Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
235/05
Nº Convencional: JTRC
Relator: MONTEIRO CASIMIRO
Descritores: DÍVIDA
TRESPASSE
CONTRATO DE COMPRA E VENDA
Data do Acordão: 04/05/2005
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DA MARINHA GRANDE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA PARCIALMENTE
Legislação Nacional: ART.º 115º DO RAU E ART.ºS 342º E 879º, AL) C, DO C.C.
Sumário: Não constitui trespasse a venda, apenas, das mercadorias e dos equipamentos existentes num estabelecimento de café, sem que tenha havido transmissão da titularidade do estabelecimento e da posição do arrendatário.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

A... propôs, em 02/03/2001, pelo Tribunal da comarca de Marinha Grande, acção com processo ordinário contra B... e marido, C..., com os seguintes fundamentos, em síntese:
Em 15 de Dezembro de 1998, vendeu à ré a mercadoria existente num café pelo preço de 10 000 000$00;
Deste preço, recebeu apenas 4 500 000$00.
Em 02/04/1999 e 02/01/2000, o réu marido subscreveu dois cheques, nos valores de 1.000.000$00 e 5.000.000$00, com os nºs 3838024516 e 1138024519, tendo pago apenas 500.000$00, em relação ao valor do 1º cheque.
Termina, pedindo que, na procedência da acção, sejam os réus condenados a pagar: (a)-500.000$00, montante em dívida referente ao cheque nº 3838024516; (b)-5.000.000$00, montante do cheque nº 1138024519; (c)-26.250$00, montante dos juros vencidos sobre o cheque indicado em a) desde a data da sua emissão até 02/01/2000; (d)-417.083$00, montante de juros vencidos sobre a soma das quantias referidas em a) e b), desde 02/01/2000 até hoje, à taxa legal; (e)-os juros que sobre 5.500.000$00 se vencerem, desde a citação, até integral pagamento à taxa legal.
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Os réus contestaram e deduziram reconvenção.
Em abono da sua defesa alegaram o seguinte:
O negócio celebrado entre o autor e os réus foi o trespasse de um estabelecimento comercial de café;


Este negócio é nulo por vício de forma;
O café foi mandado encerrar por ordem da Câmara Municipal da Marinha Grande, por as suas infra-estruturas não observarem os requisitos legais;
O autor comprometeu-se a indemnizar os réus pelos prejuízos resultantes do encerramento do café durante dois meses.
Em via reconvencional pediram: a condenação do autor a restituir-lhes a quantia de 4 600 000$00, entregue por conta do trespasse do estabelecimento; a condenação do autor a pagar-lhes a quantia despendida por eles com obras no estabelecimento, no montante de 251.550$00, e a quantia de 600 000$00, a título de indemnização pelo encerramento forçado do estabelecimento.
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O autor respondeu, sustentando que as partes celebraram um contrato-promessa de compra e venda de bens imóveis, nunca tendo sido sua intenção a de celebrar um negócio de trespasse.
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Foi proferido o despacho saneador e organizada a selecção da matéria de facto considerada assente e da controvertida, sem reclamações.

Teve, depois, lugar o julgamento com gravação da prova e, decidida a matéria de facto controvertida, sem reclamações, foi proferida a sentença, que julgou a acção improcedente e parcialmente procedente a reconvenção, declarando-se que o negócio celebrado entre o autor e a ré foi um trespasse de um estabelecimento comercial (café) e que o mesmo é nulo por vício de forma, e condenando-se o autora a restituir aos réus a quantia de 22.445,91 € e os réus a restituir ao autor o estabelecimento tal como o receberam, ou, na parte onde isso não for possível, o valor correspondente, e o valor correspondente ao gozo que fizeram desse estabelecimento, valores esses a apurar em sede de liquidação.
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Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos:
Factos Assentes:
A) - No dia 15 de Dezembro de 1998, o autor e a ré mulher celebraram um contrato a que chamaram “Contrato de Promessa de Compra e Venda”,


traduzido em sete cláusulas e acompanhado de uma relação “Das Imobilizações Corpóreas” (documentos de fls. 6, 7 e 8).
B) - Nos termos do mencionado contrato, a ré pagaria ao autor a quantia global de 10.000.000$00, através de quatro cheques pré-datados, entregues ao autor na data da assinatura do mesmo contrato, assim discriminados:
1º-com a data de 02/12/1999, no valor de 3.000.000$00;
2º-Com a data de 02/03/1999, no valor de 1.000.000$00;
3º-com a data de 02/04/1999, no valor de 1.000.000$00:
4º-com a data de 02/01/2000, no valor de 5.000.000$00.
C) - Da quantia global acima referida, o autor recebeu dos réus a quantia de 4.500 000$00.
D) - O autor explorou o estabelecimento comercial de café sito na Praceta Luís de Camões, loja 9, Marinha Grande, sendo que os últimos meses em que tal sucedeu foram os meses de Novembro e Dezembro de 1998.
E) - No dia 28 de Abril de 1999, José Martins de Amorim e mulher, Maria Odete de Jesus Ramos, deram de arrendamento à ré mulher, para funcionamento de um café, a fracção autónoma onde se localizava o estabelecimento referido na alínea anterior.

Base Instrutória:
1º - Após ter explorado o estabelecimento de café atrás referido durante cerca de 8 anos, o autor decidiu passar a terceiros a sua exploração.
3º - Entrou em negociações com os réus, tendo em vista passar para os mesmos a exploração do café.
4º - O autor disse aos réus que o estabelecimento fazia por dia uma receita que variava entre os 80 e os 100 contos.
5º - Os réus ficaram com a exploração do estabelecimento a partir de Janeiro de 1999.
6º - A vontade do autor de passar a terceiros a exploração do estabelecimento e a decisão dos réus de ficarem com a exploração do estabelecimento foram formalizadas através do documento referido na al. A) dos Factos Assentes.


10º - Em 31 de Março de 1999, o estabelecimento não observava os requisitos necessários para ser concedido alvará de licença de utilização.
11º - A Câmara Municipal da Marinha Grande indeferiu o pedido de licença de utilização do estabelecimento.
19º - O autor não prometeu ao réu um lucro garantido.
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Inconformado com a decisão, interpôs o autor recurso de apelação, rematando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1- Os réus não provaram a existência de um contrato de trespasse com o autor;
2- Ficou demonstrado que o contrato existente era de compra e venda;
3- Foram violadas as seguintes normas: artº 342º do Código Civil;
4- O autor considera incorrectamente julgado os pontos 8, 9, 10, 11 e 12 da matéria de facto dada como provada;
5- Os registos magnéticos dos depoimentos das testemunhas, impõem decisão diversa da recorrida, através da análise dos seguintes segmentos: Fita 1, Lado 2, Minuto 0”00 a 12”00, pistas melhor identificadas na acta de julgamento e Fita 1, Lado 2, Minuto 12”00 a 18”00 e Fita 1 melhor identificadas na acta de julgamento;
6- O Tribunal a quo considerou que existia entre as partes um contrato de trespasse nulo por falta de forma, quando deveria ter dado este ponto como não provado e consequentemente absolver o autor do pedido reconvencional.
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Os réus não contra-alegaram.
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Colhidos os vistos legais, cumpre apreciar e decidir.
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Como é sabido, a delimitação do objecto do recurso é feita pelas conclusões da respectiva alegação, não podendo o tribunal da relação conhecer de matérias nelas não incluídas, salvo razões de direito ou a não ser que aquelas sejam de conhecimento oficioso (cfr. artºs 664º, 684º, nº 3, e 690º, nº 1, do Código de Processo Civil – diploma a que pertencerão os restantes normativos citados sem menção de proveniência).



Comecemos pela questão da impugnação da decisão proferida quanto aos pontos 1º, 3º, 4º, 5º e 6º da Base Instrutória.
Ora, tendo havido gravação da prova em audiência, pode, no regime vigente, o recorrente impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto, desde que se mostrem cumpridos os ónus impostos pelo artº 690º-A.
O que no presente caso, se verifica, tendo o impugnante indicado, na sua alegação, os concretos pontos de facto considerados incorrectamente julgados (pontos 1º, 3º, 4º, 5º e 6º) e os concretos meios probatórios que, em seu entender, impõem decisão diversa (depoimento das testemunhas Maria Olinda Mota Mendes Gameiro e Carlos Alberto Mendonça), referenciando os depoimentos em causa conforme assinalado na acta.
Pode, assim, esta Relação alterar a decisão do tribunal de 1ª instância sobre a matéria de facto, reapreciando para o efeito as provas em que assentou a parte impugnada, sem prejuízo de oficiosamente se atender a quaisquer outros elementos probatórios que hajam servido de fundamento à decisão – artº 712º, nºs 1, al. a), e 2.
De facto, o Dec.Lei nº 39/95, de 15 de Fevereiro, veio consagrar, na área do processo civil, a possibilidade da documentação das audiências e da prova nelas produzida, assim se permitindo um duplo grau de jurisdição quanto à matéria de facto.
No entanto, a garantia do duplo grau de jurisdição, como o próprio legislador refere, “nunca poderá envolver, pela própria natureza das coisas, a reapreciação sistemática e global de toda a prova produzida em audiência – visando apenas a detecção e correcção de pontuais, concretos e seguramente excepcionais erros de julgamento, incidindo sobre pontos determinados da matéria de facto, que o recorrente terá sempre o ónus de apontar claramente (…)”, - preâmbulo do aludido diploma legal.
Pois, como já tem sido dito em diversos acórdãos desta Relação, é preciso não olvidar que esta garantia não pode, em si, subverter o princípio da livre apreciação das provas, entrando na formação da convicção do julgador elementos que, de modo algum, no sistema de gravação sonora dos meios probatórios oralmente prestados – ou até de qualquer outro meio alternativo, como o da estenografia, computorização, taquigrafia, transcrição ou extracção de simples resumo dos depoimentos feita pelo juiz que preside à produção da prova – podem ser importados


para a gravação, como sejam aqueles elementos intraduzíveis e subtis, como a mímica e todo o processo exterior do depoente que influem, quase tanto como as palavras, no crédito a prestar-lhe, existindo actos comportamentais ou reacções dos depoentes que apenas podem ser percepcionados, apreendidos, interiorizados e valorados por quem os presencia, que jamais podem ficar gravados ou registados para aproveitamento posterior por outro tribunal, que vá reapreciar o modo como no primeiro se formou a convicção do julgador (cfr. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil Anotado, pág. 257, e Eurico Lopes Cardoso, BMJ 80º-220/221).
Como diz Lebre de Freitas (Código de Processo Civil Anotado, 2º, pág. 635), o princípio da livre apreciação da prova situa-se na linha lógica dos princípios da imediação, oralidade e concentração, cabendo ao julgador, por força dos mesmos, depois da prova produzida, tirar as suas conclusões em conformidade com as impressões recém colhidas e com a convicção que, através delas, se foi gerando no seu espírito, de acordo com as máximas da experiência aplicáveis.
É de harmonia com o dito princípio – e é óbvio que prova livre não significa prova arbitrária ou irracional, mas sim prova apreciada com inteira liberdade pelo julgador, em conformidade com as regras da experiência e com as que regulam a actividade mental (cfr. Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, III, pág. 245) – que as provas são apreciadas sem qualquer escala de hierarquização, de acordo com a convicção que geram no espírito do julgador acerca da existência de cada facto (cfr. Ac. R.L. de 27/03/2001, CJ, T2-87).
Como também já se aflorou, o tribunal de segunda instância não vai à procura de nova convicção, competindo-lhe, antes, averiguar se aquela foi alcançada na 1ª instância tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova, com os demais elementos existentes nos autos, pode exibir perante si (cfr. Ac. R.C, de 03/10/2000, CJ, T4-27).

Tendo em conta tais factores de risco, e uma vez que foram cumpridos os ónus impostos pelo artº 690º-A, vejamos se existem motivos para alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto no que diz respeito aos pontos 1º, 3º, 4º, 5º e 6º da Base Instrutória.



O Sr. Juiz fundamentou as respostas a esses pontos da matéria de facto essencialmente nos depoimentos das testemunhas Maria Olinda Gameiro e Carlos Alberto Mendonça, para depois extrair a conclusão de que entre o autor e a ré mulher foi celebrado um negócio de trespasse de estabelecimento comercial (de café) e, não apenas, um contrato de compra e venda de das mercadorias e equipamentos desse mesmo estabelecimento comercial.
Analisando a aludida prova testemunhal, discordamos da apreciação feita pelo Sr. Juiz no que diz respeito aos depoimentos das referidas testemunhas, visto que dos mesmos não é possível concluir pelas respostas aos mencionados pontos da matéria de facto nos termos em que foram dadas na decisão proferida sobre a matéria de facto.
Com efeito, a Maria Olinda, esposa do autor, disse que decidiram vender tudo, esclarecendo que se tratava dos bens existentes no estabelecimento.
Por sua vez, o Carlos Mendonça, técnico de contas que organizava a contabilidade do estabelecimento foi peremptório em afirmar que não houve trespasse, tendo sido vendidos apenas as mercadorias e os equipamentos, tal como consta do doc. de fls. 6 a 8.
Convém referir que as testemunhas Francisco Manuel Sousa Paredes e Maria de Fátima Gomes de Almeida foram inquiridas à matéria dos aludidos quesitos, tendo o primeiro dito que ouviu o ora autor dizer que ia deixar o café, mas que não falou em trespasse, tendo a segunda dito que houve trespasse do café, mas que não ouviu conversas sobre esse assunto.
Dos depoimentos conjugados de todas essas testemunhas somos levados a concluir que não é possível dar como provado que o autor tenha passado a exploração do estabelecimento para os réus, sendo, portanto, alteradas as respostas aos quesitos 1º, 3º, 4º, 5º e 6º da Base Instrutória, dando-se os mesmos como “não provados”.
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Com a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto nos termos atrás referidos, fica, assim, provado apenas que o autor vendeu aos réus as mercadorias e os equipamentos existentes no estabelecimento comercial por aquele explorado, pelo valor global de 10.000.000$00.


Como efeito, com a matéria de facto dada como provada não é possível concluir que tenha havido trespasse do referido estabelecimento comercial, o que é corroborado, até, pelo facto de, no dia 28/04/1999, os proprietários terem dado de arrendamento à ré mulher, para funcionamento de um café, a fracção autónoma onde se localizava o aludido estabelecimento, o que seria, no mínimo estranho se tivesse havido trespasse, uma vez que, com este, teria lugar, também, a transmissão da posição do arrendatário (ora autor), sem dependência da autorização do senhorio (cfr. artº 115º do R.A.U.).
Como efeito do contrato de compra e venda celebrado entre o autor e os réus, incumbia a estes pagarem o respectivo preço (artº 879º, al. c), do Código Civil).
O que não provaram terem feito, como lhes competia nos termos do disposto no artº 342º, nº 2, do mesmo diploma, provando-se que apenas pagaram a quantia de 4.500.000$00, estando ainda em dívida, portanto, a quantia de 5.500.000$00.
Assim, vão os réus condenados a pagar ao autor a quantia peticionada de 5.500.000$00, que corresponde agora a 27.433,90 euros, a que acrescem juros de mora, à taxa legal, desde a citação, bem como os vincendos até integral pagamento.
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Pelo exposto, acorda-se nesta Relação em, dando parcial provimento ao recurso, julgar a acção parcialmente procedente e condenar os réus nos termos acabados de referir, e julgar totalmente improcedente a reconvenção, assim revogando a sentença recorrida.

Custas a cargo do autor e dos réus, na proporção do vencido.