sr. Administrador da Insolvência podia requerer a apensação dos processos de insolvência daquelas insolventes que se acham em relação de domínio.

            Contudo, como se refere em II. 3., supra, não estava o Sr. Administrador da Insolvência vinculado a requerer essa apensação, tratando-se antes de uma decisão discricionária da sua parte que o tribunal está vinculado a deferir se for requerida[23]. Daí, não podia o tribunal ordenar, como requereu a recorrente, que o Sr. Administrador da Insolvência requeresse a apensação dos referidos processos de insolvência a estes autos.

            E no plano substantivo, se porventura a pretendida apensação viesse a efectivar-se, tal não significaria, necessariamente, uma liquidação conjunta de todo o património das sociedades em relação de domínio, pois que a tanto obstaria a personalidade jurídica distinta de cada uma das sociedades em causa[24].

            O entendimento oposto sustentado pela recorrente contenderia com os interesses dos credores exclusivos de cada uma das sociedades obrigando-os a concorrer com credores de outras sociedades, desconsiderando, sem base legal, a personalidade jurídica de cada uma das referidas sociedades. Acresce que o entendimento da recorrente traria um injustificado benefício dos credores da insolvente nestes autos, já que, enquanto credores de uma SGPS, sabem que o património desta é quase exclusivamente constituído por participações sociais noutras sociedades, não contando para a sua garantia patrimonial com o património das sociedades participadas (cf. art.º 5º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 495/88, de 30.12).

            À responsabilidade da sociedade dominante pelas obrigações da sociedade dominada, nos termos previstos no art.º 501º do CSC, “preço”/contrapartida pago pelo domínio sobre as sociedades dominadas, não corresponde o reverso de uma qualquer responsabilidade da sociedade dominada pelas obrigações da sociedade dominante[25].

            Ainda que o argumento a contrario sensu esgrimido pela recorrente, na alegação de recurso, com base no disposto no art.º 503º, n.º 4, do CSC[26], para sustentar a legalidade da sociedade dominante determinar a transferência de bens do activo da sociedade totalmente dependente para a sociedade dominante tivesse algum cabimento, sempre o regime das operações vedadas às SGPS obstaria à efectivação dessa transferência (art.º 5º, n.º 1, alínea a) do DL n.º 495/88, de 30.12).

            A inexistência legal de uma autonomia patrimonial[27] de todo o património das sociedades dominadas e da sociedade dominante torna insubsistente a argumentação da recorrente de fundamentar a sua pretensão de necessária apensação de todos os processos de insolvência relativos a sociedades em relação de domínio numa autonomia patrimonial de todo o património dessas sociedades, a sobrepor-se à personalidade jurídica das mesmas sociedades. E não é correcto que o CIRE tenha abandonado o critério da personalidade jurídica em favor da simples existência de um património autónomo, bastando, para tanto, atentar na previsão da alínea a), do n.º 1, do art.º 2º do CIRE, sendo também incorrecta a invocação de um paralelo do caso dos autos com o do Agrupamento Complementar de Empresas, porquanto esta entidade tem personalidade jurídica distinta das pessoas singulares ou colectivas que agrupa (cf. a Base IV da Lei n.º 4/73, de 04.6).

            É assim infundamentada a pretensão da recorrente de necessária apensação de todos os processos de insolvência de sociedades que se achem em relação de domínio.

            5. Voltando à problemática da insolvência nos grupos de sociedades e atenta a controvérsia a respeito da questão de saber se com a apensação permanece a “autonomia formal e substancial dos processos”, sem liquidação conjunta, como se propugna em II. 3. e 4., supra, ou se ela tem impacto substantivo, possibilitando uma consolidação patrimonial, com a liquidação conjunta das sociedades do grupo[28], importa considerar que a lei não atribui personalidade jurídica ao grupo de sociedades, separada e autónoma das sociedades componentes, como sujeito de direito (“personificação do grupo”), pois o que o caracteriza, enquanto forma de organização de um conjunto de empresas, é precisamente “a unidade económica do todo e a pluralidade jurídica das partes”, e o grupo de sociedades, seja vertical, horizontal ou diversificado, não é reconduzível a uma empresa (em sentido objectivo ou subjectivo).[29]

            E se a doutrina convoca, por vezes, o instituto da desconsideração ou levantamento da personalidade colectiva no âmbito do grupo de sociedades, quer com base em normas específicas (v. g., o art.º 501º do CSC), quer por “necessidade do sistema”[30], importa atentar que mesmo nas situações de confusão de esferas jurídicas ou de subcapitalização material, não é o simples controlo, a interpenetração das sociedades ou a direcção unitária que justificam o levantamento, dada a natureza excepcional e subsidiária do instituto, sendo que este é trazido à colação quando a personalidade foi usada de modo ilícito ou abusivo para prejudicar terceiros; ou seja, enquanto instituto de carácter excepcional, a desconsideração mantém o seu espaço próprio de actuação – necessariamente residual – mas não pode nunca ser erigido em solução de âmbito geral para os problemas dos grupos de sociedades. Por isso mesmo, em princípio a autonomia das sociedades mantém-se mesmo em caso de insolvência de uma ou de todas, salvo se os pressupostos do levantamento se encontrarem preenchidos ou se existir norma positiva a impor a responsabilidade.[31]

            No caso vertente, e sendo certo que esta matéria surge no desenvolvimento da principal questão colocada em sede de recurso, ainda que se propendesse para uma interpretação extensiva do art.º 86º, n.º 2, do CIRE[32], não haveria porventura elementos que indiciassem o uso abusivo das sociedades dominadas ou qualquer outra irregularidade susceptível de justificar a consolidação patrimonial/substancial, através da liquidação conjunta[33], tida, naquele entendimento, como corolário da requerida apensação de processos.

            6. Colocando-se a questão de saber se a não apensação de processos ofende o interesse comum dos credores, dir-se-á, tal como se discorreu no citado aresto de 12.10.2010[34], que os credores têm muitas vezes interesses contrapostos, contraposição que é mais nítida quando, como em regra sucede no processo de insolvência, existe um activo insuficiente para satisfação de todos os créditos dos credores. 

            Não obstante, é possível afirmar que é interesse comum dos credores a máxima satisfação dos seus créditos, que não significa necessariamente a sua satisfação imediata porquanto, se assim fosse, não se preveriam alternativas à liquidação da massa insolvente. De facto, por vezes, em vez da cobrança imediata ou quase imediata de um certo valor, pode lograr-se a recuperação total ou quase total do crédito em dívida. Além da máxima satisfação dos créditos, deve ainda considerar-se integrar o interesse comum dos credores que essa satisfação creditória decorra com respeito das exigências da hierarquia, da igualdade e da proporcionalidade dos credores[35].

             A factualidade alegada pela recorrente para integrar a alegada contrariedade da não apensação de processos ao interesse comum dos credores assenta no pressuposto, que a recorrente tem por indiscutível, de que a liquidação de todo o património das sociedades insolventes em relação de domínio deve processar-se de forma unitária e conjunta, o que, como vimos, não se deverá sufragar.

            7. Na interpretação dos normativos legais aplicados nesta decisão não se divisa qualquer violação da garantia de acesso aos tribunais na previsão do art.º 2º do CPC ou do direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais conforme preceitua o art.º 20º, da CRP, sendo estes autos (e, também, os aqui referenciados e implicados) a prova real da inexistência dessa ofensa.

            Também não se vê como é que o art.º 86º, n.º 2, do CIRE, viola o art.º 202º da CRP.

            Neste contexto, importa atentar noutros normativos do CIRE, sobretudo, naqueles que nos dão conta das funções concretamente cometidas ao juiz do processo e ao administrador da insolvência.

            A actividade do administrador da insolvência é fiscalizada pelo Juiz que, nos termos do disposto no art.º 58º, do CIRE, pode, a todo o tempo, exigir-lhe informações sobre quaisquer assuntos ou a apresentação de um relatório da actividade desenvolvida e do estado da administração e da liquidação.

            O juiz é, portanto, um garante da legalidade, em todos os aspectos em que ela se projecta e não poderá ser um substituto do administrador de insolvência nas funções que a lei a este confere por forma que se presume avisada, criteriosa e prudente (cf. art.º 9º, n.º 3, do CC). Concomitantemente com a competência fiscalizadora de toda a actividade do administrador, a lei atribui ao juiz outros poderes avulsos que interferem com a actividade de administração e liquidação (cf., v.g., art.ºs 157º, alínea b); 158º, n.º 2 e 161º, n.º 5, do CIRE).

            À luz do enquadramento e da distribuição de funções do actual CIRE, o facto de não lhe caber a direcção da administração tem como reflexo fundamental a circunstância de, fora dos poderes que lhe estão concretamente assinados, o juiz não dispor da faculdade de instruir o administrador sobre o modo de proceder, deixando de ter qualquer poder de censura dos actos do administrador praticados no exercício das suas funções, sem prejuízo dos poderes de fiscalização e de destituição por justa causa (art.º 56º, n.º 1, do CIRE).[36]

            E no exercício da sua competência fiscalizadora, o juiz poderá solicitar ao administrador a prestação, a todo o tempo, das informações que houver por bem sobre qualquer assunto relativo ao processo ou ao seu desenvolvimento, que intersecte a competência do administrador, respeite ele a condutas efectivamente adoptadas ou a simples omissões, sendo que a obtenção de tais elementos de esclarecimento é particularmente relevante para que o juiz possa controlar a legalidade dos actos e, se for o caso, exercer o poder de destituição do administrador.

            O juiz poderá igualmente, se assim o entender, proceder, por iniciativa própria, por exemplo, à convocação da assembleia de credores (ex vi do art.º 75º, n.º 1, do CIRE), para levar ao seu conhecimento e apreciação factos que considere relevantes ou suscitar questões do interesse geral, da mesma forma que pode solicitar ao respectivo presidente a reunião da comissão de credores, quando exista, para idênticos fins e ainda para desencadear o exercício de competências específicas que a ela cabem.[37]

            E a desjudicialização parcial levada a cabo pelo DL n.º 53/2004, de 18.3, não envolve diminuição dos poderes que ao juiz devem caber no âmbito da sua competência própria, afirmando-se expressamente, no art.º 11º do CIRE, a vigência no processo de insolvência do princípio inquisitório, que permite ao juiz fundar a decisão em factos que não tenham sido alegados pelas partes.[38]

            Sabemos que o direito fundamental de acesso ao direito e aos tribunais ou à tutela jurisdicional efectiva, plasmado no art.º 20º da CRP, enquanto direito de natureza análoga à dos direitos, liberdades e garantias, traduz-se, desde logo, no direito de recurso a um tribunal e de obter uma decisão jurídica sobre questão juridicamente relevante.

            O Tribunal Constitucional interpreta esta garantia no sentido da proibição de regimes adjectivos que em absoluto retirem a uma das partes o seu direito de defesa, reafirmando-a como um direito a uma solução jurídica dos conflitos, a que se deve chegar em prazo razoável e com observância de garantias de imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto funcionamento das regras do contraditório, em termos de cada uma das partes poder deduzir as suas razões (de facto e de direito), oferecer as suas provas, controlar as provas do adversário e discretear sobre o valor e resultado de umas e outras[39].

            Por outro lado, o acesso ao direito e aos tribunais - que não é ilimitado ou absoluto - é a todos assegurado nos termos e através dos meios e procedimentos previstos na lei, carece de conformação através da lei[40].

            Ora, pelo que se deixa exposto, não decorre da interpretação dos normativos seguida nesta decisão a violação de quaisquer princípios ou direitos constitucionalmente consagrados, porquanto, designadamente, a recorrente usou dos meios legais ao seu dispor para aceder ao direito e aos tribunais e o tribunal recorrido não foi de modo algum “postergado” na respectiva função/competência de administrar a justiça em nome do povo.

            Ademais, e visto o aspecto substantivo/interesse que a recorrente pretendeu prosseguir, não se podendo olvidar que os credores de uma SGPS sabem ou têm o dever de saber que a sua devedora apenas e em regra é titular de participações sociais noutras sociedades (art.º 5º, n.º 1, alínea a), do DL n.º 495/88, de 30.12), verifica-se, ao invés, que a interpretação sufragada pela recorrente é que poderia implicar a violação desses princípios ou direitos, inclusive, o direito à propriedade privada dos credores das sociedades dominadas por estes se verem imprevistamente a concorrer com os credores das sociedades dominantes na satisfação dos seus créditos e pelas forças do património das sociedades de que são credores.

            8. Concluindo, o despacho recorrido não violou qualquer disposição legal ou constitucional, e a interpretação dada ao art.º 86°, do CIRE, não padece de qualquer inconstitucionalidade.

            Soçobram desta forma as “conclusões” da alegação da recorrente.


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  III. Face ao exposto, julga-se improcedente a apelação, confirmando-se, assim, o despacho recorrido.

Custas pela apelante.


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FONTE RAMOS ( Relator )
CARLOS QUERIDO
PEDRO MARTINS


[1] Declarada insolvente por sentença de 15.3.2010.
[2] Aprovado pelo DL n.º 53/2004, de 18 de Março.
[3] O dito requerimento está reproduzido a fls. 343 e seguintes.
[4] Na sequência do despacho de fls. 509, ponto 2, as iniciais 98 “conclusões” ficaram reduzidas para 43.
[5] Por despacho de 31.8.2010, reproduzido a fls. 236, indeferiu-se o requerido pela recorrente quanto à atribuição de efeito suspensivo ao recurso (cf. requerimento reproduzido a fls. 3, dirigido à Exma. Senhora Juíza de Direito do Tribunal da Comarca do Baixo Vouga), considerado o disposto no art.º 14º, n.º 5, do CIRE.
    Sobre esta questão, no âmbito de um outro recurso interposto pela mesma recorrente e que teve por objecto outras decisões constantes do mesmo processo, pronunciou-se o acórdão desta Relação de 12.10.2010/processo 255/10.2T2AVR-B.C1 - intervindo os aqui relator e 1º adjunto enquanto, respectivamente, 1º e 2º adjuntos -, publicado no “site” da dgsi. Na referida publicação existe lapso manifesto quanto à data do acórdão, uma vez que foi indicada a data da precedente decisão singular de 27.7.2010.
[6] Tal como nos autos de recurso aludidos na “nota 5”, não foi junta aos presentes autos qualquer certidão do registo comercial.
[7] Requerimentos reproduzidos a fls. 66 e 83.
[8] Rectificou-se lapso manifesto (escrevera-se “diversas”).
[9] O aludido “Contrato de Cessão de Exploração” encontra-se reproduzido a fls. 446 e seguintes.
[10] Tratar-se-á do “Contrato de Reestruturação Financeira” reproduzido a fls. 365 e seguintes.
[11] Rectificou-se lapso manifesto (constava “sua”).
[12] Cf. o documento de fls. 92, que reproduz a mencionada “resposta” do Administrador da Insolvência.
[13] Daí o acórdão referido supra sob a “nota 5”.
[14] Cf. o ponto 1 do despacho de fls. 509 e o requerimento de fls. 515.
[15] Veja-se, de resto, a parte inicial do despacho recorrido (fls. 5, supra).
[16] Preceitua-se no mencionado normativo: “O processo sumário e os processos especiais regulam-se pelas disposições que lhes são próprias e pelas disposições gerais e comuns; em tudo quanto não estiver prevenido numas e noutras, observar-se-á o que se acha estabelecido para o processo ordinário.”    
[17] Vide, neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, Quid Juris-Sociedade Editora, 2009, pág. 121.
[18] Cf., ainda, o art.º 460º, n.º 2, do CPC, que estabelece: O processo especial aplica-se aos casos expressamente designados na lei; o processo comum é aplicável a todos os casos a que não corresponda processo especial.

[19] Cf., a propósito, o n.º 20 do Preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18.3 e, de entre vários, o acórdão da RP de 27.5.2010-processo 283/05.0TBMDB-W.P1, publicado no “site” da dgsi.
[20] Vide, neste sentido, sobre toda a matéria, Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 358 a 360; cf., ainda, o referido acórdão da RP de 27.5.2010.
     Em sentido contrário, e sendo certo que se trata de problemática não isenta de dificuldades, vide Ana Perestrelo de Oliveira, in A insolvência nos grupos de sociedades, Revista de Direito das Sociedades, Ano I (2009), n.º 4, págs. 995 e seguinte, propugnando que o art.º 86 n.º 2, do CIRE, deve ser objecto de interpretação extensiva, de modo a permitir, em determinadas condições, uma consolidação substancial, através de liquidação conjunta, assumindo “indirecta incidência material, permitindo afastar a ideia do processo de insolvência como processo exclusivamente dirigido à liquidação do património de cada sociedade individual “, logo “ pode e deve haver apensação dos processos de insolvência de sociedades que se encontrem, com a sociedade declarada insolvente, em relação de domínio ou de grupo, sempre que a lei ou a confusão dos patrimónios o justifique, independentemente da posição ocupada por cada uma das sociedades no grupo “ (pág. 1013).
     Cf, ainda, o acórdão desta Relação de 07.9.2010-processo 213/10.7T2AVR-A.C1, publicado no “site” da dgsi, que considerou esta segunda perspectiva como sendo “a posição que melhor garante a igualdade dos credores, cuja solução se revela dogmaticamente mais consistente, e, por isso mesmo aceitável”.
[21] Cf., infra, II. 7..
[22] Cf. o acórdão desta Relação de 12.10.2010, aludido supra (“nota 5”) e que seguiremos de perto no presente ponto.
[23] Vide, neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 358.
[24] Cf. o acórdão da RP de 20.4.2010-processo 484/03.5TYVNG-I.P1, cuja argumentação, apesar de referida a caso em que era aplicável o CPEREF, é transponível para a situação em análise.
[25] Vide também, neste sentido, Engrácia Antunes, Os Grupos de Sociedades, 2ª edição, pág.151.
[26] Normativo que reza o seguinte: É proibido à sociedade directora determinar a transferência de bens do activo da sociedade subordinada para outras sociedades do grupo sem justa contrapartida, a não ser no caso do artigo 502º.
[27] Património autónomo é o que só responda e responda só ele por certas dívidas; a qualificação de património autónomo pressupõe que uma dada massa patrimonial só é sensível a certas dívidas - vide Manuel de Andrade, Teoria Geral da Relação Jurídica, Vol. I, Coimbra 1974, Almedina, pág. 219.
[28] Cf., supra, “nota 20”, 2ª parte.
[29] Cf., neste sentido, Engrácia Antunes, ob. cit., págs.155 e seguintes e o citado acórdão da RC de 07.9.2010.

[30] Cf. Menezes Cordeiro, O Levantamento da Personalidade Colectiva, 2000, págs. 81 e seguintes.
[31] Vide Ana Perestrelo de Oliveira, estudo e local citado, pág. 1007.
[32] Cf., supra, “nota 20”, 2ª parte.
[33] Não obstante o requerimento de fls. 343 (na origem do despacho recorrido) e a promoção do MP de 22.6.2010 (reproduzida a fls. 355 e seguinte), dever-nos-emos ater apenas ao que consta dos relatórios juntos aos autos pelo administrador da insolvência e aos “pareceres” e “respostas” por ele subscritos [cf., designadamente, II. 1. alínea i) e documento de fls. 433 e seguintes], porquanto, considerados os elementos disponíveis, nada mais se poderá ter por demonstrado.
[34] Cf. “nota 5”, supra
[35] Vide, neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 327 e seguinte.

[36] Cf., a propósito, o ponto 10 do Preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18.3.
[37] Preceitua-se no n.º 1 do art.º 68º (que tem por epígrafe “Funções e poderes da comissão de credores”), do CIRE: À comissão compete, para além de outras tarefas que lhe sejam especialmente cometidas, fiscalizar a actividade do administrador da insolvência e prestar-lhe colaboração.
     Sobre toda a problemática, vide Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 267 e seguintes.
[38] Cf., a propósito, o n.º 11 do Preâmbulo do DL n.º 53/2004, de 18.3.
[39] Cf., de entre vários, os acórdãos do TC n.ºs 86/88, de 13.4.1988 e 440/94, de 07.6.1994, in BMJ 376º, 237 e DR, II Série, de 01.9.1994, respectivamente.
[40] Vide Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Vol. I, 4ª edição, Coimbra Editora, 2007, pág. 408.