Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
598/06
Nº Convencional: JTRC
Relator: BRÍZIDA MARTINS
Descritores: COACÇÃO
OBJECTO DO CRIME
CONSUMAÇÃO
Data do Acordão: 04/19/2006
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COMARCA DE SEIA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO CRIMINAL
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ART.º 154º, N.º 1, DO C. PENAL
Sumário: I- No crime de coacção (crime de resultado e em que o bem jurídico tutelado é a livre determinação do indivíduo) a violência, física ou psíquica, tem por objecto imediato a própria pessoa do coagido, ou de terceiros, ou sobre coisas, quer do coagido quer de terceiros desde que o mal causado nas coisas seja idóneo a afectar sensivelmente a liberdade de acção do coagido, de forma a constranger este a adoptar o comportamento visado pelo agente.
II- O momento essencial para a consideração da consumação do ilícito verifica-se na altura em que o ofendido é violentado, sendo irrelevantes as circunstâncias posteriores a esse momento.
Decisão Texto Integral: Acordam, em audiência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Coimbra.
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I – Relatório.
1.1. Nos termos de acusação pública deduzida pelo Ministério Público, o arguido A..., já devidamente identificado nos autos, foi submetido a julgamento porquanto aí indiciado pela autoria material de um crime de coacção, previsto e punido pelo artigo 154.º, n.º 1, do Código Penal [CP].
Realizado o contraditório, veio a ser proferida sentença que, além do mais por ora não relevante, determinou a sua condenação pela autoria do assacado ilícito na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 8,00, o que perfaz a multa global de € 1.440,00.
1.2. Irresignado com o decidido, o arguido interpôs o presente recurso que, depois de motivado, contém o quadro de conclusões seguintes, tendentes a obter a revogação do decidido:
1.2.1. A ofendida tentou nestes autos que o procedimento criminal fosse extinto por desistência de queixa.
1.2.2. Também resulta assente, por declaração da própria, ter-lhe sido possível – efectuando o percurso que fizera de marcha-atrás, desde o local onde tinha a viatura inicialmente estacionada – sair do local.
1.2.3. Quando os agentes da GNR chegaram ao local, os veículos já não estavam posicionados da mesma forma, tendo o arguido o seu filho C... ao colo.
1.2.4. Não houve medo, receio, constrangimento, em suma, violência exercida pelo arguido contra a ofendida que, consequentemente, determinasse haver ela sofrido qualquer perda de liberdade de determinação.
1.2.5. Assim, da matéria assente e na qual se formou a convicção do tribunal não resulta poder extrair-se qualquer dos elementos típicos do crime de coacção, nomeadamente, o emprego de violência, previsto e punido pelo artigo 154.º do CP, nem a verificação de dolo ou ilicitude.
1.2.6. Decidindo pela condenação do arguido, a sentença recorrida fez indevida aplicação do disposto pelo citado artigo 154.º, n.º 1.
1.3. Admitido o recurso, notificado para o efeito, respondeu o Ministério Público junto da 1.ª instância, sufragando o entendimento de que o recurso não deve ser provido.
Remetidos os autos a este Tribunal, o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu parecer concordante com tal posição.
Cumpriu-se o disposto pelo artigo 417.º, n.º 2 do Código de Processo Penal [CPP].
No exame preliminar a que alude o n.º 3 do mesmo normativo consignou-se que nada obstava ao conhecimento do mérito da causa.
Colhidos os vistos dos M.mos Adjuntos, seguiram os autos para audiência, que se realizou na estrita observância do disciplinado pelo artigo 423.º do CPP.
Cabe agora apreciar e decidir.
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II – Fundamentação de facto.
2.1. A matéria de facto considerada como provada na decisão recorrida foi a seguinte:
2.1.1. O arguido foi casado com B....
2.1.2. Por sentença de 9 de Janeiro de 2002, proferida nos autos de divórcio litigioso n.º 154/2001, do 1.º Juízo deste tribunal, foi decretado o divórcio entre ambos, em virtude dos conflitos e maus-tratos constantes de que aquela era vítima.
2.1.3. Daquele casamento, nasceu um filho – C... –, tendo o exercício do respectivo poder paternal sido objecto de acção judicial, vindo a ser confiado à citada B....
2.1.4. Porém, mesmo após ter sido decretado o dito divórcio e regulado o exercício do poder paternal em relação ao dito menor, o arguido continuou a manter um relacionamento conflituoso com aquela B..., tendo como cerne do conflito o exercício do poder paternal relativamente ao C....
2.1.5. No dia 3 de Maio de 2002, por volta das 18 horas, a referida B... encontrava-se a fazer compras no supermercado Intermarché, nesta cidade de Seia.
2.1.6. Encontrava-se acompanhada com o seu filho, o mencionado C....
2.1.7. O arguido ia telefonando para o seu telemóvel, onde deixava mensagens do seguinte teor: «que estava farto de tribunais, que a havia de encontrar e matar».
2.1.8. A referida B... dirigiu-se então para o veículo automóvel de matrícula 29-21-TI, no qual se fizera transportar, que estava estacionado no parque daquele supermercado, colocou-se ao volante, ligou a ignição e arrancou.
2.1.9. Nesse momento, o arguido, conduzindo um veículo automóvel da marca Ford, modelo Focus, interceptou a sua trajectória colocando a frente do carro por si conduzido a cerca de 1,5 metros da frente do carro conduzido por aquela B....
2.1.10. Imediatamente atrás do TI, no momento assente em 9), existia um fosso, imediatamente, à sua direita, um armazém de botijas de gás, e, à esquerda, um espaço livre com cerca de 2 metros de largura.
2.1.11. O arguido, logo após, saiu da viatura por si conduzida, desferiu um murro na viatura conduzida por aquela B... e, aproximando-se desta B..., mostrou-lhe uma notificação do tribunal e disse-lhe: «tu vais pagar por isto».
2.1.12. O arguido sabia que, ao utilizar o veículo por si conduzido, da forma assente em 9) – na decisão recorrida, por lapso manifesto, que se corrige, exarou-se “8” –, perturbava a capacidade de decisão da condutora do TI, provocando-lhe receio e inquietação.
2.1.13. O arguido, ao actuar da forma descrita em 9) – ibidem –, sabia que estava a impedir a livre circulação daquela B..., forçando-a a parar e a interromper a sua marcha, contra a sua vontade, de forma intencional e sem qualquer justificação.
2.1.14. O arguido, ao proceder da forma assente em 9) – ibidem –, fê-lo de forma livre, voluntária e consciente de que a sua conduta era censurável e punida por lei como crime.
2.1.15. Entretanto, acabou por chegar ao local uma patrulha da GNR, chamada, via telemóvel, por aquela B....
2.1.16. O arguido tem averbado no seu CRC as seguintes condenações:
- Por sentença de 22.02.2000, do 2.º Juízo do Tribunal Judicial de Alcobaça, transitada em julgado, foi condenado pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, praticado a 20.11.1994, na pena de 300 dias de multa, à taxa diária de 1.000$00.
- Por sentença de 09.07.2002, transitada em julgado, foi condenado pela prática de três crimes de ofensa à integridade física simples, injúria e violação de domicílio, datados de 09.10.2000, no âmbito do processo comum singular n.º 279/00.8TASEI, do 1º Juízo deste Tribunal, na pena única de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo período de 1 ano, sob condição de não contactar com a ofendida (precisamente, a aqui também ofendida B...), à excepção dos períodos relativos à regulação do exercício do poder paternal, e apresentar-se todos os meses perante o técnico do IRS neste tribunal.
- Por sentença de 01.04.2003, transitada em julgado, foi condenado pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, datado de 24.08.2001, na pena de 320 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, no âmbito do processo comum singular n.º 202/01.2TASEI, do 1º Juízo deste Tribunal.
- Por sentença de 22.05.2003, transitada em julgado, foi condenado pela prática de um crime de emissão de cheque sem provisão, datado de 25.01.2002, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 5,00, no âmbito do processo comum singular n.º 34/02.2 TASEI, do Tribunal Judicial da Comarca de Oliveira do Hospital.
2.1.17. O arguido aufere mensalmente, como vendedor, cerca de € 850,00.
Suporta uma pensão de alimentos no valor mensal de € 125,00, acrescido de 50% do custo do ATL, para o filho C....
Suporta ainda pensão de alimentos para o filho mais velho, no valor mensal de € 50,00.
O arguido suporta uma renda de casa no valor de € 300,00 mensais.
Possui o 12.º ano de escolaridade.
Presentemente, as relações entre o arguido e a dita B... são de paz.
2.2. Por seu turno, a matéria de facto tida como não provada na dita decisão recorrida foi a seguinte:
2.2.1. Que, com o dado por provado em 9) – ibidem –, a dita B... tenha ficado sem espaço para recuar ou contornar a viatura conduzida pelo arguido, vendo-se impossibilitada de prosseguir a sua marcha, não apenas devido à exiguidade do espaço, como também às paredes que a rodeavam, sendo que a sua única saída estava tapada pela viatura conduzida pelo arguido.
2.2.2. Que o arguido, ao nível do assente em 12), se tenha conformado com os resultados aí consignados.
2.3. Por último, a motivação probatória inserta na apontada decisão é do jaez seguinte:
“A matéria dada por provada assim se considerou graças ao depoimento da testemunha B..., o qual se nos afigurou inteiramente correspondente com a realidade, porque convicto, não obstante a ligeira divergência registada entre as declarações prestadas em audiência e o que a mesma já havia dito em sede de inquérito, a fls. 154-155, por ocasião do que prestou um depoimento mais desfavorável para o arguido.
Quanto à regulação do exercício do poder paternal e à motivação de facto da sentença de divórcio, atendeu-se às certidões de fls. 35-52 e 54-59.
Da matéria de facto dada por provada, o arguido apenas reconheceu ter parado a sua viatura em frente à viatura conduzida pela B..., mais propriamente à frente desta, deixando cerca de metro e meio entre as duas frentes, alegando que apenas pretendia cumprimentar o seu filho.
Não se deu crédito a esta versão, na medida em que foi totalmente infirmada pela dita B..., sendo que a mesma, na aflição em que ficou, telefonou para a GNR, tendo chegado ao local dois agentes desta força policial – Joaquim Augusto Garcia Rente e Hugo Miguel Ferreira Pina.
O crédito conferido ao depoimento da dita B... resultou acrescido face à prova dos antecedentes relacionais entre si e o arguido, quer nas suas relações interpessoais, quer quanto à regulação do exercício do poder paternal em relação ao filho que têm em comum. Aliás, não só os fundamentos do divórcio são sintomáticos do tipo de trato que o arguido infligia à mesma B..., como a condenação por crimes de ofensa à integridade física, injúria e violação do domicílio, tudo tendo aquela por vítima, corroboram a verosimilhança do que ora se dá por provado. Acresce que o arguido, por sentença de 9 de Julho de 2002, foi-lhe a pena de prisão suspensa na condição de não contactar com a referida ofendida, além do mais.
Por último, refira-se que o propósito da dita B... não era persecutório, uma vez que a mesma tentou, nestes autos, que o procedimento criminal fosse extinto, por desistência de queixa, o que apenas não foi possível em relação aos factos vertentes, na medida em que estamos perante um crime de natureza pública.
Foi clara, porém, a dita B... no sentido de, bem vistas as coisas e de uma forma objectiva, lhe ser possível, pela esquerda – efectuando o percurso que fizera em marcha atrás, desde o local onde tinha a viatura inicialmente estacionada –, sair do local; razão pela qual se deu por não provado que a mesma estava completamente impossibilitada de sair com a sua viatura.
Contudo, frisou a mesma que ficou sem reacção, para além de ter trancado as portas da viatura, atendendo às mensagens no telemóvel, com o teor anunciatório de mal para consigo, à forma brusca como o arguido apareceu e parou o carro à sua frente, ao ter saído, de igual modo, do interior da viatura e ter-se colocado de frente para o TI e aos antecedentes relacionais muito tensos entre ambos – relativamente pouco tempo após o decretamento do divórcio litigioso e a pouco tempo de ser o mesmo condenado em 1.ª instância pela prática dos referidos crimes contra a mesma B.... Ora, tudo isto é, por demais, compreensível, razão pela qual, não obstante a negação do arguido, se deu por provado que o arguido intimidou e perturbou a dita B..., o que o mesmo bem sabia e conseguia prever, considerando o passado de terror que fazia parte da sua história comum.
Não se atribuiu particular relevância ao depoimento dos referidos Srs. agentes da GNR, na medida em que, quando os mesmos chegaram ao local, os veículos, designadamente o do arguido, já não estavam posicionados da mesma forma, tendo o arguido o seu filho C... ao colo.
Actuou o arguido de forma intencional, livre e consciente da ilicitude e punibilidade criminais da sua conduta, atentas as mensagens no telemóvel e a demais factualidade dada por assente, sendo que não se provou, nem foi por si alegada qualquer causa de exclusão da ilicitude e/ou da culpa da sua parte. Aliás, a sua negação dos factos é, por si e conjugada com aos factos assentes, sintomática dessa mesma consciência.
Deu-se por não provado que o arguido se tenha conformado com os resultados plasmados em 12), na medida em que é contraditório com a intenção que aí e deu por provada, sendo que foi desta que nos convencemos, nos termos vistos; intenção essa que abrangia, conforme exposto, o constrangimento a não prosseguir a sua marcha, por parte da ofendida.
Os antecedentes criminais do arguido estão espelhados no CRC junto aos autos e na certidão da sentença proferida no processo comum singular n.º 279/00.8TASEI, do 1º Juízo deste tribunal (cfr. fls. 108-113).
Por seu lado, quanto à situação económico-profissional do arguido tivemos em consideração as suas próprias declarações, as quais não foram contraditadas.
A caracterização presente das relações entre o arguido a dita B... foi esta última quem o frisou ao tribunal, o que foi confirmado pelo arguido.
O mais não consignado constitui matéria de direito e/ou conclusiva ou repetitiva.”
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III – Fundamentação de Direito.
3.1. No caso em apreço, esta Relação tem poderes de cognição restritos a matéria de direito.
Com efeito, e como resulta da acta de audiência de julgamento, a fls. 286, as partes processuais, unanimemente, declararam prescindir da documentação dos actos aí a praticar oralmente.
Ora, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 364.º, n.º 1 e 428.º, n.º 2, ambos do CPP, tal implica renuncia ao recurso quanto a matéria de facto.
O que, porém, não preclude o conhecimento, mesmo oficioso, dos vícios ou nulidades enumerados (as), respectivamente, nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do mesmo diploma, mas tão-só, quando aqueles resultem do texto da decisão recorrida, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum (cfr. Ac. n.º 7/95, in Diário da República, I.ª Série A, de 28 de Dezembro de 1995, em interpretação obrigatória).
Ainda de não olvidar que o objecto do recurso é definido através das conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação (vd. artigo 412.º, n.º 1 do CPP).
Dito isto, lendo-se as conclusões oferecidas pelo recorrente, temos, então, que o âmbito do presente recurso se traduz em indagarmos [uma vez que a matéria de facto se mostra fixada definitivamente, pois que houve, como já dito, renuncia ao recurso nessa parte e não vem invocada, ou se nos antolha subsistir, qualquer um dos vícios ou nulidades mencionados (as)] se dos autos não decorre a verificação dos exigíveis pressupostos à emergência do crime de coacção por cuja autoria o recorrente acabou condenado.
3.2. As considerações insertas na sentença recorrida a propósito do “enquadramento jurídico-penal” dos factos provados, bem como na “resposta” apresentada pelo Ministério Público na 1.ª instância mostram-se assaz pertinentes à dilucidação do caso concreto, donde que as sigamos de perto.
Numa primeira vertente, relembremos os elementos – objectivo e subjectivo – cuja verificação se impõe para a subsunção de uma conduta ao apontado artigo 154.º, n.º 1.
Daqui emerge que comete este crime “quem, por meio de violência ou de ameaça com mal importante, constranger outra pessoa a uma acção ou omissão, ou a suportar uma actividade”.
O tipo objectivo de ilícito consiste em constranger outra pessoa a adoptar um determinado comportamento: praticar uma acção, omitir determinada acção, ou suportar uma acção.
Sujeito passivo pode ser qualquer pessoa.
Os meios de coacção poderão ser apenas a violência ou a ameaça com mal importante.
Quanto à violência, a mesma poderá sê-lo física ou psíquica, e ter por objecto imediato a própria pessoa do coagido, ou de terceiros, ou sobre coisas, quer do coagido, quer de terceiros, desde que o mal causado nas coisas seja idóneo a afectar sensivelmente a liberdade de acção do coagido, de forma a constranger este a adoptar o comportamento visado pelo agente.
Por seu turno, quanto à «ameaça com mal importante», a mesma tanto se poderá reportar á prática de um acto ilícito, como de um acto lícito, e deve ser adequada a constranger o ameaçado a comportar-se de acordo com a exigência do ameaçante. A este respeito, deverá a ameaça ser vista sob um critério ao mesmo tempo objectivo, por apelar ao juízo do homem comum, e individual, na medida em que se deve ter em consideração as circunstâncias concretas em que é proferido o anúncio, nomeadamente as sub-capacidades do ameaçado.
Estamos perante um crime de resultado, ou seja, a consumação deste crime exige que a pessoa objecto da acção tenha efectivamente sido constrangida a praticar a acção, a omitir a acção ou a tolerar a acção, de acordo com a vontade do coactor e contra a sua própria vontade.
Mais: é necessário que entre o comportamento do coagido e a acção de coacção exista uma relação de efectiva causalidade.
A imputação deste crime tem necessariamente que ser dolosa, ainda que sob a forma de dolo eventual – basta que o agente, independentemente das suas motivações, tenha consciência de que a violência que exerce ou a ameaça que faz sejam susceptíveis de constranger outrem e com tal se conforme.
Bem jurídico tutelado é a livre determinação do indivíduo, protegida, aliás, constitucionalmente através da inviolabilidade da integridade moral e física de cada um pelo artigo 25.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa [CRP].
Numa segunda precisão, e antes da apreciação casuística da factualidade acolhida na decisão recorrida, relembremos que o ilícito em questão se consuma no momento em que alguém é violentado a fazer, a omitir ou a suportar o que não quer, relevando a persistência ou permanência do constrangimento não para a consumação, mas para a determinação do ilícito (cfr. Ac. do STJ, de 17 de Abril de 1990, in BMJ 396.º/222).
3.3. Da factualidade provada decorre o seguinte quadro essencial:
O arguido e a ofendida foram casados entre si, casamento esse já dissolvido por divórcio.
Na sequência de tal divórcio e da subsequente regulação do poder paternal do filho de ambos, o arguido continuou a manter uma relação conflituosa com a ofendida.
No apontado dia 3 de Maio de 2002, a ofendida foi ao supermercado com o seu filho, sendo que o arguido ia telefonando para o seu telemóvel, deixando mensagens, onde dizia que estava farto dos tribunais e que a havia de matar.
A dada altura a queixosa dirigiu-se para o seu automóvel que estava estacionado no parque do supermercado, colocou a chave na ignição e arrancou.
Nesse instante, o arguido, conduzindo o seu veículo automóvel, interceptou a trajectória seguida pela ofendida colocando a frente do carro por si conduzido a cerca de 1,5 m do veículo daquela, sendo que, imediatamente atrás deste, existia um fosso e imediatamente à sua direita, um armazém de botijas de gás e à esquerda um espaço livre de 2 metros.
O arguido logo depois saiu do seu carro, desferiu um murro na viatura conduzida pela ofendida e mostrando-lhe a notificação do tribunal, disse-lhe que havia de pagar por isso.
Mais se provou que o arguido sabia que ao utilizar o veículo por si conduzido na forma supra descrita, ou seja, interceptando a trajectória do veículo conduzido pela ofendida, perturbava a capacidade de decisão desta, provocando-lhe receio e inquietação e sabia que estava a impedir a livre circulação daquela, forçando-a a parar e interromper a sua marcha, contra a sua vontade.
Por fim, resultou provado que o arguido actuou de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime.
Ora, deste quadro decorre o cometimento pelo arguido do apontado crime.
Mencione-se, desde já, que toda a sua conduta tem de ser contextualizada no âmbito das relações conflituosas que mantinha com a ofendida pois que é essencialmente esse aspecto determinante para a compreensão/justificação da conduta que também ela assumiu.
O comportamento inicial do arguido, que interceptou a trajectória do veículo da ofendida, colocando a frente do veículo que conduzia a cerca de 1,5 m do desta, limitou, sem mais, a sua liberdade de acção e decisão, e, em concreto, mostrou-se decisivo no sentido de a impedir de continuar a circular.
Como assim, e em contrário do alegado pelo recorrente, a circunstância de a mesma ofendida ainda ter ficado com algum espaço (cerca de 2 metros) livre à sua esquerda, que em condições normais lhe permitiria a circulação, é totalmente irrelevante.
Precisando-se, para a emergência do crime em causa não era exigível que, de todo, a ofendida não pudesse circular com o veículo automóvel, mostrando-se bastante que a actuação do arguido tenha sido determinante para que aquela não continuasse a conduzi-lo, como, antes de ser constrangida a tal, era sua intenção.
Ora, dos autos decorre a necessária adequação, em termos de relação de causalidade, entre o constrangimento provocado pelo arguido e a omissão verificada na conduta da ofendida.
Acresce a prova de que tal constrangimento foi provocado pelo arguido na queixosa, através da utilização por aquele de violência, no caso psíquica, e ameaça de um mal importante.
Relembra-se, a propósito e em contrário do proclamado pelo recorrente, o envio que ele realizou de mensagens para o telemóvel da ofendida com ameaças de que a matava e depois, ao mostrar-lhe a notificação do Tribunal, a menção de que (ela) havia de pagar por aquilo.
De não olvidar-se, ainda, a subsistência de toda uma relação de conflituosidade entre o arguido e a ofendida, mesmo depois de ambos se terem divorciado, situação esta susceptível de justificar a atitude da queixosa, naturalmente constrangida, devido às ameaças e violência psíquica de que era alvo por parte do arguido. Aliás, em termos de experiência comum e de normalidade, só esse receio e medo a poderão ter determinado a não continuar com a trajectória do seu veículo (pese embora, em termos objectivos e numa situação normal, até o pudesse, eventualmente fazer, pelo seu lado esquerdo) e também a chamar a GNR ao local, como o fez, sendo índices perfeitamente demonstrativos do estado em que se encontrava então.
Deste quadro objectivo bem se compreende a ilação extraída pelo Tribunal a quo no sentido em que o arguido terá agido de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei como crime, isto é, terá igualmente preenchido o exigível pressuposto subjectivo do ilícito.
Contrapõe o recorrente, pretendendo comprovar a não verificação do elemento “violência” que, a ofendida pretendeu desistir do procedimento criminal instaurado nos autos; que, a própria ofendida depôs no sentido em que lhe era possível pela esquerda sair do local; que, quando a GNR chegou ao local, o arguido estava com o seu filho ao colo (quando antes estava no carro com a mãe).
Olvida, contudo e assim, o momento essencial para a consideração da consumação do ilícito que, como decorre do já acima dito, se verificou na altura em que a ofendida foi violentada a parar o veículo não prosseguindo como pretendia a sua marcha.
A segunda e terceira circunstância coligidas pelo arguido são posteriores a esse momento mostrando-se pois perfeitamente irrelevantes para o efeito. Por outro lado, a primeira em nada contende com o preenchimento ou não pelo arguido do ilícito pelo qual foi condenado além de que estando nós perante crime de natureza pública se mostra despicienda e, em todo o caso, nada susceptível de determinar ou não a conclusão do preenchimento dos elementos estruturantes do tipo em causa.
Vale por dizer, reafirma-se, que naufraga a pretensão oposta pelo recorrente no sentido de se eximir a qualquer responsabilização criminal.
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IV – Decisão.
São termos em que perante o exposto se nega provimento ao recurso e, consequentemente, se mantém, na íntegra, a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça devida em 6 UCs.
Notifique.
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Coimbra, 19 de Abril de 2006