Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
26/09.9GBFVN.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ORLANDO GONÇALVES
Descritores: CRIME DE DESOBEDIÊNCIA
DETECÇÃO ÁLCOOL
ELEMENTOS CONSTITUTIVOS
Data do Acordão: 10/07/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 69º,348.º-1-A) ,69.º, DO CÓDIGO PENAL, 4.º, N.º 1 DA LEI N.º 18/2007, DE 17-05
Sumário: 1. Os elementos constitutivos do crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 152.º-1-a) e n.º 3 do Código da Estrada, com referência ao artigo 348.º-1-a) e artigo 69.º, ambos do Código Penal são os seguintes:- a emissão de uma ordem, para o agente se submeter às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool;- a regularidade da sua transmissão por autoridade competente;- a recusa do agente a submeter-se à realização das provas; - o conhecimento e vontade do agente em desobedecer à ordem, com consciência da ilicitude da sua conduta.
2. Uma ordem é a imposição de uma obrigação, que pode ser da prática de uma conduta ou de uma sua abstenção.
3. Não se verificando nenhuma das duas situações a que alude o art.4.º, n.º 1 da Lei n.º 18/2007, de 17-05, não incumbe ao agente de autoridade policial transportar o arguido ao estabelecimento de saúde para realização de exame por colheita de sangue.
Decisão Texto Integral: Acordam, em Conferência, na 4.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.

Relatório

Pelo Tribunal Judicial da Comarca de Figueiró dos Vinhos, sob acusação do Ministério Público, foi submetido a julgamento em processo sumário, o arguido

C..., casado, residente na Rua …., em Castanheira de Pera,

imputando-se-lhe a prática de factos pelos quais teria cometido um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 152.º-1-a) e n.º 3 do Código da Estrada, com referência ao artigo 348.º-1-a) e artigo 69.º, ambos do Código Penal.

Realizada a audiência de julgamento, o Tribunal Singular, por sentença proferida a 27 de Março de 2009, decidiu julgar a acusação procedente, por provada e, em consequência,
- condenar o arguido C..., como autor material de um crime de desobediência simples, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º1, al.a) e nº 3 do Código da Estrada, com referência ao artigo 348.º, n.º1, al.a) do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à razão diária de 6,00 (seis euros) euros, perfazendo o montante de € 360 (trezentos e sessenta) euros; e
- condenar o arguido na pena acessória de inibição do direito de conduzir veículos com motor pelo período de 4 (quatro) meses , nos termos do artigo 69.º, n.º1, al.c) do Código Penal.

Inconformado com a douta sentença dela interpôs recurso o arguido, concluindo a sua motivação do modo seguinte:
1. O arguido não confessou ter-se recusado a fazer o teste de sopro para detecção de álcool.
2. O arguido não estava em condições de expelir ar suficiente para a análise de álcool no sangue, devido ao “estado deplorável” de embriaguez em que se encontrava e não se conseguia equilibrar.
3. Ao arguido foi "solicitado" que soprasse, pelo que inexiste ordem no sentido penalmente relevante.
4. O princípio da livre apreciação da prova tem de respeitar as regras da experiência e a motivação da convicção do Tribunal tem de ser coerente e razoável, explicando o modo de génese da mesma e, não havendo nenhum elemento probatório que sustente ter havido não acatamento de qualquer ordem, a fundamentação da matéria de facto mostra-se ilegal, ferindo mortalmente a decisão, sobretudo porque as provas apontam para sentido diverso.
5. Não tendo sido possível fazer teste de detecção de álcool por sopro ao arguido, deveria ter sido efectuado exame ao sangue, nos termos do n.º 8 do artigo 153.º, CE, e, apenas havendo recusa neste caso, se pode falar de crime de desobediência.
6. Deve ser alterada a matéria de facto, passando a matéria não assente que o arguido recusou ou manteve decisão de se recusar submeter-se ao teste de alcoolemia pois nenhuma prova aponta para tal, devendo dar-se como provado que “O arguido não estava em condições de expelir ar suficiente para a análise de álcool no sangue” e que “O arguido não foi transportado a unidade de saúde para ser sujeito a colheita de sangue para realização do teste de alcoolemia”.
7. Foi violado o disposto nos artigos 348.º, n.º 1, al. a) e 69.º, n.º 1, al. c), ambos do CP, por referência ao artigo 152.º, n.º1, al. a) e 3, CE e ainda os artigos 127.º e 374.º, n.º 2, ambos do CPP, 153.º, n.º 8, CE e os 4.ºe 7.º, ambos da Lei 18/2007, de 17.05.
8. Dadas as matérias de facto e de direito alegadas, dúvidas não subsistem que outra deveria ter sido a decisão proferida pelo Tribunal a quo: a absolvição do arguido da prática do crime pelo qual vinha acusado.
Normas violadas: artigos 348.º, n.º 1, al. a) e 69.º, n.º 1, al. c), ambos do CP, por referência ao artigo 152.º, n.º1, al. a) e 3, CE e artigos 127.º e 374.º, n.º 2, ambos do CPP, 153.º, n.º 8, CE e os 4.º e 7.º, ambos da Lei 18/2007, de 17.05.
Assim, sem menosprezo pela douta Sentença de que se recorre e sempre com o mui douto suprimento de VV. Exa.s, espera-se que seja decretada a absolvição do arguido ora recorrente, C..., dada o erro notório na apreciação da prova, ora alegada, bem como procedendo-se à renovação da prova requerida, assim se fazendo JUSTIÇA.

O Ministério Público na Comarca de Figueiró dos Vinhos respondeu ao recurso interposto pelo arguido, pugnando pela manutenção da douta sentença recorrida e improcedência do recurso.

O Ex.mo Procurador Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da rejeição sumária do recurso, por manifesta improcedência, com as consequências fixadas no n.º4 do art.420.º do C.P.P..

Foi dado cumprimento ao disposto no art.417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.

Colhidos os vistos, cumpre decidir.

Fundamentação

A matéria de facto apurada e respectiva motivação constante da sentença recorrida é a seguinte:
Factos provados
No dia 11/03/2009, pelas 23 horas e 20 minutos, o arguido conduzia a viatura automóvel, ligeiro de mercadorias, de matrícula ......, em Sarzedas de São Pedro, Castanheira de Pêra, área desta comarca.
Então, deparou-se com uma patrulha da Guarda Nacional Republicana, cujos militares, ali presentes, solicitaram ao arguido a sua submissão a exame de pesquisa de álcool no sangue.
O arguido recusou-se a realizar o exame em causa, quer pelo método do ar expirado quer por análise sanguínea.
Não obstante ter sido advertido de que a sua actuação representava uma recusa à realização do exame e que tal implicaria a prática de um crime de desobediência, o arguido não alterou a sua atitude inviabilizando a realização daquele.
O arguido actuou com vontade livre e consciente, bem sabendo que, com a sua conduta vedada por lei, estava a recusar submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool e que, em consequência de tal, desobedecia a uma ordem legitima, regularmente comunicada, imposta por disposição legal e emanada da entidade competente.
Provou-se, ainda, que:
O arguido havia ingerido bebidas alcoólicas ao jantar.
Que seguia acompanhado de uma senhora.
Antecedentes criminais:
Inexistem.
Situação pessoal e económica do arguido:
O arguido não tem ocupação definida, vivendo de biscates.
Vive com a esposa e um filho de 19 anos de idade.
A sua esposa recebe uma pensão de cerca de € 400,00/mês.
A casa onde habitam é sua.
Tem o 8º ano de escolaridade.
Factos não provados
Com interesse para a decisão da causa, ficou por provar toda a matéria fáctica constante da contestação apresentada pelo arguido que se encontre em contradição com a acima julgada provada, e designadamente o constante dos artigos 6º (“...apercebeu-se de um veículo atrás de si”), 7º, 8º, 10º (“...tendo um deles retirado o veículo...da vala”), 13º, 14º, 19º (“Mas encontraram-no acidentado”), 22 (“...o arguido não estava em condições de expelir ar suficiente para analisar o álcool no sangue”), 23º e 26º.
Tudo o mais, ali expresso, ou é conclusivo ou não revela interesse para a boa decisão da causa.
Motivação
O Tribunal respondeu à matéria de facto da forma supra descrita tendo em consideração as declarações do arguido, em audiência de julgamento, conjugado com o depoimento das testemunhas, e com a análise do teor dos documentos juntos aos autos, designadamente o auto de notícia.
Vejamos, então, começando pelo arguido.
Este começou por reconhecer ter bebido “um copo a mais”, ao jantar de 11/03/2009.
Porém, sentia-se perfeitamente capaz de conduzir. Disse, aliás, que “percebia o que andava a fazer” e que “conseguia andar bem”.
Resolveu, então, levar G... a casa.
Seguiram pela estrada nacional e, depois, por uma estrada de terra batida.
Aí, a dado passo, sentiu-se encadeado pelos faróis da viatura que seguia imediatamente atrás de si, pelo que deixou o carro “sair um pedaço para a berma, para a esquerda”. Mas, pegando nas suas próprias palavras, “não houve acidente”.
De notar que se trata de uma via estreita, onde só passa uma viatura de cada vez e que o carro não registou quaisquer danos, nas suas próprias palavras.
Foi, então, que se apercebeu que a viatura que o seguia era um veículo da GNR.
Seriam, então, umas 22 ou 23 horas.
Do que se recorda, limitou-se a acompanhou os militares da GNR até ao Posto, “só para dar a identificação”. Na sua versão, em momento algum aqueles militares, ou quaisquer outros, lhe pediram para “soprar no balão”, nem sequer lhe mostraram o aparelho.
No Posto, recorda-se perfeitamente de ter assinado “uns papéis”, que em audiência reconheceu tratar-se do expediente junto aos autos.
Seguiu-se M....
É militar da GNR.
Esta testemunha estava no exercício da sua actividade profissional, em serviço de patrulha naquele dia 11/03/2009. Conhece o arguido há cerca de 30 anos, nada tendo contra o mesmo. Pelo contrário, denotou, até, possuir alguma amizade pelo arguido.
A dado momento, foram alertados pelo Posto que ali tinham recebido uma mensagem anónima, informando que o arguido se aprestava para conduzir embriagado.
Foi assim que, vendo o arguido ao volante da sua viatura, o resolveram seguir.
Após algumas peripécias, feitas de encontros e desencontros, voltaram a encontrar o arguido junto da fábrica de lanifícios “Morgado”, em Sarzedas.
A viatura da GNR e a do arguido circulavam, então, em sentidos opostos.
Uma vez que se trata de via estreita, em empedrado, o arguido teve necessariamente de deter a sua marcha. Por ali havia uma zona em terra, devido a obras, mas à esquerda, atento o sentido de marcha do arguido.
Nas palavras desta testemunha, o arguido por ali não se despistou ou acidentou; limitou-se simplesmente a parar, por não poder prosseguir a sua marcha, uma vez que topou com a viatura policial.
Abeirando-se da viatura do arguido, pediu a este que apresentasse os seus documentos. O arguido reagiu, dizendo que os não tinha ali consigo.
O arguido exalava um forte cheiro a álcool.
Esta testemunha disse, então, ao arguido, para fazer “o teste do álcool”, mas este recusou-se terminantemente a fazê-lo.
Recusou, de igual sorte, fazer “o teste do sangue”
Esta testemunha andou de volta do arguido cerca de meia hora, tendo advertido o mesmo que, caso persistisse na sua recusa em se submeter ao exame ao álcool, incorria na prática de um crime de desobediência.
Nem isso demoveu o arguido, que persistiu na sua recusa.
Assim, esta testemunha pediu ao arguido para o acompanhar até ao Posto, para preenchimento do expediente relativo à recusa.
No Posto, ainda insistiu novamente com o arguido, nos moldes acima descritos, igualmente sem sucesso. Aliás, esta testemunha disse que o arguido dizia “eu sei que estou a incumprir”.
Então, preencheu o expediente junto aos autos, que o arguido assinou.
Mais lhe disse para comparecer no dia seguinte neste tribunal, o que o arguido assim fez, como depois constatou.
Não tem quaisquer dúvidas que, pese embora o arguido se apresentasse sob influência do álcool, conseguia perceber perfeitamente tudo aquilo que lhe diziam, bem como o alcance dos seus actos.
Chega, agora, a vez de V....
Também é militar da GNR, encontrando-se de serviço naquele dia, na companhia da testemunha anterior.
Conhece o arguido há cerca de 10 anos, nada tendo contra o mesmo.
Corroborou, na íntegra, tudo aquilo que a testemunha M... nos contou em audiência.
Esta testemunha ainda referiu que o colega até foi buscar o aparelho de despistagem do álcool, quando se encontravam junto à fábrica de lanifícios “Morgado”, mas nem assim demoveu o arguido do seu intento de recusa.
O arguido só dizia para o deixarem ali, que até dormia dentro da carrinha.
Foram, então, com o arguido para o Posto.
Esta testemunha chamou a atenção que, no Posto, o arguido, virando-se para os militares ali presentes, dizia “já me lixaram”, “estou tramado”. Até chegou a desculpar-se, dizendo que “não soprava porque não estava a conduzir”.
O que esta testemunha também não tem quaisquer dúvidas é que o arguido, pese embora denotasse consumo de álcool, estava perfeitamente ciente do que dizia, do que lhe diziam, e do que fazia.
Se não se submeteu ao exame, foi porque não quis.
Temos, por fim, a testemunha G....
Acompanhava o arguido naquele dia, em Sarzedas.
Antes, ao jantar, nas suas palavras, o arguido tinha “bebido bem ao jantar”.
Apesar disto, o arguido propôs-se a conduzi-la até casa, e que este “ia bem na estrada”.
Também não andava aos “esses” na estrada.
O arguido deteve a marcha do carro na berma da direita, onde havia umas silvas, mas apenas do seu lado. Então saiu do carro. Do local onde a testemunha se foi colocar, não ouvia a conversa entre os militares da GNR e o arguido, pelo que nada mais disse, de útil.
Que dizer?
Não temos quaisquer dúvidas que o arguido ingeriu bebidas alcoólicas naquela noite. O próprio arguido o disse, sendo que os militares da GNR reconheceram alguns dos seus efeitos, nomeadamente quanto ao hálito que o arguido apresentava.
Por outro lado, é certo que o arguido conduziu a JP até Sarzedas, fazendo-se acompanhar por G… .
Perguntei ao arguido se ele, naquela altura, se sentia bem para conduzir. A resposta, pronta, por banda deste, não se fez esperar: que se sentia em condições de conduzir, que estava bem.
Claro, sentindo-se bem, pese embora a ingestão de bebidas alcoólicas, foi para o volante da JP.
E que a sua condução se passou com normalidade também é certo. Aliás, a própria G...o fez questão de frisar, dizendo que a marcha do veículo era normal, que este ia bem na estrada.
Ou seja, o arguido sabia perfeitamente o que fazia, conseguindo obter a precisa coordenação Psico-motora para conduzir a JP sem problemas de maior.
Repete-se: foi o arguido que disse que ia bem.
A dado passo, deparou-se com a GNR. Aqui começam as contradições: o arguido diz que eles circulavam na sua retaguarda; os militares dizem que seguiam em sentidos opostos.
Mas as contradições não se ficam por aqui.
Os militares da GNR afirmaram, como se viu, que pretenderam sujeitar o arguido ao exame ao álcool, e que este se recusou.
O arguido diz que não senhor, ninguém lhe pediu tal coisa e que se limitou a acompanhar aqueles militares ao Posto, “para dar a sua identificação”.
E aqui começam as nossas perplexidades.
Trata-se de um meio rural.
O arguido conhece perfeitamente os militares da GNR, a ponto de saber o seu nome; em compensação, os militares afirmaram que já conhecem o arguido há muitos anos.
Então, assim sendo, fazia algum sentido aqueles militares conduzirem o arguido ao Posto, simplesmente para procederem à sua identificação?
Claramente, não.
Mais.
Porque haveriam dois militares da GNR mentir deliberadamente em tribunal, dizendo que solicitaram ao arguido que se submetesse ao exame do álcool, sob pena de incorrer em crime de desobediência?
De notar que estas testemunhas agiam no cumprimento dos seus deveres profissionais, sendo que uma delas, M... chegou a afirmar em audiência ser amigo do arguido.
Além disso, o seu discurso denotou absoluta imparcialidade, depondo de forma absolutamente coerente, desapaixonada e rica em pormenores. Aliás, pelo que disseram, muito mais poderiam ter escrito no auto de notícia.
Ou seja, depuseram de forma absolutamente credível.
Ao invés, o discurso do arguido foi “flutuando”, ao sabor do momento.
Instado por mim, afirmou peremptoriamente que os militares da GNR não lhe disseram para fazer o teste do álcool, e que apenas foi ao Posto para dar a identificação.
Porém, mais à frente, já afirmava que, afinal, não se recordava bem, que estava com “os copos”.
Note-se porém, que foi este arguido quem disse que, para conduzir, estava bem.
Ou seja, não temos quaisquer dúvidas que a verdade mora com os militares da GNR e que estes solicitaram ao arguido que realizasse o exame de pesquisa de álcool, com a cominação da prática de um crime de desobediência.
Ora bem.
Falta ver, parece-nos, uma única questão.
Como se começou por dizer, o arguido encontrava-se efectivamente sob o efeito do álcool, quando interceptado pela GNR.
Será que se encontrava num estado tal que não estava em condições de perceber o significado da recusa à submissão ao referido exame ou, pior, nem reunia as condições físicas para ser submetido ao mesmo?
A tudo isto respondemos com um rotundo não.
O arguido percebia perfeitamente o alcance de tudo aquilo que fazia e podia, caso o quisesse (e vá-se lá saber porque o não quis...), ter realizado o exame em questão.
Se não, vejamos.
O arguido dizia-se capaz de conduzir o JP. E conduziu-o mesmo, sem atropelos de maior.
Conseguiu assinar toda o expediente junto aos autos.
Percebeu, perfeitamente, o sentido da notificação para comparecer em Tribunal no dia 12/03/2009, como efectivamente fez – cf. fls. 6 e 31. Note-se que essa notificação foi efectuada naquela mesma noite, acto contínuo à sua recusa.
Aliás, o próprio arguido disse que “conseguia andar bem”.
Mais.
Os militares da GNR afirmaram que o arguido apresentava um discurso coerente e que manifestava reacções, mormente verbais, que denotavam claramente o motivo da sua recusa: estavam a “lixar-lhe” a vida!
Perante tudo isto, que dúvidas podiam ter os militares da GNR de que o arguido só não realizou o exame em questão por que não quis?
Eu, da minha parte, não tenho a mais pequena sombra de dúvida a esse respeito: o arguido não se submeteu ao exame porque não quis.
Por tudo isto se fixou a matéria de facto dada por provada e não provada.
X
Sobre a situação pessoal do arguido:
Para prova da situação pessoal do arguido, atendeu-se às declarações por este prestadas, as quais, aqui, pareceram sinceras e credíveis, merecendo por isso a confiança do julgador.
X
Sobre os antecedentes criminais:
Para prova da inexistência de antecedentes criminais registados pelo arguido atendeu-se ao teor do CRC junto aos autos.

*
*

O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação. ( Cfr. entre outros , os acórdãos do STJ de 19-6-96 Cfr. BMJ n.º 458º , pág. 98. e de 24-3-1999 Cfr. CJ, ASTJ, ano VII, tomo I, pág. 247. e Conselheiros Simas Santos e Leal Henriques , in Recursos em Processo Penal , 6.ª edição, 2007, pág. 103).

São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respectivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar Cfr. Prof. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2ª edição, pág. 350. , sem prejuízo das de conhecimento oficioso .

No caso dos autos , face às conclusões da motivação do arguido C... as questões a decidir são as seguintes :
- se o Tribunal a quo errou na apreciação da matéria de facto uma vez que o arguido não estava em condições de soprar , pelo que deve ser alterada a matéria de facto, passando a constar como matéria não assente que o arguido recusou ou manteve decisão de se recusar submeter-se ao teste de alcoolemia, pois nenhuma prova aponta para tal, e deve dar-se como provado que “O arguido não estava em condições de expelir ar suficiente para a análise de álcool no sangue” e que “O arguido não foi transportado a unidade de saúde para ser sujeito a colheita de sangue para realização do teste de alcoolemia”;
- se inexiste ordem no sentido penalmente relevante, uma vez que ao arguido foi “solicitado” que soprasse;
- se a fundamentação da matéria de facto da sentença é ilegal porquanto não não há nenhum elemento probatório que sustente ter havido não acatamento de qualquer ordem , apontando as provas para sentido diverso; e
- se não tendo sido possível ao arguido fazer o teste de detecção de álcool por sopro ao arguido, deveria ter-lhe sido efectuado exame ao sangue, nos termos do n.º 8 do artigo 153.º, CE, e, apenas havendo recusa neste caso, se pode falar de crime de desobediência, pelo que deve ser absolvido do crime.
Passemos ao conhecimento da primeira questão.
O Tribunal da Relação conhece de facto e de direito ( art.428.º , n.º1 do C.P.P. ) .

No entanto, a modificação da decisão da 1ª instância em matéria de facto só pode ter lugar, sem prejuízo do disposto no art.410.º, do C.P.P., se se verificarem as condições a que alude o art.431.º do mesmo Código , ou seja :

« a) Se do processo constarem todos os elementos de prova que lhe serviram de base;

b) Se a prova tiver sido impugnada nos termos do n.º 3 do art.412.º; ou

c) Se tiver havido renovação de prova .”.

Em conjugação com este preceito legal importa atender ao disposto no art. 412.º, n.º3 do Código de Processo Penal, que impõe ao recorrente, quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto o dever de especificar:

« a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados ;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida ;
c) As provas que devam ser renovadas.»
E acrescenta o n.º 4 deste preceito legal :
« Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º 2 do art.364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que funda a impugnação.»

O tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa. ( n.º 6 do art.412.º do C.P.P.).

Sobre o dever das menções dos n.ºs 3 e 4 do art.412.º do C.P.P. constarem das conclusões da motivação, o STJ já se pronunciou no sentido de que a redacção do n.º 3 do art.412.º do C.P.P., por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem de dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que “ versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda (…) ”, já o n.º 3 se limita a prescrever que “ quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (…)”, sem impôr que tal aconteça nas conclusões. Perante esta margem de indefinição legal, tendo o recorrente procedido à mencionada especificação no texto da motivação e não nas respectivas conclusões, ou o Tribunal da Relação conhece da impugnação da matéria de facto ou, previamente, convida o recorrente a corrigir aquelas conclusões. – cfr. acórdão do STJ, de 5 de Julho de 2007, proc. n.º 07P1766, www.dgsi.pt/jstj.
O art.417.º, n.º 3 do C.P.P., na actual redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto, permite o convite ao recorrente para completar ou esclarecer as conclusões formuladas.
No presente caso, o recorrente C...indica nas conclusões da motivação os concretos factos que foram dados como provados na sentença recorrida que considera incorrectamente julgados e os que deveriam ter sido dados como provados e não o foram.
Não indica , porém, nas conclusões da motivação, as provas concretas que ilustram o seu ponto de vista, limitando-se a dizer que não confessou os factos relativos à recusa.
Já na motivação, o arguido indica as provas concretas que ilustram o seu ponto de vista e localiza com precisão os segmentos das provas produzidas oralmente em audiência, com referência aos respectivos suportes de gravação, nos termos que constam da acta.
Os segmentos das provas produzidas oralmente e indicados pelo arguido estão reproduzidos na própria fundamentação da matéria de facto da sentença recorrida.
Considerando que as provas em causa estão indicadas na motivação, com localização precisa, o Tribunal da Relação, por uma questão de economia processual , mesmo sem convite ao aperfeiçoamento das conclusões da motivação, considera-se apto a modificar a matéria de facto fixada pelo Tribunal a quo, que o recorrente impugna.
Antes da abordagem directa da questão ora objecto de recurso, importa realçar que a documentação da prova em 1ª instância tem por fim primeiro garantir o duplo grau de jurisdição da matéria de facto, mas o recurso de facto para o Tribunal da Relação não é um novo julgamento em que a 2ª instância aprecia toda a prova produzida e documentada como se o julgamento ali realizado não existisse. É antes, um remédio jurídico destinado a colmatar erros de julgamento, que devem ser indicados precisamente com menção das provas que demonstram esses erros.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto exige uma articulação entre o Tribunal de 1ª Instância e o Tribunal de recurso relativamente ao principio da livre apreciação da prova , previsto no art. 127.º do Código de Processo Penal , que estabelece que “Salvo quando a lei dispuser de modo diferente , a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”.

As normas da experiência são , como refere o Prof. Cavaleiro de Ferreira , «...definições ou juízos hipotéticos de conteúdo genérico , independentes do caso concreto “sub judice” , assentes na experiência comum , e por isso independentes dos casos individuais em cuja observação se alicerçam , mas para além dos quais têm validade.» - Cfr. “Curso de Processo Penal”, Vol. II , pág.300.
Sobre a livre convicção do juiz diz o Prof. Figueiredo Dias que esta é “... uma convicção pessoal - até porque nela desempenha um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais - , mas em todo o caso , também ela uma convicção objectivável e motivável , portanto capaz de impor-se aos outros .”- Cfr., in “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 203 a 205.
O principio da livre apreciação da prova assume especial relevância na audiência de julgamento , encontrando afloramento , nomeadamente , no art. 355.º do Código de Processo Penal . È ai que existe a desejável oralidade e imediação na produção de prova , na recepção directa de prova.
O principio da imediação diz-nos que deve existir uma relação de contacto directo , pessoal , entre o julgador e as pessoas cujas declarações irá valorar , e com as coisas e documentos que servirão para fundamentar a decisão da matéria de facto.
Citando ainda o Prof. Figueiredo Dias , ao referir-se aos princípios da oralidade e imediação diz o mesmo: « Por toda a parte se considera hoje a aceitação dos princípios da oralidade e da imediação como um dos progressos mais efectivos e estáveis na história do direito processual penal . Já de há muito , na realidade , que em definitivo se reconheciam os defeitos de processo penal submetido predominantemente ao principio da escrita , desde a sua falta de flexibilidade até à vasta possibilidade de erros que nele se continha , e que derivava sobretudo de com ele se tornar absolutamente impossível avaliar da credibilidade de um depoimento. (...) .Só estes princípios , com efeito , permitem o indispensável contacto vivo e imediato com o arguido , a recolha da impressão deixada pela sua personalidade. Só eles permitem , por outro lado , avaliar o mais correctamente possível a credibilidade das declarações prestadas pelos participantes processuais “. - In “Direito Processual Penal”, 1º Vol. , Coimbra Ed. , 1974, páginas 233 a 234 .
Na verdade, a convicção do Tribunal “a quo” é formada da conjugação dialéctica de dados objectivos fornecidos por documentos e outras provas constituídas, com as declarações e depoimentos prestados em audiência de julgamento, em função das razões de ciência, das certezas, das lacunas, contradições, inflexões de voz, serenidade e outra linguagem do comportamento, que ali transparecem.
Do exposto resulta que, para respeitarmos os princípios oralidade e imediação na produção de prova, se a decisão do julgador estiver fundamentada na sua livre convicção baseada na credibilidade de determinadas declarações e depoimentos e for uma das possíveis soluções segundo as regras da experiência comum , ela não deverá ser alterada pelo tribunal de recurso.
Como se diz no acórdão da Relação de Coimbra , de 6 de Março de 2002 ( C.J. , ano XXVII , 2º , página 44 ) , “ quando a atribuição da credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear na opção assente na imediação e na oralidade , o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”.
Em suma, diremos que o preceituado no art.127.º do Código de Processo Penal deve ter-se por cumprido quando a convicção a que o Tribunal chegou se mostra objecto de um procedimento lógico e coerente de valoração, com motivação bastante, e onde não se vislumbre qualquer assumo de arbítrio na apreciação da prova.
O recorrente defende que o Tribunal a quo errou no julgamento da matéria de facto ao dar como provado que o arguido recusou-se a realizar o exame de álcool no sangue ( § 3.º dos factos provados da sentença), porquanto:
- as testemunhas M... e V... , militares da GNR, declararam que o arguido exalava um forte cheiro a álcool e a testemunha V... declarou ainda que o arguido só dizia para o deixarem no local onde foi encontrado, que até dormia dentro da carrinha, mas aceitou acompanhar a GNR ao Posto Territorial. Tal situação revela, à luz do homem comum, o elevado estado de embriaguez do arguido, que não alcançava o que lhe era pedido;
- o arguido não confessou que tenha recusado submeter-se ao exame de pesquisa de álcool no sangue;
- a testemunha V... declarou que em casos de igual índole , os examinandos são transportados ao Centro de Saúde da Sertã a fim de serem submetidos a exame mediante a colheita de sangue;
- a informação escrita nos autos refere que o arguido se encontrava em “…estado deplorável de embriaguez ..”, que “ …não se conseguia equilibrar…” e que “…o mesmo está a precisar de tratamento/internamento pois constitui grave perigo para os utentes da via, já que nem sabe por onde passa e também pelo seu estado de saúde, que está cada vez mais a agravar-se de dia para dia.”.
Em face desta prova deve dar-se como provado que “ O arguido não estava em condições de expelir ar suficiente para a análise de álcool no sangue”.
Também resulta dos depoimentos que “O arguido não foi transportado a unidade de saúde para ser sujeito a colheita de sangue para realização do teste de alcoolemia”, pelo que este facto deve ser dado como provado.
Vejamos.
Das declarações das testemunhas M... e V... proferidas no sentido de que o arguido C...exalava um forte cheiro a álcool, só dizia para o deixarem no local onde foi encontrado e que até dormia dentro da carrinha, o Tribunal da Relação entende que se pode concluir que o arguido aparentava estar sob a influência do álcool e que demonstrava pouca vontade de acompanhar as autoridades policiais até ao Posto da GNR.
Tendo, ainda assim, acabado por acompanhar a GNR ao Posto Territorial, não vislumbramos como pode concluir-se , racionalmente e de acordo com as regras da experiência comum, que tal aconteceu porque o arguido estava incapacitado de entender que lhe foi ordenado que devia submeter-se à realização do teste de alcoolemia e que não estava em condições de expelir ar suficiente para a análise de álcool no sangue.
É certo que o arguido não confessou que tenha recusado submeter-se ao exame de pesquisa de álcool no sangue, até porque nenhum militar da GNR lhe pediu para “soprar no balão”.
Essa, porém, é a sua versão dos factos, que não coincide, de modo algum com a das testemunhas M... e V....
Relativamente à “ Informação” escrita, constante dos autos a folhas 14, mencionada pelo arguido C…, importa acentuar que a mesma não passa de considerações e opiniões do Comandante do Posto da PSP , V..., que surgem na sequência de denúncias, que vêm sendo recebidas nos últimos meses no Posto da GNR, de que o arguido conduz embriagado, e onde faz referência, designadamente ao que se passou no dia 11 de Março de 2009, quando o arguido « …foi interceptado a conduzir o veículo de matrícula ......, num estado deplorável de embriaguez , o qual não se conseguia equilibrar e recusou-se a ser submetido a qualquer teste ou análise para a quantificação do álcool no sangue, originando o Auto de Notícia NUIPC 26/09.9GBFVN, por recusa.».
O Comandante do Posto da PSP , V..., não foi indicado no Auto de Notícia como autuante ou testemunha dos factos imputados ao arguido no dia 11 de Março de 2009, pelo que, quando muito, é um depoimento indirecto sobre esses factos, sem qualquer relevância uma vez não prestou depoimento na audiência de julgamento ( art.129.º do C.P.P.).
Ainda assim não deixa de se assinalar que consta dessa “ Informação” que o arguido recusou-se a ser submetido a qualquer teste ou análise para a quantificação do álcool no sangue.
Resulta da fundamentação da matéria de facto que as testemunhas M... e V... depuseram em audiência no sentido de que o arguido se recusou terminantemente a fazer o “teste do álcool” e o “teste do sangue” e que o Tribunal a quo , no âmbito da imediação e da oralidade, considerou os seus depoimentos credíveis.
O recorrente C..., em lado algum, questiona que estas testemunhas disseram o que ali consta.
Já na parte final da bem desenvolvida fundamentação da matéria de facto da sentença, o Tribunal a quo aborda de modo frontal a questão de saber se o arguido C...se encontrava num estado tal que não estava em condições de perceber o significado da recusa à submissão ao referido exame ou, pior, nem reunia as condições físicas para ser submetido ao mesmo e respondeu-lhe “… com um rotundo não.”, indicando para o efeito os seguintes motivos:
« O arguido dizia-se capaz de conduzir o JP. E conduziu-o mesmo, sem atropelos de maior.
Conseguiu assinar toda o expediente junto aos autos. Percebeu, perfeitamente, o sentido da notificação para comparecer em Tribunal no dia 12/03/2009, como efectivamente fez – cf. fls. 6 e 31. Note-se que essa notificação foi efectuada naquela mesma noite, acto contínuo à sua recusa. Aliás, o próprio arguido disse que “conseguia andar bem”. Mais. Os militares da GNR afirmaram que o arguido apresentava um discurso coerente e que manifestava reacções, mormente verbais, que denotavam claramente o motivo da sua recusa: estavam a “lixar-lhe” a vida!».
Em suma, o Tribunal recorrido deu credibilidade à versão dos factos trazidos ao julgamento pelas testemunhas M... e V... pelas razões que constam da fundamentação de facto da sentença, e o Tribunal da Relação tem como perfeitamente admissível a versão dada como provada pelo Tribunal recorrido na sentença , adquirida na base da imediação e da oralidade e na livre apreciação da prova, designadamente enquanto se menciona o arguido recusou-se a realizar o exame de pesquisa de álcool no sangue, quer pelo método do ar expirado , quer por análise sanguínea , que lhe foi solicitado pela GNR, agindo para o efeito com vontade livre e consciente e sabendo que desobedecia a uma ordem legítima.

Em consequência do exposto, também nenhum erro de julgamento se detecta na apreciação da prova, por parte do Tribunal recorrido, quando não deu como provado que “o arguido não estava em condições de expelir ar suficiente para a análise de álcool no sangue”.
Por fim e quanto à pretensão do arguido C...de que fosse incluído nos factos provados que o mesmo não foi transportado a unidade de saúde para ser sujeito a colheita de sangue para realização do teste de alcoolemia, diremos que estes factos são inócuos, sem interesse para a decisão da causa em face do Código da Estrada e da Lei n.º 18/2007, de 17-05 – como mais à frente se esclarecerá -, uma vez que resultou provado dos depoimentos credíveis das testemunhas M... e V..., que o arguido recusou-se a realizar o exame de pesquisa de álcool no sangue pelo método do ar expirado, bem como por análise sanguínea e a lei não permite que o condutor seja forçado fisicamente à realização dessa colheita.
Uma vez que só os factos relevantes para a decisão da causa devem ser incluidos na sentença ( art. 368.º, 2 do C.P.P.) , o Tribunal da Relação nada tem a censurar ao Tribunal a quo em face da não inclusão dessa matéria nos factos provados.
Pelo exposto, improcede esta primeira questão.
Passemos ao conhecimento da segunda questão.
O arguido C...vem acusado da prática de um crime de desobediência simples, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º1, al.a) e nº 3 do Código da Estrada, com referência ao artigo 348.º, n.º1, al.a) do Código Penal.
O art.152.º, n.º1, al. a) do Código da Estrada, estatui que os condutores devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool. E o seu n.º 3 acrescenta que as pessoas referidas, designadamente na alínea a) do n.º1, «… que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência.».
Por sua vez, o art.348.º do Código Penal estatui designadamente o seguinte:
« 1- Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples ».
Deste modo, os elementos constitutivos do crime imputado ao arguido são os seguintes:
- a emissão de uma ordem, para o agente se submeter às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool;
- a regularidade da sua transmissão por autoridade competente;
- a recusa do agente a submeter-se à realização das provas; e
- o conhecimento e vontade do agente em desobedecer à ordem, com consciência da ilicitude da sua conduta.
Uma ordem é uma imposição de uma obrigação, que pode ser da pratica de uma conduta ou de uma sua abstenção.
A ordem contém, como a lei penal, uma norma de conduta – cfr. Cons. Simas Santos e Leal-Henriques , Código Penal , Rei dos Livros, 2.º Vol., 2.ª edição, pág. 1089.
O arguido C...defende que estando dado como provado que os militares da GNR lhe “ solicitaram” a submissão a exame de pesquisa de álcool no sangue, não lhe foi dada qualquer ordem.
É manifesta a falta de razão do arguido.
Resulta dos factos provados que ao arguido não foi feito um mero pedido , sem obrigações e consequências no caso de não realizar o exame em causa.
A solicitação , dada como provada na sentença, incluia uma imposição feita ao arguido para se submeter à realização de provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool, pois incluia a advertencia, que lhe foi feita pela GNR, de que a recusa a esse exame implicaria a prática de um crime de desobediência.
Resulta ainda dos factos provados, que o arguido , apesar dessa advertência, manteve a atitude de recusa inviabilizando a realização do exame, sabendo que desobedecia a uma ordem legítima.
Deste modo, o Tribunal da Relação entende que foi dada regularmente ao arguido, por quem para tal tinha competência, uma ordem formal e substancialmente legítima.
A terceira questão objecto de recurso é se a fundamentação da matéria de facto da sentença é ilegal porquanto não há nenhum elemento probatório que sustente ter havido não acatamento de qualquer ordem , apontando as provas para sentido diverso.
Vejamos.
A necessidade de fundamentação das decisões dos tribunais, que não sejam de mero expediente, tem consagração no art.205.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa, e insere-se nas garantias de defesa de processo criminal a que alude o art.32.º, n.º 1 do mesmo diploma fundamental.
O art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal estabelece que , na sentença , ao relatório segue-se a fundamentação, «…que consta da enumeração dos factos provados e não provados, bem como de uma exposição, tanto quanto possível completa , ainda que concisa , dos motivos de facto e de direito , que fundamentam a decisão , com indicação e exame critico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal .».
A fundamentação da matéria de facto não se satisfaz com a simples indicação das provas, uma vez que se exige o exame crítico das provas que formaram a convicção do tribunal.
Esta exigência do exame crítico das provas é um aditamento levado a cabo pela Lei n.º 59/98 de 25 de Agosto, na sequência de jurisprudência que se vinha formando sobre essa necessidade, nomeadamente pelo STJ, que interpretou aquele dever de fundamentação no sentido de que a sentença - para além de dever conter a indicação dos factos provados e não provados e a indicação dos meios de prova - há-de conter também os elementos que , em razão das regras de experiência ou de critérios lógicos , constituíram o substrato racional que conduziu a que a convicção do tribunal se formasse no sentido de considerar provados e não provados os factos da acusação , ou seja , um exame critico sobre as provas que concorrem para a formação da convicção do Tribunal num determinado sentido .- Cfr, entre outros acórdão do STJ , de 13 de Fevereiro de 1992 ( CJ, ano XVII , 1º , pág. 36) .

Neste sentido, se pronunciava ainda o Tribunal Constitucional, declarando inconstitucional a norma do n.º 2 do art.374.º do C.P.P. na interpretação segundo a qual a fundamentação das decisões da matéria de facto se bastava com a simples enumeração dos meios de prova utilizados na 1ª instância , não exigindo a explicitação do processo de formação da convicção do tribunal , por entender ser violado o dever de fundamentação das decisões dos tribunais previsto no n.º1 do art.205.º da Constituição da República Portuguesa , bem como quando conjugada com a norma das alíneas b) e c) do n.º2 do art.410.º do mesmo Código , por violação do direito ao recurso consagrado no n.º1 do art.32.º da Constituição da República Portuguesa - Cfr. entre outros o Acórdão n.º 680/98 , publicado no DR, II Série , de 5 de Março de 1995 .

No dizer do Prof. Germano Marques da Silva o objectivo de tal dever de fundamentação é imposto pelos sistemas democráticos, permitindo “ a sindicância da legalidade do acto , por uma parte , e serve para convencer os interessados e os cidadãos em geral acerca da sua correcção e justiça , por outra parte , mas é ainda um importante meio para obrigar a autoridade decidente a ponderar os motivos de facto e de direito da sua decisão, actuando por isso como meio de autodisciplina .” - Cfr. Curso de Processo Penal” , Vol. III, 2ª ed. , pág. 294.
No caso em apreciação , consta da fundamentação da sentença , não só as provas que sustentam a convicção do Tribunal, como ainda a parte relevante das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas M...,V... e G..., tidos como relevantes para a formação da convicção do Tribunal.
Ainda na fundamentação da sentença, o Tribunal a quo indica de modo bem preciso e exaustivo, o conteúdo de cada uma das declarações e depoimentos por eles prestados e examinou-os criticamente, com auxílio às regras da experiência comum.
Os depoimentos das testemunhas M... e V..., elementos da GNR que presenciaram os factos, são particularmente descritivos do modo como o arguido se recusou à realização dos exames de pesquisa de álcool no sangue e das várias tacticas que este foi adoptando para não ser “ lixado na vida”, e que passaram por pedir que o deixassem no local a dormir dentro da carrinha, até ao ponto de dizer que “não soprava porque não estava a conduzir”. Qualquer destas testemunhas declarou não ter qualquer dúvida de que o arguido conseguia perceber tudo o que lhe diziam e o alcance dos seus actos.
Como já atrás se mencionou, o Tribunal a quo examinou criticamente estes depoimentos e concluiu em face da livre convicção e das regras da experiência comum, como o Tribunal da Relação conclui agora, que o arguido recusou voluntariamente, com liberdade na acção, a realização dos dois testes de pesquisa de àlcool no sangue.
A fundamentação da matéria de facto é um modelo de como deve ser efectuado o exame crítico da prova, não integrando qualquer ilegalidade , nem merecendo qualquer censura.
Assim, improcede também esta questão.
Passemos , por fim, à última questão.
O arguido defende que, verificando-se a situação descrita no art.4.º da Lei n.º 18/2007, de 17-05, de impossibilidade de realização do teste no ar expirado , deveria ter sido realizado exame médico para determinação do estado de influenciado pelo álcool, nos termos do art.7.º da mesma Lei e do n.º 8 do artigo 153.º, do Código da Estrada.
Apenas havendo recusa neste caso, se pode falar de crime de desobediência. Como o arguido não estava em condições de realização do teste no ar expirado , a GNR deveria tê-lo levado à Unidade de Saúde. Só então, aí, se o arguido recusasse a realização do exame ao sangue é que cometeria o crime.
Como o arguido não foi levado à Unidade de Saúde não praticou o crime de desobediência, devendo ser absolvido.
Vejamos.
O art.4.º da Lei n.º 18/2007, de 17-05, estatui que quando, após três tentativas sucessivas, o examinando não conseguir expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, ou quando as condições físicas em que se encontra não lhe permitam a
realização daquele teste, é realizada análise de sangue em estabelecimento de saúde, assegurando o agente da entidade fiscalizadora o transporte do individuo a submeter à colheita de sangue.
No caso em apreciação o arguido C...não fez 3 tentativas sucessivas para expelir ar em quantidade suficiente para a realização do teste em analisador quantitativo, sem o conseguir.
Não fez nenhuma, pois está dado como provado que o arguido se recusou a realizar o exame pelo método do ar expirado.
Por outro lado, também não resultou provado que o arguido C...não estava em condições físicas de realização do teste no ar expirado em analisador quantitativo.
Não se verificando nenhuma das duas situações a que alude o art.4.º, n.º 1 da Lei n.º 18/2007, de 17-05, não incumbia ao agente de autoridade policial transportar o arguido C...ao estabelecimento de saúde para realização de exame por colheita de sangue.
Acresce ao condicionalismo descrito, que resultou provado ainda que o arguido C...se recusou a realizar o exame por análise clínica, deixando assim clara aos elementos da GNR a inutilidade da deslocação ao estabelecimento de saúde.
A conduta do arguido C…, que resulta dos factos provados - que o Tribunal da Relação tem como definitivamente fixados nos temos que constam da sentença recorrida -, preenche todos os elementos objectivos e subjectivos do crime de que vem acusado , já atrás descritos , pelo que não pode proceder a sua pretensão de absolvição do crime pelo qual foi condenado.
Improcede deste modo o recurso interposto pelo arguido.

Decisão

Nestes termos e pelos fundamentos expostos acordam os juízes do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido C... e manter a douta sentença recorrida.
Custas pelo recorrente , fixando em 7 Ucs a taxa de justiça.

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(Certifica-se que o acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do art.94.º, n.º 2 do C.P.P.).

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Coimbra,