Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
11213/19.1T8LSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MANUEL CAPELO
Descritores: IVA
NECESSIDADE DE FORMULAÇÃO DO PEDIDO
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
Data do Acordão: 12/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DE LISBOA – JL CÍVEL DE LISBOA – JUIZ 21
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE REVOGADA
Legislação Nacional: ARTºS 3º, Nº 1, E 661º, Nº 1, AMBOS DO NCPC; DL N.º 446/85, DE 25-10.
Sumário: I - Quando não se tenha formulado pedido de condenação na quantia correspondente ao IVA não pode oficiosamente o julgador condenar nessa quantia, mesmo que a quantia do IVA tenha sido referida nos articulados.

II - Tal condenação, nesses termos, importaria a violação do disposto no art.º 3, n.º 1 do CPC - necessidade do pedido - e, consequentemente, no art.º 661º, n.º 1 do mesmo diploma legal, por condenar em quantidade superior ao que se pediu.

III - Se não suscitada a questão relativa à comunicação e explicação do conteúdo da cláusula contratual geral, não pode nesse domínio abordar-se a questão da nulidade do contrato.

IV - Porém, é sempre possível ao tribunal na apreciação interpretativa das clausulas do contrato apreciar se, juridicamente, alguma delas é ou não excessivamente limitativa da cobertura aparentemente dada pelo contrato de seguro celebrado (e, portanto, abusiva), porque essa tarefa cabe no âmbito dos poderes de conhecimento do tribunal, sendo de natureza oficiosa.

V - A clausula de um contrato de seguro que restringe a cobertura relativa às inundações provocadas por chuvas às provocadas por chuvas torrenciais, exigindo a verificação de uma precipitação atmosférica de intensidade superior a dez milímetros em dez minutos no pluviómetro, deve considerar-se nula por contrária à boa-fé e por defraudar as expectativas dos aderentes, por, através da estipulação de uma exigência de carácter eminentemente técnico e de compreensão não acessível à generalidade dos aderentes, implicar um desequilíbrio desproporcionado, favorecendo excessivamente a posição contratual do predisponente e prejudicando inequitativa e danosamente a do aderente.

Decisão Texto Integral:      











              Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

Relatório

No CIMPAS – Centro de Informação, Mediação, Provedoria e Arbitragem de Seguros, A..., apresentou contra F... – Companhia de Seguros, S.A., reclamação por força da qual solicitou a esta o pagamento de indemnização no montante de €3.660,00 (três mil seiscentos e sessenta euros), para reparação de um dano cuja causa entendia integrar-se num contrato de seguro celebrado entre ambos.

Porque havia celebrado com o requerido um contrato de seguro do ramo “Multirriscos”, designado “Seguro Casa”, tendo por objecto um imóvel urbano, no dia 21 de Março de 2018 participou o sinistro ocorrido no local objecto do seguro, que consistira no aluimento das margens das valas de escoamento de água, com consequentes danos nos caminhos rurais, de terra, paralelos a estas.

A requerente declinou o sinistro, por entender que não se enquadrava em qualquer das coberturas da apólice.

Tendo recorrido ao CIMPAS por ter havido oposição da seguradora foi, depois de realizada instrução, proferida decisão que, julgando “ demonstrada a queda abundante e excepcional de pluviosidade nas semanas que antecederam o sinistro (...)” e assim considerou que “afigura-se inegável e inclusão do sinistro na cobertura de inundações e/ou de aluimento de terras (artº 1º das condições gerais do contrato de seguro),uma vez que os danos causados advieram da subida do caudal das valas de escoamento existentes no imóvel seguro.” (...) “nesta conformidade e total procedência da reclamação, condena-se a reclamada a pagar ao reclamante a quantia de € 4.178,46, incluindo valor do IVA, mas quanto a este apenas desde que demonstrada a sua liquidação através do correspondente recibo/fatura.”

Não se conformando com esta decisão a seguradora veio pedir a sua anulação, concluindo que:

a) Não sendo possível aferir da concreta integração do evento reclamado numa das coberturas da apólice e na medida que estamos na esfera da responsabilidade contratual, claramente o Tribunal Arbitral não se pronunciou sobre uma questão que se deveria ter pronunciado, o que, além do mais, torna ininteligível a douta decisão, pois não está sustentada por factos que permitam a integração do sinistro na apólice, termos em que se requer a sua anulação por força da segunda parte do ponto v), alínea a) do nº 3 do Artº 46º da Lei 63/2011, de 14 de Dezembro, e do Artº 615º nº 1 c) C.P.C ;

b) Caso assim não se entenda e dado que a sentença ora em crise condena a requerida no pagamento da quantia de €4.178,46, (quatro mil cento e setenta e oito euros e quarenta e seis cêntimos), o que constitui condenação em quantia superior ao pedido, €3.660,00 (três mil seiscentos e sessenta euros), o que está vedado ao julgador, conforme de resto estatui do disposto no artº 609º nº 1 C.P.C.., termos em que se tem por verificado o fundamento de anulação da sentença arbitral previsto em na primeira parte do ponto v), alínea a) do nº 3 do Artº 46º da Lei 63/2011, de 14 de Dezembro, o que se requer para os devidos efeitos.

… …

Notificado para deduzir oposição o recorrido veio defender a confirmação da decisão apelada.

Cumpre decidir.

Fundamentação.

O tribunal arbitral considerou provada a seguinte matéria de facto:

“- 1 – O reclamante e a reclamada celebraram um contrato de seguro na modalidade multi riscos titulado pela apólice nº ...

2 – O imóvel seguro é uma quinta agrícola sita na estrada da ...

3 – O contrato de seguro foi celebrado em Agosto de 2013.

4 – Antes da celebração do contrato de seguro a mediadora de seguros do reclamante deslocou-se ao local de modo a conhecer a amplitude do bem a segurar.

5 – O imóvel seguro, para alem do edifício principal, engloba igualmente terreno agrícola incluindo e duas valas de escoamento de água e diversos caminhos rurais.

6 – Por decisão do CIMPAS de 31-3-2015 (Proc. ...) foi reconhecida a inclusão dos referidos caminhos no objecto seguro e, em consequência, condenada a reclamada a indemnizarem virtude das chuvas provocadas pelas tempestades então verificadas.

7 – No interior da quinta existem igualmente duas lagoas.

8 – Durante o mês de março de 2018 verificou-se uma quantidade de precipitação muito superior à habitual nessa época do ano.

9 – Essa precipitação correspondeu, designadamente, ao período de tempo que mediou entre as passagens das tempestades Félix (10-3-2018) e Irene (30-3-2018).

10 – O inverno de 2017/2018 teve uma quantidade de precipitação muito inferior à normal originando uma secura dos solos.

11- No final de março de 2018 o reclamante participou à reclamada o sinistro.

12 – O sinistro participado consistiu na subida de água de duas valas de escoamento de águas cujo nível subiu e danificou os combros (em maior medida) e os taludes (em menor medida) circundantes.

13 – Os taludes e os combros danificados foram reforçados nomeadamente com a colocação de pedras na sequencia do anterior sinistro em 2013.

 15 – O local onde ocorreu o sinistro de 2013 não é o mesmo onde se verificaram os danos de 2018.

16 – Os danos nos taludes e nos combros comprometem a circulação pelos caminhos contíguos.

17- No dia 11-4-2018 a empresa G..., S.A. efectuou a pedido da reclamada uma peritagem aos danos reclamados.

18 – Em 17 -5-2018 a reclamada comunicou ao reclamante que declinava a responsabilidade, considerando que o sinistro participado não se enquadrava nas garantias do contrato seguro.

19 – A reparação dos danos do imóvel orça em 4.178,46 (IVA incluído).

Além de delimitado pelo objecto da acção, pelos eventuais casos julgados formados na instância recorrida e pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, o âmbito, subjectivo ou objectivo, do recurso pode ser limitado pelo próprio recorrente. Essa restrição pode ser realizada no requerimento de interposição ou nas conclusões da alegação (arts. 635 nº3 e 4 e 637 nº2 do CPC).

Na observação destas prescrições normativas concluímos que o objecto do recurso incide sobre a nulidades da decisão por condenação além do pedido e por o tribunal não se ter pronunciado sobre questões que devia apreciar e cuja omissão gera a ambiguidade e obscuridade da sentença que a tornam ininteligível.

Quanto à nulidade da sentença por condenação além do pedido, sustenta a recorrente que o tribunal condenou no quantitativo referente ao IVA quando o recorrido não tinha feito esse pedido.

Apreciando esta temática, o n.º 1 do art.º 609 do CPC estabelece que a sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, sendo nula a sentença quando o juiz condene em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido (al. e) do n.º 1 do art.º 615.º do CPC).

A proibição de condenação em quantidade superior à do pedido, consignada no art. 609.º, n.º 1 do CPC, é justificada pela ideia de que compete às partes a definição do objecto do litígio, não cabendo ao juiz o poder de se sobrepor à vontade daquelas e, também, de que não seria razoável que o demandado fosse surpreendido com uma condenação mais gravosa do que a pretendida pelo autor. É na observância do princípio do dispositivo que o tribunal está impedido de condenar em quantia superior ou em objecto diverso do que for pedido.

Com efeito, esse é um dos princípios estruturantes do direito processual civil, a que alude o n.º 1 do art.º 5.º do CPC, nos termos do qual “às partes cabe alegar os factos essenciais que integram a causa de pedir e aqueles em que se baseiam as excepções invocadas”.

“O princípio do dispositivo é, substancialmente, a projecção, no campo processual, daquela autonomia privada que, dentro dos limites marcados pela lei, encontra a sua afirmação mais enérgica na figura tradicional do direito subjectivo; até onde a lei substancial reconhecer tal autonomia, mesmo para a coordenar melhor com os fins colectivos, o princípio dispositivo deverá ser coerentemente mantido no processo civil, como expressão irrefragável do poder atribuído aos particulares, de dispor da sua esfera jurídica própria.

Conservaram-se, por isso, no Código como afirmações de princípio, os aforismos da sabedoria antiga: ne procedat judex ex officio, ne eat judex ultra petita partium, judex secundum allegata et prabata decidere debet.

Suprimir estes princípios equivaleria a reformar, mais do que o processo, o próprio direito privado; dar ao juiz o poder de iniciar ex officio um pleito que os interessados querem evitar, ou de conhecer de factos que as partes não alegaram, significaria cercear, no campo do direito processual, aquela autonomia individual que, no campo do direito substancial, a lei vigente reconhece e garante”[1] .

De igual, a jurisprudência é a constante a entender que “Encontra-se, há muito, firmado na jurisprudência o entendimento segundo o qual os limites da condenação contidos no art.º 609.º, n.º 1 do CPC têm de ser entendidos como referidos ao valor do pedido global e não às parcelas em que aquele valor se desdobra.

Esta orientação tem sido assumida como válida na solução de casos em que o efeito jurídico pretendido se apresenta como indemnização decorrente de um único facto ilícito, traduzindo-se o total do pedido na soma dos valores de várias parcelas, que correspondem, cada uma delas, a certa espécie ou classe de danos (v.g. danos patrimoniais e danos não patrimoniais, danos emergentes e lucros cessantes, danos presentes e danos futuros), componentes ou integrantes do direito cuja tutela é jurisdicionalmente solicitada.

Compreende-se que assim seja nos casos em que, com base na descrição de uma situação de facto, se afirma a titularidade de um direito que se pretende ver tutelado mediante a declaração da sua existência e a concretização em valor único da sua dimensão global, porque, então, se trata de pedido unitário, decomposto ou desdobrado em parcelas que integram um só efeito jurídico, com a mesma e única causa de pedir.

Com efeito, na definição legal (artigo 498.º, n.º 3, do Código de Processo Civil), pedido é o efeito jurídico que se pretende obter com a acção, traduzindo uma pretensão decorrente de uma causa, a causa de pedir, consubstanciada em factos concretos [artigos 467.º, alínea d), e 498.º, n.º 4, 1.ª parte, do Código de Processo Civil], sendo, pois, os dois elementos (pedido e causa de pedir) indissociáveis, como elementos identificadores da acção e delimitadores do seu objecto, do que resulta que o pedido se individualiza como a providência concretamente solicitada ao tribunal em função de uma causa de pedir”. [2]

Assim, e quanto a uma questão que era debatida de forma diversa e que se traduzia em saber se era admissível a condenação em juros quando os mesmos não tivessem sido peticionados, veio a firmar-se através de acórdão uniformizador que “se o autor não formula na petição inicial, nem em ulterior ampliação, pedido de juros de mora, o tribunal não pode condenar o réu no pagamento desses juros.”[3]

Cremos que da mesma forma que é de rejeitar a condenação oficiosa em juros quando não peticionados por não se poderem considerar automaticamente inseridos no pedido de capital, também, quanto ao montante do IVA, deve ser entendido como inadmissível englobar na condenação esse montante se o autor o não pediu expressamente. E este entendimento nem sequer é novo porquanto já no acórdão do STJ de 27-4-2004 se decidiu que “ Apesar das várias referências ao IVA alegadamente em dívida, os RR. não formularam o pedido de condenação do A. no respectivo pagamento, daí que não se possa considerar que estamos perante um poder de cognição oficioso do julgador, já que tal condenação, logo em 1.ª instância, violaria o disposto no art.º 3, n.º 1 do CPC - necessidade do pedido - e, consequentemente, no art.º 661, n.º 1 do mesmo diploma legal, por condenar em quantidade superior ao que se pediu.” [4].

Nesta conformidade deve ser revogada a decisão recorrida na parte em que condenou a recorrente no pagamento do montante do IVA uma vez que o mesmo não foi pedido nem se pode considerar que indicar o valor pedido como sendo “3.360,00€ (S/ IVA) “ significa que também se quer pedir implicitamente o IVA ou que, por se juntar um orçamento m que os danos são os do montante pedido e em que se acrescenta o IVA, serve como alegação de pedido desse montante  uma vez que , como se disse, esse pedido tem de ser expresso e resultar do próprio texto da alegação e do pedido e não ser deduzido de qualquer documento.

Quanto à nulidade da decisão arbitral por o tribunal não se ter pronunciado sobre questões que devia apreciar e cuja omissão gera a Ambiguidade e Obscuridade da sentença que a tornam ininteligível, julgamos dever delimitar-se esta arguição uma vez que como decorre do próprio texto legal, são distintas e de conteúdo bem diverso as nulidades referentes á omissão de pronuncia e a de ambiguidade e obscuridade.

Estabelece o art. 615, nº 1, als. c) e d) que “É nula a sentença quando:

c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

Resulta do regime previsto neste preceito que a sentença “deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras e não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras”.[5] E “Resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação não significa considerar todos os argumentos que, segundo as várias vias, à partida plausíveis, de solução do pleito, as partes tenham deduzido ou o próprio juiz possa inicialmente ter admitido : por um lado, através da prova, foi feita a triagem entre as soluções que deixaram de poder ser consideradas e aquelas a que a discussão jurídica ficou reduzida ; por outro lado, o juiz não está sujeito às alegações das partes quanto à indagação, interpretação e aplicação das normas jurídicas e, uma vez motivadamente tomada determinada orientação, as restantes que as partes hajam defendido, nomeadamente nas suas alegações de direito, não têm de ser separadamente analisadas”.[6]

Nesta sequência, a sentença não padece de nulidade quando não analisa um certo segmento jurídico que a parte apresentou, desde que fundadamente tenha analisado as questões colocadas e aplicado o direito.

No caso em decisão, o vício apontado, situa-o a recorrente em não ter a decisão arbitral atendido a que a inclusão do sinistro na cobertura de inundações e/ou aluimento de terras”, só poderia ser accionada se as condições atmosféricas susceptíveis de causar o sinistro num período de 72 horas e bem assim na verificação de precipitação atmosférica de intensidade superior a 10 milímetros em 10 minutos no pluviómetro, sendo certo que, no que toca ao aluimento de terras, está excluído quando seja resultado de acção das aguas, causa (chuvas) que a douta decisão atribui à ocorrência do sinistro.

Com esta alegação, observamos que não é na omissão de pronúncia que a recorrente coloca o seu protesto, nem em nenhuma nulidade prevista no art. 615, mas sim num erro de julgamento traduzido naquilo que defende ser uma errada subsunção da matéria de facto, a saber, não estarem provados os pressupostos de que dependeria a condenações em indemnização.

Efectivamente, na perspectiva da omissão de pronúncia não existe na decisão arbitral qualquer nulidade porquanto ela decidiu sobre as matérias que era chamada a decidir, ou seja, sobre a indemnização ser ou não devida e sobre ser a ora recorrente obrigada a ressarcir os danos. E, de igual, não existindo qualquer omissão de pronúncia, também inexiste qualquer contradição, ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível precisamente porque ela se entende em toda a sua extensão ao considerar que existiu um sinistro, que provocou danos, que esse sinistro cabe dentro das garantias do contrato e que deve a seguradora indemnizar. Tudo com perfeita inteligibilidade. Porém, saber se realizou esta subsunção com acerto ou não, é matéria que não reporta às nulidades da sentença do art. 615 citado, mas sim à da correção da interpretação das normas jurídicas aplicáveis e à sua subsunção aos factos provados.

Nestes termos abordando agora a alegação da recorrente neste prisma, verificamos que no contrato de seguro, nas condições gerais relativas às tempestades o ponto 3 refere que “constituem um único sinistro todos os danos ocorridos durante as 72 horas que se seguem ao momento em que se verifiquem os primeiros danos nos bens seguros”. E quanto ao aluimento de terras as condições gerais, depois de fixarem como indemnizáveis os danos decorrente de aluimento deslizamentos e derrocadas e afundimentos de terrenos, como exclusão específica, estabelece que não são garantidos os danos resultantes de deficiência de construção do projecto, da qualidade dos terrenos, ou outras características que fossem ou devessem ser do conhecimento prédio do segurado, assim como os danos seguros que estejam sujeitos à acção continua de erosão e acção das águas, salvo se o segurado fizer prova de que os danos não têm qualquer relação com aqueles fenómenos. Finalmente, quanto às inundações, as condições gerais do contrato referem que são garantidos os danos provocados por trombas de água e quedas de chuvas torrenciais, como tal se considerando a precipitação atmosférica de intensidade superior a 10 mm em 10 minutos no pluviómetro, repetindo-se aqui, também, que “constituem um único sinistro todos os danos ocorridos durante as 72 horas que se seguem ao momento em que se verifiquem os primeiros danos nos bens seguros”

Como exclusões específicas referem-se os danos provocados por subidas de marés e marés vivas bem como pela acção continuada do mar ou de outras superfícies de água, naturais e superficiais.

Num objetivação do que é essencial ao conhecimento do recurso, descartamos desde já o argumento segundo o qual para que pudesse atender-se à causa do sinistro seria necessário que essa causa ocorresse durante um período de 72 horas uma vez que a única interpretação consistente de tal cláusula leva a concluir que o que ela pretende configurar é que , num período de 72 horas qualquer multiplicidade de causas que levasse á tipificação de um sinistro seria de considerar uma só , num sentido cumulativo que em termos jurídicos tem a sua práxis firmada. Assim, obviamente que não pode significar essa clausula que um único fenómeno ocorrido no tempo e mantido por menos de 72 horas ou por mais de 72 horas não possa considerar-se como causa. No limite, teria de paradoxalmente se entender para que o sinistro fosse louvado como causa teria de estar a chover 190 mililitros em 10 minutos, mas por mais de 72 horas.

Por outro lado, afastamos igualmente a argumentação segundo a qual deveria entender-se, no domínio do aluimento de terras, que esta causa estaria excluída porque ocorrera por ação das águas.

Nos termos que retiramos das clausulas do contrato, no que respeita ao aluimento de terras, lê-se que estas fazem parta da cobertura, sendo que, adiante, se estabelecem como exclusões especificas “os danos que resultem de bens sujeitos a ação contínua da erosão e ação das águas”.

Temos por evidente que esta exclusão remete não para a ação das águas das chuvas, mas sim para a ação daquelas outras águas que de forma contínua, nos termos literais do próprio clausulado, estão em contacto com esses bens, significando a erosão essa atividade de contacto continuo e não o súbito de que se reveste ou pode revestir a ação mais ou menos intempestiva das águas das chuvas.

Realizada esta delimitação do que interessa ao conhecimento do recurso, repetimos que a única questão suscitada reside em saber se a cláusula em que se estabelece que são garantidos os danos provocados por trombas de água e quedas de chuvas torrenciais, como tal se considerando a precipitação atmosférica de intensidade superior a 10 mililitros em 10 minutos no pluviómetros, constitui obstáculo a que o seguro seja accionado e, neste sentido, a recorrente defende que o IPMA registou que nos dias 10 a 31 de Março de 2018 na estação meteorológica de Alcobaça, a mais próxima da freguesia do Vimeiro, a intensidade máxima de chuva foi de 5 a 7 mililitros em 10 minutos no dia 19. Daqui, conclui a Apelante, nunca poderia a decisão arbitral considerar como existente uma causa de ativação do sinistro por o que deveria ser entendido por tempestade ou chuva torrencial, estar previamente definido de forma objetiva no próprio contrato e, assim, se a precipitação em momento algum atingiu os 10 mililitros em 10 minutos nunca se poderia entender que havia motivo de responsabilidade.

Tomando o documento do IPMA em que se baseia a recorrente e em que, em bom rigor, se baseou a decisão arbitral para considerar provado que “8 – Durante o mês de março de 2018 verificou-se uma quantidade de precipitação muito superior à habitual nessa época do ano.” Nesse documento refere-se que “ A quantidade de precipitação nesses dias foi muito elevada em, especial até ao dia 20 em que ocorreu precipitação todos os dias. Nos dias 11 a 20 (a segunda década do mês) a quantidade de precipitação foi tão elevada que que representou cerca de 800% do valor normal para o período. Na terceira década (dias 21 a 31) a quantidade de precipitação representou 230% do valor normal - total de precipitação de 10 a 31 de março foi de 145,1 mililitros foi muito superior ao valor normal (média de 1971 – 2000) para o mês inteiro de março, tendo representado 240% deste valor. O mês de março de 2018 foi considerado extremamente chuvoso.”

Advertindo que a matéria de facto que serve esta decisão é a que foi firmada na decisão recorrida por não ter havido impugnação desasa matéria, o que obtemos é que a conclusão de que durante o mês de março de 2018 se ter verificado uma quantidade de precipitação muito superior à habitual nessa época do ano deve ser compaginada com a de essa afirmação ser confirmada pelo documento do IPMA mas não quanto a ter havido registo de nalgum desses dias do mês a precipitação ter sido de 10 mililitros em 10 minutos.

E a questão central que deve colocar-se é a de saber qual a relevância de o próprio contrato de seguro nas suas cláusulas fixar como chuva torrencial ou tempestade apenas a precipitação que se situe dentro dos valores de 10 mililitros em 10 minutos.

A este propósito damos nota da decisão proferida pelo Tribunal da Relação de Guimarães em 21-6-2018 no proc. 3095/16.1T8BRG.G1 sobre esta mesma, mesma matéria e que, pela coincidência de entendimentos, aqui referimos e acompanhamos.

Abordando a questão a partir da aceitação de que nos contratos de adesão se exige como fundamental que o aderente/consumidor tenha podido conhecer e compreender o contrato com clareza, e que esses imperativos justificam que para efeitos de observância do ónus de prova sobre a adequada comunicação e informação de cláusulas gerais neles inseridas, incumbe ao proponente nos termos dos artigos 5.º e 6.º do Dec.Lei n.º 446/85, de 25/10,  importa distinguir esse ónus daquele outro, imposto ao aderente, de alegar ou invocar a violação dos deveres de comunicação e informação de cuja preterição se pretende prevalecer, sendo que “o ónus de prova que recai sobre o proponente pressupõe a invocação, pelo aderente, da violação desses deveres por parte daquele”.[7] No entanto, no caso em decisão o recorrido não suscitou a questão relativa à comunicação e explicação do conteúdo da cláusula contratual geral, nomeadamente a da caracterização das chuvas torrenciais e tempestades, e daí que não seja por essa via que seja possível resolver a questão, ainda que ela tenha sido colocada pela recorrente, que aponta essa cláusula como a decisiva para a improcedência da pretensão da reclamante, que ela reclama.

Na apreciação interpretativa dessa cláusula, para decidir se juridicamente ela é ou não excessivamente limitativa da cobertura aparentemente dada pelo contrato de seguro celebrado (e, portanto, abusiva), advertimos de imediato que tal tarefa cabe no âmbito dos poderes de conhecimento deste Tribunal, sendo de natureza oficiosa.

Na verdade, o desfecho do recurso depende de saber qual o sentido que deve ser conferido à citada cláusula e, eventualmente, na hipótese de a interpretação alcançada assim o exigir, saber se ela viola a boa-fé contratual. E num mesmo contexto, este Tribunal da Relação de Coimbra, em decisão de 14.03.2017, propendeu já a entender que um dos elementos essenciais do contrato de seguro e que tem a ver com o seu objecto é o risco – evento futuro e incerto cuja materialização constitui o sinistro; risco que define/delimita o objecto dum concreto contrato de seguro. Denotando isto que as vulgarmente designadas “definições/exclusões”, constantes das condições gerais e especiais, se integram ainda na delimitação do objecto e âmbito do contrato de seguro; e que é necessário ter em conta, na delimitação do objecto do contrato de seguro, tanto as estipulações negociais que indicam, pela positiva, quais os riscos cobertos pelo contrato de seguro, como as que, negativamente, limitam o âmbito de cobertura através das designadas exclusões de responsabilidade. O que, porém, não significa, por estarmos perante cláusulas respeitantes ao objecto do contrato, que possam escapar de todo a um “controlo” interpretativo (assim como não escapam ao controlo da sua natureza/conteúdo abusivo)”.

Pelo deixado exposto, o controlo interpretativo e a definição do conteúdo cláusula mencionada deve realizar-se no confronto com aquilo que era expectável para o segurado que o seguro cobrisse relativamente às “inundações”.

Acompanhando em método e raciocínio o ac. da R. G. citado, e que numa primeira definição dos termos aludiu a que “ “Tromba de água” ou “tromba marinha” é, em definição, “um grande vórtice colunar (normalmente semelhante a uma nuvem em forma de funil) que ocorre ao longo de um corpo de água e está ligado a uma nuvem cumuliforme[8] – fenómeno que, obviamente, não está em causa nos autos.

Quanto à intensidade da chuva, única hipótese que para o caso releva, recorrendo ao sentido comum do termo, vemos que torrencial é o “Que cai com força e abundância”[9] ), o que inculca a qualquer pessoa sem conhecimentos meteorológicos para além dos comuns ao cidadão médio a ideia de que a cobertura do seguro por inundações só abrange inundações provocadas por precipitação intensa, o que, desde já de dirá, se compreende tendo em conta a necessidade da seguradora de evitar a cobertura de situações resultantes de uma má manutenção ou de defeitos do imóvel, não sendo, por outro lado, excessivamente gravosa para o aderente, porquanto, por regra, a chuva fraca ou moderada não é de molde a provocar inundações, pressupondo-se que o imóvel deve suportar as referidas intensidades.

Se, diferentemente, se entendesse que com a referência a chuvas torrenciais se estava a restringir a cobertura dos danos provocados por inundações aos decorrentes de chuvas com a intensidade das associadas a ciclones tropicais, então outra conclusão seria de retirar quanto à razoabilidade de tal cláusula. Todavia, sabendo-se que “a interpretação das cláusulas contratuais gerais de harmonia com os princípios da boa fé é uma forte e incontornável imposição legal” e que, nesta matéria, “o artigo 11º, nº 2, do Decreto-Lei nº 446/85, estabelece o princípio do in dubio contra proferentem, de acordo com o qual, existindo dúvidas quanto ao entendimento do destinatário, em aplicação do critério mais objectivo – emergente aliás do nº 1 do artigo –, prevalece o sentido mais favorável ao aderente” (Acórdão da Relação de Lisboa de 09.11.2010), se dúvidas existissem quanto ao sentido atribuído por um declaratário normal (sem conhecimentos meteorológicos que não os comuns à generalidade das pessoas) à expressão “chuvas torrenciais”, o que não se admite, forçoso seria sempre optar pelo primeiro dos sentidos da dita expressão.”

Como neste mesmo acórdão se conclui, a referência a “chuvas torrenciais” deve ser entendida – na ausência de outros elementos – como referência a chuva abundante, chuva intensa, não sendo de qualificar como desrazoável a delimitação assim feita. Porém, o problema coloca-se quando, associando à alusão de chuvas torrenciais se pretende fazer a exigência de que a precipitação atmosférica seja de intensidade superior a dez milímetros em dez minutos, no pluviómetro, porque tal implica colocar o grau de intensidade da precipitação a um nível que acaba por delimitar excessivamente o risco, limitando, desse modo, em última análise, a obrigação da seguradora.

“A medida do que é razoável na delimitação da cobertura do seguro deve ter em conta que, “num quadro negocial padronizado, a delimitação do risco deve pautar-se por critérios objetivos, guiados por cálculos de probabilidade, tendo em conta, nomeadamente, no caso das inundações decorrentes da chuva, os valores da precipitação verificados em Portugal, ponderando se o grau de exigência fixado não é tal que exclui ou restringe injustificadamente a cobertura em questão.

Com efeito, as cláusulas de delimitação do risco devem adequar-se às características da zona geográfica e climatérica em que se encontra o bem seguro, de tal modo que os riscos suscetíveis de ocorrência nessa zona e que o aderente visa ter cobertos o sejam efetivamente, não podendo o predisponente fixar uma cláusula que eventualmente possa ter préstimo noutras zonas, mas inadequada para a cobertura do risco para a qual concretamente foi contratada em função da localização do bem seguro.

Em causa, na situação sub judice, está a cobertura do risco de inundações por chuvas.

Segundo o Instituto Português do Mar e da Atmosfera (IPMA) a classificação da intensidade da precipitação faz-se nos seguintes termos:

a)chuva
1. fraca, para valores menores de 0,5mm/h

2. moderada, para valores compreendidos entre 0,5 mm/h e 4mm/h

3. forte, para valores acima de 4 mm/h

b) aguaceiros de chuva

1. fracos, para valores menores 2 mm/h

2. moderados, para valores compreendidos entre 2 mm/h e 10 mm/h

3. fortes, para valores compreendidos entre 10 mm/h e 50 mm/h

4. violentos, para valores acima de 50 mm/h.[10]

Por outro lado, segundo aquele Instituto, “a chuva é a precipitação de partículas de água no estado líquido, que caem sob a forma de gotas de diâmetro geralmente superior a 0,5 mm, com velocidade em geral superior a 3 m/s e em regra de forma bastante uniforme. O aguaceiro, que é afinal um período de chuva, é caracterizado por começar e terminar de forma brusca, frequentemente com variações rápidas de intensidade e pela alternância rápida do aspeto do céu. Quando os meteorologistas estão a prever que a precipitação se estenda de forma uniforme numa determinada região e caia de forma regular e até contínua durante determinado período de tempo, então a previsão é de "chuva". Quando se prevê que haja grande alternância, quer do ponto de vista espacial de local para local, quer do ponto de vista temporal para um mesmo local, entre o céu muito nublado ou encoberto com precipitação com períodos de céu pouco nublado ou mesmo limpo, então os meteorologistas utilizam o termo aguaceiro”[11]

Sublinhando que a cláusula em interpretação não se refere a aguaceiros, mas sim a “chuvas” e se para estas, as chuvas, serem consideradas fortes pelo IPMA, basta atingirem valores acima de 4 mm/hora, então, julgamos ser, mais do que adequado, de reaciocínio forçoso, considerar que a exigência de uma precipitação superior a 10mm em dez minutos é, manifestamente, desrazoável e extremamente limitativa da cobertura contratada.

“Deve, aliás, dizer-se que o facto de a delimitação em causa ser feita por referência a 10 minutos e não a 1 hora em nada ajuda; pelo contrário, só contribui para o encobrimento do grau de exigência em causa (veja-se que mesmo em relação aos aguaceiros a classificação da intensidade da precipitação é feita normalmente com referência à hora).

E, referenciando esta exigência ao nosso clima e à precipitação ao mesmo associada, mais se evidencia o carater limitativo da referida cláusula. Na verdade, apesar de se dizer que neste clima – temperado com inverno chuvoso – há grandes precipitações, recorrendo de novo ao IPMA, da análise dos respetivos boletins climatológicos, verificamos que aquela exigência é desproporcional: em termos de precipitação máxima diária em mm, vemos, p.ex. que o total da quantidade de precipitação ocorrida nos meses de março a maio (3 meses) do corrente ano, é de 429 mm e corresponde a cerca de 200 % do valor médio, sendo a 3ª primavera mais chuvosa desde 1931 (depois de 1936 e 1956) e que em março de 2018 – mês que ali é indicado como o 2º março mais chuvoso desde 1931 –, em que 2% do território atingiu a classe de chuva severa, o maior valor da quantidade de precipitação em 24 horas foi de 99,2 mm na Covilhã, e, em fevereiro de 2017, com uma quantidade de precipitação considerada dentro do normal para aquele mês, o valor máximo atingido foi de 102 mm em 24 horas, em Cabril, sendo, por outro lado, os episódios de chuva intensa assinalados, ao longo dos anos acompanhados por aquele instituto, no território continental, esporádicos.”[12]

Assim, concluímos que, no âmbito daquele segmento da cláusula em interpretação, nos exatos termos ali definidos, através do referido seguro estará coberto o risco de um fenómeno meteorológico muito pouco comum em Portugal continental, sendo, pois, de afirmar que a mesma, inserida em contratos de seguro que visam a cobertura do risco de inundações por chuvas num imóvel localizado nesse território, prejudica injustificadamente, por um lado, os aderentes e beneficia, também injustificadamente, por outro, a seguradora, porquanto poucas serão as situações que se poderão encaixar naquele quadro, podendo (o segmento da referida cláusula) pôr até em perigo a finalidade visada com a celebração de tal contrato no que toca à cobertura dos danos provocados por “inundações”, o que a torna nula.

Na verdade, se as cláusulas de delimitação dos riscos assumidos (assim como as de exclusão de certos riscos) são, em princípio, válidas, certo é que as mesmas estão sujeitas ao regime das cláusulas contratuais gerais (DL n.º 446/85, de 25-10) e à Lei do Consumidor, de acordo com a qual “os fornecedores estão obrigados à não inclusão de cláusulas em contratos singulares que originem significativo desequilíbrio em detrimento do consumidor” (art. 9.º, n.º 2, b), da lei n.º 24/96, de 31-07).

Como princípio geral, de harmonia com o artigo 15° do DL 446/85, são proibidas as cláusulas contrárias à boa-fé, devendo, para efeito da aplicação desta norma ponderar-se nos termos do art. 16° do mesmo diploma os valores fundamentais do direito relevantes em face da situação considerada e, especialmente:
a) - A confiança suscitada nas partes pelo sentido global das cláusulas contratuais em causa, pelo processo de formação do contrato singular celebrado, pelo teor deste e ainda por quaisquer outros elementos atendíveis;
b) - O objetivo que as partes visam atingir negocialmente, procurando-se a sua efetivação à luz do tipo de contrato utilizado.

“A boa-fé, tida em vista neste diploma, é a boa - fé objectiva, exprimindo um princípio normativo que não fornece ao julgador uma regra apta à aplicação imediata, mas apenas uma proposta ou plano de disciplina, ficando aberta deste modo a possibilidade de atingir todas as situações carecidas de uma intervenção postulada por exigências fundamentais de justiça.

Assim, quem tem o poder de pré-estabelecer os termos dos negócios jurídicos na área onde exerce a sua actividade antecipadamente à própria determinação da contraparte, deve sopesar também os interesses previsíveis dos aderentes, em ordem a atingir um equilíbrio para cuja avaliação as soluções dispositivas ou supletivas constituem um padrão de referência.

Deste modo, poder-se-á concluir que uma cláusula contratual que não tenha sido objecto de negociação individual é considerada abusiva, quando, a despeito da exigência da boa-fé, dar origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato. Ou seja, uma cláusula será contrária à boa - fé se a confiança depositada pela contra - parte contratual naquele que a predispôs for defraudada em virtude de, da análise comparativa dos interesses de ambos os contraentes, resultar para o predisponente uma vantagem injustificável”[13].

E, ainda, “quando, em resultado de cláusulas de exclusão ou limitativas, a cobertura fique aquém daquela com que o tomador do seguro podia de boa fé contar, tendo em consideração o objecto e finalidade do contrato, tais cláusulas são nulas”, sendo, pois, “preciso apurar se, em concreto e na prática, tal delimitação/exclusão não desvirtua o objecto do contrato; se o contrato não fica esvaziado no seu objecto/risco, o que constituirá uma ilicitude”[14]

Em conformidade com a regra de proibição de cláusulas contrárias à boa-fé, relativamente a cláusulas delimitativas da cobertura nos chamados seguros de vida, mas que permitem compreender a mesma lógica de raciocínio no e com o caso em decisão, é predominante na jurisprudência a orientação que entende serem abusivas as cláusulas que, em contratos de seguro, pactuados conjuntamente com um mútuo, que garantem, em caso de morte ou de invalidez (total ou permanente por doença ou acidente) dos mutuários, a liquidação à mutuante do montante em dívida, do capital e dos juros vencidos, fazem “depender a verificação do estado de invalidez permanente e definitiva, em consequência de doença, não só da incapacidade definitiva de exercer qualquer profissão, mas também da necessidade de recorrer, de modo contínuo, à assistência de uma terceira pessoa para efectuar os actos normais da vida diária”, por se tratar de “um artifício pelo qual a seguradora, predisponente da cláusula, intenta sub-reptícia e encapotadamente restringir de modo drástico o alcance da cobertura do seguro (...)”[15].

De facto, julgamos que no nosso caso, pode dizer-se que a cláusula que restringe a cobertura relativa às inundações provocadas por chuvas às provocadas por “chuvas torrenciais” ao densificar este conceito através da exigência de verificação de uma precipitação atmosférica de intensidade superior a dez milímetros em dez minutos, no pluviómetro é contrária à boa-fé e defrauda as expectativas dos aderentes, por, através da estipulação de uma exigência de carácter eminentemente técnico e de compreensão não acessível à generalidade dos aderentes, implicar um desequilíbrio desproporcionado, favorecendo excessivamente a posição contratual do predisponente e prejudicando inequitativa e danosamente a do aderente.

Impõe-se, pois, considerar nulo este segmento, restando-nos a delimitação dada pelas “chuvas torrenciais”, conceito que, como se viu, deve ser interpretado no sentido de chuva abundante, intensa. E, concluir pela improcedência das alegações de recurso nesta parte.

Aliás, convém repetir, como iniciámos esta abordagem, sublinhando que a esta solução não obsta que se saiba, como certo, estar vedado ao tribunal de recurso a apreciação das questões novas – questões que não foram alegadas oportunamente, nem consideradas pelo tribunal, nos termos do art. 608º, nº 2, do C.P.C. – suscitadas pela parte apenas em sede de recurso[16]. Esta regra que impede o tribunal de recurso de conhecer de questões novas não vale quanto às questões de conhecimento oficioso, de que podem conhecer tanto o tribunal a quo como o tribunal ad quem, ainda que as partes as não tenham suscitado nem sobre elas se tenha pronunciado o tribunal recorrido, podendo ser apreciados fundamentos e razões jurídicas diversas das invocadas com base no princípio geral consignado no nº 3 do art. 5º do CPC, aplicável também à fase de recurso[17].

No mesmo sentido o STJ em acórdão de 3-10-2003 abordou a questão da nulidade de uma cláusula geral de um contrato de seguro tendo entendido que, não obstante tal questão não ter sido suscitada na primeira instância, se tratava de “questão a conhecer mandatoriamente pelo tribunal recorrido” ali se explanando a esse propósito que “ (…) a questão podia ser suscitada, como foi, no recurso de apelação, precisamente porque era passível de ser conhecida oficiosamente (a inadmissibilidade de levantar questões novas nos recursos não se coloca relativamente às questões de conhecimento oficioso e que ainda não tenham sido decididas). Neste sentido, cite-se o acórdão deste Supremo Tribunal de 10 de julho de 2008, (processo nº 08B1846, www.dgsi.pt), onde se pode ler que “Numa acção de indemnização deduzida contra uma seguradora pela respectiva segurada, a Relação pode, em recurso de apelação, conhecer da nulidade de cláusulas do respectivo contrato de seguro, apesar de só nas alegações da apelante tal nulidade ser levantada, por apesar de se tratar de questão nova, ser do conhecimento oficioso, nos termos do art. 286º do Cód. Civil”.

Mesmo que dúvidas se quisessem suscitar, deve ter-se em consideração que o art. 6º da Diretiva 93/13/CEE que enforma por força do DL 220/95, o regime legal das cláusulas contratuais gerais (DL nº 446/85), determina que “os Estados-membros porfiem legislativamente na respetiva ordem interna de modo a que, imperativamente, as cláusulas abusivas não vinculem os consumidores, e é assim que deve ser interpretado o DL nº 446/85. Ocorre que este propósito não poderia ser alcançado convenientemente se acaso os consumidores se vissem sempre na obrigação de invocar eles mesmos o caráter abusivo das cláusulas. Por isso o Tribunal de Justiça da União Europeia tem reiteradamente decidido, em sede de reenvio prejudicial, que é dever dos tribunais nacionais suscitar oficiosamente a questão”. E o mesmo se diga de quaisquer questões relativas à qualificação jurídica dos factos, categoria em que se inclui a da interpretação do contrato em conformidade com o regime das cláusulas contratuais gerais bastando que esteja disponível a matéria de facto necessária a tal indagação e decisão como no presente caso está.

Em resumo, merece provimento o presente recurso na parte em que se pretende que a condenação incida apenas na quantia de “3.360,00€ (três mil trezentos e sessenta euros) improcedendo quanto ao mais a pretensão da Apelante.

- Síntese Conclusiva:

- Quando não se tenha formulado pedido de condenação na quantia correspondente ao IVA não pode oficiosamente o julgador condenar nessa quantia, mesmo que a quantia do IVA tenha sido referida nos articulados.

- Tal condenação, nesses termos importaria a violação do disposto no art.º 3, n.º 1 do CPC - necessidade do pedido - e, consequentemente, no art.º 661, n.º 1 do mesmo diploma legal, por condenar em quantidade superior ao que se pediu.

- Se não suscitada a questão relativa à comunicação e explicação do conteúdo da cláusula contratual geral, não pode nesse domínio abordar-se a questão da nulidade do contrato.

- Porém, é sempre possível ao tribunal na apreciação interpretativa das clausulas do contrato apreciar se, juridicamente, alguma delas é ou não excessivamente limitativa da cobertura aparentemente dada pelo contrato de seguro celebrado (e, portanto, abusiva), porque essa tarefa cabe no âmbito dos poderes de conhecimento do tribunal, sendo de natureza oficiosa.

- A clausula de um contrato de seguro que restringe a cobertura relativa às inundações provocadas por chuvas às provocadas por chuvas torrenciais, exigindo a verificação de uma precipitação atmosférica de intensidade superior a dez milímetros em dez minutos no pluviómetro, deve considerar-se nula por contrária à boa-fé e por defraudar as expectativas dos aderentes, por, através da estipulação de uma exigência de carácter eminentemente técnico e de compreensão não acessível à generalidade dos aderentes, implicar um desequilíbrio desproporcionado, favorecendo excessivamente a posição contratual do predisponente e prejudicando inequitativa e danosamente a do aderente.

 Decisão

Pelo exposto acorda-se em julgar a Apelação parcialmente procedente e, em consequência, revogar a decisão recorrida condenado a Apelante seguradora F... – Companhia de Seguros S.A. a pagar ao Apelado A... a quantia de €3.660,00 (três mil seiscentos e sessenta euros), julgando no mais improcedente a Apelação.

Custas por Apelante e Apelado na proporção do respetivo decaimento.

Coimbra, 10 de dezembro de 2019


***



[1] Alberto dos Reis, CPC anot., V, pp.51.

[2] Ver por todos e entre tantos, o Ac. do STJ de 25.03.2010, in www.dgsi.pt).
[3] 1520/04.3TBPBL.C1.S1-A - 14-05-2015 – Assento Uniformizador.
[4] ACSTJ de 27-04-2004 Revista n.º 4116/03

[5] Prof. Alberto dos Reis in “CPC Anotado”, Vol. V, pg. 143
[6] Alberto dos Reis, opus e loc.cit.
[7] Acórdão do STJ de 28.09.2017,

[8] cfr. https://pt.wikipedia.org)

[9]in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2003, https: // www. priberam. pt/ dlpo/torrencial
[10]cfr.https://www.ipma.pt/pt/educativa/faq/meteorologia/previsao/faqdetail.html?f=/pt/educativa/faq/meteorologia/previsao/faq_0033.html).
[11]cfr.https://www.ipma.pt/pt/educativa/faq/meteorologia/previsao/faqdetail.html?f=/pt/educativa/faq/meteorologia/previsao/faq_0028.html). Vd. Ac. RG de 21-6-2018  no proc. 3095/16.1T8BRG.G1, in dgsi.pt
[12] Ac. RG de 21-6-2018  no proc. 3095/16.1T8BRG.G1, in dgsi.pt citando cfr.http://cwww.ipma. pt/ resources.www/docs/im.publicacoes/edicoes.online/20180413/kzNotzaFruRainsItZNH/cli_20180301_20180331_pcl_mm_co_pt.pdf).

[13] Acórdão do STJ de 18.09.2014.
[14] Acórdão da Relação de Coimbra de 19.06.2013.
[15] Vd. o já citado acórdão do STJ (Relator Granja da Fonseca) datado de 18.09.2014, seguido, de perto, pelo Acórdão do STJ de 14.12.2016
[16] “Seguindo a terminologia proposta por Teixeira de Sousa, podemos concluir que tradicionalmente seguimos um modelo de reponderação que visa o controlo da decisão recorrida e não um modelo de reexame que permita a repetição da instância no tribunal de recurso” - Abrantes Geraldes, in Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 110.
[17] Abrantes Geraldes op. cit pag. 111