Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
33/07.6PTCBR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FERNANDO VENTURA
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
DANOS EMERGENTES
NEXO DE CAUSALIDADE
PERDA DO DIREITO À VIDA
INDEMNIZAÇÃO POR DANOS NÃO PATRIMONIAIS
Data do Acordão: 12/03/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE COIMBRA – 1.º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 483°, 496°, 562°, 563°, 564° DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: I. - De acordo com o disposto no artº 563º do CC, a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão, com o que se acolheu na nossa ordem jurídica a doutrina da causalidade adequada.
II. – A contratação de uma empregada para realização dos trabalhos domésticos efectuados pela decessa não é abrangida pela obrigação de indemnizar se o cônjuge sobrevivo não necessitasse de forma absoluta, por estar dependente do apoio e assistência, que lhe viesse sendo prestada.
III. – Com a portaria nº 377/2008, de 26/5 procurou-se corresponder à exigência legal de formulação pelas seguradoras de «proposta razoável», constante artº 38º e 39º do D.L. 291/2007, de 21/8. Não se trata, como resulta claramente do nº2 do seu artº 1º, do estabelecimento de limites máximos para as indemnização mas sim, e ao invés, de limites mínimos para as propostas a formular pelas seguradoras,
Decisão Texto Integral: Relatório


Nos presentes autos com o nº 33/07.6PTCBR do 1º Juízo Criminal de Coimbra, por sentença proferida em 21/05/2008, foi o arguido … condenado pela prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelos artºs. 137º, nº1 e 58º do C.P., na pena de 12 meses de prisão, substituídos por prestação de trabalho a favor da comunidade por 360 dias, e pela prática de contra-ordenação p. e p. pelos artºs. 103º, nºs 2 e 4, 138º, 145º, al. i) e 147º, todos do C.E., na sanção acessória de inibição de conduzir pelo período de 3 (três) meses.
Mais foi julgado parcialmente procedente o pedido de indemnização civil deduzido por …, … e … e condenada a demandada A..., Companhia de Seguros S.A. a pagar-lhes a quantia de €298.595,73 (duzentos e noventa e oito mil, quinhentos e noventa e cinco euros e setenta e três cêntimos), acrescido de juros moratórios, à taxa de 4%, desde a notificação até integral pagamento. Esse montante abrange as seguintes parcelas:

Despesas com funeral                                  €2.936,43
Habilitação de herdeiros€237,20
Despesas com empregada doméstica por 7,5 anos€48.930,00
Lucros cessantes€121.492,00
Dano morte €50.000,00
Dano não patrimonial do cônjuge€25.000,00
Dano não patrimonial do filho Gonçalo€30.000,00
Dano não patrimonial do filho Ricardo€20.000,00

Inconformada com essa condenação, veio a demandada A..., Companhia de Seguros S.A. interpor recurso, extraindo da motivação as seguintes conclusões:
1ª De acordo com o teor dos depoimentos prestados em Audiência e dos documentos juntos aos autos pela Segurança Social, o Tribunal a quo devia ter considerado os factos descritos no ponto 16 como não provados.
2ª Para que haja obrigação de indemnizar têm de ser preenchidos os requisitos próprios dessa obrigação, ou seja: o facto; a ilicitude; a culpa, o dano e o nexo causal entre o facto e o dano.
3ª Uma vez examinada criticamente a prova constante nos presentes autos, este Venerando Tribunal concluirá que entre a contratação de uma empregada doméstica, efectuada pelos Demandantes, e o acidente em discussão não existe nexo de causalidade.
4ª O dano que os Demandantes suportam com o pagamento das remunerações daquela profissional não é consequência do facto ilícito e culposo que alegadamente terá sido praticado pelo condutor do veículo automóvel cuja responsabilidade civil estava transferida para a ora Recorrente.
5ª De acordo com as informações prestadas nos autos pela Caixa Geral de Aposentações, o Demandante …, na qualidade de viúvo de …, recebe mensalmente uma pensão de sobrevivência, no valor de € 448,78. Ou seja, continua a receber uma parte da pensão de reforma recebida por aquela beneficiária.
6ª Em conformidade, o prejuízo dos Demandantes a titulo de lucro cessante restringe-se à diferença entre os 2/3 que a falecida … reservaria para a família (€ 578,53) e o montante agora recebido pelo Demandante … (€ 448,78). Assim, os Demandantes apenas deixam de usufruir de uma quantia mensal de € 129,75.
7ª No âmbito destes autos, os Demandantes recebem de uma só vez o montante que alegadamente lhes era reservado, em parcelas mensais e distribuídas ao longo de quinze anos.
8ª Atendendo a tal realidade, sobre o valor calculado aritmeticamente tem de incidir um desconto (que face ao custo de vida do país será de, pelo menos, 1/4 daquele montante) para evitar enriquecimento injustificado, ou seja, impedir que os Demandantes Recorridos recebam os juros e mantenham o capital intacto.
9ª A falecida … tinha, à data do acidente, 65 anos de idade e estava já aposentada.
10ª De acordo com o disposto na Portaria n.° 377/2008, de 26 de Maio, o montante indemnizatório apropriado, no que se refere ao direito à vida, para um escalão etário fixado entre os 50 e os 75 anos, é de € 40.000,00. Distante fica o montante de € 50.000,00 fixado na sentença recorrida.
11ª Da prova constante dos autos resulta que os Demandantes … e … viviam em coabitação com sua mãe e com ela tinham uma relação de grande afecto e proximidade.
12ª Não é adequado diferenciar o montante indemnizatório atribuído a cada um destes Demandantes tendo em conta que se valora aqui, essencialmente, a angústia e a dor que a perda da mãe lhes causa.
13ª A referida Portaria n° 377/2008 prevê um montante adequado à compensação por danos morais de filhos, com mais de 25 anos de idade (como é o caso) fixado em € 10.000,00.
14ª O Tribunal a quo, ao decidir como decidiu, violou as disposições conjugadas dos artigos 483°, 496°, 562°, 563°, 564° do Código Civil.
TERMOS EM QUE
Devem as presentes conclusões proceder e, em consequência, alterar-se a matéria de facto considerada provada e revogar-se a decisão quanto ao montante indemnizatório que deverá ser reduzido para o valor global de € 108.609,36.
Os demandados apresentaram resposta, terminando da seguinte forma:
De acordo com o teor dos depoimentos prestados em Audiência e dos documentos juntos aos autos não se encontram quaisquer contradições quanto à data da admissão da empregada doméstica.
A sua contratação fora efectuada em Março, face à dificuldade sentida pelos Demandantes, em consequência do falecimento da esposa/mãe.
Cumpre-se, assim, a existência de nexo de causalidade, para a obrigação de indemnização, entre o facto e o dano, isto é, entre a contratação da empregada pelos A.A. e o facto ilícito e culposo do condutor, que determinou a perda da única "mulher da casa".
Pois se aquela fatalidade não tivesse sucedido o dano provocado ao lesado "provavelmente não o teria sofrido se não fosse a lesão".
A responsabilidade por danos emergentes deve assim abranger os valores despendidos com a contratação de empregada doméstica, bem como os valores salariais vincendos relativamente àquela.
Quanto aos danos patrimoniais que são devidos a título de lucros cessantes, devem por si considerar a realidade inflacionária que lhes são inerentes no futuro.
Os montantes indemnizatórios atribuídos pelo Tribunal a quo por danos não patrimoniais, atendendo ao Principio da Imediação e o Principio da livre apreciação da prova, consideram-se ponderados, criteriosos e equitativos.
A Portaria n.º 377/2008, de 26 de Maio apenas apresenta critérios orientadores mas não imperativos, o que não obsta que face ao caso concreto, se estabeleçam compensações superiores.
O dano morte deve assim consubstanciar o valor de € 50.000 de modo a ser cumprida a justiça do caso concreto.
Bem como, os valores fixados para o filho … e …, nos valores de €20.000 e € 30.000 respectivamente.
Justificando-se tal diferenciação perante a sua situação delicada como doente oncológico, visto "não ter autonomia" e a sua mãe ser "as suas pernas, que o acompanhava para todo lado". De modo que este sofrera uma perda e forçada privação do apoio incontestável e insubstituível da sua mãe
Termos em que:
Deve o recurso improceder completamente, mantendo-se o decidido em 1ª instância.
Fundamentação
Âmbito do recurso
É pacífica a doutrina e jurisprudência[i] no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso[ii].
O recurso em apreço circunscreve-se à parte da decisão que apreciou o pedido de indemnização civil. Tendo em atenção essa dimensão do objecto do processo, impugna-se a decisão constante do ponto 16 dos factos não provados; sustenta-se que não existe nexo de causalidade entre a contratação de empregada doméstica e o acidente; pretende-se a redução da indemnização por lucros cessantes; e, finalmente, consideram-se exagerados os montantes atribuídos pela perda do direito à vida e em compensação dos danos não patrimoniais sofridos pelos dois filhos da vítima.
Apreciação
Da decisão recorrida
Para a decisão das questões colocadas importa naturalmente tomar os factos dados como provados na decisão recorrida:
No dia 28.02.2007, pelas 21:00 horas, na Rua do Brasil, em Coimbra, o arguido conduzia o veículo automóvel, ligeiro de passageiros, marca “Opel” e modelo “Astra”, de matrícula XX-XX-AA, no sentido Calhabé – Portagem.
Nas proximidades do prédio com o n.º 346, dessa mesma rua, antecedendo-o, considerando o sentido seguido pelo veículo conduzido pelo arguido, existia, e existe, no local, e devidamente assinalada no solo, uma passagem de peões (passadeira).
Nas mesmas circunstâncias de tempo e lugar, vinda da esquerda para a direita, atento o sentido seguido pelo veículo conduzido pelo arguido, … atravessava a via, a pé sobre a referida passagem de peões;
Já a mesma tinha atravessado a primeira metade da via, encontrando-se a atravessar a segunda metade, sempre sobre a passagem de peões, quando sofre o embate da parte da frente, lado esquerdo do veículo conduzido pelo arguido, sendo projectada para a frente, com a força do choque, a cerca de 1,90 metros do traço contínuo que precede a passagem de peões no sentido Portagem – Calhabé, onde acabou por se imobilizar, estatelada no solo, com o corpo a 2,40 m do passeio;
Como consequência desse embate, projecção e queda, … sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia, designadamente lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, que lhe causaram directa e necessariamente a morte.
O local onde ocorreu o embate/acidente estava iluminado, era (e é) de traçado recto e podia (e pode) avistar-se a via de rodagem em toda a sua largura numa extensão superior a 50 metros, medindo 7, 50 metros de largura, dividida em duas faixas, com trânsito em ambos os sentidos e ladeada de passeios de ambos os lados;
O piso era asfaltado, em estado de conservação, e encontrava-se seco;
O arguido agiu livre e conscientemente;
Sabia que tal conduta lhe era proibida por lei.
Aufere cerca de € 606 líquidos mensais (reforma); vive só, em casa própria; tem o 7.º ano de Liceu; dá o seu assentimento a PTFC;
Não se lhe conhecem antecedentes criminais nem contra-ordenacionais.
Do pedido cível:
… veio a falecer no dia 1.03.2007, pelas 16.20 horas, nos HUC;
Vivia com … (nascido a 17.02.44 ), com quem era casada, em regime de comunhão de adquiridos, e com os dois únicos filhos, … (solteiro, nascido a 13.09.75 ), e … ( solteiro, nascido a 4.08.78 ).
Com despesas do funeral de … despenderam os AA. € 2 936,43; e
Para obterem a habilitação de herdeiros a quantia de € 237,30;
Por força da morte da esposa e mãe dos AA., respectivamente, única mulher do lar, tiveram estes de contratar uma empregada, …, para fazer face às lides domésticas (v.g. tratamento de roupas, limpeza, refeições, etc.), que até então eram realizadas por …;
Despendem com a empregada doméstica, desde Março de 2007, inclusive, cerca de € 466 mensais (391,64 como vencimento líquido e 74,36 como contribuição para a segurança social);
… nasceu a 9.09.1941 e era saudável, com alguns problemas a nível ósseo;
Recebia da Caixa Geral de Aposentações a pensão mensal de € 867,80 líquidos.
…, … e … sofreram dor, angústia, tristeza, vazio e desnorte com a perda da esposa e mãe, respectivamente;
… sofreu inclusive uma depressão;
…, por sua vez, tinha na mãe o seu permanente apoio nos seus afazeres diários, sendo esta quem mais o apoiava e o acompanhava ao hospital e aos tratamentos que fazia por sofrer de doença do foro oncológico.
Por contrato de seguro, titulado pela Apólice 45/00009576/05, e em vigor à data do acidente, o arguido, proprietário do veículo que conduzia, havia transferido para a A..., Companhia de Seguros, SA, a responsabilidade civil decorrente da circulação do veículo automóvel por danos causados a terceiros, pelo capital de € 750 000.
Da impugnação da decisão em matéria de facto
A primeira dimensão de discordância relativamente à condenação dirige-se à decisão em matéria de facto, pretendendo a seguradora recorrente a modificação da decisão constante do ponto 16º dos factos provados.
Nos termos do artº 428º do CPP, as relações conhecem de facto e de direito, podendo modificar a decisão de facto quando a decisão tiver sido impugnada nos termos do artº 412º, nº3 do mesmo código. Para tanto, deve o recorrente especificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados e as provas que impõem decisão diversa da recorrida. Face ao nº4, a especificação relativas às provas faz-se por referência ao consignado na acta de julgamento, devendo o recorrente indicar as concretas passagens em que se funda a impugnação.
Importa salientar que o recurso da matéria de facto não constitui um novo julgamento, mas sim remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, expressamente indicados pelo recorrente. Porém, se é certo que assim se impõe um limite ao recorrente, o tribunal de recurso não está impedido de oficiosamente conhecer de todos os erros que não impliquem reformatio in pejus, mesmo os não especificados, visto que no processo penal rege o princípio da verdade material. Por outro lado, no controle da matéria de facto, não se devem descurar os princípios da livre apreciação da prova e da imediação, que estão na essência da decisão da 1ª instância, mas tais princípios não são um obstáculo inultrapassável, antes um dos muitos factores que o tribunal de recurso tem de ponderar na altura de modificar ou não a matéria de facto provada[iii].
Tomando o corpo das motivações, verifica-se que são transcritas diversas passagens dos depoimentos de …, …, compreendendo-se que o recorrente considera que esses elementos probatórios, conjugados com a informação da segurança social, colocaram em crise aquela parte da decisão. Ao invés, os demandantes chama à colação, em apoio da decisão, segmentos, que igualmente transcrevem, dos depoimentos de …, …, …, … e ….
Ouvidos tais meios de prova e ponderados os segmentos que os sujeitos processuais concretizaram, entendemos que a decisão recorrida não merece censura nesse ponto. Emerge de todos os contributos probatórios, em particular do que foi dito pelo marido e irmã da vítima, mas também do depoimento de … e …, que a falecida … sempre assegurou o acervo de tarefas usualmente denominado lides domésticas, sem recurso ao apoio de qualquer pessoa especificamente contratada para esse efeito. Foi o que aconteceu mesmo no período em que acompanhou o filho … em tratamentos do foro oncológico, como resulta do depoimento de …. Nesse contexto, a experiência comum diz-nos que só uma alteração profunda da organização familiar levaria à contratação de empregada doméstica, para mais com horário completo. Trata-se não só de decisão com custos relevantes, mas também de decisão que pressupõe avaliação cuidada da idoneidade da pessoa que passará a ter acesso ao espaço doméstico. Ora, todos os contributos probatórios convergem na indicação de que essa contratação, a tempo inteiro, foi consequência do súbito desaparecimento de …, sem que se encontre outra explicação.
A recorrente apela para o que apelida de contradições mas que, na realidade, mais não são do que pequenas hesitações de quem pretende corresponder à verdade mas não consegue reconstruir todos os detalhes temporais. Tais hesitações não colocam em crise a indicação clara de … de que foi contratada após o acidente e para desempenhar as tarefas que antes eram desenvolvidas pela vítima. Note-se que tal declaração não importa contradição necessária com o documento emitido pela segurança social, mormente aquele de fls. 208, surgindo como plausível a explicação apresentada por …: na altura da inscrição em Março pagou as contribuições dos meses anteriores, levando a que o registo da segurança social associasse – presumisse - o início da prestação de trabalho a momento anterior ao correcto. Aliás, caso essa contratação tivesse acontecido em vida de …, a sua caracterização indica que teria sido ela própria, e não a irmã, a efectuar a declaração junto da segurança social.
Em suma, apreciados os meios de prova indicados pelo recorrente, não existe fundamento para este Tribunal afirmar a evidência de erro de julgamento, devendo, então, manter-se a decisão que, com toda a panóplia de elementos de avaliação que só a imediação proporciona, considerou reunida certeza firme[iv] para afirmar como provados os factos constantes do ponto 16.
 Indemnização por danos emergentes
Para além da impugnação da decisão inscrita no ponto 16 dos factos provados, sustenta a recorrente a inexistência de nexo de causalidade entre a contratação de empregada doméstica e o acidente. Contrapõem os demandantes que esse nexo existe, dizendo que se trata de dano que «provavelmente» não seria sofrido se não fosse a lesão.
A decisão recorrida fundou a atribuição das despesas com empregada doméstica no disposto no artº 495º, nº1, do CC, com os seguintes considerados:
Importa, no entanto, relativamente ao item empregada doméstica, referir que se a necessidade da sua contratação resultou da “falta” da mulher da casa, …, que era quem realizava as lides domésticas (v.g.: tratamento de roupas, limpeza, refeições, etc. ), se considerarmos a idade desta (65 anos) e o seu estado de saúde (saudável, com alguns problemas a nível ósseo, próprios da idade) e a esperança média de vida, que em Portugal ronda agora os 80 anos de idade, não era expectável que continuasse a ter disponibilidade e capacidade física para efectuar essas tarefas para além do meio do período de vida restante previsível ( no que a previsibilidade humana, considerando as regras da experiência e o desenvolvimento das ciências médicas, é susceptível de abarcar ). Assim, considera-se que as despesas a este item concernentes devem abarcar um período de 7,5 anos, o que perfaz € 48 930 ( € 466 x 14 = € 6 524 x 7,5 anos).
De acordo com o disposto no artº 563º do CC, a obrigação de indemnizar só existe em relação aos danos que o lesado não teria sofrido se não fosse a lesão, com o que se acolheu na nossa ordem jurídica a doutrina da causalidade adequada. Ora, como assinala Vaz Serra[v], «Não podendo considerar-se como causa em sentido jurídico toda e qualquer condição, há que restringir a causa àquelas condições que se encontrem para com o resultado numa relação mais estreita, isto é, numa relação tal que seja razoável impor ao agente responsabilidade por esse mesmo reflexo».
Tomando o caso em apreço, decorre dos factos provados que o demandante marido sentiu necessidade de colmatar o desempenho de tarefas antes realizadas pela esposa, para o que recorreu a empregada doméstica. Porém, não emerge dos factos provados que o demandante seja incapaz de as desempenhar, o que significa que a decisão de contratação respondeu a exigências de conforto e não de carência de assistência, como aconteceria, por exemplo, se estivesse acamado e dependente do apoio da falecida.
Como decidiu o STJ em 10/07/2008, perante problema idêntico ao aqui colocado, «pese embora se deva considerar que a actividade doméstica de quem é mulher casada e mãe, pode ter uma expressão pecuniária, cremos que considerar essa actividade como um serviço doméstico desenquadrado das relações familiares, onde hoje por hoje, é socialmente despropositada a consideração de “papéis” ou tarefas, que competem por via do género, exigir indemnização pela privação do “serviço doméstico” prestado ao filho e ao marido, além de ser socialmente objectável, juridicamente não tem qualquer fundamento, muito menos numa perspectiva de contribuição para os encargos da vida familiar – art. 1676º do Código Civil». Logo, não se pode considerar que, perante a ordem jurídica vigente, o demandante marido tenha adquirido com o casamento o direito, de conteúdo patrimonial, à assistência nas lides domésticas por parte do cônjuge mulher. Ambos os cônjuges estão adstritos a contribuir por igual também nesse domínio.
Assim, nos mesmos termos do supra referido aresto, também nós «entendemos (...) que, numa perspectiva de relação causa-efeito, em função da pretensa existência de dano ou prejuízo, como causa adequada de actuação ilícita, tal relação não existe e, como tal, o pretenso dano patrimonial emergente da necessidade de contratação de pessoa que executa as tarefas que a vítima executava não constitui dano indemnizável, em termos de causalidade adequada»[vi]. Estamos perante danos indirectos ou reflexos, não indemnizáveis, por não caberem no artº 495º do CC[vii], pelo que não deve subsistir a atribuição de indemnização por «despesas com empregada doméstica».
 Indemnização por privação de rendimento
Passando à questão colocada na 5ª conclusão, verifica-se que o problema colocado comporta uma vertente relativa aos fundamentos de facto – desconsideração de que o demandante … aufere pensão de sobrevivência na qualidade de viúvo de …, no valor mensal ilíquido de €448,78 – e outra no plano do Direito - a redução do montante deixado de auferir à diferença entre a parcela de 2/3 da quantia recebida em vida pela vítima, dedicada ao agregado familiar, e aquela que passou a auferir o demandante marido. Por outro lado, considera a recorrente que essa quantia global deve sofrer o desconto em virtude de ser recebida de uma única vez, avançando com a dedução de 25% «tendo em atenção o custo de vida do país».
Os demandados aceitam que a referida pensão de sobrevivência deve ser ponderada mas não o desconto proposto.
Quanto à vertente de facto, o documento de fls. 166 não deixa dúvidas: «…, aufere desde 2007-03-01, pela Caixa Geral de Aposentações, uma pensão de sobrevivência, na qualidade de viúvo da ex-aposentada nº 761168/00, …, falecida em 2007-03-01, no montante mensal ilíquido actual de €448,78», o que determina, ao abrigo do disposto no artº 431º, al. a), do CPP, o aditamento desse facto ao elenco daqueles referidos na decisão recorrida como provados.
Então, mantendo o raciocínio constante da mesma decisão, porque inteiramente ajustado, cumpre a diferença entre 2/3 da pensão anterior e o montante da pensão de sobrevivência é de €129,75 mensais. A multiplicação desse valor por 14 mensalidade e 15 anos de esperança média de vida, atinge o valor de €27.247,50 (vinte e sete mil, duzentos e quarenta e sete euros e cinquenta centavos).
Cabe, agora, apreciar a questão da correcção da antecipação de capital. Efectivamente e como salienta Sousa Dinis[viii], em todas as situações em que irá ser recebido de uma vez o que, em princípio, deveria ser recebido em fracções anuais, é necessário proceder a um desconto, sem o que será gerado enriquecimento injustificado, ainda que reduzido, correspondente à taxa de capitalização. Porém, concordando com a recorrente quanto à necessidade dessa ponderação, em obediência a imperativos de equidade, o montante proposto no recurso mostra-se fortemente exagerado. Considerando a situação actual, em que o rendimento das aplicações de capital encontra-se fortemente reduzido, e o pronunciamento mais recente neste domínio do Supremo Tribunal de Justiça[ix], essa taxa não ultrapassa os 7%.
O valor a atribuir corresponde, então, a €25.340,18 (vinte e cinco mil, trezentos e quarenta euros e dezoito cêntimos), pelo que procede aqui em parte o recurso.
Indemnização por perda do direito à vida
Prosseguindo, cabe apreciar a discordância relativa ao montante indemnizatório pela perda do direito à vida, em que se argumenta com os valores fixados em duas decisões do STJ e também com o teor da portaria nº 377/2008, de 26/5. Porém, esse diploma procura tão-somente corresponder à exigência legal de formulação pelas seguradoras de «proposta razoável», constante artº 38º e 39º do D.L. 291/2007, de 21/8. Não se trata, como resulta claramente do nº2 do seu artº 1º[x], do estabelecimento de limites máximos para as indemnização mas sim, e ao invés, de limites mínimos para as propostas a formular pelas seguradoras, o que explica, aliás, porque foram ouvidas na sua elaboração apenas entidades ligadas ao universo segurador. Porém, cabe recordar, o mesmo Estado fixou há mais de sete anos o valor devido pelo «dano morte» e pelo sofrimento gerado nos momentos anteriores ao decesso em montante próximo de €50.000,00[xi], no contexto do evento conhecido por tragédia de Entre-os-Rios[xii].
Como tem salientado o STJ, na ponderação indemnizatória pela perda do direito à vida importa ter em conta a vida em si, enquanto bem supremo e base para todos os demais, e todas as distintas dimensões e matizes que caracterizaram o falecido, designadamente «a vontade e a alegria de viver da vítima, a sua idade, a saúde, o estado civil, os projectos de vida e as concretizações do preenchimento da existência no dia a dia, designadamente a sua situação profissional e sócio-económica»[xiii].
Tomando as circunstâncias do caso em presença, mormente a idade da vítima – 65 anos, saudável, apesar de alguns problemas a nível ósseo – a sua esperança provável de vida – mais 15 anos - bem como a evolução jurisprudencial do STJ nos dois últimos anos[xiv], culminando com a indicação recente de que os montantes considerados adequados oscilam entre €50.000 e €60.000[xv] ou €70,000[xvi], entendemos que a fixação da indemnização no ponto inferior desse intervalo mostra-se inteiramente correcta.
Compensação por danos não patrimoniais
O plano final de discordância prende-se com a fixação dos danos não patrimoniais sofridos pelo marido e dois filhos da falecida. Novamente, a recorrente socorre-se da Portaria nº 377/2008 e exprime discordância relativamente à ultrapassagem do de €10.000 para cada um dos filhos.
Na fixação da indemnização por danos «morais» ou não patrimoniais devem ter-se em conta juízos de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e do lesado, no contexto da situação económica do cidadão médio e do significado do bem jurídico afectado para a vida em sociedade[xvii]. Cabe aqui ecoar o que vem sendo referido pelo mais Alto Tribunal: «sem se cair em exageros, a indemnização deve ter um alcance significativo e não meramente simbólico, impondo-se que a jurisprudência caminhe seguramente para indemnizações não miserabilistas»[xviii].
Já indicámos a irrelevância para este plano de análise judicial da referida portaria, importando considerar unicamente as especificidades em presença. Como bem salienta a decisão recorrida, a perda da mãe confrontou os demandantes filhos com o cerceamento brutal e antecipado do contacto com a progenitora, referente e farol importante mesmo na fase da vida atravessada por … – 31 anos – e … – 29 anos, aceitando-se que deva ter lugar diferenciação positiva relativamente ao primeiro, pois a essa perda juntou-se a privação da assistência em tratamentos do foro oncológico. Já não se compreende que a compensação atribuída ao filho … ultrapasse aquela fixada para o marido ….
Assim, tendo em atenção os montantes fixados em situações de privação do suporte parental[xix], entende-se adequado reduzir o montante fixado para o demandante … para €25.000, mantendo aquele fixado relativamente ao demandante …(€20.000).

III. Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal desta Relação em:
Concedendo provimento parcial ao recurso, revogar a decisão recorrida na parte que atribuiu indemnização por despesas futuras com empregada doméstica, fixar a indemnização pela privação de rendimento em €25.340,18 (vinte e cinco mil, trezentos e quarenta euros e dezoito cêntimos) e fixar a indemnização por danos não patrimoniais sofridos pelo demandante … em €25.000 (vinte e cinco mil euros), confirmando, no mais, a decisão recorrida;
Condenar a demandada recorrente e os demandantes nas custas, na proporção do decaimento.


[i] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Ed. Verbo, pág. 335 e Ac. do STJ de 99/03/24, in CJ (STJ), ano VII, tº 1, pág. 247.
[ii] Cfr., por exemplo, art.ºs 119.º, n.º 1, 123.º, n.º 2, 410.º, n.º 2, alíneas a), b) e c), do CPP e acórdão de fixação de jurisprudência do STJ de 19/10/95, publicado sob o n.º 7/95 em DR, I-A, de 28/12/95.
[iii] Ac. do S.T.J. de 17/05/2007, Pº 071397, relatado por Santos Carvalho, acessível em www.dgsi.pt. Cfr., ainda, dentre a jurisprudência mais recente do nosso mais Alto Tribunal, acessível no mesmo sítio internet, os Acs. de 23/05/2007, Pº 07P1498 (relator Henriques Gaspar), 14/03/2007, Pº 07P21 (relator Santos Cabral) e de 15/03/2007, Pº 07P610 (relator Pereira Madeira).
[iv] O que, como salienta Marina Gascón Abellán, La Argumentación en el Derecho, Ed. Palestra, 2005, pág. 384, significa em processo penal probabilidade preponderante para além de qualquer dúvida razoável e não uma certeza absoluta.
[v] Citado por Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, 1º Volume, Coimbra Ed., 3ª ed., pag. 547.
[vi] Ac. do STJ de 10/07/2008, Pº 08ª1853, relator Cons. Fonseca Ramos, www.dgsi.pt.
[vii] Abrantes Geraldes, Temas da Responsabilidade Civil, vol. II, Indemnização dos Danos Reflexos em Geral, Almedina, 2ª ed., pág. 24
[viii] Sousa Dinis, Dano Corporal em Acidentes de Viação, CJ (STJ), ano IX, tº1, 2001, p.9 e segs.
[ix] Ac. do STJ de 29-10-2008, Proc. 08P3380, relator Cons. Simas Santos, www.dgsi.pt.

[x] Diz o preceito: As disposições constantes da presente portaria não afastam o direito à indemnização de outros danos, nos termos da lei, nem a fixação de valores superiores aos propostos.
[xi] Ao montante de 10.000.000$00 correspondem €49 879.79.
[xii] Diário da República, n.º 96, 2ª série, de 24 de Abril de 2001 - resumo, parte VIII, páginas 7142.
[xiii] Ac. do STJ de 27/09/2007, Proc. 07B2737, relator Cons. Salvador da Costa, www.dgsi.pt.
[xiv] Acs. de 11/07/2007, Pº 07P1583, relator Cons. Santos Monteiro (vítima com 52 anos – fixação em €50.000); de 13/09/2007, Pº 07B2480, relator Cons. Salvador da Costa (vítima com 17 anos – fixação em €35.000); de 18/12/2007, Pº 07B3715, relator Pires da Graça (vítima com 34 anos – fixação em €60.000); de 27/11/2007, Pº 07P3310, relator Cons. Carmona da Mota (vitima com 21 anos – fixação em €40.000), de 23/04/2008, Pº 08P303, relator Cons. Oliveira Mendes (vítima com 41 anos – fixação em €50.000), de 21/05/2008, Pº 08P1616, relator Oliveira Mendes (vítima com 7 anos – fixação em €33.000), todos acessíveis em www.dgsi.pt.
[xv] Assim vem referido no Ac. do STJ de 30/10/2008, Pº08P2989, relator Pereira da Silva, www.dgsi.pt.
[xvi] Como indicado no Ac. do STJ de 10/07/2008, Pº 08P1853, relator Fonseca Ramos, www.dgsi.pt.
[xvii] Ac. do STJ de 9/10/97, in BMJ 470, pág. 221.
[xviii] Ac. do STJ de 28/02/2008, proferido no Pº. 08B388, relator Cons. Custódio Montes, www.dgsi.pt
[xix] Ac. do STJ de 23/04/2008, Pº 08P2860, relator Cons. Oliveira Mendes, www.dgsi.pt.