Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
30/10.4TAFVN-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: PAULO GUERRA
Descritores: REQUERIMENTO PARA ABERTURA DA INSTRUÇÃO
CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
Data do Acordão: 10/26/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE FIGUEIRÓ DOS VINHOS
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 287º, DO C. PROC. PENAL
Sumário: Nos termos do Acórdão n.º 7/2005, do S.T.J., publicado no D.R. de 04.11.2005 (I Série), foi fixada jurisprudência no sentido de que “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

E entende-se que também não há lugar a tal convite quando tal requerimento não contenha a indicação das disposições legais aplicáveis (cfr. al. c), do n.º 3, do art.º 283º, do C. Proc. Penal).
Decisão Texto Integral: I – RELATÓRIO

            1. No processo n.º 30/10.44TAFVN (Instrução), do Tribunal Judicial de Figueiró dos Vinhos, recorre o assistente A..., melhor identificado nos autos, do despacho da Mmª Juíza que decidiu rejeitar, por legalmente inadmissível, o requerimento de abertura de instrução que havia apresentado a fls 139-140 (datado de 15/3/2011), na sequência de um despacho de arquivamento de inquérito por parte do Ministério Público.

           

2. O assistente, motivando o seu recurso, conclui (em transcrição):

«1. A decisão, tal como é apresentada, peca por fazer negação duma evidência: o relato, no requerimento de abertura de instrução, dos factos cuja prática e método são imputados à arguida. Logo, a narração sintética dos factos imputados à arguida consta do requerimento;

2. À falta de indicação do crime e da norma tipificadora respectiva, no requerimento de abertura de instrução, deve corresponder despacho de aperfeiçoamento do mesmo. Neste sentido, Acórdão do Pleno das secções criminais do S.T.J, de 12.02.2005, Proc 430/2004, in D R, I série, de 04.11.2005

3. Denegando-se a abertura a instrução, saem, a um tempo, violados os artigos 286°, n° 1, e 287°, n° 2, ambos do Cód de Processo Penal.

Termos em que,

Revogando a decisão recorrida e, em seu lugar, outra produzida, admitindo a abertura da instrução, mediante o aperfeiçoamento do requerimento respectivo, Vossas Excelências farão JUSTIÇA!»

            3. Respondeu o Ministério Público, sustentando a justeza do decidido em 1ª instância.

            4. Nesta Relação, o Exmº Procurador-Geral Adjunto deu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento.

            5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, foram colhidos os vistos, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º 3, alínea b), do mesmo diploma.

            II – FUNDAMENTAÇÃO

             1. Conforme jurisprudência constante e amplamente pacífica, o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cfr. artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, 410º, n.º 2, alíneas a), b) e c) do CPP, Acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória do STJ de 19/10/1995, publicado em 28/12/1995 e, entre muitos, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 242 e de 3.2.1999, in B.M.J. 484, p. 271).

             Assim, balizados pelos termos das conclusões[1] formuladas em sede de recurso, a única questão a resolver consiste em saber se o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo recorrente deveria ou não ter sido rejeitado com fundamento na sua inadmissibilidade legal.

            2. O despacho recorrido tem o seguinte teor:

            «Fls. 139-140: Discordando do despacho de arquivamento proferido a fls. 112-114, A... requereu a abertura de instrução, ao abrigo do disposto no artigo 287.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, alegando, em síntese, que:

            - A arguida, ao dispor da quota, inviabilizou o direito do assistente a quinhoar;

            - Consolidando-se a quota no património da arguida, nada a impede de aliená-la enquanto bem próprio, sendo que ainda não foi feita partilha e desconhece-se se a quota será ou não adjudicada à arguida.

            Nos termos das disposições conjugadas dos artigos 287.º, n.º 2, parte final, e 283, n.º 3, alíneas b), e c), ambos do Código de Processo Penal, o requerimento para abertura de instrução do assistente deve, além do mais, narrar, ainda que de forma sintética, os factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deva ser aplicada.

            Quer isto dizer que o assistente deve identificar o arguido a quem imputa os factos, narrar os factos integradores do tipo objectivo e subjectivo do ilícito criminal (como se de uma acusação se tratasse), ilícito este que deve também ser devidamente identificado.

Do exposto resulta que, na ausência de acusação pública, o requerimento para abertura de instrução do assistente corresponde a uma verdadeira acusação, que delimitará o objecto do processo e, atenta a estrutura acusatória do nosso processo penal, vinculará tematicamente o tribunal.

Aplicando as considerações expendidas ao caso vertente, temos que, uma vez que foi proferido despacho de arquivamento, não existem factos que possam constituir o objecto do processo se o assistente os não descrever no requerimento para abertura de instrução.

Por sua vez, estabelece o artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal que o requerimento para abertura de instrução só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal.

Ora, a omissão, no requerimento para abertura de instrução do assistente, da descrição dos factos susceptíveis de integrar os elementos objectivos e subjectivos do ilícito típico insere-se no conceito de inadmissibilidade legal da instrução, por se traduzir na falta de objecto da instrução e na sua inexequibilidade - neste sentido, cfr., entre muitos, os acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 01.04.2009, proc. 2899/06.8TALRA.C1, e de 23.01.2008, proc. 2557/06.3TALRA.C1, ambos em www.dgsi.pt.

Acresce que, como bem se assinala neste último aresto, “o objecto da instrução tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa e essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis”.

Volvendo ao caso sub judice, analisado o requerimento apresentado pelo assistente, facilmente se conclui que o mesmo não contém a descrição circunstanciada de quaisquer factos que fundamentem a aplicação à arguida de uma pena, nem tão pouco faz referência a qualquer tipo legal de crime e norma(s) tipificadora(s) e, muito menos, contempla quaisquer elementos típicos, objectivos ou subjectivos. 

Dúvidas não restam de que o assistente não observou, de modo algum, os requisitos acima mencionados, limitando-se a discordar do despacho de arquivamento proferido nos autos. 

Cabe, por fim, salientar que, conforme jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005 (publicado no DR, 1.ª série – A, de 04.11.2005), “Não há lugar ao convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

Assim sendo, decide-se, tal como promovido, rejeitar liminarmente o requerimento para abertura de instrução por inadmissibilidade legal, nos termos do disposto no artigo 287.º, n.º 3, do Código de Processo Penal.

Custas a cargo do assistente, que se fixam em 2 UC, levando-se em conta a taxa de justiça já paga.

Notifique.

Após trânsito e oportunamente arquive.

            3. Transcreve-se de seguida o Requerimento de Abertura de Instrução apresentado em juízo:

«A..., ofendido e com os demais sinais nos autos, face ao despacho de arquivamento proferido pelo M.P., a fls vem, enquanto assistente, e ao abrigo do disposto no artigo 287°, n.° 1, al. b), do C.P.P., requerer abertura de Instrução, para o que assim significa:

À arguida é imputada a prática do seguinte facto concreto: à revelia absoluta do ora assistente, porque sem o seu conhecimento ou intervenção, dispôs a arguida por inteiro e em seu próprio benefício da quota de € 30.000,00, da Escola de …., actualmente denominada …., quando é certo que a dita quota continua a integrar o património do casal por ainda não ter havido lugar à partilha.

Ora, ao que se colhe dos autos, a arguida nas suas declarações, permitiu-se divagar tecendo considerações ou afirmações impertinentes nada dizendo sobre o facto concreto cuja autoria lhe é imputada.

Sequencialmente, o M.P. acolhendo a versão da arguida, determinou o arquivamento dos autos sob a alegação de que «…apesar da denunciada, em data posterior, a ter transmitido, não ocorreu qualquer prejuízo para o denunciante…».

A discordância do ora assistente, neste particular, radica nos seguintes factos:

1. A arguida ao dispor da quota, logo inviabilizou o direito do assistente a quinhoar;

2. Consolidando-se a quota no património da arguida, nada impede esta de a alienar pois passará a mesma a ser tratada como bem próprio sendo certo que, repete-se, não só ainda não houve lugar a partilha assim como se desconhece, por ora, se a quota será adjudicada à arguida.

Nestas circunstâncias requer-se que, no âmbito da instrução, a arguida seja ouvida sobre se a disposição da quota a que procedeu em seu benefício foi com conhecimento, intervenção ou autorização do assistente.

Mais se requer que, em prazo que e for concedido, a arguida junte aos autos cópia certificada da acta da assembleia-geral de sócios, em que a deliberação da disposição da quota em seu beneficio terá sido tomada, adiantando-se já que o assistente, e não conhece a dita acta, jamais a subscreveu».

            3. APRECIAÇÃO DO RECURSO

            3.1. Vem o assistente recorrer do despacho judicial que considerou inadmissível o requerimento da abertura de instrução que aquele fez a fls 139-140, rejeitando-o.

            A questão em discussão é somente formal – obedece ao não o requerimento de abertura de instrução ao figurino legal?

            3.2. Sabemos que o assistente pode requerer a instrução nos crimes de natureza pública e semi-pública, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação ou, tendo o MP deduzido acusação, por factos que importem uma alteração substancial dos factos aí narrados – de facto, quando o MP não haja deduzido acusação, ao ofendido, constituído como assistente, resta a dedução de acusação alternativa, consubstanciada no requerimento de abertura da fase da instrução, podendo ainda, em 2ª opção, reclamar hierarquicamente do despacho do MP, nos termos e para os efeitos do artigo 278º, n.º 2 do CPP (não o poderá fazer cumulativamente, como é bem de ver – cfr. Acórdão da Relação de Lisboa de 24/1/2002 e Acórdão da Relação de Guimarães de 16/10/2006, ambos visualizados em http: www.dgsi.pt).

Estipula o artigo 286.º, n.º 1 do C.P. Penal que «A instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento», adiantando o artigo 287.º, n.º 1 que «A abertura de instrução pode ser requerida no prazo de 20 dias, a contar da notificação da acusação ou do arquivamento: (...); b) Pelo assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, relativamente a factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação (…)».

O n.º 2 do artigo 287º avança ainda que o requerimento para abertura da instrução «não está sujeito a formalidades especiais, mas deve conter, em súmula, as razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação ou não acusação, bem como sempre que for caso disso, a indicação dos actos de instrução que o requerente pretende que o juiz leve a cabo, dos meios de prova que não tenham sido considerados no inquérito e dos factos que, através de uns e outros, se espera provar, sendo ainda, aplicável ao requerimento do assistente o disposto no artigo 283.º, n.º 3, alíneas b) e c) (...).»

Recuando para este normativo, pensado para os termos da acusação do Ministério Público, lê-se no seu teor, igualmente aplicável ao requerimento para abertura da instrução, que «a acusação contém, sob pena de nulidade:

« (...)

b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;

c) As disposições legais aplicáveis; (…)».

O n.º 4 do artigo 287.º adianta que o requerimento de abertura da fase jurisdicional só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução, tendo sido este último o motivo invocado para a decretada rejeição.

Este é o pano de fundo normativo em que nos devemos enredar para a apreciação do presente recurso.

3.3. A INSTRUÇÃO é uma fase processual jurisdicional e facultativa que compreende a prática dos actos necessários que permitam ao juiz de instrução proferir a decisão final (decisão instrutória) de submeter ou não a causa a julgamento.

O JIC não tem intrínsecas funções investigatórias em sentido técnico-jurídico, sendo antes o seu mister o de comprovar de forma chancelar – porque jurisdicional - uma investigação que foi feita previamente por quem é titular da acção penal.

Deste modo, o artigo 288.º, n.º 4 estipula que: «O juiz investiga autonomamente o caso submetido a instrução, tendo em conta a indicação, constante do requerimento da abertura de instrução, a que se refere o n.º 2 do artigo anterior

Essa liberdade de investigação (mesmo oficiosa), que é reafirmada na primeira parte do n.º 1 do artigo 289.º, não é absoluta, estando limitada pelo objecto da acusação.

Vários doutrinadores já se têm pronunciado sobre esta «investigação» levada a cabo na fase instrutória de um processo penal.

Germano Marques da Silva opina que (Curso de Processo Penal, 2.ª edição, 2000, p. 132): «Porque, porém, se trata de fase jurisdicional, a estrutura acusatória do processo e o inerente princípio da acusação limitam a liberdade de investigação ao próprio objecto da acusação.»

            Anabela Miranda Rodrigues (“O inquérito no Novo Código de Processo Penal, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p. 77) salienta, no mesmo sentido, «que se pretendeu realizar a máxima acusatoriedade possível: por um lado, sendo embora a instrução uma fase em que vigora o princípio da investigação, a autonomia do juiz não significa que tenha poderes conformadores da acusação; por outro lado, é exactamente a acusação que determina o objecto do processo».

A importância da fixação do objecto da instrução prende-se directamente, por um lado, com a estrutura acusatória do processo penal português, embora mitigada pelo princípio da investigação judicial (cf. artigo 289.º, n.º 1, do C.P.P., na fase da instrução) e, por outro, com a necessidade de assegurar todas as garantias de defesa (artigo 32.º n.º 1 e 5 da C.R.P.).

Num caso como o dos autos, em que o Ministério Público proferiu despacho de arquivamento, contra o qual o assistente reagiu mediante a apresentação de requerimento de abertura da instrução, tal peça assume uma função decisiva na delimitação do objecto – precisamente porque não existe acusação pública.

Verificando-se que o Ministério Público se absteve de acusar, arquivando o processo, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente terá de conter, substancialmente, uma verdadeira acusação, de forma a possibilitar a realização da instrução, fixando os termos do debate e o exercício do contraditório.

            Decidiu o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 358/2004 (DR, II, de 28 de Junho de 2004) que «A estrutura acusatória do processo penal português, garantia de defesa que consubstancia uma concretização no processo penal de valores inerentes a um Estado de direito democrático, assente no respeito pela dignidade da pessoa humana, impõe que o objecto do processo seja fixado com o rigor e a precisão adequados em determinados momentos processuais, entre os quais se conta o momento em que é requerida a abertura da instrução.

Sendo a instrução uma fase facultativa, por via da qual se pretende a confirmação ou infirmação da decisão final do inquérito, o seu objecto tem de ser definido de um modo suficientemente rigoroso em ordem a permitir a organização da defesa.          

Essa definição abrange, naturalmente, a narração dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena, bem como a indicação das disposições legais aplicáveis.

Dada a posição do requerimento para abertura da instrução pelo assistente, existe, como se deixou mencionado, uma semelhança substancial entre tal requerimento e a acusação. Daí que o artigo 287º, nº 2, remeta para o artigo 283º, nº 3, alíneas b) e c), ambos do Código de Processo Penal, ao prescrever os elementos que devem constar do requerimento para a abertura da instrução.

Assim, o assistente tem de fazer constar do requerimento para abertura da instrução todos os elementos mencionados nas alíneas referidas do n.º 3 do artigo 283.º do Código de Processo Penal. Tal exigência decorre, como se deixou demonstrado, de princípios fundamentais do processo penal, nomeadamente das garantias de defesa e da estrutura acusatória. É, portanto, uma solução suficientemente justificada e, por isso, legitimada.»

            A propósito da possibilidade de tal menção ser feita por remissão para elementos dos autos, lê-se no mesmo Acórdão:

«(…) a exigência de rigor na delimitação do objecto do processo (recorde-se, num processo em que o Ministério Público não acusou), sendo uma concretização das garantias de defesa, não consubstancia uma limitação injustificada ou infundada do direito de acesso aos tribunais, pois tal direito não é incompatível com a consagração de ónus ou de deveres processuais que visam uma adequada e harmoniosa tramitação do processo.

De resto, a exigência feita agora ao assistente na elaboração do requerimento para abertura de instrução é a mesma que é feita ao Ministério Público no momento em que acusa.

Cabe também sublinhar que não é sustentável que o juiz de instrução criminal deva proceder à identificação dos factos a apurar, pois uma pretensão séria de submeter um determinado arguido a julgamento assenta necessariamente no conhecimento de uma base factual cuja narração não constitui encargo exagerado ou excessivo.

Verifica-se, em face do que se deixa dito, que a exigência de indicação expressa dos factos e das disposições legais aplicáveis no requerimento para abertura de instrução apresentado pelo assistente não constitui uma limitação efectiva do acesso do direito e aos tribunais. Com efeito, o rigor na explicitação da fundamentação da pretensão exigido aos sujeitos processuais (que são assistidos por advogados) é condição do bom funcionamento dos próprios tribunais e, nessa medida, condição de um eficaz acesso ao direito.»

           

3.4. Diga-se ainda que se o requerimento para abertura de instrução não contém tais factos e até a identificação do arguido, ainda que por simples remissão para o local no processo onde consta tal identificação, a instrução será também inexequível porque se tornará uma fase processual sem objecto, na medida em que o assistente deixou de narrar os factos e de indicar as disposições legais aplicáveis, elementos acerca dos quais o Prof. Germano Marques da Silva (op. cit,, pág. 145), refere: “insiste-se que, tratando-se do requerimento do assistente, é imprescindível que do requerimento conste sempre a narração dos factos constitutivos do crime ou crimes e das disposições legais aplicáveis”.

De facto, a jurisprudência tem considerado que “não faz sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento, sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido” (Acórdão do STJ, de 22-10-2003 – proc. 2608/03-3), entendendo ser de rejeitar, por inadmissibilidade legal, atenta a analogia perfeita entre a acusação e a instrução, o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente, no qual este se limita a um exame crítico das provas alcançadas em inquérito, omitindo em absoluto a alegação de concretos e explícitos factos materiais praticados pelo arguido e do elemento subjectivo que lhe presidiu para cometimento do crime (Acórdão do STJ de 22-03-2006 – proc. 357/05-3 e de 07-05-2008, proc. 4551/07-3).

Por tudo isto, concluímos que a falta de indicação, no requerimento para a abertura de instrução subscrito pelo assistente, dos factos essenciais à imputação da prática de um crime a determinado agente, tem como consequência necessária a inutilidade da fase processual de instrução, a qual, como é sabido, é constituída por diversos actos praticados pelo juiz de instrução, sendo um deles, obrigatoriamente, o debate instrutório.

           

3.5. É, pois, por todos assumida a importância da delimitação do objecto através do requerimento de abertura da instrução formulado por assistente, o qual consubstancia uma verdadeira acusação alternativa.

E se o requerimento em causa não obedece a tal requisito legal?

Não nos esquecemos que tal requerimento deve conter a indicação dos elementos referidos no artigo 287.º, n.º 2, particularmente os das alíneas b) e c) do n.º 3 do artigo 283.º, do CPP, disposição para a qual remete, como vimos, o referido preceito legal.

            De novo, a palavra à doutrina.

Souto de Moura defende que a instrução surge, no CPP, como um direito, disponível, nem por isso deixando de representar a garantia constitucional da judicialização da fase preparatória do julgamento, de controlo judicial da actuação do Ministério Público, pelo que tal garantia se esvaziaria se o exercício do direito à instrução se revestisse de condições difíceis de preencher ou valesse só para casos contados (“Inquérito e Instrução”, in Jornadas de Direito Processual Penal, O Novo Código de Processo Penal, Almedina, 1988, p.119).

Para este autor, sendo requerida a instrução, se o assistente não delimitar o campo factual de incidência, a instrução não deixará de ser inexequível (ob. cit., p. 120, nota).

            Também se questionou se a remissão para o artigo 283.º, n.º 3, compreende a cominação de “nulidade” para o requerimento instrutório, debatendo-se a natureza dessa nulidade.

E também se debate se a omissão da narração dos factos no requerimento de instrução, além de configurar a mencionada nulidade, não será um caso de inadmissibilidade legal da instrução, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 287.º do C.P. Penal.

Neste âmbito, questiona-se a interpretação do conceito de inadmissibilidade legal como causa de rejeição do requerimento para abertura da instrução.

            Em qualquer caso, é indubitável que não tendo sido deduzida acusação pública, o requerimento (do assistente) de abertura da instrução que não contenha os factos que se imputam ao arguido e pelos quais se pretende que este venha a ser pronunciado não será apto a possibilitar a prolação de uma decisão instrutória de pronúncia que seja válida. No mínimo (e dizemos “mínimo” porque, nessas condições, parece inexistir um verdadeiro objecto da instrução), tal decisão seria nula nos termos do artigo 309.º, n.º1.

            Defendeu-se, em certa altura, a possibilidade do convite ao aperfeiçoamento do requerimento deficiente.

            O STJ resolveu a questão, tendo fixado jurisprudência no seguinte sentido: «Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento de abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º2, do Código de Processo Penal, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido» (Acórdão do STJ n.º 7/2005, de 12 de Maio de 2005, publicado no D.R., I Série, de 4 de Novembro de 2005).

            Neste aresto, salienta-se que o preenchimento das lacunas em processo penal pelo recurso ao processo civil conhece um intransponível limite: o da não harmonização das finalidades descritas quanto ao último ramo de direito àqueloutro, por força do artigo 4.º do CPP. 

A falta de narração de factos na acusação conduz à sua nulidade e respectiva rejeição por ser de reputar manifestamente infundada, nos termos dos artigos 283.º,n.º 3, alínea b), e 311.º, n. 2, alínea a), e 3, alínea b), do C.P.P.

Voltemos ao Acórdão do STJ atrás citado:

«A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada - o ser manifestamente infundada, igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado.

            (…)

            O requerimento de abertura de instrução nenhuma similitude apresenta com a petição inicial em processo cível, em termos de merecer correcção, enfermando de deficiências, nos termos do artigo 508.º, n.º 1, alínea b), do CPC, por, se com aquela se introduz, inicia, o pleito em juízo, é com a queixa que se inicia o processo, cabendo ao requerimento de abertura de instrução uma exposição dos factos que, comprovados, com a maior probabilidade, tal como sucede com os vertidos na acusação, sugerem que o arguido, mais do que absolvido, será condenado, numa óptica de probabilidade em alto grau de razoabilidade, inconfundível com uma certeza absoluta, aquela excludente de as coisas terem acontecido de dada forma prevalente, em detrimento de outra».

            Há que referir ainda que o Tribunal Constitucional, no seu Acórdão n.º 389/2005, de 14 de Julho de 2005 (DR, II, de 19 de Outubro de 2005), decidiu não ser inconstitucional a interpretação normativa dos artigos 287.º e 283.º do CPP, segundo a qual não é obrigatória a formulação de um convite ao aperfeiçoamento do requerimento para abertura da instrução apresentado pelos assistentes - «Desde logo, a Constituição, a par da consagração de todas as garantias de defesa do arguido (artigo 32.º n.º 1), determina que “o ofendido tem o direito de intervir no processo, nos termos da lei” (artigo 32.º, n.º 7). É, pois, constitucionalmente reconhecida uma ampla margem de conformação legislativa da posição processual do assistente (ofendido) que inviabiliza uma abstracta equiparação entre o estatuto do assistente e o do arguido.

Tal diferenciação é naturalmente reconhecida pela jurisprudência constitucional, que reiteradamente tem realçado, a propósito de várias questões relacionadas com o estatuto do assistente, a diferença entre as posições processuais dos dois sujeitos do processo penal

Assim, o que é afirmado a propósito das garantias de defesa do arguido não tem necessariamente aplicação tratando-se do assistente, pelo que a jurisprudência invocada pelo ora recorrente não tem pertinência significativa nos presentes autos.

            (…) No presente caso, a peça processual apresentada não tem, como se referiu, a virtualidade de desempenhar a função que legalmente lhe é atribuída (possibilitar a abertura da instrução, fixando o respectivo objecto). Trata-se, nessa medida, de um requerimento “inepto”. Qualquer convite que fosse formulado traduzir-se-ia na concessão da possibilidade de repetição do acto (não seria, portanto, confundível com um mero convite para aperfeiçoamento de acto anterior).

Assim sendo, é manifesto que nenhum preceito constitucional (ou de outra natureza) impõe a possibilidade de o assistente praticar de novo um acto que já praticou no respectivo prazo de modo absolutamente inadequado. O requerimento apresentado é pois um requerimento “não aperfeiçoável”».

Neste plano, em que a jurisprudência tem trilhado plurifacetados caminhos – apelando à nulidade de conhecimento oficioso (Acórdão da Relação de Guimarães, de 17 de Maio de 2004, processo 777/04-1), à nulidade por falta de objecto (Acórdão da Relação de Coimbra, de 27 de Setembro de 2006, processo 60/03.2TANLS.C1), à inexistência (Acórdão da Relação de Lisboa, de 7 de Fevereiro de 2006, processo 7649/05-5.ª), à equiparação a acusação manifestamente infundada (Acórdão da Relação do Porto, de 21 de Junho de 2006, processo 0611178) –, conclui-se que todos eles conduzem ao mesmo fatal e incontornável resultado: a rejeição do requerimento.

Com a prevalência do entendimento de que o requerimento de abertura de instrução não é susceptível de qualquer convite ao aperfeiçoamento, afigura-se-nos que o conceito de inadmissibilidade legal não pode, pois, deixar de abranger o caso de instrução requerida por assistente cujo requerimento não contenha uma descrição factual susceptível de integrar os elementos do tipo criminal que o requerente entenda ter sido preenchido.

Por isso, o requerimento é nulo, o que se reconduz à situação de inevitabilidade da rejeição do requerimento em causa por inadmissibilidade legal da instrução.

Quer isto dizer que nos casos em que exista um notório demérito do requerimento de abertura de instrução, a realização desta fase constitui um acto processual manifestamente inútil por redundar necessariamente num despacho de não pronúncia, só havendo que incluir no conceito de “inadmissibilidade legal da instrução”, além dos fundamentos específicos de inadmissibilidade da instrução qua tale, os fundamentos genéricos de inadmissibilidade de actos processuais em geral.

3.6. Situada a questão, haverá, agora, que atentar na narração dos factos tal como foi levada a efeito pelo assistente, e ora recorrente, no seu requerimento para abertura de instrução, tendo em vista determinar se nos encontramos, ou não, perante uma situação de falta de indicação dos factos essenciais à imputação da prática do crime e consequentemente, se verifica uma situação de inadmissibilidade legal da instrução, conforme se decidiu no despacho recorrido.

O assistente, in casu, no requerimento de abertura de instrução – ONDE NEM SEQUER PROCEDE, COMO DEVIA, À COMPLETA IDENTIFICAÇÃO DA ARGUIDA[2]) - limita-se, tão-só, a fazer uma apreciação crítica quanto à bondade do despacho de arquivamento, não tendo imputado à arguida por si pensada suficientes factos constitutivos dos elementos objectivos e subjectivos inerentes ao ilícito típico denunciado que nem sequer identifica como devia.

No requerimento a que se alude não é concretizada, em termos fácticos, a responsabilidade subjectiva da arguida.

Segundo a decisão recorrida, a instrução foi julgada inadmissível porque do requerimento para abertura de instrução formulado pelo assistente não se extrai um quadro factual que contenha a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, uma vez que do mencionado requerimento apenas consta matéria conclusiva perante a discordância da assistente com a matéria de facto apurada pelo MP, não mencionando ainda a disposição penal – tipo de crime – a que deverá subsumir o comportamento ilícito e culposo da arguida.

E com muita razão.

Fazendo a ponte entre o explanado e o caso concreto que nos é presente, verifica-se que o assistente, na sua descrição factual, não faz sequer uma descrição dos elementos objectivos do crime que tem em mente mas que não identifica, não fazendo também qualquer referência ao elemento subjectivo do crime em causa, pelo que logo se vê, segundo cremos, que o Requerimento de Abertura de Instrução deduzido pelo assistente terá, necessariamente, que ser rejeitado.

Ora, sendo este o caso, não se lograria nunca a pronúncia do arguido, pois da análise do requerimento de abertura de instrução não se alcança que os alegados factos tenham sido praticados de forma livre — e, por conseguinte, por quem é susceptível de censura jurídico-penal, porque dotado de capacidade de entender e querer (imputabilidade) — e, com o conhecimento e intenção da realização do resultado típico: ou seja, falta o dolo, quer no que concerne ao seu elemento intelectual ou de representação, quer no que concerne ao seu elemento volitivo, quer ainda relativamente à consciência da ilicitude (elemento da culpa no entendimento dos pós-finalistas e, para Figueiredo Dias o terceiro dos elementos do dolo — elemento emocional)».

Por isso, bem andou o tribunal «a quo» ao considerar que o requerimento instrutório não descreve os factos concretos e especificados (não bastando, já o sabemos, a mera remissão para uma queixa ou para uma eventualmente existente acusação pública) imputados à arguida, sob o ponto de vista objectivo e subjectivo.

Cumpre-nos notar que o requerimento de abertura de instrução, no caso de ter sido proferido despacho de arquivamento pelo Ministério Público, como na situação sob recurso, equivale a uma acusação, definindo e limitando o objecto do processo a partir da sua apresentação, não competindo, pois, ao juiz suprir as suas eventuais falhas ou insuficiências na enumeração dos factos concretos a imputar ao arguido.

Nesta decorrência, o requerimento formulado pelo assistente, como acusação alternativa à do Ministério Público, com a função de delimitar o objecto do processo, deve conter, sob pena de nulidade, "a narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada" (cfr. art° 283°, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal ex vi art° 287°, n.º 2, in fine, do Código de Processo Penal).

Diga-se ainda que seria nula uma decisão instrutória que pronunciasse um arguido por factos não alegados pelo assistente ou que em relação a estes configurasse uma alteração substancial, nos termos do disposto no art° 309°, n.º 1, do mesmo diploma legal.

A acusação e a pronúncia fixam, pois, o objecto do processo e é imodificável até ao julgamento.
De facto, se fosse o MP a acusar assim um arguido, o destino dessa peça seria o seu não recebimento. Porque tratar diferentemente esta peça do assistente, então? E não se diga que compete ao Juiz de Instrução pronunciar a final um arguido. Exactamente porque o JIC só o faz com base em factos que devem ser rigorosamente delineados no RAI, não competindo a tal Juiz colmatar as lacunas factuais do assistente, aqui a «parte acusadora».

Há que incutir rigor processual, não primando, pois, por tal qualidade a peça do assistente.

Rejeitando-se tal RAI, fez-se justiça. Que não passa pelo convite ao aperfeiçoamento, também quando falta só a imputação criminal.

Tendo em conta que o mencionado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência apenas afasta a possibilidade do convite ao aperfeiçoamento do requerimento de abertura de instrução quando o mesmo não contenha à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido, entende o recorrente que deve ter lugar despacho de convite ao aperfeiçoamento do requerimento quando o mesmo não contenha a indicação das disposições legais aplicáveis.

Discordamos em absoluto - consideramos que também neste caso não deve haver lugar a despacho de convite ao aperfeiçoamento.

Com efeito, sendo requisito da acusação pública a indicação das disposições legais aplicáveis, e não podendo a sua falta de indicação ser suprida através de despacho de convite ao aperfeiçoamento, pelas mesmas razões não deve o requerimento de abertura de instrução quando formulado pelo assistente, que equivale a uma verdadeira acusação, ser alvo de despacho de convite ao aperfeiçoamento, tanto mais que nestes casos o requerimento é elaborado por um profissional, uma vez que o assistente é obrigatoriamente representado por advogado.

Como tal, não é verdade que o Acórdão do STJ legitime a interpretação de que deverá haver convite ao aperfeiçoamento em outros casos que não a mera não narração sintética dos factos.

Tal acórdão é explícito na sua fundamentação (que terá sempre de ser lida por alguém que queira seriamente discutir as soluções preconizadas pelos AFJ):

«(…) A manifesta analogia entre a acusação e o requerimento de instrução pelo assistente postularia, em termos de consequências endoprocessuais, já que se não prevê o convite à correcção de uma acusação estruturada de forma deficiente, quer factualmente quer por carência de indicação dos termos legais infringidos, dada a peremptoriedade da consequência legal desencadeada: o ser manifestamente infundada igual proibição de convite à correcção do requerimento de instrução, que deve, identicamente, ser afastado».

 

3.7. Em suma:

· O artigo 308.º, n.º 1 do CPP prescreve que finda a instrução o juiz profere despacho de pronúncia quando tiverem sido reunidos nos autos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação de uma pena ou medida de segurança ao arguido – ou seja, é necessário recolher-se os indícios da prática de um crime de acordo com o que é considerado como tal pelo art. 1.º, n.º 1, al. a), do CPP –, sendo que não podem ser considerados, nessa decisão, factos que eventualmente resultem da instrução, mas que não tenham sido alegados no requerimento para a sua abertura, pois tal implicaria alteração substancial que viciaria de nulidade tal decisão instrutória, nos termos do art. 309.º, do CPP.

· Ora, devendo o despacho de pronúncia quedar-se pela apreciação do conteúdo do requerimento de abertura de instrução, torna-se óbvio que as omissões deste podem comprometer irremediavelmente a pronúncia do arguido.

· E se assim é, “não faz sentido proceder-se a uma instrução visando levar o arguido a julgamento sabendo-se antecipadamente que a decisão instrutória não poderá ser proferida nesse sentido".

· Até porque importa notar que a instrução, nos termos em que a lei vigente a regula, tem natureza judicial e não investigatória, destinando-se à comprovação judicial da decisão tomada pelo Ministério Público de deduzir, ou não, acusação (art. 286.º, n.º 1, do CPP) e não a constituir um complemento da investigação prévio à fase de julgamento.

· A estrita vinculação temática do tribunal aos factos alegados no requerimento para abertura de instrução, enquanto limitação da actividade instrutória, relaciona-se, assim, com a natureza judicial desta fase processual, sendo uma consequência do princípio da estrutura acusatória do processo penal e constituindo uma garantia de defesa consagrada no art. 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

· Não pode, portanto, pretender-se, através da instrução, alcançar os objectivos próprios do inquérito, sendo outros os meios processuais adequados a esse efeito (veja-se, nomeadamente, as possibilidades permitidas pelos artigos 279.º, 277.º, n.º 2, do CPP).

· A admitir-se entendimento diverso, "(...) estar-se-ia a transferir para o juiz o exercício da acção penal, contra todos os princípios constitucionais e legais em vigor e a transformar a natureza da instrução que passaria de contraditória a inquisitória".

· Já no que concerne as consequências da inobservância do preceituado no art. 287.º, n.º 2, do CPP, importa desde logo atender que este mesmo normativo remete para a aplicação do disposto no art. 283.º, n.º 3 al. b) e c) do mesmo diploma legal.

· Pelo que, além de inviabilizar, objectivamente, a possibilidade de realização da instrução (art. 309.º, do CPP), a deficiência de conteúdo (e não de mera forma) do requerimento implica a sua nulidade – por não conter a narração de factos que fundamentem a aplicação a um concreto arguido de uma pena ou medida de segurança, como o impõe o citado art. 283.º, n.º 3 als. a) e b), do CPP –, tornando assim legalmente inadmissível a abertura da instrução e, obrigando, consequentemente, à rejeição daquele nos termos do art. 287.º, n.º 3, do CPP, onde se dispõe que "o requerimento (para abertura de instrução) só pode ser rejeitado por extemporâneo, por incompetência do juiz ou por inadmissibilidade legal da instrução".

· Acresce a isto, por outro lado, que as eventuais deficiências do requerimento não podem ser supridas por iniciativa do Tribunal, designadamente mediante decisão que convidasse o assistente para o efeito.

· Tudo porque uma decisão que convidasse o requerente a apresentar novo requerimento para abertura da instrução – não deixando de consubstanciar o exercício pelo juiz de instrução de uma faculdade inquisitória e de exercício de acção penal que no actual quadro legal processual penal não lhe assiste – contrariaria o princípio da estrutura acusatória do processo penal consagrada do referido art. 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa.

· Aliás, como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22.10.2003, que pode ler-se na íntegra em www.dgsi.pt: "Não é caso de lançar mão do mecanismo de reparação de irregularidades previsto no art. 123.º, do CPP, mesmo que se considere que se está perante uma irregularidade processual, porque estão em causa garantias constitucionais de defesa dos arguidos, consagradas no art. 32.º, n.º 1, da Constituição, já referido, e bem assim o princípio do acusatório consagrado no n.º 5 do mesmo artigo.

· Quanto a este ponto em particular, é pertinente chamar à colação o que expenderam os Profs. Gomes Canotilho e Vital Moreira, na Constituição da República Anotada, 3ª ed., pág. 206: a estrutura acusatória do processo penal implica, além do mais, a proibição de acumulações orgânicas a montante do processo, ou seja, que o juiz de instrução seja também o órgão de acusação.

· Daqui resulta que o juiz de instrução não pode intrometer-se na delimitação do objecto do processo – fixado pela acusação ou pelo RAI do assistente – no sentido de o alterar ou completar, directamente ou por convite ao aperfeiçoamento feito ao assistente requerente da abertura da instrução".

· Anote-se, ainda neste âmbito, que a inadmissibilidade de renovação do requerimento para abertura de instrução não implica uma limitação desproporcionada do direito do assistente a deduzir acusação através do requerimento de abertura de instrução (quando para tal tenha legitimidade), como referido no Acórdão do Tribunal Constitucional de 30.01.2001, "(...) na medida em que tal facto lhe é exclusivamente imputável, para além de constituir – na sua possível concretização - uma considerável afectação das garantias de defesa do arguido".

· Acresce que "(...) do ponto de vista da relevância constitucional merece maior tutela a garantia de efectivação do direito de defesa (na medida em que protege o indivíduo contra possíveis abusos do poder de punir), do que garantias decorrentes da posição processual do assistente em casos de não pronúncia do arguido, isto é, em que o Ministério Público não descobriu indícios suficientes para fundar uma acusação e, por isso, decidiu arquivar o inquérito".

· Esclarecendo, definitivamente as divergências jurisprudenciais que se vinham verificando a este respeito, veio o Supremo Tribunal de Justiça fixar jurisprudência por Acórdão de 12.05.2005 (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2005, publicado no DR – I S-A de 04.11.2005) nos termos seguintes:

o “Não há lugar a convite ao assistente para aperfeiçoar o requerimento para abertura de instrução, apresentado nos termos do artigo 287.º, n.º 2, do CPP, quando for omisso relativamente à narração sintética dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ao arguido”.

· Reportando-nos ao requerimento de abertura de instrução apresentado, no mesmo não são indicados os completos elementos objectivos e subjectivos constitutivos do crime imputado na versão do recorrente;

· Faz, de facto, uma descrição imperfeita dos próprios elementos objectivos do delito que pensou mas não nomeou (falsificação ou outro?);

· Os factos alegados no requerimento em apreciação, desacompanhados da imputação dos completos elementos objectivos e subjectivos, não configuram a prática de qualquer crime.

· Competia, pois, ao assistente descrever a conduta do arguido quanto às referidas circunstâncias de tempo, modo e lugar dos crimes que lhe imputa e alegar factos que preenchem os elementos objectivos e subjectivos do respectivo ilícito criminal.

· É manifesto que o requerimento de abertura da instrução apresentado pelo assistente não satisfaz as exigências legais.

· Lendo o requerimento de abertura da instrução, não encontramos a suficiente e completa descrição factual susceptível de consubstanciar a imputação a alguém de um ilícito criminal, mas apenas a indicação das razões que levam o assistente a discordar do despacho de arquivamento do Ministério Público e a pretensão de que sejam consideradas algumas provas.

· Olvidou o assistente, por completo, que tal requerimento deveria constituir--se como uma verdadeira acusação alternativa ao despacho de arquivamento do Ministério Público, sendo certo que não é admissível a narração por remissão para a queixa ou para a acusação do MP.

· A peça processual de fls 139-140 – naturalmente viciada por nulidade - não preenche os requisitos para ser tomada como uma acusação, aquela mesma acusação que o recorrente pretenderia que o Ministério Público tivesse deduzido em vez de arquivar o inquérito.

· Torna-se, assim, inexequível a instrução requerida por manifesta falta de objecto (não se devendo acusar a lei, logo também os tribunais, de ser demasiado formalista neste jaez, na medida em que, como fase facultativa que é, a instrução tem de ter balizas e margens rigorosas, sob pena de se cair na feitura de um segundo inquérito, levado a cabo por quem não tem, repetimos, naturais funções de investigação criminal).

· De facto, não constando do mesmo uma descrição clara e ordenada de todos os factos necessários a integração de todos os pressupostos legais de algum crime, se torne inviável a realização desta fase processual por falta de delimitação do seu objecto, sendo manifesto que ninguém poderá vir a ser pronunciado com base apenas em alegações genéricas, inconclusivas ou omissas de factos susceptíveis de fazer integrar, na totalidade, os elementos objectivos e subjectivos do crime pelo qual se pretende essa pronúncia.

· Ora, dito isto e tendo em mente os elementos objectivos e subjectivos que integram o eventual crime pelo qual o assistente pretende ver a arguida pronunciada, logo se vislumbra, segundo cremos, que o RAI deduzido pela primeira terá, necessariamente, que ser rejeitado in totum.

· Omite, pois, o RAI, a alegação de elementos factuais reportáveis quer ao tipo objectivo do delito, quer, especialmente, ao tipo subjectivo do mesmo (doloso).

· Face ao exposto, estamos em crer que o RAI apresentado pelo assistente não obedece ao que se estatui no art. 287.º, n.º 2, do CPP, pois é manifesto que, contrariamente a exigido art. 283.º, n.º 3, al. b) e c) do mesmo diploma legal, não contém a descrição clara e ordenada – à semelhança do que é exigido para a acusação, seja pública, seja particular – de todos os factos susceptíveis de responsabilizar criminalmente o arguido pelo crime que lhe imputa. Dele não consta, como tal, a narração de todos os factos necessários para fundamentar a aplicação ao arguido de uma pena ou medida de segurança pelo aludido crime.

· Por tudo isto, afigura-se-nos que tal requerimento é nulo [cf. art. 283.º, n.º 3, als.b) e c), aplicável ex vi art. 287.º, n.º 2, ambos do CPP], sendo que a falta de objecto adveniente dessa nulidade implica, como vimos, a inexequibilidade da instrução, por falta de objecto. Deve pois ser totalmente rejeitado, nos termos do art. 287.º, n.º 3, do CPP, por inadmissibilidade legal da instrução, o que foi, e bem, feito pela Exmª JIC recorrida.

· Diga-se ainda que não há lugar a qualquer convite ao aperfeiçoamento de uma peça completamente imperfeita, quanto à narração de factos e quanto à indicação da incriminação legal em apreço.

3.8. Conclui-se, assim, sem necessidade de mais considerações, que o recurso não merece provimento.

                                   *************************

            III – DISPOSITIVO

           

Em face do exposto, acordam os Juízes da 5ª Secção - Criminal - deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso e confirmar a decisão recorrida.

            Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UCs.

Paulo Guerra (Relator)

Cacilda Sena


[1] Diga-se aqui que são só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o tribunal de recurso tem de apreciar (cfr. Germano Marques da Silva, Volume III, 2ª edição, 2000, fls 335 - «Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objecto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões»).

[2] Estando nós em processo criminal, não pode haver dúvidas relativamente à exacta pessoa contra quem é deduzida uma queixa ou uma acusação.