Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
5/18.5T8TCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ALBERTO RUÇO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
RECURSO
FACTOS NÃO ALEGADOS
DANOS
INDEMNIZAÇÃO
EXCESSIVA ONEROSIDADE
SALVADOS
PRIVAÇÃO DE USO
Data do Acordão: 09/10/2019
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - TRANCOSO - JUÍZO C. GENÉRICA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA EM PARTE
Legislação Nacional: ARTS.5, 640, 662 CPC, 566 CC, DL Nº 291/2007 DE 21/8
Sumário: I – Em regra, as partes não podem, em recurso, pedir que o tribunal da Relação declare provados factos não alegados – n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil –, salvo se, excecionalmente o facto não alegado for instrumental ou complementar e se revelar necessário para decisão da causa.

II – O conceito de onerosidade excessiva não se determina apenas em função da proporcionalidade que existe entre o valor de mercado da coisa e o valor da sua reparação, muito embora esta desproporcionalidade também deva ser considerada.

III – Se o lesado não declarar que prescinde da propriedade dos salvados, o valor destes é descontado ao valor da indemnização.

IV – Não é viável legalmente pedir o «custo da reparação» a título indemnizatório.

V – No cálculo do valor de uso do veículo (para o próprio) podemos aproximar-nos desse valor se somarmos o preço de aquisição e as despesas de manutenção médias ao longo do período previsível da sua utilização (revisões, reparações e seguros), dividindo a soma pelo número de dias de vida média calculada para o veículo.

Decisão Texto Integral:









I. Relatório

A) O presente recurso vem interposto da sentença que se pronunciou sobre a pretensão da Autora recorrida, a qual demandou a Ré recorrente para obter dela uma indemnização no montante de 9.751,63 euros e juros, por danos que sofreu num veículo, sua propriedade, os quais, segundo o alegado, foram produzidos por um veículo que se encontrava seguro na Ré.

A Ré argumentou que a Autora não era proprietária do veículo e suscitou a intervenção acessória de A (…), alegado dono do veículo, mais tarde admitido a intervir.

Alegou ainda desconhecimento quanto aos factos e, para o caso de ser responsabilizada, pediu, justificando, a diminuição da indemnização.

No final foi proferida decisão com este conteúdo:

«Em face do exposto, o Tribunal decide julgar a presente acção parcialmente procedente e, em consequência,

A. condenar a ré S (…), S.A. a pagar à autora A (…), Lda.:

a. a quantia de €5.086,63 mais IVA, acrescida de juros de mora calculados à taxa legal de 4%, desde a data da citação até efectivo e integral pagamento.

b. a quantia de €1800,00.

B. absolver a ré S (…), S. A. no mais peticionado.

Custas da presente acção a cargo da autora e da ré na proporção de 30% e 70%, respectivamente (artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil) …».

B) É desta decisão que vem interposto o recurso por parte da Ré, cujas conclusões são as seguintes:

(…)

C) A Autora recorrida contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão sob recurso.

Concluiu deste modo:

(…)

II. Objeto do recurso

De acordo com a sequência lógica das matérias, cumpre começar, se as houver, pelas questões processuais, prosseguindo depois com as questões relativas à matéria de facto e eventual repercussão destas na análise de exceções processuais e, por fim, com as questões atinentes ao mérito da causa.

Tendo em consideração que o âmbito objetivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (artigos 639.º, n.º 1, e 635.º, n.º 4, ambos do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, as questões que este recurso coloca são as seguintes:

1 – Em primeiro lugar, colocam-se as questões relativas à impugnação da matéria de facto.

(I) A Ré pretende que seja declarada «provada» a matéria declarada «não provada» nas alíneas c) e d), a qual deverá passar para a matéria provada.

Ou seja, deverá ficar provado:

Que «O veículo JV antes do descrito nos factos provados 7 a 10 valia €1.200,00»;

Que «O valor do veículo JV com danos é de €125,00, tendo por base a melhor proposta de aquisição da referida viatura».

Que «Por escrito datado de 23 de Março de 2017, com assunto “proposta condicional de perda parcial”, a ré informou a autora que: “no seguimento da vistoria efectuada constatamos que a viatura de V. Exa. Sofreu danos cuja reparação se torna excessivamente onerosa face ao seu valor de mercado antes do acidente. Na situação em concreto, considerando o valor estimado para a reparação 6094,69€ na oficina a melhor proposta de aquisição da sua viatura com danos (125,00€), bem como o seu valor de mercado antes do acidente (1200,00€) e embora ainda não nos seja possível assumir uma posição quanto a responsabilidades, propomos condicionalmente a quantia de 1075,00€ (…)».

(II) A Ré pretende ainda que sejam declarados «provados» os seguintes factos que não constam nem dos factos provados, nem dos factos não provados, a saber:

■ «A sócia-gerente da Autora, (…), aquando da realização da perícia em 22.03.2017, deu conta ao perito (…) da intenção da A (…) Lda. de receber da Ré uma indemnização no valor de € 3.500,00 em resultado do acidente e dos danos provocados no veículo JV e não a sua reparação».

■ «Além do veículo JV, a A (…) Lda. tinha à sua disposição outras viaturas que cumpriam a finalidade prevista no ponto 17».

3 – Em terceiro lugar, colocam-se as questões relativas ao mérito da causa, que cumprirá analisar face à eventual alteração da matéria de facto.

Assim, no que respeita ao montante da indemnização, cumpre verificar se terá ocorrido uma situação de perda total do veículo, não havendo lugar nesse caso à reparação, sendo a indemnização a atribuir de 1.075,00 euros (1.200,00 euros deduzidos do valor dos salvados que é de 125,00 euros).

4 – Em quarto lugar, coloca-se a questão da condenação da Ré a pagar à Autora o «custo da reparação» a título indemnizatório, entendendo a Ré que não se encontra prevista na nossa ordem jurídica essa forma de indemnização, porquanto não tendo a Autora interpelado a Ré, para proceder à reparação do veículo, jamais poderia ter peticionado o custo orçamentado para a reparação do veículo.

5 – Em quinto lugar coloca-se a questão da condenação da Ré a pagar à Autora o montante de IVA inerente ao custo da reparação.

6 – Em sexto lugar, cumpre analisar a adequação da quantia atribuída a título de indemnização pela «privação do uso», entendendo a Ré que a Autora podia ter adquirido outro veículo; que demorou a instaurar a ação depois de conhecer a posição da Ré, agravando assim os danos, sendo certo que a Autora tinha à sua disposição outras viaturas que cumpriam as finalidades prevista no ponto 17 dos factos provados, não tendo ficado provado o número de vezes que a Ré utilizava o veículo, sendo desproporcionado fixar tal prejuízo em 1.800,00 euros quando o veículo só valia 1.200,00 euros, devendo, por isso, ser fixada a indemnização em 900,00 euros (€10,00 (valor diário) x 90 dias úteis).

III. Fundamentação

a) Impugnação da matéria de facto.

(…)

(II) A Ré pretende ainda que sejam declarados provados os seguintes factos, os quais não constam nem dos factos provados, nem dos factos não provados, nem foram alegados, a saber:

«A sócia-gerente da Autora, (…) aquando da realização da perícia em 22.03.2017, deu conta ao perito (…) da intenção da A (…) Lda. de receber da Ré uma indemnização no valor de € 3.500,00 em resultado do acidente e dos danos provocados no veículo JV e não a sua reparação».

«Além do veículo JV, a A (…) Lda. tinha à sua disposição outras viaturas que cumpriam a finalidade prevista no ponto 17».

Não lhe assiste razão.

Muito embora estes factos não tenham sido alegados, o juiz podia tê-los declarado provados ao abrigo do disposto no artigo 5.º, n.º 2, al. a), do Código de Processo Civil, onde se determina que «2- Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz: a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa; …».

A questão que se coloca agora consiste em verificar se poderão as partes, na hipótese do juiz não os ter declarado provados, vir mais tarde, em recurso, pedir que o Tribunal da Relação os considere provados?

A resposta em regra é negativa, sem prejuízo de se considerar que o caso não é de impugnação da matéria de facto, mas sim de ampliação da matéria de facto, podendo, em alguns casos, ser dada uma resposta afirmativa, se porventura o facto não alegado for instrumental ou complementar e se revelar necessário para decisão da causa.

Vejamos melhor.

A situação processual em questão não cabe na previsão do artigo 640.º do Código de Processo Civil.

Com efeito, relativamente à impugnação da matéria de facto, o artigo 640.º, n.º 1, do Código de Processo Civil, dispõe do seguinte modo:

«1- Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas».

Ora, neste caso, se alguma falta tiver existido, consistirá numa omissão, isto é, o juiz devia ter declarado provados aqueles factos instrumentais, não alegados, mas não o fez.

Porém esta situação, eventualmente ([1]) omissiva, não preenche o conceito de «ponto de facto incorretamente julgado» referido na al. a), do n.º 1, do artigo 640.º do Código de Processo Civil, conceito que pressupõe apenas os «factos provados» e os «não provados» exarados na decisão recorrida, únicos que poderão ter sido «incorretamente julgados».

Por conseguinte, a situação enquadra-se sim na figura da «ampliação da matéria de facto».

Com efeito, o n.º 2 do artigo 662.º do Código de Processo Civil, que disciplina a modificabilidade da decisão de facto, dispõe que «A Relação deve ainda, mesmo oficiosamente: a) …; b) …; c) Anular a decisão proferida na 1.ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta».

Por conseguinte, a omissão de factos na sentença pode conduzir à ampliação da matéria de facto e é este o mecanismo processual a ponderar no caso presente.

Porém, a ampliação da matéria de facto exige, como se refere na parte final da alínea «c)», acabada de reproduzir, que a ampliação seja «indispensável».

Tal indispensabilidade só se colocará, em regra, quando o facto ausente da matéria de facto revista a natureza de essencial para o preenchimento da causa de pedir ou da exceção.

Mas relativamente aos factos essenciais, se estes não foram alegados, não é permitido ao tribunal considerá-los na sentença, como decorre do disposto no n.º2 do artigo 5.º do Código de Processo Civil, que tem esta redação e na qual não há referência aos factos essenciais:

«2. Além dos factos articulados pelas partes, são ainda considerados pelo juiz:

a) Os factos instrumentais que resultem da instrução da causa;

b) Os factos que sejam complemento ou concretização dos que as partes hajam alegado e resultem da instrução da causa, desde que sobre eles tenham tido a possibilidade de se pronunciar;

c) Os factos notórios e aqueles de que o tribunal tem conhecimento por virtude do exercício das suas funções».

Concluindo, em regra, as partes não podem, em recurso, pedir que o tribunal da Relação declare provados factos não alegados, salvo se porventura excecionalmente o facto não alegado for instrumental ou complementar e se revelar necessário para decisão da causa.

No caso presente não se mostra que os referidos factos, que não foram alegados, sejam indispensáveis para o julgamento da causa e, por outro lado, se os mesmos fossem indispensáveis seriam factos essenciais e, como não foram alegados, sempre seriam insuscetíveis de serem conhecidos e eventualmente acrescentados à matéria de facto.

Não se conhece, pelo exposto, de tal matéria.

Passa-se à fixação da matéria de facto.

b) 1. Matéria de facto – Factos provados

1. A ré é uma companhia de seguros.

2. A autora é uma sociedade que se dedica à manutenção e reparação de automóveis, venda de automóveis, reparação de bate chapas e pintura.

3. E é proprietária do veículo automóvel, veículo marca Renault, de matrícula JV (...) , desde 12 de maio de 2013.

4. E (…) é proprietário do veículo automóvel, com marca Peugeot 406 e matrícula NM (...) .

5. No âmbito da sua atividade, através da apólice n.º 000 (...) , a S (…), S.A. celebrou com o proprietário do veículo NM um contrato de seguro do ramo automóvel, através do qual este transferiu para aquela a responsabilidade civil emergente da circulação rodoviária do aludido veículo automóvel.

6. Em 30 de Dezembro de 2016, a sociedade comercial T (…) S.A. alterou denominação social para S (…), S.A.

7. No dia 06.03.2017, pelas 15:38 horas, o veículo NM, ao circular na faixa de rodagem, sentido Rio de Mel – Vila Novinha, embateu no veículo com a matrícula LV (...) 2 e no veículo com a matrícula JV (...) .

8. Os ditos veículos LV e JV encontravam-se estacionados, na berma, fora da faixa de rodagem, junto à Estrada Nacional 226.

9. No momento do referido embate, ninguém se encontrava nos veículos LV e JV.

10. O veículo NM ficou imobilizado, no local, sem poder circular e, nessa sequência, foi rebocado.

11. O referido veículo, na altura, era conduzido por A (…), o qual apresentava uma TAS de 0,80 g/l.

12. O dito condutor ficou ferido e foi transportado para o Hospital de Viseu.

13. Em consequência do embate descrito no ponto 7, o veículo JV sofreu estragos na sua parte traseira e lateral esquerda.

14. A reparação do dito veículo JV foi orçamentada em €5.086,63, acrescida de IVA.

15. Até à presente data, o dito veículo JV não foi objeto de reparação.

16. A autora emprestou o veículo JV aos seus clientes, em bom estado de conservação, em número de vezes não concretamente apurado.

17. Fazia-o, a título de cortesia, quando os veículos dos clientes ficavam na oficina para revisão e/ou reparação.

18. Tal consubstanciava uma mais-valia para a autora.

19. Por escrito datado de 23 de Março de 2017, a ré informou a autora que: “entendemos não existir prova bastante para concluirmos pela responsabilidade do nosso segurado.”

20. O veículo da autora tem matrícula de 1998 com 259.707 km.

21. A última revisão do veículo é de dezembro de 2016.

22. A presente ação deu entrada em 11 de janeiro de 2018.

23. O veículo JV antes do descrito nos factos provados 7 a 10 valia €1.200,00.

24. O valor do veículo JV com danos é de €125,00.

2. Matéria de facto – Factos não provados

a. Os trabalhadores por conta de outrem da autora utilizavam o dito veículo JV para irem buscar peças, veículos, se deslocarem no âmbito da atividade profissional.

b. O custo do aluguer diário de um veículo com as características semelhantes às do veículo descrito em 2. é de €15,00.

c. (Eliminado).

d. Por escrito datado de 23 de Março de 2017, com assunto «proposta condicional de perda parcial», a ré informou a autora que: «no seguimento da vistoria efectuada constatamos que a viatura de V. Exa. Sofreu danos cuja reparação se torna excessivamente onerosa face ao seu valor de mercado antes do acidente.

Na situação em concreto, considerando o valor estimado para a reparação 6094,69€ na oficina a melhor proposta de aquisição da sua viatura com danos (125,00€), bem como o seu valor de mercado antes do acidente (1200,00€) e embora ainda não nos seja possível assumir uma posição quanto a responsabilidades, propomos condicionalmente a quantia de 1075,00€ (…)».

e) Apreciação das restantes questões objeto do recurso

1 – Vejamos, face à alteração da matéria de facto, no que respeita à indemnização:

Se ocorreu ou não ocorreu uma situação de perda total do veículo;

Se há ou não há lugar à respetiva reparação; e

Se, no primeiro caso, a indemnização deve ser fixada em 1.075,00 euros (1.200,00 euros menos o valor dos salvados que é de 125,00 euros).

A resposta é no sentido da perda total do veículo, pelas razões que passam a ser indicadas.

Em primeiro lugar, nos termos do n.º 1, do artigo 566.º, do Código Civil, «A indemnização é fixada em dinheiro, sempre que a reconstituição natural não seja possível, não repare integralmente os danos ou seja excessivamente onerosa para o devedor».

Verifica-se que a lei dá primazia à restauração natural como forma de sarar as consequências do evento danoso.

Compreende-se que seja assim, pois a restauração natural cria uma situação materialmente correspondente à que existia antes do dano, diferenciando-se da indemnização em dinheiro, a qual apenas procura estabelecer uma situação economicamente equivalente à que existia antes do dano ([2]).

A restauração da situação natural anterior seria efetuada, no caso dos autos, reparando o veículo.

O custo dessa reparação é de 5.086,63 euros, acrescida de IVA (facto provado 14).

O valor do veículo antes do acidente era de 1.200,00 euros (facto provado 23).

Nos casos em que o valor da reparação do veículo atinge um valor igual ao preço de aquisição de um outro veículo com as mesmas características e estado de conservação que possuía o veículo sinistrado, a restauração natural através da reparação deve ser realizada.

Só a partir desta igualdade de valores é que se coloca o problema da excessiva onerosidade.

Porém, como resulta da letra da lei, para haver excessiva onerosidade não basta que o preço da reparação seja superior àquele que o veículo tinha antes do acidente, ou ao valor de aquisição de um veículo semelhante, capaz, por conseguinte, de repor as mesmas utilidades no património do lesado, isto é, tem de existir uma certa desproporção entre ambos os valores, qualificável de excessiva.

Em que consiste esta excessividade?

Não se afigura possível encontrar uma resposta enunciável em termos de lei geral, do tipo «Há onerosidade excessiva quando…», pois cumprirá entrar em linha de conta com as condições económicas, profissionais e domésticas dos interessados, pela razão de que o conceito de excessiva onerosidade se coloca sempre perante pessoas específicas, concretas, o que implica que tais a excessiva onerosidade divirja de caso para caso e, sendo assim, uma quantia pode ser excessivamente onerosa num caso e não o ser em outro caso ([3]), dependendo da quantia em si mesmo ser mais ou menos elevada.

Poder-se-á afirmar, por exemplo, que há excessiva onerosidade se A danificar uma mesa usada de B, não disponível no mercado, cujo valor de mercado como usada não excede €50,00 euros, tendo custado em nova €100,00 euros, se a sua reparação custar €150,00 euros, sabendo-se que A e B são pessoas que auferem salários que superam, por exemplo, 10 vezes o salário mínimo nacional?

Afigura-se que «não», ou seja, que a despesa de €150,00 euros a realizar por A, embora três vezes mais elevada que o valor da mesa, não representa um valor significativo no património de A, não podendo ser aí considerada como uma despesa desproporcionada que obrigue A a efetuar um qualquer esforço financeiro também desproporcionado.

Ou seja, face ao quantitativo a despender e à situação económica e financeira de A, esta reparação não é excessivamente onerosa.

Afigura-se, pois, que o conceito de onerosidade excessiva não se determina apenas em função da proporcionalidade que existe entre o valor de mercado da coisa e o valor da sua reparação, muito embora esta desproporcionalidade também deva ser considerada.

Em segundo lugar, o legislador na al. c) do n.º 1, do artigo 41.º, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto, refere que se considera uma situação de perda total do veículo sinistrado quando, entre outras situações, «se constate que o valor estimado para a reparação dos danos sofridos, adicionado do valor do salvado, ultrapassa 100% ou 120% do valor venal do veículo consoante se trate respetivamente de um veículo com menos ou mais de dois anos».

Esta norma, como se diz no n.º 4, deste artigo 41.º, refere-se às propostas que a seguradora fará ao lesado para o indemnizar ([4]).

Porém, sempre fornece um critério de valoração para esta problemática efetuado pelo próprio legislador.

Em terceiro lugar, verifica-se que a reparação do veículo é 3,915 vezes superior ao seu valor comercial ([5]).

Trata-se de uma desproporcionalidade acentuada.

Verifica-se também que o veículo em questão, da marca Renault, pode ser substituído por outro semelhante, por preço idêntico ao valor de mercado do veículo sinistrado (1200,00 euros) ([6]).

Nestas condições é de concluir que a reparação é excessivamente onerosa.

Concluindo-se assim, cumpre atribuir a indemnização relativa à perda total que é de 1200,00 euros, deduzida dos 125,00 euros atribuídos como valor do salvado.

Faz-se esta dedução porque os salvados continuam sendo propriedade da Autora e, por isso, o tribunal não pode retirá-los da sua esfera jurídica.

O artigo 43.º, n.º 4, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto (regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel), mostra que assim é, ao dispor que «Verificando-se uma situação de perda total, em que a empresa de seguros adquira o salvado, o pagamento da indemnização fica dependente da entrega àquela do documento único automóvel ou do título de registo de propriedade e do livrete do veículo».

Esta norma permite realizar uma construção jurídica que passe pela não dedução do valor dos salvados.

Poderia, pois, ser de outro modo, caso a Autora tivesse declarado na petição que abria mão da propriedade dos salvados a favor da seguradora, mas não declarou, que não pretendia ficar com os salvados na sua esfera jurídica ([7]).

A indemnização a atribuir é, assim, de 1025,00 euros.

2 – Em segundo lugar colocar-se-ia a questão da condenação da Ré a pagar à Autora o «custo da reparação» a título indemnizatório.

Face à resposta a que se chegou antes, esta questão ficou prejudicada.

Sempre se dirá, porém, que não se encontra prevista na nossa ordem jurídica tal forma de indemnização.

Aliás, tal forma de indemnização poderia gerar situações indesejáveis.

Com efeito, tomando de empréstimo os valores deste caso concreto para montar uma situação hipotética, se a Ré fosse condenada a apagar à Autora o custo da reparação, por exemplo, os 5.086,63 euros, mais IVA, poder-se-ia dar o caso da Autora receber tal importância e depois optar por não reparar o veículo, sendo certo que o valor deste era apenas de 1200,00 euros.

3 – Em terceiro lugar colocar-se-ia a questão da condenação da Ré a pagar à Autora o montante de IVA inerente ao custo da reparação.

Tal questão encontra-se também prejudicada pela solução dada à primeira questão.

4 – Quanto à adequação da quantia atribuída a título de indemnização pela «privação do uso».

Como se referiu, a Ré argumenta que a Autora podia ter adquirido outro veículo; demorou a instaurar a ação depois de conhecer a posição da Ré, agravando assim os danos, sendo certo que a Autora tinha à sua disposição outras viaturas que cumpriam as finalidades prevista no ponto 17 dos factos provados, não ficou provado o número de vezes que a Ré utilizava o veículo, sendo desproporcionado fixar tal prejuízo em 1.800,00 euros quando o veículo só valia 1.200,00 euros, devendo, por isso, ser fixada a indemnização em 900,00 euros (€10,00 (valor diário) x 90 dias úteis).

Verifica-se que não vem questionada a própria existência do dano originado pela privação do uso e, sendo assim, não cumpre analisar tal matéria, mas apenas o seu aspeto quantitativo.

Não se afigura relevante o argumento no sentido de que a Autora podia ter adquirido outro veículo.

Com efeito, quem é obrigada a indemnizar, a repor a situação que existia anteriormente ao evento danoso é a ré seguradora e não a autora.

O mesmo se diga quanto à alegação de que a autora demorou a instaurar a ação depois de conhecer a posição da Ré, agravando assim os danos.

A agravação do dano não pode ser imputada ao lesado, mas sim a quem tem a obrigação de reparar o dano.

Quanto ao facto da Autora ter outros veículos à sua disposição que cumpriam as mesmas finalidades, tal não consta da matéria de facto declarada provada, pelo que nada mais cumpre referir sobre esta questão.

Relativamente à desproporção entre o valor atribuído a título de indemnização pela privação do uso, que foi de 1.800,00 euros, quando o veículo só valia 1.200,00 euros, cumpre referir que as situações em questão não podem ser colocadas em relação uma com a outra porque uma não implica a outra.
Como avaliar este dano?

A teoria da diferença preconizada no artigo 566.º, n.º 2, do Código Civil, que serve de critério para encontrar o quantum da indemnização é difícil de manejar neste caso.

Com efeito, se a privação do uso não se traduzir numa diferença patrimonial palpável entre a situação que existiria se não ocorresse a privação do uso e aquela que existe por causa dessa privação, então não temos valores para calcular a diferença, muito embora saibamos que há um dano e que deve ser indemnizado, como já foi decidido.

Um critério pode passar pela averiguação do preço do aluguer que o bem lesionado tem no mercado.

No caso de um veículo automóvel o valor de uso corresponderá ao valor médio do aluguer de um veículo semelhante em empresas do ramo.

Porém, este critério não é totalmente exato, pois o prejuízo resultante da privação de uso de um veículo próprio não é igual ao valor do aluguer de um veículo semelhante que uma empresa comercial disponibiliza a quem o queira alugar.

Se pretendermos calcular o valor de uso do veículo, para o próprio, podemos aproximar-nos desse valor se somarmos o preço de aquisição e as despesas de manutenção médias ao longo do período previsível da sua utilização (revisões, reparações e seguros), dividindo a soma pelo número de dias de vida média calculada para o veículo.

Conseguir-se-ia, assim, encontrar um valor diário representativo do preço que o proprietário, na veste do bonus pater familias, considerou ser adequado despender para ter ao seu serviço diário, durante todo o período, a vantagem proporcionada por aquele bem ([8]), independentemente do uso mais ou menos intensivo dado ao veículo.

Ora, este valor difere do preço de aluguer de um veículo, pois neste caso, além do preço do automóvel e despesas de manutenção entram outros valores em jogo, como o lucro do empresário e os custos gerais da empresa (impostos, salários e custos com trabalhadores, seguros, etc.).

O valor do aluguer tem se ser, por conseguinte, superior ao valor de uso, neste caso, doméstico, e daí que não se mostre adequado, salvo se corrigido.

  A respeito desta problemática, Paulo Mota Pinto propõe o seguinte critério: «Pensamos que o dano da privação do uso deverá ser quantificado num valor que pode ser obtido de uma de duas formas; ou (como de “cima para baixo”) a partir dos custos de um aluguer durante o lapso de tempo em causa, mas “depurados” – bereinigte Mietkosten que excluem o lucro do locador, e custos gerais como os gastos com a manutenção da frota, as provisões para períodos de paragem dos veículos, as amortizações, etc. (no direito alemão os valores constantes das referidas tabelas rondam cerca de um terço dos custos de aluguer normalmente praticados); ou (como que “de baixo para cima”), designadamente, para viaturas de profissionais e empresas, a partir dos custos de capital imobilizado necessário para obter a disponibilidade de um bem, como aquele durante o período de tempo necessário (por ex., os custos necessários para constituir uma reserva de um bem como o que está em causa)» ([9]).

Claro que para usar estes mecanismos as partes têm de fornecer factos que permitam ao tribunal chegar a alguma conclusão, se for o caso.

Se as partes não oferecerem os factos, o tribunal ficará impedido de utilizar estes critérios, pois o juiz tem de se cingir aos factos articulados pelas partes e aos factos instrumentais que resultem da discussão da causa (artigo 5.º do Código de processo Civil).

Porém, se apesar de serem alegados os factos que no caso é possível alegar e, mesmo assim, o tribunal não dispõe de elementos suficientes para calcular a diferença patrimonial entre a situação atual e a que o lesado teria se não tivesse ocorrido o evento, como ocorre no presente caso, sempre o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar uma indemnização, nos termos previstos no artigo 566.º, n.º 3, onde se dispõe que «Se não puder ser averiguado o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados» ([10]).

A primeira questão que se coloca consiste em saber quanto tempo, quantos dias, esteve o veículo paralisado.

Face aos factos provados é seguro concluir que o veículo esteve paralisado desde o dia do acidente em 6 de março de 2017 até à data da sentença, proferida em 5 de novembro de 2018.

Na sentença considerou-se que «não ficou provado o número de vezes que a autora utilizou o dito veículo na sua actividade profissional, em face das disposições supra elencadas fixa-se o valor da indemnização a atribuir em €1.800,00 (€10,00 (valor diário) x 180 dias úteis (nove meses – exceptuando mês inerente às férias) a fim de indemnizar o dano patrimonial decorrente da privação do uso pela autora da sua viatura».

A Ré argumenta não ficou provado o número de vezes que a Ré utilizava o veículo e concluiu que o número de dias deveria ser reduzido a 90.

Não lhe assiste razão, como resulta do antes dito.

O que releva para determinar o valor do uso é o investimento feito na aquisição e manutenção do veículo e não o número concreto de dias em que ele foi usado por clientes.

Por conseguinte, não tendo sido questionado o valor de 10,00 euros diários, decide-se manter esta indemnização fixada na sentença, improcedendo nesta parte o recurso.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso parcialmente procedente e na sua procedência condena-se a Ré a pagar à Autora:

 1 – A quantia de 1075,00 (mil e setenta e cinco) euros a título de indemnização pela perda do veículo e juros de mora calculados à taxa legal de 4%, desde a data da citação até integral pagamento.

2 – Revoga-se a sentença na parte em que condenou a ré a pagar à autora quantia de €5.086,63 mais IVA, acrescida de juros.

3 – Mantém-se o mais decidido.

Custas da ação na proporção de 70% para a Autora e 30% para a Ré.

Custas do recurso na proporção de 71% para a Autora e 29% para a Ré


*

Coimbra, 10 de Setembro de 2019

Alberto Ruço ( Relator )

Vítor Amaral

Luís Cravo



[1] Diz-se «eventualmente, na medida em que só depois de examinada pelo tribunal da Relação a prova produzida este poderia concluir pela existência (ou inexistência) de um facto instrumental que devia ter sido declarado provado e não o foi.
[2] Neste sentido, Vaz Serra pronunciou-se nestes termos: «Visto que a indemnização se destina a colocar o credor na situação, em que estaria, se não tivesse tido lugar o acontecimento causador do dano, o mais perfeito meio de indemnizar é justamente a reposição natural. A indemnização em dinheiro não assegura ao credor senão uma reparação imperfeita do dano» - Obrigação de Indemnização. Boletim do Ministério da Justiça n.º 84 (1959), pág. 131.
[3] Neste sentido, se bem se interpreta o pensamento dos seus autores, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 2007, quando se considerou, a propósito da restauração natural, que «…na ponderação deste elemento, não podem deixar de ser considerados factores subjectivos, respeitantes não só (mas principalmente) à pessoa do devedor, e à repercussão do custo da reparação natural no seu património, mas também às condições do lesado, e ao seu justificado interesse específico na reparação do objecto danificado, antes que no percebimento do seu valor em dinheiro», registando-se que o valor do veículo em causa era no mínimo de €2000,00 euros e a reparação orçava em €3740,98 euros, tendo-se optado pela reparação - Colectânea de Jurisprudência (Acórdãos do S.T.J.), ano XV, tomo II, pág. 154, coluna da esquerda.
[4] Neste sentido, cfr., entre outros, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-2-2103, no processo n.º 1170/10.5TBVNF.P1: «I - O artigo 41.º do DL 291/2007, de 21.08, contém regras de definição da indemnização por perda total apenas aplicáveis no âmbito do procedimento de proposta razoável previsto no Capítulo III do referido diploma legal. II - Não tendo as partes chegado a acordo extra-judicial no aludido procedimento, recorrendo o autor à via judicial, não se aplicam nesta sede processual os critérios do referido normativo» (sumário).
[5] 5086,63 euros/1200,00 euros =3,915.
[6] Ver o que ficou referido supra na parte relativa à impugnação da matéria de facto.

[7] Como se ponderou no acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 12 de Fevereiro de 1998, C. J. ano XIII, tomo 1, pág. 272, «…quando se opera a indemnização por equivalente pecuniário do valor comercial do bem antes do facto lesivo (com vista a permitir a aquisição de outro com as mesmas características), o bem é substituído no património do lesado pelo respectivo valor, logo, os salvados devem passar para o responsável (…). Não há assim que deduzir o valor dos salvados no valor da indemnização nem transferir para o lesado o risco da respectiva venda. Como entendeu a Tribunal da Relação do Porto em ac. de 3.4.95, não sendo economicamente viável a reparação de um veículo, não há que impor ao lesado o ónus de comercializar a «sucata», mas apenas atribuir a propriedade  dos salvados à responsável, mantendo o valor da indemnização (…); é, pois, o responsável pelo acidente que deve providenciar sobre a venda ou preservação dos salvados ou, de outro modo dito, os salvados serão deixados por conta do responsável que fará deles o que bem entender, não sendo o seu valor deduzido no cálculo da indemnização».

Porém, como se disse, requer-se que o proprietário dos salvados emita uma declaração  no sentido de os abandonar a favor da entidade que indemniza.

[8] Exemplo – Para um veículo que tivesse custado €25 000,00 euros e estimando um período de vida de 10 anos, somando as despesas com revisões, reparações e seguros durante esses 10 anos, que se calculam em ¼ relativamente ao preço de compra, teríamos um valor diário de €8,56 euros [(€25 000,00 + €6 250,00) : (365 x10)]. Se o preço de compra tivesse sido de €40 000,00 euros o valor subiria para €13,70 euros; se tivesse sido de €60 000,00 euros subiria para €20,55 euros; se tivesse sido de €20.000,00 desceria para €6,85; se tivesse sido de €15.000,00 para €5,14, etc.
[9] Ob. cit., pág. 592, nota 1699.
[10] «A avaliação do dano em causa, se outro critério não puder ser adoptado, será determinada pela equidade, dentro dos limites do que for provado, nos termos estabelecidos no art. 566.º, n.º 3, do CC» - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 03 de Maio de 2011.