Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
13/07.1GACTB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO MIRA
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
Data do Acordão: 04/28/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE CASTELO BRANCO – 2º J
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGO152.º, N.ºS 1, ALÍNEA A), E 2, DO CÓDIGO PENAL
Sumário: 1. Á realização do crime de maus tratos (lei antiga) não bastava, por regra, uma acção isolada do agente, sendo necessária uma acção plúrima e reiterada, com uma proximidade temporal entre os vários actos ofensivos, embora não se exigisse uma situação de habitualidade.
2. Para a realização do crime era necessário, pois, que o agente reiterasse o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastaria para integrar o crime quando assumisse uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal do cônjuge ou equiparado.
O inciso da nova lei «de modo reiterado ou não» não deixa agora qualquer dúvida quanto à posição firmada pelo legislador de pôr cobro ao dissídio doutrinal e jurisprudencial sobre a existência ou não da reiteração como elemento objectivo típico de verificação necessária, exigindo o tipo de crime, epigrafado de «violência doméstica», a prática reiterada de actos ofensivos consubstanciadores de maus tratos ou, então, um único acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana.
Decisão Texto Integral: I. Relatório:

1. No 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção de tribunal singular, o arguido J..., casado, engenheiro, morador em Castelo Branco, pronunciado pela prática, em autoria material, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal.


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2. Por sentença de 12 de Novembro de 2009, o tribunal julgou procedente, por provada, a pronúncia e, em consequência, condenou o arguido J..., pela prática do imputado crime de violência doméstica, na pena de 2 (dois) anos e 1 (um) mês de prisão, que declarou suspensa na sua execução por igual período.

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3. Inconformado, o arguido interpôs recurso da sentença, extraindo da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:

1.ª – O arguido crê que os pontos 6 a 9 da douta sentença foram incorrectamente julgados, devendo ter sido dados como não provados.

2.ª – O ponto n.º 6 da matéria de facto, salvo melhor e mais sábia opinião, não poderia ter sido dado como provado.

3.ª – Com efeito, deparamo-nos com duas versões contraditórias, a do Arguido e a da testemunha, relativas a um facto que mais ninguém presenciou.

4.ª – A referida testemunha não dirige a palavra ao Arguido, comportamento que já assumia à data dos factos; à data dos factos descritos na acusação era cronologicamente impossível que o Arguido tivesse proferido tais expressões; a testemunha está numa relação de grande proximidade com a Assistente, “colando” o seu discurso ao desta; a Assistente desabafa com a testemunha, o que, numa situação de tensão como a de um divórcio, numa oportunidade perfeita como a partilha de um quarto com a Assistente e pela testemunha, tendo esta 12, 13, 14 anos, quando esta não convive com o Arguido, conduz a um inevitável condicionamento do depoimento.

5.ª – O Arguido nega, terminantemente, ter proferido tais expressões.

6.ª – Do exposto decorre que o ponto 6 da matéria de facto não poderia ter sido dado como provado, uma vez que contende com a prova produzida em audiência quando analisada à luz das regras da experiência e do princípio in dubio pro reo.

7.ª – Relativamente ao ponto n.º 7, crê-se que tal facto não deveria ter sido dado como provado.

8.ª – A ameaça que decorre daquele ponto não se compagina, de acordo com as regras da experiência, com o pagamento atempado, pelo Arguido, das despesas correntes, designadamente da prestação da casa, da pensão de alimentos e com a apresentação também pelo Arguido, de propostas de partilha que envolviam pagamento de verbas à Assistente.

9.ª – Motivos pelos quais se deve considerar não provado o artigo n.º 7 ou, em alternativa, dá-lo como provado com a seguinte redacção: “O Arguido disse à Assistente que, a partir do momento em que se realizassem as partilhas, esta podia ir para onde quisesse, até para baixo da ponte, tendo também dito que a menor D... iria com quem escolhesse”.

10.ª – Relativamente ao ponto n.º 8, por questões de método, dividiu-se a sua análise em dois, uma vez que este contém dois factos distintos, apesar de alegadamente terem ocorrido nas mesmas circunstâncias espácio-temporais.

11.ª – Relativamente ao facto do Arguido ter apelidado a Assistente de “mula” e “vaca”, crê-se que a douta sentença se encontra viciada de nulidade, nos termos conjugados dos artigos 379.º/1 a) e 274.º/2 do CPP, que se deixa expressamente arguida, para os termos e efeitos dos artigos 379.º/2 e 414.º/4 do CPP, uma vez que omite os motivos de facto nos quais se baseou para dar como provada a utilização de tais expressões pelo Arguido, no concreto contexto espácio-temporal referido.

12.ª – Compulsadas as declarações da Assistente, do Arguido e da testemunha D..., verifica-se que apenas aquela alude a tais expressões, sendo que o Arguido nega tê-las proferido, além de que a testemunha D..., que terá presenciado a discussão e que, em ponto algum do seu depoimento, refere as expressões referidas pela Assistente;

13.ª – Salvo melhor opinião, avulta neste ponto, e pelo menos, uma dúvida razoável de que tais expressões tenham sido proferidas pelo Arguido, assim, in dubio pro reo, deve a referida parte do ponto n.º 8 ser dada como não provada.

14.ª – O apertar de pescoço, referido no ponto n.º 8 deverá ser dado como não provado pois a única prova em que a douta sentença efectivamente se pode escorar é, novamente, nos depoimentos da Assistente e da testemunha D..., sendo que, quer o depoimento da testemunha Susana, quer os esclarecimentos do perito do INML são perfeitamente compagináveis com a versão do Arguido.

15.ª – A tese do Arguido é a seguinte: 1. Havendo litígios relativamente ao pagamento das contas de água, luz e gás, que aliás constam da douta acusação, despesas que a Assistente vinha suportando, ao passo que o Arguido suportava a prestação da casa, aquela decidiu que este, por não pagar, não podia usar; 2. No tempo e lugar descritos na acusação, o Arguido deparou-se sem lâmpadas na casa de banho; 3. Por saber onde as havia, colocou-as; 4. Tal enfureceu a Assistente, que partiu o acrílico que envolvia as lâmpadas; 5. confrontado com tal atitude, o Arguido, com medo de ser agredido com o acrílico, fez a força necessária para a colocar fora da casa de banho.

16.ª – A versão do Arguido é coerente e sustentada, desde logo, quer pela testemunha Susana, que apenas refere umas marcas de vermelhidão no pescoço, quer pelo relatório do INML, que não identificou quaisquer marcas no pescoço.

17.ª – Tais depoimentos são inadequados a firmar a tese da Assistente, uma vez que são perfeitamente compagináveis com a versão do Arguido, que admite o empurrão, com a força necessária e suficiente para impedir aquilo que, então, temeu ser uma tentativa de agressão, isto é, os depoimentos da testemunha A...e do perito do INML nada adiantam de decisivo para saber qual das teses é verídica.

18.ª – O Arguido, como refere, por exemplo, a testemunha B..., não é pessoa violenta, nunca tendo praticado, em 14 anos de casamento, qualquer acto do género daquele pelo qual foi condenado, como de resto confirma a própria Assistente.

19.ª – Relativamente ao depoimento de D..., o Arguido vem sustentando que a mesma é vítima do denominado síndrome de alienação parental (adiante SAP).

20.ª – O SAP não é desprovido de graus, isto é, tem escalas de gravidade, sendo nuns casos mais evidente e noutros menos, não podendo é ser liminarmente afastado por não se verificarem alguns dos seus elementos mais evidentes (cfr. “The Long-Term Effects of Parental Alienation on Adult Children: A Qualitative Reserch Study”, Amy J. L. Baker, The American Journal of Family Therapy, 33:289-302).

21.ª – Noutro dos estudos referidos na douta sentença, elencam-se comportamentos típicos do alienante que permite, trazidos ao caso em apreço, se não afirmar a tese de SAP sofrido pela D..., pelo menos acrescentar sérias reservas ao seu depoimento (cfr. “Behaviours and Strategies Employed in Parental Alienation: A Survey of Parental Experiences”, Any J. L. Baker & Douglas Darnall, Journal of Divorce & Remarriage, Vol. 45 /1/2).

22.ª – Designadamente, 1. a testemunha D..., com a aprovação da Assistente, exime-se a tomar as refeições com o Arguido; 2. a testemunha, ao contrário do sustentado pela douta sentença, nutre uma visão negativa do pai, não logrando, sequer, enumerar situações em que a Assistente tenha iniciado discussões ou falado de forma agressiva; 3. a Assistente tem conversas, em privado, com a menor, nas quais “desabafa” sobre o Arguido; 4. o Arguido acusa a Assistente de ser a responsável pelo paulatino afastamento desta das idas com o pai a Orjais, ao fim-de-semana.

23.ª – O relato que a D... faz do referido aperto de pescoço nem, sequer, é cronologicamente compatível com a data constante da acusação. Este dado contribui para que a objectividade do seu depoimento sofra, salvo melhor opinião, sérios reveses, pois enquanto a acusação coloca tal episódio em Outubro de 2007, a testemunha coloca-o em Janeiro de 2007.

24.ª – Uma vez que a D...: 1. Nem localiza o evento temporalmente, associando-o à ida da Assistente para o seu quarto, que tinha ocorrido 10 meses antes do facto descrito na douta acusação; 2. É uma testemunha com um depoimento comprometido com a Assistente, por tudo o que disse, urge fazer intervir, relativamente a este ponto n.º 8, o princípio da presunção de inocência, uma vez que o Arguido apresentou uma versão credível e sustentada, apenas desmentida por duas pessoas que lhe são hoje, malogradamente, hostis.

25.ª – Dando-se, assim, como integralmente não provado o ponto n.º 8 da matéria de facto, uma vez que, como referiu o Arguido, este apenas se limitou a afastar um perigo que entendeu iminente.

26.ª – Pelo facto do ponto n.º 9 contender directamente com o elemento subjectivo do tipo, dá-se por reproduzido o que supra se referiu relativamente aos pontos 6 a 8, uma vez que o Arguido nunca quis, de forma deliberada, livre e conscientemente, maltratar a Assistente, o que, de facto, não fez.

27.ª – Por tudo o referido, devem dar-se por não provados os pontos n.ºs 6, 7, 8 e, consequentemente, o ponto 9 da douta sentença, absolvendo-se, em resultado disso, o Arguido do crime pelo qual veio condenado.


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4. Apenas o Ministério Público, e não também a Assistente M…, apresentou resposta ao recurso, se tendo limitado a pugnar pela sua improcedência.

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5. Neste Tribunal da Relação, em parecer a fls. 243/245, o Ex.mo Sr. Procurador-Geral Adjunto defendeu, de igual modo, o não provimento do recurso.

Cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º do Código de Processo Penal, o arguido não exerceu o seu direito de resposta.


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6. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir.

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II. Fundamentação:

1. Poderes de cognição do tribunal ad quem e delimitação do objecto do recurso:

Conforme Jurisprudência constante e pacífica, são as conclusões extraídas pelos recorrentes das respectivas motivações que delimitam o âmbito dos recursos, sem prejuízo das questões cujo conhecimento é oficioso, indicadas no art. 410.º, n.º 2 do Código de Processo Penal.
Tendo em conta as conclusões formuladas pelo recorrente, resumem-se ao seguinte quadro as questões de que cumpre conhecer:
A) Nulidade da sentença, nos termos, conjugados, dos artigos 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, aliena a), do Código de Processo Penal;
B) Alterabilidade da matéria de facto;
C) Se alterada a matéria de facto segundo os desígnios do arguido/recorrente, este deve ser absolvido da prática do crime de violência doméstica que lhe está imputado.


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2. Na sentença recorrida, foram dados como provados os seguintes factos:

Da pronúncia:

1. O arguido está casado com a ofendida M... há cerca de 14 anos embora, presentemente, se encontrem em processo de divórcio.    

2. Acontece que neste casamento existiram desde sempre alguns problemas, os quais, nos últimos anos, se agravaram consideravelmente.

3. Assim, desde Janeiro de 2007, a ofendida deixou de dormir com o arguido, passando então aquela a dormir no mesmo quarto da filha. 

4. Todavia, ainda assim, quando a ofendida e a filha se encontravam deitadas e, por vezes, já a dormir, o arguido quando chegava a casa abria-lhes a porta do quarto, acendia a luz e ficava parado à porta, sem dizer nada, a olhar para elas.

5. Em princípios de Setembro de 2007, como a ofendida M... precisava de dinheiro para fazer face aos gastos escolares da filha, levantou algum dinheiro de uma conta bancária, titulada por ela e pelo arguido.

6. Quando deu conta do sucedido, o arguido dirigindo-se à filha, afirmou então que a ofendida lhe tinha roubado trezentos euros, acrescentando ainda que aquela era maluca, mula e ladra.

7. O arguido passou a dizer-lhe que as “lixava” às duas, que se dependesse dele iam ambas viver para baixo da ponte.

8. No dia 23 de Outubro de 2007, pelas 7:30H, o arguido a dada altura, no meio de mais uma discussão entre o casal, no decurso da qual apelidou a ofendida de “mula” e “vaca”, apertou-lhe também o pescoço.

9. Ao agir da forma supra descrita o arguido fê-lo de forma deliberada, livre e consciente, com o propósito de, tanto física mas principalmente psicologicamente, maltratar a ofendida, sua mulher, no interior da residência de ambos a fim de evitar que outras pessoas se apercebessem destas condutas.

10. Bem sabia porém o arguido que esta sua conduta, para além de violar os deveres subjacentes ao facto de estar casado com a ofendida, é acima de tudo proibida e punida por lei.

Da contestação:

11. Desde o início de 2007 que o arguido e a ofendida se encontram separados de facto, embora residindo na mesma casa.

12. No decorrer desse ano, o arguido e a ofendida, através de advogado, estabeleceram contactos com vista ao divórcio por mútuo consentimento.

13. Efectivamente, actualmente o arguido e a ofendida encontram-se em processo de divórcio litigioso intentado um contra o outro.

14. A 18/10/2007 a ofendida intentou contra o arguido acção de divórcio litigioso que corre termos sob o n.º 1578/07.3 TBCTB, no 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco.

15. A 12/11/2007 o arguido intentou acção de divórcio litigioso contra a ofendida que correu termos sob o n.º 1724/07.7 TBCTB, no 3.º Juízo do Tribunal Judicial de Castelo Branco, apensado àquela.

16. Nessas acções, ambos requereram a atribuição provisória da casa de morada de família.

17. A verdade, porém, é que desde que o arguido e a ofendida se encontram separados de facto e, sobretudo, já depois de serem intentadas as acções de divórcio litigioso, a ofendida deixou de dirigir a palavra ao arguido, o mesmo fazendo a filha de ambos.

18. A filha foi apresentada como testemunha, quer nas acções de divórcio, quer no presente processo-crime.

19. Relativamente aos factos ocorridos em 23/10/2007 e 15/5/2008 (pontos IV e VI referidos no artigo 4.º do presente articulado) houve nos presentes autos a apresentação de queixas-crime, quer pela ofendida, quer pelo arguido.

20. No dia 23/10/2007, por volta das 7h10m, na casa onde assistente e arguida residem, o assistente dirigiu-se à casa de banho da casa.

21. A filha de ambos assistiu a todo o episódio do dia 23/10/2007.

22. A fls. 74, ficha clínica do episódio de urgência, refere-se que a ofendida tem “um pequeno hematoma na face interna do braço direito, de 1,5 cm de diâmetro”.

23. A fls. 91-93 refere-se a existência de um “hematoma na face anterior do terço superior do braço esquerdo com cerca de 1x0.5 cm.”.

Das condições pessoais do arguido:

24. O arguido é licenciado em engenharia florestal, auferindo cerca de € 1.100,00 mensais; vive em casa própria pagando uma prestação mensal de € 165,00; suporta uma pensão de alimentos para a filha no valor de € 102,5.

25. O arguido é tido por aqueles que com ele convivem como uma pessoa respeitável, calma e trabalhadora.

26. O arguido não tem antecedentes criminais.


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3. E como factos não provados:

Da pronúncia:

A. O referido em 3. fosse devido ao arguido a ter mandado ir dormir para o sofá. 

B. O referido em 4. fosse apenas para as incomodar e perturbar.

C. O arguido deixou igualmente, desde a data acima referida, de comparticipar nas despesas da casa, limitando-se a contribuir para a prestação da mesma, não dando igualmente qualquer quantia monetária para os livros e outras despesas escolares da filha do casal.

D. Nas circunstâncias referidas em 6. o arguido tenha dito que a ofendida tinha amante.

E. O referido em 7. fosse dito muitas vezes e dirigido igualmente à filha do casal e que o arguido tenha acrescentando ainda que se a filha não o tratar melhor pode deixar de lhe chamar pai.

F. O referido em 8. tenha ocorrido sem qualquer motivo para tal e que tenha provocado à ofendida as lesões descritas na ficha clínica e no relatório do exame médico-legal de fls.73 a 74 e 90 a 93, as quais se dão aqui por integralmente reproduzidas e que foram determinantes de um período de dois dias para a respectiva cura.

G. Ao longo destes tempos, o arguido, permanentemente, provoca situações em que possa causar mal-estar à ofendida e à filha de ambos, quer em termos físicos quer psicológicos.

H. Por outro lado, muito embora, como já atrás se referiu, o arguido não preste qualquer contribuição monetária para as despesas correntes da casa, tudo faz para fazer com que tais despesas sejam elevadas, nomeadamente as contas da luz e da água, pretendendo assim certamente aborrecer a ofendida, fazer com a mesma tenha mais gastos domésticos e, até, provocar discussões entre ambos.

Da contestação:

I. O divórcio aludido em 12. só não foi possível devido ao desacordo quanto à partilha dos bens comuns do casal.

J. O referido em 17. tivesse sucedido em virtude de uma atitude de exigida lealdade à filha de ambos.

L. A ofendida tem envolvido sempre a filha de ambos nas disputas judiciais com o arguido ao ponto de, numa manifestação do dever de lealdade absoluto exigido, aquela ser apresentada como testemunha nos termos referidos em 18 contra o arguido.

M. O referido em 20. fosse a fim de fazer a sua higiene diária. 

N. Porque o arguido se negou a sair de casa no decurso da separação de facto e, posteriormente no decurso das acções de divórcio litigioso (sem que, até à presente data, a questão da atribuição provisória da casa de morada de família tenha sido decidida), e com o propósito de fazer sair o arguido de casa e afastá-lo da filha de ambos, a ofendida apresentou uma série de queixas-crime junto da GNR por maus-tratos contra a sua pessoa.

O. Bem como, em Dezembro de 2007, uma queixa junto da Comissão de Protecção de Crianças e Jovens de Castelo Branco por alegados maus-tratos infligidos pelo arguido à filha de ambos.

P. Tais condutas, tiveram sempre o fito de que contra o arguido fosse aplicada, ao abrigo do artigo 200.º do Código de Processo Penal, uma medida de coacção que determinasse o afastamento do arguido da casa de morada de família e a proibição daquele de contactar com a ofendida e a filha.

Q. A ofendida dirige-se apenas ao arguido para o chamar de “filho da puta”, “És um porco, cheiras mal”, dizendo-lhe “Vai-te embora, cabrão!”.

R. É de sublinhar que é a ofendida quem denigre a pessoa do arguido perante a filha de ambos, ao ponto de esta ter cortado todas as relações com o pai, aqui arguido.

S. O que é o culminar de um processo iniciado em meados de 2007 pela ofendida para afastar a filha do arguido, e quebrar todos os laços daquela com o arguido e a sua família.

T. A menor D... , de apenas 13 anos de idade, é, assim, vítima de síndrome de alienação parental (SAP).

U. A ofendida pediu à própria filha que testemunhasse contra o arguido, confirmando todas as alegações da ofendida.

V. O arguido nunca entrou no quarto da filha quando esta e a ofendida aí se encontravam já deitadas e de luz apagada.

Z. A ofendida e a filha, quando o arguido também se encontra em casa, permanecem no quarto desta última sempre com a porta fechada à chave.

X. O arguido chegado à divisão da casa de banho constatou que a mesma não tinha lâmpada, o que o impedia de fazer a sua higiene diária.

AA. Pelo que questionou a arguida sobre o facto, que lhe respondeu “não pagas, não utilizas”.

AB. O arguido recordava-se de, no dia anterior, ter visto lâmpadas no móvel da outra casa de banho (utilizada pela ofendida e filha), pelo que se dirigiu ao mesmo, de onde retirou uma lâmpada para a colocar no armário com espelho que se situa por cima do lavatório.

AC. A arguida, apercebendo-se do movimento do assistente, seguiu-o nesse trajecto entre as duas casas de banho e, gritando para o assistente, chamou-o diversas vezes de “filho da puta”.

AD. O que fez repetidamente e aos gritos.

AE. Palavras essas, aliás, proferidas na presença da filha de ambos.

AF. Quando a ofendida viu que o arguido já tinha colocado luz na casa de banho que utiliza, entrou na mesma, e deu um murro na parte acrílica do armário, o qual se partiu ao meio e caiu em cima do lavatório.

AG. Nessa altura, a ofendida tentou agarrar uma das partes do armário a fim de agredir o arguido.

AH. O que só não conseguiu porque o arguido agarrou a ofendida pela nuca com a sua mão direita e a empurrou para fora da casa de banho, a fim de fazer a sua higiene diária, ao que aquela resistia.

AI. É assim, claro, que não houve qualquer por parte do arguido nem consciência nem vontade de ofender o corpo ou a saúde da ofendida.

AJ. A ofendida pura e simplesmente impede o arguido de utilizar a luz e água com o argumento de que “não pagas, não utilizas”.


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Sobre a expressão “certo dia” constante do 7.º parágrafo da acusação; o parágrafo 10.º da acusação, cujo teor é “Com efeito, por diversas vezes, quando a ofendida não se encontra presente, o arguido, em conversa com a filha, tece comentários a respeito daquela pouco abonatórios da sua honra e consideração o que, para perturbar a filha, revela um total desrespeito pelo dever de respeito relativamente à ofendida ainda sua mulher”; as expressões “ao longo destes últimos tempos” vertida no parágrafo 13.º do libelo acusatório, assim como sobre os pontos 1.º a 4.º; 19.º (segunda parte); 20.º a 22.º; 24.º; 26.º a 45.º; 48.º a 51.º; 63.º a 66.º; 70.º; 71.º; 73.º e 74.º alegados na douta contestação apresentada, importa apenas referir que, ou por se tratarem de conceitos de direito, ou por serem expressões de carácter conclusivo ou meras considerações, sobre os mesmos não pode recair qualquer juízo probatório.

Com efeito, e como referido no AC. do S.T.J. de 2.07.2008 (Proc. n.º 07P3861, in www.dgsi.pti) “Esta imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal – cf. Acs. de 06-05-2004, Proc. n.º 908/04 - 5.ª, de 04-05-2005, Proc. n.º 889/05, de 07-12-2005, Proc. n.º 2945/05, de 06-07-2006, Proc. n.º 1924/06 - 5.ª, de 14-09-2006, Proc. n.º 2421/06 - 5.ª, de 24-01-2007, Proc. n.º 3647/06 - 3.ª, de 21-02-2007, Procs. n.ºs 4341/06 - 3.ª e 3932/06 - 3.ª, de 16-05-2007, Proc. n.º 1239/07 - 3.ª, de 15-11-2007, Proc. n.º 3236/07 - 5.ª, e de 02-04-2008, Proc. n.º 4197/07 - 3.ª.

O mesmo admitimos se poderia dizer do 9.º parágrafo da acusação, onde se pode ler que “Ao longo destes tempos, o arguido, permanentemente, provoca situações em que possa causar mal-estar à ofendida e à filha de ambos, quer em termos físicos quer psicológicos”, o qual por manifestamente vago e generalista nunca poderia ser dado como provado, todavia, e porquanto o mesmo acaba por encerrar alguma matéria fáctica, o Tribunal optou por tecer o necessário juízo probatório negativo.


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4. Quanto à motivação da decisão de facto ficou consignado:

Funda-se a convicção do Tribunal, quer positiva, quer negativa, no conjunto da prova que se produziu em audiência de julgamento e no teor da prova pericial e documental junta aos autos, analisada de forma crítica e com o auxílio de juízos de experiência comum, nos termos do art. 127.º e ainda nos termos do art. 163.º, ambos do Código de Processo Penal.

No que à prova documental e pericial respeita, importa referir ter sido ponderado na convicção do Tribunal a informação médica de fls. 24; a perícia de avaliação do dano corporal em direito penal, cujo teor consta de fls. 41 a 44; 91 a 93; a documentação clínica de fls. 73 e 74; a cópia do relatório psicológico elaborado por G..., a fls. 399; cópia do relatório social sobre o agregado familiar em causa, junto de fls. 400 a 403; o assento de casamento de arguido e assistente, de fls. 441 a 443 e o assento de nascimento da filha de ambos, junto de fls. 445 a 448; e quanto aos antecedentes criminais do arguido, o C.R.C. junto a fls. 122; 242 e 417, que permitiu concluir pela ausência de antecedentes criminais do mesmo.

Incidindo agora sobre a demais prova produzida, nomeadamente as declarações de arguido e assistente, os depoimentos das testemunhas e o esclarecimento prestado pelo perito do gabinete médico-legal competente, e sua relação com os elementos que antecedem, importa reter que a apreciação de todos estes elementos, que redundou no juízo fáctico acima concretizado, teve sempre presente a especial natureza dos factos em causa e as especificidades que a sua apreciação em sede de audiência requer.

Principiando pelas declarações do arguido, pese embora apenas as tenha pretendido prestar no final da audiência, J... negou a globalidade dos factos que lhe são imputados, começando por relatar como, a partir de 2000, as relações do casal se começaram a deteriorar, tendo a situação culminado em 2007 com o abandono por parte da assistente do quarto do casal, tendo ido inicialmente dormir para o sofá da sala e depois para junto da filha; afirmou que de 2007 a esta parte tem sido injuriado com os mais variados nomes, como sejam cabrão e chulo, sendo que nunca reagiu a tal tratamento, acrescentando que a assistente lhe pedia para que batesse nela e a atirasse da varanda, tendo muitas vezes dito que ele tinha morrido.

O arguido referiu que em Julho de 2007 há uma discussão a partir da qual a assistente passa a pagar a água, luz e gás, deixando de tratar das suas roupas e alimentação.

Quanto às agressões que lhe são imputadas o arguido referiu que no dia 22 de Outubro à noite a assistente o impediu de fazer a sua comida, tendo tentado cortar o tubo de gás com uma faca, tendo a D... assistido ao sucedido, sendo que no dia 23 de manhã, pelas 7:20, ao ver que não tinha luz na sua casa de banho (cujas lâmpadas haviam sido retiradas pela assistente) foi colocar novas lâmpadas e a assistente, ao ver tal situação, vai ter junto dele aos gritos, dizendo “não pagas, não usas”, dando um murro num armário de acrílico, partindo-o, sendo que como ela tentou dar-lhe com tal armário viu-se obrigado a empurrá-la, mas apenas com a força necessária para a afastar, após o que surgiu a sua filha D..., tendo a assistente dito que iria chamar a policia, ao que o mesmo se antecipou.

Ora, como veremos melhor infra ficam assim por explicar as marcas que a vizinha da assistente viu na mesma altura.

Relativamente às situações que lhe são imputadas a respeito de entrar no quarto da assistente e da filha durante a noite, o arguido referiu primeiro que tal sucedeu apenas por uma vez, de forma bastante rápida, para se assegurar que a sua filha ali estaria dormindo.

No que concerne à situação relacionada com os € 300,00 que a assistente teria levantado da conta, assumiu que a conta era conjunta mas sustentou (de forma bastante reveladora) que a mesma era a conta da casa e que a assistente nunca havia contribuído para a mesma, nem nunca, até essa data, a havia movimentado. Ainda a este respeito afirmou que em virtude do sobredito levantamento ficou desde o dia 11 a 23 “nas lonas”, sendo que nessa altura já não falavam.

Quanto aos supostos aumentos de consumo referiu ser impossível tal factualidade.

O arguido referiu ainda que a sua filha não tem com ele qualquer diálogo ao tempo presente, negando falar mal da mãe junto da D..., sendo que este corte partiu dela.

Afirmou que tudo foi motivado pelas partilhas, tendo ainda esclarecido a sua situação sócio-profissional, parte final em que se mostrou credível.

Ora, como veremos, tirando alguns dos aspectos acima considerados não provados e igualmente negados pelo arguido, no que se reporta às várias situações em causa nos autos o seu depoimento não se mostrou sustentado, sendo antes contrariado pelos demais meios probatórios a que acima fizemos referência e que passamos a expor.

Assim, desde logo as declarações da assistente M… mostraram-se coerentes e detalhadas.

Assim, descreveu aquela, desde logo, que só os primeiros anos de casamento decorreram com normalidade, sendo que há uns anos que não tinham propriamente vida de casal, tendo a separação se tornado definitiva, pese embora vivam na mesma casa, a partir de 2007; referiu então como começou a dormir no quarto da sua filha em Janeiro de 2007, sustentando, ao invés do referido no libelo acusatório, que tal se ficou a dever ao facto de se recusar a ter relações sexuais com o arguido e ter sido ameaçada por este (pese embora não concretizasse tais ameaças), contrariando a versão do libelo acusatório; referiu que por essa altura o arguido chegava a casa pelas 23:00/24:00 entrava no quarto e acendia as luzes olhando para elas, sendo que depois fechava a porta, tendo posteriormente a mesma passado a fechar a porta, o que obviou a que tal conduta se repetisse, pese embora não tenha referido ser prática corrente fechar sempre a porta nos termos referidos na contestação.

Em relação às palavras que o mesmo lhe dirigiu nessa altura, a assistente referiu que aquele lhe disse que as lixava às duas e que as punha debaixo da ponte, justificando tais comportamentos com a frustração que o arguido teria ao não conseguir controlá-la e sempre que era por esta contrariado.

Relativamente ao episódio da agressão a assistente descreveu com detalhe que em Outubro de 2007, quando vinha a sair da casa de banho, e porque não havia deixado entrar o arguido, o mesmo lhe chamou mula e vaca tendo-a “atafagado”, salientando que aquele lhe apertou o pescoço, por trás, estando ambos já no corredor, encostando-a à parede, o que a levou a gritar, tendo desde logo ali acorrido a filha de ambos que se meteu entre eles, levando a que o arguido a empurrasse.

Relatou como no meio da aflição que sentiu, e porque não conseguia telefonar à polícia, foi tocar à campainha da vizinha, pedindo-lhe auxílio, tendo sido esta a chamar as autoridades.

Note-se que esta descrição foi não só corroborada pela filha do casal, como igualmente pela vizinha abordada como veremos infra.

Em relação às contribuições de ambos para as despesas do casal a que se alude no libelo acusatório a assistente referiu que o casal sempre dividiu as suas despesas, pagando o arguido a prestação da casa e ela o resto, contrariando assim o vertido no libelo acusatório neste conspecto.

Reportando-se à questão do levantamento bancário de € 300,00 referiu que o mesmo se deveu ao facto de precisar de pagar livros para a sua filha e não ter então disponibilidade, sendo que o arguido se dirigiu à filha dizendo-lhe que a mãe era uma ladra e mula, tendo-lhe roubado € 300,00 e que tinha amantes, sendo que nesta última parte tal depoimento não foi corroborado pela filha do casal.

No que respeita às expressões que lhe são imputadas na contestação apresentada a assistente referiu que apenas lhe dizia para não falar para ela; assim como negou ter retirado quaisquer lâmpadas da casa de banho utilizada pelo arguido; negando ainda manipular a filha contra o pai, confirmando que a filha lhe deixou de falar, pese embora não por sua sugestão ou imposição.

Temos assim que, pese embora o notório clima de conflito vivenciado pelo casal, as declarações da assistente se mostraram grosso modo sustentadas, fundamentando em grande medida o juízo probatório acima concretizado.

Essencial para a convicção do Tribunal foi o depoimento de D... , menor de idade, que questionada nos termos do art. 348.º, n.º 3 do C. P. Penal, disse ser filha do arguido e da assistente, sendo que advertida conforme disposto no art. 134.º do C.P.P., disse pretender prestar depoimento, a qual pese embora não tenha prestado juramento (cfr. art. 91.º, n.º 6, al. a) do C.P.P.), denotou uma postura que não deixou dúvidas ao Tribunal a respeito da consciencialização da importância do seu depoimento e do dever de responder com verdade a respeito, apenas, daquilo que directamente apreendeu dos factos que lhe foram perguntados.

Diga-se que esta postura de objectividade e isenção que caracterizou o seu depoimento, não obstante os seus catorze anos de idade, veio precisamente infirmar aquilo que o arguido sustentou na sua contestação a respeito da mesma ser manipulada pela assistente, sustentando que a mesma seria vítima de um síndrome de alienação parental.

Ora, como bem se aponta na contestação, a Síndroma da Alienação Parental [definida pela primeira vez em 1985 pelo Prof. Dr. Richard A. Gardner, professor clínico de Psiquiatria Infantil da Universidade da Columbia (EUA)], resulta das tentativas da parte de um dos progenitores (comummente o progenitor guardião e quase sempre a mãe) em se comportar por forma a alienar a criança ou as crianças do outro progenitor.

A Alienação Parental será pois a criação de uma relação de carácter exclusivo entre a criança e um dos progenitores, com o objectivo de banir o outro, sendo que uma criança totalmente alienada, neste contexto, é a criança que não quer ter qualquer tipo de contacto com um dos progenitores e que expressa apenas sentimentos negativos sobre esse pai e somente positivos sobre o outro, perdendo completamente o alcance da totalidade dos sentimentos que uma criança normal nutre por ambos os progenitores.

Ao progenitor que age no sentido de criar esta relação exclusivista e fusional com a criança chamamos “progenitor alienante”, enquanto que ao progenitor excluído chamamos “progenitor alienado”[1].

Ora, resulta não só da postura denotada em audiência, mas também do teor do seu depoimento que, pese embora a mesma se tenha afastado do pai, tal não se deveu a qualquer imposição da mãe, tendo a mesma revelado bastante objectividade no seu relato do sucedido, não se limitando a dar uma imagem negativa do pai, enunciando antes os factos por si percepcionados, sendo que, inclusive em relação a alguns dos quais, não confirmando a carga negativa que era imputada ao progenitor (veja-se a questão do acender das luzes no quarto que foi pela mesma desvalorizada).

Cumpre também trazer neste conspecto à colação o depoimento de G…, psicóloga no HAL, que questionada nos termos do art. 348.º, n.º 3 do C. P. Penal, disse não conhecer o arguido mas apenas a sua filha D... que está a ser por si acompanhada, desde Junho de 2008, em consultas de psicologia, no âmbito do projecto Progride.

Deste depoimento, objectivo, isento e sustentado, resultou que a D... se lhe mostra como uma jovem inteligente e não influenciável, não referindo censuras específicas quando relata o sucedido em sua casa; mais referiu que a mesma apenas não tem mais contacto com o pai porque não quer, não tendo identificado qualquer problema específico relacionado com qualquer um dos progenitores (sendo que, como qualquer pessoa, relata a realidade como a vê).

Resulta assim claro para o Tribunal que a testemunha em causa, pese embora a sua delicada situação, não se mostra afectada, de qualquer maneira, na sua capacidade de depoimento, atenta, claro está, a sua razão de ciência.

Ora, efectivamente, e como já referimos, o seu depoimento foi decisivo no juízo probatório formulado, não só devido ao ambiente doméstico onde tiveram lugar muitos dos factos dados como provados, mas pela sua coerência com o descrito pela sua mãe e demais elementos probatórios coligidos.

Assim, a testemunha revelou que, desde os tempos da sua escola primária, eram frequentes as discussões em sua casa, tendo os pais deixado de dormir juntos desde Janeiro de 2007; referiu que o seu pai dirigia então à sua mãe as expressões “mula”; “cabra” e “maluca”.

A propósito da agressão vertida na acusação a mesma descreveu o sucedido em consonância com o relatado pela sua mãe, salientando que o seu pai estava a tentar entrar na casa de banho e a mãe não deixava sendo que, tendo então saído do quarto, viu o seu pai agarrar a assistente no pescoço, pelas costas, estando ambos já no corredor; acrescentou que o seu pai terá dito “anda cá que já te afego”, sendo que tendo intervindo foi empurrada contra a parede.

Quanto aos episódios imputados ao arguido em que ligava a luz do quarto em que dormiam a testemunha e a assistente a mesma desvalorizou o aí vertido, afirmando que o seu pai se limitava a abrir a porta e olhar para elas durante uns segundos, o que deixou de suceder quando fecharam a porta, o que fizeram não devido a essas situações mas antes devido às agressões por si referidas, sendo que sempre que lhe pedia para sair o mesmo saía.

Relativamente às despesas da casa a testemunha não revelou, ao contrário de demais perguntado, ter grande razão de ciência apenas salientando que as contas eram a metade entre o casal tendo o seu pai se recusado durante algum tempo a custear as suas despesas escolares, sendo que actualmente se encontra pagando a pensão de alimentos acordada.

Instada relativamente ao levantamento de dinheiro de uma conta do casal a testemunha referiu que o seu pai lhe disse que a sua mãe era uma ladra que o roubou, por ter levantado dinheiro de uma conta que era dos dois, referindo que era habitual, principalmente quando iam os dois para uma quinta no fim-de-semana, o seu pai referir-se à sua mãe como maluca, sendo que há já uns meses que não fala ao seu pai, acrescentando que era o seu pai a ter a iniciativa na maioria das discussões.

Ora, deste relato se depreende que imputar o corte de relações entre a filha e o pai a uma síndrome de alienação será, em face de todo o descrito, uma justificação sem grande substrato pois que, em virtude dos episódios descritos pela menor, é perfeitamente compreensível que a relação entre os dois se tenha degradado a ponto desta não pretender contactos com aquele.

Sustentando o vertido por estas testemunhas, maxime no que se reporta à agressão constante da acusação, foi considerado o depoimento de A…, que questionada, nos termos do art. 348.º, n.º 3 do C. P. Penal, disse conhecer o arguido e a assistente, por ser vizinha de ambos.

Com efeito, esta testemunha, revelando grande objectividade e desinteresse no objecto dos autos, foi assertiva ao descrever a forma como, há mais de dois anos, pelas 7:30 da manhã, a assistente lhe bateu à porta, muito nervosa e chorando copiosamente, dizendo-lhe que o arguido a havia agarrado pelo pescoço e empurrado no corredor de casa; não tendo dúvidas em afirmar que a mesma apresentava marcas de cor vermelha no pescoço, denotando terem sido produzidas por mãos; mais lhe tendo pedido que chamasse a polícia pois não conseguia devido ao seu estado nervoso, tendo esta assentido a tal pedido.

Nada mais soube relativamente aos factos em causa.      

Quanto às testemunhas B..., superior hierárquico do arguido, e R..., colega de trabalho daquele, as mesmas vieram caracterizar o arguido, pessoa de quem se disseram amigas, como pessoa trabalhadora, serena e competente, esclarecendo a sua inserção sócio-profissional.

Estas testemunhas, que revelaram ter pouco contacto com a assistente, mostraram ainda algum conhecimento quanto à pessoa da filha do casal que diziam ver em alguns convívios laborais, acompanhando o pai, sendo que há uns anos que tal não sucede.

Atenta a sua reduzida/nula razão de ciência em relação aos factos vertidos no libelo acusatório, nada mais revelaram saber de relevante.

Já as irmãs do arguido, F… e C..., que advertidas nos termos do art. 134.º do C.P.P. disseram pretender prestar depoimento, vieram corroborar a boa inserção sócio-profissional do arguido, tendo retratado a convivência daquele com a assistente, denotando evidente mal estar em relação àquela.

Assim, a primeira referiu que a sua cunhada estava sempre mal disposta na presença do marido, tendo presenciado discussões entre ambos quando todos estavam na quinta; referiu que a D... tinha uma relação perfeita com o pai (o que não foi corroborado pela própria), sendo que aquela agora nem fala para a parte paterna da família, achando que tal se deve à influência da mãe, tendo relatado um episódio que se passou em casa do arguido, em Agosto de 2008, ocasião em que a assistente a expulsou de casa.

Esta testemunha reconheceu que apenas sabe do sucedido por intermédio do arguido, não tendo assistido a nenhuma das situações em causa nos autos.

A segunda testemunha referida reiterou a boa relação que a D... tinha com o pai e que agora não existe, referindo igualmente que a mesma se deveu à influência da mãe, não tendo, todavia, concretizado em que consistia essa influência.

Mais referiu que nunca presenciou discussões graves entre o casal, relatando um episódio sucedido em casa do casal em que a assistente se meteu na conversa entre estas testemunhas e a D..., sendo que vinham a sair de casa (ao contrário da anterior testemunha que disse ter sido expulsa) viu a assistente agarrar numa vassoura e a D... se meter no meio, sendo que só já na rua o referiu à sua irmã (o que contraia manifestamente o depoimento daquela).

No mais, e à semelhança da anterior testemunha assumiu que apenas sabe do sucedido por intermédio do arguido, não tendo assistido a nenhuma das situações em causa nos autos.

Também sem substancial razão de ciência quanto aos eventos descritos na acusação e na contestação, a testemunha X…, que disse ser amigo do arguido desde longa data, após descrever a inserção sócio-profissional daquele e o descrever nos termos acima dados como provados, afirmou que a assistente há 5 anos que não lhe fala, sendo amiga da mãe dos seus filhos.

No mais a testemunha referiu que grande parte do que sabe é em resultado de conversas com o arguido, apenas logrando descrever duas situações que presenciou, uma das quais ocorrida há 2 anos, no Verão, em que estando à porta da casa do casal ouviu uma gritaria lá dentro, pese embora não tenha entendido o que se dizia, tendo depois o arguido aparecido à porta; a outra teve lugar em casa do casal, no ano passado, sendo que estando a testemunha ali jantando com o arguido, chegou a assistente e a filha de ambos, tendo-se esta dirigido ao arguido dizendo-lhe que não era sua criada, sendo que nada mais mostrou saber.

Por último, e porque na contestação apresentada é colocado em causa o nexo de causalidade entre as lesões verificadas aquando da perícia médico-legal, realizada à assistente, e as consequências atestadas na mesma e vertidas no libelo acusatório, foi o Exmo. Perito que procedeu à sua realização chamado a esclarecer ao Tribunal quanto a esse preciso ponto.

Neste sentido S… veio referir que na altura da observação não existia nada no pescoço apenas a lesão no braço, a qual era compatível com a informação que tinham, isto é, e como resulta do relatório de fls. 92 e 93, relativa a apertão e empurrão sem queda.

Ora, como bem se refere na contestação resulta dos autos a fls. 74 (ficha clínica do episódio de urgência) que a ofendida tem “um pequeno hematoma na face interna do braço direito, de 1,5 cm de diâmetro”, sendo que a fls. 91-93 (perícia médico-legal) já se refere a existência de um “hematoma na face anterior do terço superior do braço esquerdo com cerca de 1x0.5 cm.”.

Daqui decorre, como está bom de ver, inexistir consonância entre aquilo que foi observado no exame realizado na data da prática dos factos acima dados como provados e o apreendido no dia da realização da perícia, razão pela qual a sobredita perícia se mostra inquinada nos seus pressupostos de facto, não podendo o Tribunal considerar provado, quer o nexo de causalidade, quer o período necessário para a cura.

Ademais, e porque o Sr. Perito tão pouco às mesmas aludiu, não pode o Tribunal, em face das divergência de observações, concluir tratarem-se de lesões defensivas.

É pois despiciendo trazer aos autos qualquer empurrão, desde logo porque a assistente e a testemunha presencial o não referem, tendo salientado que o mesmo terá sido dirigido à filha do casal quando procurava auxiliar a mãe.

O que se deixa de expor não contende, contudo, e como está bom de ver, com o apertão que o arguido protagonizou que o Tribunal, em face dos elementos acima analisados, não pôde deixar de considerar como provado.

Quanto aos factos de índole subjectiva haverá apenas que sublinhar, para além do acima considerado, o recurso às regras de presunção natural, uma vez que os factos objectivos dados como provados permitem e impõem concluir pela sua verificação.

Assim, não se formulou o juízo probatório supra com menores exigências de prova atendendo às dificuldades probatórias que usualmente é costume associar a este tipo de julgamento, mas antes se ponderaram os vários elementos carreados aos autos, e se avaliou a segurança, convicção, coerência e detalhe dos relatos de quem teve, sobre a factualidade em causa, conhecimento directo e indirecto.

No que tange à convicção negativa do tribunal, ou seja, aos factos que não foram dados como provados, tal ficou a dever-se à insuficiência ou ausência de prova acerca dos mesmos produzida ou à prova de factos que lhes são diametralmente opostos.

Com efeito, e neste particular, ressalta a ausência de qualquer prova documental ou testemunhal susceptível de atestar o referido em O..

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4. Nulidade da sentença:
Na exegese do recorrente, o tribunal não cumpriu as exigências legais de fundamentação da sentença, porquanto não concretiza os motivos conducentes à prova dos factos identificados no ponto 8., alusivos à imputação das expressões aí referidas (“mula” e “vaca”).
Vejamos se assim é.
Na al. a) do n.º 1 do supra citado art. 379.º do CPP comina-se de nula a sentença que não contiver as menções referidas no art. 374.º, n.ºs 2 e 3, al. b) do mesmo Código.
Esta disposição está intimamente ligada à do art. 127.º do CPP, nos termos do qual “salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente”.
O julgador é, assim, livre ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja «vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório».[2] 
No entanto, a livre convicção do juiz não se confunde com a sua convicção íntima, caprichosa e emotiva, dado que é o livre convencimento lógico, motivado, em obediência a critérios legais, passíveis de motivação e de controlo, na esteira de uma “liberdade de acordo com um dever”, que o processo penal moderno exige, dever esse que axiologicamente se impõe ao julgador por força do princípio do Estado de Direito e da Dignidade da Pessoa Humana.

A livre convicção não pode ser vista em função de qualquer arbitrária análise dos elementos probatórios, mas antes deve perspectivar-se segundo as regras da experiência comum, num complexo de motivos, referências e raciocínio, de cariz intelectual e de consciência, que deve de todo em todo ficar de fora a qualquer intromissão interna em sede de conhecimento.

Isto é, na outorga, não de um poder arbitrário, mas antes de um dever de perseguir a chamada verdade material, verdade prático-jurídica, segundo critérios objectivos e susceptíveis de motivação racional.[3]

Vigorando na nossa lei adjectiva penal um sistema de persuasão racional e não de íntimo convencimento, instituiu o legislador mecanismos de motivação e controle da fundamentação da decisão de facto, dando corpo ao princípio da publicidade, em termos tais que o processo - e, portanto, a actividade probatória e demonstrativa -, deva ser conduzido de modo a permitir que qualquer pessoa siga o juízo, e presumivelmente se convença como o julgador.[4]

A obrigação de fundamentação respeita à possibilidade de controle da decisão do julgador, a viabilizar a exigível sindicabilidade da decisão e a reforçar a sua compreensibilidade pelos destinatários directos e da comunidade em geral, como elemento de relevo para a sua aceitação e legitimação.
É, pois, na fundamentação da sentença, sua explicitação e exame crítico que se poderá avaliar a consistência, objectividade, rigor e legitimidade do processo lógico e subjectivo da formação da convicção do julgador. Não é suficiente a mera indicação das provas, sendo necessário revelar o processo racional que conduziu à expressão da convicção.
«Com efeito, só assim o decisor justifica, perante si próprio, a decisão (o momento da exposição do raciocínio permite ao próprio apresentar e conferir o processo lógico e racional pelo qual atingiu o resultado), e garante a respectiva comunicabilidade aos respectivos destinatários e terceiros (dando garantias acrescidas de que a prova juridicamente relevante foi não só correctamente recolhida e produzida, mas também apreciada de acordo com cânones claramente entendíveis por quem quer).

Assim que baste que apenas um dos referidos passos do juízo devido seja omitido, para que se esteja a prejudicar a tutela judicial efectiva que tem de ser garantida como patamar básico da convivência social, impossibilitando ou diminuindo a justificação e compreensibilidade do decidido»[5].

Só motivando nos moldes descritos a decisão sobre matéria de facto, mesmo vendo a questão do prisma do decisor, é possível aos sujeitos processuais e ao tribunal de recurso o exame do processo lógico ou racional que subjaz à formação da referida convicção, para que seja permitido sindicar se a prova não se apresenta ilógica, arbitrária, contraditória ou violadora das regras da experiência comum.

A análise crítica da prova não terá, no entanto, de ser exaustiva, mas apenas a suficiente para se poder concluir que a decisão assentou na prova produzida e não é fruto de qualquer discricionariedade ou arbitrariedade.

Assim, o dever de indicação e exame crítico das provas, como elemento da fundamentação da decisão de facto, não exige, naturalmente, uma assentada do depoimento das testemunhas, ou seja, que o tribunal reproduza os depoimentos das testemunhas ouvidas, ainda que de forma sintética.

Como não impõe uma fundamentação autónoma para cada um dos factos.

Em síntese conclusiva, dir-se-á, pois, que a exigência normativa do exame crítico das provas torna insuficiente a referência àquilo em que o tribunal se baseou, tornando-se necessário saber o porquê, a razão de ser da formação da convicção do tribunal.

Enunciados estes princípios e analisada a exposição dos motivos probatórios exarada na sentença recorrida, verifica-se que o tribunal a quo expôs satisfatoriamente os motivos de facto que fundamentaram o decidido.

Conforme expressa fundamentação, supra reproduzida, o tribunal a quo motivou, suficientemente, no específico domínio em apreciação, as razões que determinaram a formação da sua convicção, não se limitando a uma simples enunciação ou especificação dos meios de prova que considerou relevantes e decisivos, mas procedendo também a uma análise crítica das provas, da qual decorre perfeitamente reconstituído o “iter” que conduziu ao juízo de valoração.

Assim, no que agora importa considerar, o tribunal aferiu criticamente a relevância do depoimento da assistente M…, tendo-o considerado, pelas razões expostas na motivação da decisão de facto, coerente e circunstanciado, nomeadamente na descrição “detalhada” do «episódio da agressão», em cujo contexto a testemunha revelou que, «quando vinha a sair da casa de banho, e porque não havia deixado entrar o arguido, este lhe chamou mula e vaca».

Assim, na lógica interna da decisão, existe fundamentação crítica, concisa mas suficiente, que permite a apreensão por quem quer dos motivos subjacentes à valoração do tribunal a quo, de dar como provados os factos em causa.

Temos, pois, como evidente que a fundamentação contida no acórdão é bastante para atingir os objectivos da lei, supra referidos, carecendo de suporte legal a nulidade da sentença suscitada pelo recorrente.


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5. Alterabilidade da matéria de facto:

Resulta impressivamente do contexto global da motivação do recurso e das próprias conclusões que é posta em causa a factualidade provada dos pontos 6., 7.º, 8.º e 9.º.

Na tese argumentativa suporte do recurso, aduz essencialmente o recorrente que, perante a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, o juízo de convencimento do julgador do tribunal de 1.ª instância, se ancorou, indevidamente, nas declarações da assistente e no depoimento da testemunha D... , em detrimento das declarações, antagónicas, do arguido.

Segundo alega, a credibilidade do depoimento da referida testemunha é destituído de credibilidade, em função do síndrome de alienação parental de que a mesma padece, acrescendo ainda que: (i) de acordo com as regras da experiência, a ameaça pressuposta no ponto 7. da factualidade provada, não é configurável com as situações objectivas referidas no ponto 8 das conclusões; (ii) em relação ao ponto 8. do acervo factológico provado, as expressões nele descritas apenas foram mencionadas pela própria assistente; (iii) quanto à agressão, confirmada apenas pela assistente e testemunha D..., as declarações do arguido são compagináveis com os esclarecimentos prestados, em audiência, pelo perito do INML e pelo depoimento da testemunha A…; (iv) no que ao ponto n.º 9 diz respeito, as objecções contrapostas, na vertente objectiva, aos demais ponto de facto impugnados impossibilitam, desde logo, a prova do mesmo.

Como é dado ver pela simples leitura da sentença recorrida, na fixação do acervo factológico provado relevaram, fundamentalmente, as declarações da assistente e da testemunha D... , filha da assistente e do arguido, corroboradas, em parte, pelas declarações pontuais (caso da imputada agressão) da testemunha A....

Passando à análise do conteúdo da prova, o arguido negou a totalidade dos factos que lhe estão imputados, nomeadamente os que constituem o objecto da impugnação recursória (cfr. declarações prestadas a final na sessão de julgamento dia 05-11-2009).

Em suma, rejeitou que, no circunstancialismo descrito na acusação (para a qual a pronúncia remete), tivesse dirigido à assistente qualquer uma das expressões que lhe são imputadas e, cingindo-se ao acto de agressão física, segundo disse, apenas fez a força suficiente e necessária para evitar ser agredido pela assistente.

Diversamente, a assistente descreveu, com riqueza de pormenores, a ruptura conjugal, definitiva, verificada a partir de Janeiro de 2007 e, neste contexto, revelou os factos que se foram sucedendo, como estão descritos nos pontos 6., 7. e 8. da matéria de facto provada (cfr. declarações prestadas na sessão de julgamento do dia 29-10-2009).

É evidente que, em face da posição interessada da assistente, a ditar o seu impedimento para depor como testemunha[6], é preciso usar de cautela redobrada no momento de pronunciar uma condenação baseada somente nas declarações do referido sujeito processual, sendo razoável e sensato o recurso a elementos que corroborem objectivamente as declarações prestadas.

Contudo, no caso em apreciação, e exceptuando o episódio do ponto 8., reportado às expressões injuriosas aí contidas, a versão da assistente tem, nos aspectos fundamentais e relevantes, a concorrência de corroboração objectiva de outro elemento de prova, qual seja, o depoimento da testemunha D... , filha da assistente e do arguido, prestado na sessão de julgamento de 29-10-2009.

Apesar da sua idade, apenas 14 anos na data do depoimento, D... produziu um testemunho circunstanciado dos factos, caracterizado pelo rigor e objectividade e, deste modo, merecedor de ampla credibilidade.

Deu a conhecer o conflito permanente na vida comum de seus pais e, no ano de 2007, a agudização da relação conjugal, traduzida, no que ora importa considerar, em discussões habituais entre aqueles, as quais tiveram como epílogo os factos impugnados pelo recorrente, provados sob os n.ºs 6 a 8 (aqui, com a dita excepção).

Relativamente às contradições assinaladas pelo recorrente, não as vislumbramos no depoimento da testemunha D....

Em relação aos factos do ponto 6., a testemunha foi peremptória na afirmação de que o seu pai se dirigiu a si, dizendo-lhe que a assistente era uma ladra porquanto havia subtraído determinada quantia em dinheiro de uma certa conta bancária.

Não tendo a testemunha concretizado a data desse sucesso, não é possível circunscrevê-lo temporalmente ao período das idas de D... e arguido, conjuntamente, à quinta de Orjais, durante o qual, segundo a testemunha, o arguido, repetidamente, dirigiu diversos impropérios à assistente. Tanto mais que, segundo a testemunha, embora há 3/4 anos não acompanhasse seu pai à quinta, em 2007 ainda falava, embora pouco, com aquele.

Quanto ao ponto n.º 8, embora a testemunha tivesse efectivamente referido, numa fase inicial, o que se extrai da passagem transcrita pela recorrente a fls. XIV da motivação do recurso, ou seja, que a agressão descrita naquele ponto de facto também foi determinante para que o casal tivesse deixado de partilhar o leito comum (versão que, em si mesma, é dissonante quer com as declarações da assistente[7] quer com o ponto n.º 3 da acusação), quando, de seguida, questionada pelo Sr. Juiz, admitiu não se recordar.

A proliferação de incidentes anómalos na relação do casal constituído pela assistente e arguido justifica, à luz das regras da experiência, essa menor clarividência, que não contradição, no depoimento da testemunha D....

Trazendo à colação as expressões constantes do facto 8. da matéria de facto provada, a testemunha D..., segundo o seu depoimento, estava inicialmente no interior do seu quarto, sendo, por conseguinte, admissível a omissão, pela mesma, dessa vertente factológica.

Mas as reservas contrapostas pelo recorrente à credibilidade do depoimento da testemunha D... não se ficam por aqui.

Assentam ainda no invocado quadro de dependência da testemunha D... relativamente à assistente, caracterizada por síndrome de alienação parental, bem definido cientificamente, na motivação da decisão de facto, por recurso às obras de psiquiatria infantil indicadas, como a «criação de uma relação de carácter exclusivo entre a criança e um dos progenitores, com o objectivo de banir o outro, sendo que uma criança totalmente alienada, neste contexto, é a criança que não quer ter qualquer tipo de contacto com um dos progenitores e que expressa apenas sentimentos negativos sobre esse pai e somente positivos sobre o outro, perdendo completamente o alcance da totalidade dos sentimentos que uma criança normal nutre por ambos os progenitores».

Ainda neste domínio, a valoração crítica do julgador do tribunal da 1.ª instância merece a nossa inteira concordância, já que a globalidade da prova produzida em audiência não é sequer indiciador do quadro disfuncional invocado pelo recorrente.

Efectivamente, nenhum elemento probatório minimamente credível evidencia uma posição de domínio da assistente sobre a menor D..., ao ponto de retirar consistência e objectividade ao testemunho prestado pela segunda.

Apenas as testemunhas F… e C..., ambas irmãs do arguido, atribuem o corte de relações da sobrinha D... em relação à família paterna a manipulação desta por parte da mãe, a assistente. Todavia, o seu raciocínio assenta em meras conjecturas, sem qualquer suporte fáctico minimamente demonstrado, remetendo-se à circunstância de a menor, a partir do verão de 2007 ter deixado de visitar, em companhia do pai, a quinta de Orjais e de atender o telefone e responder às mensagens que lhe enviavam. 

Aliás, em nenhum passo do depoimento da testemunha D... sobressai uma imagem negativa do pai, o arguido, determinante de narração de qualquer acontecimento não percepcionado pela mesma.

Relevante na problemática em análise é ainda o relatório psicológico de fls. 399, elaborado, em 23 de Outubro de 2008, pela psicóloga G..., donde consta, inter alia: «a relação de conflito latente entre os pais, e a presença do pai em casa em que haja relação de afecto para com a D..., tem provocado episódios de ansiedade elevada, tendo perturbado as aprendizagens escolares e respectivo sucesso. Quando o pai não está em casa a D... refere que tudo corre bem, o ambiente é calmo e ela pode andar pela casa sem medo».

Em declarações prestadas em audiência, a subscritora do dito relatório, sustentada no acompanhamento que vem dedicando à menor, no âmbito do projecto “Progride”, emitiu opinião, de índole profissional, sobre a personalidade de D..., salientando: «não é facilmente influenciável por quem quer que seja, pensa por ela».

Deu também a saber que, no decurso das diversas consultas, D... nunca mencionou ter sido influenciada no seu comportamento por qualquer um dos progenitores. «Em relação aos acontecimentos por ela vivenciados (…), remete-se muito aos factos, como ela os vê, não referindo conversas específicas».

Em suma, pese embora a normal afectação da menor D..., perante uma situação de permanente conflito entre os progenitores, a deixar inevitáveis sequelas na formação e desenvolvimento da sua personalidade, em contrário da teste argumentativa exposta no recurso, nenhum dado objectivo minimamente sustentado permite concluir a existência do quadro patológico referido pelo recorrente. 

Retomando a análise da prova, sobressai de tudo o que ficou dito uma evidência: a assistente e a testemunha D... são concordantes em relação ao núcleo fundamental da matéria de facto provada, ou seja, quanto à verificação dos factos impugnados pelo recorrente. Na apontada excepção (expressões do ponto n.º 8), se as declarações da assistente, relativamente aos demais factos, são corroboradas pelo depoimento da testemunha D..., não existe razão que obste à concessão de credibilidade, também naquele contexto, às declarações da assistente.

Quanto ao episódio da agressão física, o depoimento da testemunha A… confere ainda maior solidez às declarações da assistente e da menor D.... Desinteressadamente, deu a saber em que estado a assistente a contactou, na sua residência, há mais de dois anos, pelas 7:30 h: muito nervosa, a chorar muito, sem conseguir utilizar o telemóvel, porque o marido, segundo referia, lhe tinha agarrado e apertado o pescoço. Constatou, então, marcas típicas daquele acto no pescoço da vítima, as quais, tudo levava a crer, foram produzidas por mãos.
No mais (ponto n.º 9. da matéria de facto provada), fazendo apelo ao razoável entendimento das regras de vida, são manifestamente compreensíveis laços de continuidade lógica que permitem formular um juízo de inferência sobre o processo psíquico revelador dos elementos (intelectual e volitivo) do dolo.


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Embora não dispondo este tribunal ad quem da posição privilegiada de que gozou o tribunal de 1.ª instância na apreciação e valoração da prova, dada pela percepção dos aspectos comportamentais e das reacções dos depoentes que o princípio da imediação e da oralidade acentua[8], ainda assim, a análise, nos termos referidos, da globalidade da prova produzida em audiência de julgamento, adrede referida, garante, a nosso ver, o bem fundado da convicção do julgador do tribunal de 1.ª instância.
Daí que nenhuma alteração haja que fazer à factualidade constante da sentença recorrida, rectuis, quanto aos pontos da matéria de facto impugnados pelo recorrente no recurso interposto nos presentes autos.
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Destituída de fundamento se apresenta também a residual alusão ao princípio processual do in dubio pro reo, já que, de todo, não se antolha da fundamentação da decisão de facto – supra transcrita – qualquer estado de dúvida razoável, positiva, racional sobre o comportamento do arguido, impeditiva da convicção do julgador nos termos em que se revelou.

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6. Resulta dos fundamentos do recurso, supra reproduzidos, que a pretensão do recorrente, de ser absolvido do crime de violência doméstica que lhe está imputado, assenta apenas na sugerida, e não aceite, alteração da matéria de facto provada.
Não obstante, como demonstraremos já de seguida, afigura-se-nos não estar preenchido o tipo objectivo do crime de violência doméstica imputado ao arguido e pelo qual foi condenado em 1.ª instância.

O facto previsto na lei como crime diz-se consumado quando tiverem sido praticados os actos de execução que realizam e integram os elementos constitutivos do tipo legal de crime, produzindo as consequências previstas que preenchem o respectivo tipo; a consumação é a execução acabada e completa e a integração por inteiro dos elementos do tipo objectivo, a que pertencem sempre, além da menção do sujeito activo, a descrição de uma acção típica com a indicação do resultado (nos crimes de resultado) ou com a simples descrição da actividade (nos crimes de mera actividade)[9].

«O crime consumado é o crime «perfeito», o crime realizado; o crime realiza-se completamente, o facto criminoso preenche o tipo legal do crime, ou seja, o facto concreto corresponde ao modelo de comportamento típico que o tipo representa. O conceito de crime consumado é um conceito formal: corresponde à realização plena do tipo legal; termina o iter criminis. O crime está consumado quando se reúnam todos os elementos da sua definição legal»[10].

O crime de maus tratos/violência doméstica, com excepção dos casos em que se realiza através de um único comportamento e que em devido tempo serão objecto de análise, pressupõe uma reiteração das condutas que preenchem o respectivo tipo objectivo e que são susceptíveis de integrar, quando singularmente consideradas, outros tipos de crime: nomeadamente, injúria, ofensa à integridade física e ameaça.

De acordo com a razão de ser da autonomização do crime dos artigos 152.º, n.ºs 1 e 2 do CP [versão do Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de Março, com as alterações que sucessivamente foram introduzidas pelas Leis 65/98, de 2 de Setembro, 7/2000, de 27 de Maio, e 59/2007, de 4 de Setembro] e 152.º, n.º 1, alínea a) [redacção da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro], as condutas que integram os respectivos tipos-norma não são autonomamente consideradas enquanto, eventualmente, integradoras de um ou diversos tipos de crime; são, antes, valoradas globalmente na definição e integração de um comportamento repetido revelador de um crime de maus tratos sobre cônjuge (lei antiga) ou violência doméstica (lei nova).

Neste contexto, entre o crime do artigo 152.º e os crimes que atomisticamente correspondem à realização repetida de actos parciais estabelece-se uma relação de concurso aparente, deixando de ter relevância jurídico-penal autónoma os comportamentos que integram a prática do crime de maus tratos/violência doméstica.

Como é dito no Acórdão da Relação do Porto de 05-11-2003[11], o crime de maus tratos inclui na sua descrição típica uma pluralidade de actos parciais.

«A execução é reiterada quando cada acto de execução sucessivo realiza parcialmente o evento do crime; a cada parcela de execução segue-se um evento parcial. Porém, os eventos parcelares devem ser considerados como evento unitário. A soma dos eventos parcelares é que constitui o evento do crime único».

Tratando-se de um crime único, embora de execução reiterada, a consumação do crime de maus tratos/violência doméstica ocorre com a prática do último acto de execução.

No caso dos autos, decorrendo dos factos dados como provados pelo tribunal da 1.ª instância que o último acto singular se verificou em 23 de Outubro de 2007 (cfr. ponto 8 do acervo factológico provado), a existência do crime deve/tem de ser indagada à luz do tipo definido no artigo 152.º do Código Penal revisto pela Lei n.º 59/2007.
Dispõe esse normativo:
«1 – Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…);
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2 – No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(…)».
O artigo acabado de citar tutela a protecção da saúde, bem jurídico complexo que abrange a saúde física, psíquica e mental, o qual pode ser ofendido por toda a multiplicidade de comportamentos que afectam a dignidade pessoal do cônjuge[12].
Assim, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, para o preenchimento do tipo legal.
«O bem jurídico, enquanto materialização directa da tutela da dignidade da pessoa humana, implica que a norma incriminadora apenas preveja as condutas efectivamente maltratantes, ou seja, que coloquem em causa a dignidade da pessoa humana, conduzindo à degradação pelos maus-tratos»[13].
Trata-se de um crime específico, que impõe ao agente uma determinada relação com o agente passivo, e de execução não vinculada, podendo os maus tratos físicos e psíquicos consistir nas mais variadas acções ou omissões.
Seguindo a corrente jurisprudencial maioritária e mais recente dos nossos tribunais superiores, à realização do crime de maus tratos (lei antiga) não bastava, por regra, uma acção isolada do agente, sendo necessária uma acção plúrima e reiterada, com uma proximidade temporal entre os vários actos ofensivos, embora não se exigisse uma situação de habitualidade.
Todavia, a regra era excepcionada pela verificação de uma única acção agressiva se ela fosse suficientemente grave para afectar de forma marcante a saúde física, emocional ou psíquica da vítima.
Em suma, para a realização do crime era necessário, pois, que o agente reiterasse o comportamento ofensivo, em determinado período de tempo, admitindo-se, porém, que um singular comportamento bastaria para integrar o crime quando assumisse uma dimensão manifestamente ofensiva da dignidade pessoal do cônjuge ou equiparado[14].
É também esta a orientação que subjaz à configuração típica do novo artigo 152.º, resultante da reforma introduzida pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro, sendo que o inciso da nova lei «de modo reiterado ou não» não deixa agora qualquer dúvida quanto à posição firmada pelo legislador de pôr cobro ao dissídio doutrinal e jurisprudencial sobre a existência ou não da reiteração como elemento objectivo típico de verificação necessária, exigindo o tipo de crime, epigrafado de «violência doméstica», a prática reiterada de actos ofensivos consubstanciadores de maus tratos ou, então, um único acto ofensivo de tal intensidade, ao nível do desvalor, da acção e do resultado, que seja apto e bastante a lesar o bem jurídico protegido – mediante ofensa da saúde psíquica, emocional ou moral, de modo incompatível com a dignidade da pessoa humana[15].
No que concerne à reiteração, o critério de interpretação há-de assentar num conceito fáctico e criminológico que dê lugar a um estado de agressão permanente por parte do sujeito activo, sem que as agressões tenham de ser constantes, embora com uma proximidade temporal relativa entre si.
«É o estado de agressão permanente que permite concluir pelo exercício de uma relação de domínio ou de poder, proporcionada pelo âmbito familiar ou quase-familiar, deixando a vítima sem defesa numa situação humanamente degradante»[16].
Revertendo ao caso dos autos, revelam os factos provados a verificação, entre Janeiro de 2007 e 23 de Outubro do mesmo ano, num quadro vivencial progressivamente degradado, 3 episódios indiscutivelmente consubstanciadores de maus tratos físicos e psíquicos, praticados pelo arguido na pessoa do seu cônjuge.
No que ao caso descrito no ponto 4. da factualidade provada diz respeito, ele é manifestamente inócuo para efeito do preenchimento do tipo, como é reconhecido na sentença recorrida.
Por sua vez, as expressões do ponto 7., na falta de concretização do pretenso mal a infligir, não podem ser tidas atomisticamente como potenciadoras de crime de ameaça ou, doutro modo, de acto vexatório ou humilhante.
Nenhum dos 3 episódios juridicamente relevantes, isoladamente considerado, assume um grau de intensidade do desvalor, da acção e do resultado, incompatível com a dignidade da pessoa humana.
Afinal, situamo-nos perante expressões difamatórias e injuriosas, segundo parâmetros normais na ocorrência dos referidos crimes, e a ausência de consequências danosas decorrentes da agressão pressupõe a pouca gravidade deste acto.
Ainda mais: entendemos que se não verifica mesmo reiteração de maus tratos, porquanto, em face do acima exposto, não existe in casu um estado de agressões permanentes.
No que ora importa considerar, a actuação do arguido está limitada a dois episódios configuradores de crimes de injúria/difamação, a que acresce a situação verificada no dia 23 de Outubro de 2007, no decurso da qual o arguido proferiu novas expressões injuriosas, seguidas do acto de agressão física.
Nestes termos, a matéria de facto provada não é subsumível à previsão típica do artigo 252.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, do Código Penal.

Mas preenche, sem réstia de dúvida, os tipos objectivo e subjectivo do crime de ofensa à integridade física simples, previsto no artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal (no que tange aos factos consubstanciadores dos crimes de difamação/injúria, falta um pressuposto objectivo traduzido na não dedução de acusação particular, em conformidade como o disposto no artigo 50.º, n.º 1, do Código de Processo Penal), porquanto o arguido ofendeu o corpo da assistente M…, agindo com o intuito conseguido de a molestar fisicamente, não obstante saber que a sua conduta não lhe era permitida por lei.


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Na presente situação, não se torna necessário o cumprimento do disposto no artigo 424.º, n.º 3, do CPP, uma vez que a alteração jurídica que se regista é para um infracção que representa um minus relativamente à da pronúncia, sucedendo que o arguido teve conhecimento de todos os elementos constitutivos do novo crime e a possibilidade de exercer em plenitude o contraditório[17].

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7. Das consequências jurídicas do crime:

O crime de ofensa à integridade física simples cometido pelo arguido é punido, com pena de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.

Cabe, assim, previamente, analisar, no seguimento da orientação inserta no art. 70.º do Código Penal, se será de dar preferência à pena de multa em detrimento da pena de prisão.

O critério legal a seguir é simplesmente este: o tribunal deve preferir à pena privativa de liberdade uma pena alternativa (de multa) sempre que verificados os respectivos pressupostos de aplicação, a pena alternativa se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição.

O que o mesmo é dizer que a aplicação de uma pena alternativa à pena de prisão, no caso a pena de multa, depende tão somente de considerações de prevenção especial, sobretudo de prevenção especial de socialização, e de prevenção geral sob a forma de satisfação do «sentimento jurídico da comunidade».

«...Sendo a função exercida pela culpa, em todo o processo de determinação da pena, a de limite inultrapassável do quantum daquela, ela nada tem a ver com a questão da escolha da espécie da pena. Por outras palavras: a função da culpa exerce-se no momento da determinação quer da pena de prisão..., quer da medida da pena alternativa...» [18].

Mais adiante, na obra citada, § 500, pág. 333, escreve o mesmo ilustre professor:

«Em primeiro lugar, o tribunal só deve negar a aplicação de uma pena alternativa...quando a execução da prisão se revele, do ponto de vista da prevenção especial de socialização, necessária ou, em todo o caso, provavelmente mais conveniente do que aquela pena; coisa que só raramente acontecerá se não se perder de vista o...carácter criminógeno da prisão, em especial da de curta duração.

A prevenção geral «deve surgir aqui unicamente sob a forma do conteúdo mínimo de prevenção de integração indispensável à defesa do ordenamento jurídico..., como limite à actuação das exigências de prevenção especial de socialização. Quer dizer: desde que impostas ou aconselhadas à luz de exigências de socialização, a pena alternativa...só não será aplicada se a execução da prisão se mostrar indispensável para que não sejam postas irremediavelmente em causa a necessária tutela dos bens jurídicos e estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias»[19].

O quadro factológico provado não aponta minimamente no sentido de o arguido estar carecido de socialização, a concretizar através da aplicação de pena privativa de liberdade.

Na vertente das exigências de prevenção geral, também não se vislumbra que a preferência pela pena de multa abale o reforço da consciência jurídica comunitária e o sentimento de segurança face à violação da norma violada. A ausência de antecedentes penais leva à conclusão de a conduta do arguido ter radicado numa situação de mera ocasionalidade, num contexto de conflitualidade latente no plano conjugal.

Crê-se, por isso, que a pena de multa realiza de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, cabendo de imediato proceder à sua determinação concreta.

Preceitua o art. 40.º, do Código Penal, que «a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1), sendo que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa» (n.º 2).

O art. 71.º do mesmo diploma, estipula, por outro lado, que «a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção» (n.º1), atendendo-se a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, deponham a favor ou contra ele (n.º 2 do mesmo dispositivo). 

Dito de uma outra forma, a função primordial de uma pena, sem embargo dos aspectos decorrentes de uma prevenção especial positiva, consiste na prevenção dos comportamentos danosos incidentes sobre bens jurídicos penalmente protegidos.

O seu limite máximo fixar-se-á, em homenagem à salvaguarda da dignidade humana do condenado, em função da medida da culpa revelada, que assim a delimitará, por maiores que sejam as exigências de carácter preventivo que social e normativamente se imponham.

O seu limite mínimo é dado pelo quantum da pena que em concreto ainda realize eficazmente essa protecção dos bens jurídicos.

Dentro destes dois limites, situar-se-á o espaço possível para resposta às necessidades da reintegração social do agente.

Assim, ponderando:

- A acentuada gravidade da violação jurídica em que o arguido incorreu, por a agressão ter sido perpetrada contra o seu cônjuge e na presença de filha menor;

- O motivo determinante da conduta, conexionado com a degradação da relação conjugal;

- O acentuado conhecimento e intensidade da vontade no dolo (directo) revelado;

- A ausência de antecedentes penais por parte do arguido;

- A condição pessoal do arguido e a sua situação económica, acima descritas;

julgamos adequada a pena de 120 dias de multa, à razão diária de € 8.


*
8. Da responsabilidade pelas custas:
Face à parcial improcedência do recurso, o arguido é responsável pelo pagamento de custas, ao abrigo do disposto nos arts. 513.º, n.º 1 e 514.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal e arts. 82.º, n.º 1 e 87.º, n.ºs 1, al. b), e 3, do Código das Custas Judiciais.

Tendo em conta a complexidade do processo e a condição económica do arguido, fixa-se a taxa de justiça em 3 UC.



III - Dispositivo:

Posto o que precede, os Juízes que compõem a secção criminal deste Tribunal da Relação de Coimbra concedem provimento parcial ao recurso e, em consequência, decidem:

- Absolver o arguido J... da prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, que lhe está imputado;

- Condenar o arguido J..., pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa, à razão diária de € 8.

Custas pelo arguido, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC.

*
(Processado e integralmente revisto pelo relator, o primeiro signatário)

Coimbra, 28 de Abril de 2010
……………………………………...
(Alberto Mira)

……………………………………...
(Elisa Sales)


  


[1] Sobre este tema veja-se, entre outros, em http://www.paisparasempre.eu/artigos/alienacao/sap.html: The Long-Term Effects of Parental Alienation on Adult Children: A Qualitative Research Study, Amy J. L. Baker
The American Journal of Family Therapy, 33:289–302,
2005; Behaviors and Strategies Employed in Parental Alienation: A Survey of Parental Experiences, Amy J. L. Baker & Douglas Darnall, Journal of Divorce & Remarriage, Vol. 45(1/2) 2006; Patterns of Parental Alienation Syndrome: A Qualitative Study of Adults Who were Alienated from a Parent as a Child, Amy J. L. Baker, The American Journal of Family Therapy, 34:63–78, 2006; The Power of Stories/Stories about Power: Why Therapists and Clients Should Read Stories About the Parental Alienation Syndrome, Amy J. L. Baker, The American Journal of Family Therapy, 34:191–203, 2006; The Unbreakable Chain under Pressure: The Management of Postseparation Parental Rejection, Dale Clarkson & Hugh Clarkson, Journal of Social Welfare & Family Law Vol. 28, Nos 3–4, September–December 2006, pp. 251–266; Knowledge and Attitudes About the Parental Alienation Syndrome: A Survey of Custody Evaluators, Amy J. L. Baker, The American Journal of Family Therapy, 35:1–19, 2007; Confusion and Controversy in Parental Alienation, Hugh Clarkson & Dale Clarkson Journal of Social Welfare & Family Law Vol. 29, Nos. 3–4, September–December 2007, pp. 265–275; Intervención Ante el Síndrome de Alienación Parental - Intervention in Parental Alienation Syndrome, Asunción Tejedor Huerta, Anuario de Psicología Jurídica, Volumen 17, año 2007. Págs. 79-89. ISSN: 1133-0740; O que pode ser feito para diminuir a implacável hostilidade que leva à Síndrome de Alienação Parental? Tradução do artigo: What Can Be Done To Reduce the Implacable Hostility Leading to Parental Alienation in Parents? (Lowenstein, 2008), disponível em: http://www.parental-alienation.info/publications/49-whacanbedontoredtheimphosleatoparaliinpar.htm.
[2] Prof. Cavaleiro de Ferreira, Curso de Processo Penal, Vol. I, pág. 211.
[3] Cfr., Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, Vol. I, pág. 202-206.
[4] Cfr. Prof. Castro Mendes, Do Conceito de Prova em Processo Civil, pág. 302.
[5] Paulo Saragoça da Mata, A livre Apreciação da Prova e o Dever de Fundamentação da Sentença, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Organizadas pela Faculdade da Universidade de Lisboa e pelo Conselho Distrital de Lisboa da Ordem dos Advogados, com a colaboração do Goerthe Institut, Almedina, pág. 261-279. 
[6] Cfr. art. 133.º, n.º 1, al. b), do CPP.
[7] Donde decorre que a mesma passou a dormir no quarto de sua filha a partir de Janeiro de 2007.
[8] Cfr. António Geraldes, Impugnação da matéria de facto e poder-dever da Relação em recurso versando matéria de facto, Julgar, n.º 4, pág. 74, como a experiência o demonstra frequentemente, tanto ou mais importante que o conteúdo das declarações é o modo como são prestadas, as hesitações que as acompanham, as reacções perante as objecções postas, a excessiva firmeza ou o compreensível enfraquecimento da memória, sendo que a mera gravação dos depoimentos não permite o mesmo grau de percepção das referidas reacções que, porventura, influenciaram o juiz da primeira instância. Existem aspectos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas são percepcionados, apreendidos, interiorizados por quem os presencia e que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção. Com efeito, o sistema não garante de forma perfeita quanto a que é possível na 1.º instância, a percepção do entusiasmo, das hesitações, do nervosismo, das reticências, das insinuações, da excessiva segurança ou da aparente imprecisão, em suma, de todos os factores coligidos pela psicologia judiciária e de onde é legítimo ao tribunal retirar argumentos que permitam, com razoável segurança, credibilizar determinada afirmação ou deixar de lhe atribuir qualquer relevo.
[9] Cfr. Acórdão do STJ de 04-06-2003, processo n.º 03P1528, publicado no sítio www.dgsi.pt.
[10] Germano Marques da Silva, Direito Penal Português, Editorial Verbo, 1998, pág. 235/236.
[11] Publicado na Colectânea de Jurisprudência, Ano XXVIII, tomo V/2003, pág. 220/230.
[12] Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, tomo I, pág. 332, a propósito do crime de maus tratos na lei antiga. No mesmo sentido, no domínio da lei nova, Plácido Conde Fernandes, Violência Doméstica, Novo quadro penal e processual penal, Revista do CEJ, n.º 8, 1.º semestre, pág. 305.
[13] Plácido Conde Fernandes, idem, pág. 305.
[14] Neste sentido, v.g., o Acórdão do STJ de 06-04-2006, Colectânea de Jurisprudência, Ano XIV, Tomo II, pág. 166 e ss., e os diversos arestos no mesmo referidos; Acórdãos da Relação do Porto de 29-09-2004, Colectânea, Ano XXIX, tomo IV, pág. 210 e ss.; Acórdãos da Relação de Lisboa de 13-01-2004 (proc. 7506/2003-5) e da Relação de Coimbra de 13-06-2007 (proc. 426/05.3GAMMV.C1) e 26-06-2007 (proc. 256/05.2GCAVR.C1), estes publicados, em texto integral, no sítio www.dgsi.pt. 
[15] Cfr. Plácido Conde Fernandes, ibidem, pág. 308.
[16] Cfr. Plácido Conde Fernandes, ob. cit., pág. 306/7.
[17] Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, anotado e comentado, 15.ª edição, p. 696, nota 3. Em casos similares, vejam-se ainda os Acórdãos do STJ de 02-05-2002, 07-11-2002, 06-04-2006, 14-06-2006 e 31-10-2007, todos publicados, em sumário ou texto integral, em www.dgsi.pt.
[18] Cfr. Jorge de Figueiredo Dias, As consequências Jurídicas do Crime, § 497 e 499, págs. 331 e 332.
[19] Idem, pág. 333.