Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
2112/09.6TBMGR.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: CECÍLIA AGANTE
Descritores: CRÉDITO AO CONSUMO
APREENSÃO DE VEÍCULO
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
RESERVA DE PROPRIEDADE
Data do Acordão: 01/19/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: MARINHA GRANDE – 1º JUÍZO
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 6º, Nº 3, AL. F), E 12º, Nº 1, DO DEC. LEI Nº 359/91, DE 21/09; 15º, Nº 1, E 16º, Nº 1, DO DEC. LEI Nº 54/75, DE 24/02 (NA REDACÇÃO DO DL 178-A/2005, DE 28/10); 405º, Nº 1, E 409º, Nº 1, C.CIV..
Sumário: I – A reserva de propriedade apenas pode ser clausulada em contrato de alienação e a favor do vendedor.

II – É nula a cláusula de reserva de propriedade que, inserida em contrato de mútuo, é estabelecida a favor do financiador da aquisição do bem, que não cumula a qualidade de vendedor (artºs 280º, nº 1, e 294º do C. Civ.).

III – Carece de legitimidade substantiva para lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo a entidade que somente financiou a sua aquisição.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório

           A...., com sede em .....,  requereu providência cautelar de apreensão do veículo automóvel matrícula 00-00-KK e seus documentos, contra B..., residente ...., pedindo o seu decretamento sem audição da parte contrária.
            Alegou ter celebrado com o requerido, em 27-04-2006, um contrato de crédito ao consumo, no âmbito do qual lhe concedeu um financiamento de 8.500,00 euros para aquisição daquela viatura. Ficou o requerido obrigado a pagar o montante mutuado em 49 prestações mensais, as quais deixou de pagar desde a 31ª. Endereçou-lhe comunicação a solicitar o pagamento através de carta registada datada de 11-05-2009, com a cominação de que o seu não pagamento no prazo máximo de 8 dias daria lugar ao contrato “automaticamente rescindido”. Decorrido tal prazo sem a realização do pagamento das prestações em débito, o contrato considera-se resolvido. Como beneficia de reserva de propriedade, registada na Conservatória do Registo Automóvel, e o requerido não entregou o veículo automóvel, está legitimado a pedir a sua apreensão.

           

            Em decisão liminar foi rejeitada a providência cautelar requerida, com o fundamento de ser legalmente inadmissível a reserva de propriedade a favor da entidade financiadora da aquisição do veículo automóvel em causa e, por isso, nela infundável a providência cautelar de apreensão de veículo.

            Inconformada, recorreu a requerente, rematando as suas alegações com as conclusões subsequentes:

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            II. Delimitação do objecto do recurso

            Face às conclusões de recurso, que definem o seu objecto (artigos 684º, 2 e 3,  660º, 2, e 713º, 2, do Código de Processo Civil, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei 303/2007, de 24 de Agosto),  a questão decidenda consiste em indagar se o registo de reserva de propriedade a favor da entidade financiadora da aquisição lhe confere o direito a requerer a sua apreensão cautelar.


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            III. Os factos em que assentará a decisão de recurso são os alegados no requerimento inicial da providência cautelar, já que nos situamos no âmbito de despacho liminar.


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            IV. O direito

            Estando em causa o procedimento cautelar de apreensão judicial de veículo automóvel, regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 54/75, de 24 de Fevereiro, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n°178-A/2005, de 28 de Outubro, dispõe o n.º1 do artigo 15º desse normativo que Vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula. E acrescenta o artigo 16°, 1, do mesmo diploma, que Provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo.

            São estes os fundamentos normativos aduzidos pela requerente para justificar a pedida apreensão judicial do veículo automóvel cuja aquisição financiou, pretensão que a decisão recorrida declinou por a cláusula de reserva de propriedade beneficiar apenas o vendedor e não a entidade financiadora, salvo se esta acoplar a qualidade de vendedora.

            Delimitados os termos da problemática sob recurso, por razões de precedência lógica, começaremos por indagar da validade da cláusula de reserva de propriedade aposta no contrato de mútuo a favor do mutuário.

            O contrato tem, cada vez mais, uma natureza pluridimensional e, continuando a constituir um instrumento de expressão e autodeterminação dos contraentes, ele tende a fundar um  princípio  ordenador de  relações sociais.  Em termos sistémicos, podem discernir-se no contrato três planos: o plano de relacionamento particular entre os contraentes (o contrato como sistema de acção interindividual), o plano institucional do mercado e o plano da ordem jurídica global. Mesmo assim, no diálogo entre a liberdade contratual e a justiça comutativa, admite-se, por razões de princípio, de praticabilidade e de desoneração normativa, uma relativa predominância da primeira[1]. Logo, prima facie, poderemos dizer que, no acolhimento da auto-regulação das partes, os aqui requerente e requerido conformaram os seus interesses, como expressão da sua autonomia de vontade, conferindo o mutuário “reserva de propriedade” do veículo a favor do mutuante.

            Porém, o artigo 405º, 1, do Código Civil, diploma a que pertencerão todas as normas que doravante indicarmos sem menção de proveniência, consagra o princípio da liberdade contratual de modo limitado, ao estatuir Dentro dos limites da lei, as partes têm a faculdade de fixar livremente o conteúdo dos contratos, (...) ou incluir nestes as cláusulas que lhes aprouver (sublinhado nosso).

            E atentando no artigo 409º, 1, vemos que Nos contratos de alienação é lícito ao alienante reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte ou até à verificação de qualquer outro evento. Norma sistematicamente inserida nas disposições gerais relativas aos contratos e que alveja um específico tipo de contratos (os contratos de alienação) e um particular sujeito contratual (o alienante)[2]. Normativo que admite o pactum reservati dominii, o negócio estipulado sob condição suspensiva quanto à transferência da propriedade. Como a propriedade, em princípio, se transfere por mero efeito do contrato (consensus parit proprietatem), estipulada a cláusula de reserva de propriedade, o efeito real do contrato fica sujeito a uma condição suspensiva, de modo a que a reserva da propriedade sobre o bem alienado sirva de garantia ao cumprimento das prestações do adquirente. Cláusula que, respeitando a imóveis ou móveis sujeitos a registo, só opera efeitos em relação a terceiros com a inscrição no registo e que representa a possibilidade de o alienante da coisa reservar para si o seu domínio até ao cumprimento (total ou parcial) das obrigações que recaiam sobre o adquirente ou até à verificação de qualquer outro evento[3]. Vale dizer que o negócio é celebrado, quanto à transferência da propriedade, sob condição suspensiva[4].

            Volvidos ao campo factual em apreciação, é incontroverso que as partes (requerente e requerido) se não vincularam a um qualquer contrato de compra e venda (o apelante adu-lo nas alegações de recurso), mas tão somente a um contrato de mútuo, com estabelecimento e registo de uma cláusula de “reserva de propriedade” para garantir o cumprimento pelo requerido das suas obrigações relativas ao pagamento do valor mutuado. Por conseguinte, não faz sentido recorrer à suspensão de um efeito translativo inexistente no contrato de mútuo. E não desvirtua esta simplista asserção a circunstância deste mútuo ser conexo com um contrato de compra e venda outorgado com terceiro relativamente ao bem cujo financiamento foi garantido pelo apelante. Terceiro, o vendedor, que não se obrigou neste contrato de mútuo e apenas relativamente ao qual seria lógico estatuir uma cláusula de reserva de propriedade para garantir o pagamento do preço da compra e venda. Esta decomposição patenteia que, para suspender os efeitos translativos inerentes a um contrato de alienação, a cláusula de reserva de propriedade só nele pode ser estipulada. Aliás, é como afirma a decisão recorrida, é inconsistente defender a reserva de propriedade a favor do financiador quando a propriedade não existe na sua titularidade. Donde se advogue que apenas pode reservar para si o direito de propriedade sobre um bem, suspendendo a sua transmissão, quem outorga o respectivo contrato de alienação na posição de alienante, pois só ele é o titular do direito reservado[5].

            À luz do nosso ordenamento jurídico, parece-nos irrefutável que, no contrato de mútuo, mesmo tendo em vista o financiamento de aquisição de um determinado bem e apesar da conexão existente com o contrato de compra e venda desse bem, o mutuante não pode reservar para si o direito de propriedade sobre esse bem, pelo simplista fundamento de não ser o seu titular; é legalmente impossível alguém reservar um direito de propriedade de que não dispõe[6]. Constituiria uma contradição nos próprios termos admitir que possa reservar um direito de propriedade quem o não tem. Razão pela qual essa estipulação, efectuada a favor do financiador que mutuou o preço de aquisição do veículo automóvel cuja apreensão vem requerida, é nula por legalmente impossível (artigos 280º, 1, e 294º)[7].

            A estes argumentos contrapõe o apelante a necessária interpretação actualista, face à evolução verificada nas modalidades de contratação, defendendo, no apelo ao diploma legal que tutela o crédito ao consumo, a extensão da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador sempre que exista uma interdependência entre o mútuo e a compra e venda. No fundo, tem em vista que a expressão “acção de resolução do contrato de alienação”, ínsita ao artigo 18º do diploma em destaque, seja considerada equivalente à acção de resolução do contrato de financiamento, já que o requerido deixou de pagar as prestações que haviam sido fixadas no programa contratual acordado. É inquestionável que o legislador do Decreto-Lei nº 74/75 quis prevenir a possibilidade de destruição ou desvalorização do veículo alienado com reserva de propriedade, de modo a obstar que, na falta de cumprimento pelo comprador das suas obrigações, a resolução só viesse a operar com o veículo totalmente depreciado. O mesmo é dizer que a apreensão cautelar de veículo automóvel vendido com reserva de propriedade visa antecipar o efeito da resolução do contrato.

            Aceitamos que o incremento do consumo e a regulação do mercado têm vindo a alterar a usual relação comprador/vendedor, introduzindo um novo interveniente nessa relação negocial, o financiador, porque o consumidor é, em larga escala, financiado na aquisição de bens por uma entidade financeira, às vezes correlacionada com o vendedor, mas nem sempre.

            A instituição de crédito, no caso de incumprimento do plano de pagamento contratualizado para o empréstimo, tem ao seu alcance o vencimento das prestações em dívida, invocando a perda do benefício do prazo, ou a resolução do contrato.  Nesta linha de análise, interessa-lhe, no entanto, a “restituição” do bem, para alienar e deduzir o respectivo valor à quantia em dívida. Esse o interesse na aposição da cláusula de reserva de propriedade, a qual visa ainda restringir os poderes de disposição do bem pelo mutuário adquirente[8].

            O Decreto-Lei n.º 359/91, de 21 de Setembro, regulando o regime dos contratos de crédito ao consumo, estabelece (artigo 6º, 3, alínea f), que o contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar o acordo sobre a reserva de propriedade. E acrescenta (artigo 12º, 1), que se o crédito for concedido para financiar o pagamento de um bem vendido por terceiro, a validade e eficácia do contrato de compra e venda depende da validade e eficácia do contrato de crédito, sempre que exista qualquer tipo de colaboração entre o credor e o vendedor na preparação ou na conclusão do contrato de crédito. Desta previsão retira o apelante, tal como os defensores da tese da admissibilidade da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador, a ilação de que essa cláusula está contemplada para os casos de interconexão dos contratos de compra e venda e de mútuo[9].

            Face às regras da hermenêutica interpretativa, julgamos que a referência normativa em causa (o constar do contrato de financiamento o acordo sobre a reserva de propriedade) se reporta apenas a situações em que o vendedor, proprietário do bem, financia a aquisição através de diferimento do pagamento, mútuo, utilização de cartões de crédito ou outro acordo de financiamento semelhante (artigo 2º, al. a), do mesmo Decreto-Lei). Nessas circunstâncias, o financiador, que tem também a qualidade de vendedor, pode beneficiar da cláusula de reserva de propriedade, caso em que o contrato de financiamento tem de conter a menção correspondente[10]. Não dispomos no nosso ordenamento jurídico dos mecanismos de alienação ou transmissão da propriedade em garantia consagrados nos sistemas brasileiro e alemão, que permitam asseverar a licitude de uma cláusula daquele jaez e, por isso, entendemos que o direito vigente não faculta a estipulação da cláusula de reserva de propriedade a benefício do financiador e nessa qualidade[11].

            Não podemos olvidar que, historicamente, o Decreto-Lei n.º 54/75 não pode ter sido gizado para esta nova realidade tripolar e que o seu texto respeita ao procedimento cautelar de apreensão de veículo somente para o seu alienante e contra o seu adquirente, quando incumpre as obrigações convencionadas. A letra desse diploma, ao aludir à reserva de propriedade, enuncia sempre registos do contrato de compra e venda, a saber:  reserva de propriedade estipulada em contratos de alienação de veículos automóveis (artigo 5º, 1, al. b); o não cumprimento por parte do adquirente … das obrigações que originaram a reserva de propriedade (artigos 16º, 1, e 15º, 1); o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação (artigo 18º, 1; todos os sublinhados são da nossa autoria).

            Estas explícitas avocações do contrato de alienação não contemplam a pretendida interpretação actualista do diploma, como defende o apelante.

            Na consagração dos princípios que regem a interpretação da lei, para combater os excessos das correntes doutrinárias objectivistas e subjectivistas, o artigo 9º manda reconstituir o pensamento legislativo e as circunstâncias de elaboração da lei e afasta a possibilidade de qualquer pensamento legislativo poder valer se não encontrar no texto da lei o mínimo de correspondência. Não deixa de introduzir uma nota actualista, ao apelar às circunstâncias específicas em que a lei é aplicada, à qual, a nosso ver, os tribunais devem estar atentos, procedendo a uma interpretação que tome em conta as novas exigências sociais e valorativas. Porém, a compreensão desta disposição legal é a de que o sentido decisivo da lei coincidirá com a vontade real do legislador, sempre que esta seja clara e inequivocamente demonstrada através do texto legal, do relatório do diploma ou dos próprios trabalhos preparatórios da lei[12].

            No caso, nem a historicidade do diploma, nem o seu relatório nem a letra da lei consentem ao intérprete a extensão da cláusula de reserva de propriedade ao contrato de mútuo, mesmo quando o mesmo está funcionalmente ligado à compra e venda, salvo se a qualidade de mutuante e de vendedor se concentrar na mesma entidade. Pensamento legislativo que não tem na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso, e que, por tal razão, está completamente vedado ao intérprete. “A interpretação actualista tem de partir do texto da lei, só sendo legítimo estender o seu campo de aplicação se de tal interpretação resultar um desfecho compatível com o sistema jurídico enquanto unidade e não for afrontado o regime jurídico dos institutos com que contende, sob pena de, a coberto de uma interpretação postulada pela essoutra realidade social que a convoca, se tornar arbitrária a interpretação da lei, ferindo, assim, a certeza e a segurança jurídicas, valores caros ao Direito”[13].

            Interpretação actualista que surge justificada quando ocorre mudança de linguagem, susceptível de atribuir novos sentidos à expressão verbal usada pela norma, ou das circunstâncias de facto para as quais a norma foi criada ou uma alteração dos critérios valorativos, resultante da orientação global do desenvolvimento axiológico-jurídico. Trata-se de transpor para o condicionalismo actual aquele juízo de valor (identificação do ponto de vista que presidiu à feitura da lei) e de ajustar o próprio significado da norma à evolução entretanto sofrida (pela introdução de novas normas ou decisões valorativas) pelo ordenamento em cuja vida ela se integra[14].

            A interpretação deve ser actualista, pois a lei tem valor como instrumento social, não como peça de tradição[15]. E é certo que as alterações registadas no mercado consumista justificam a criação de expeditos mecanismos de realização do direito do financiador, mas a função negativa ínsita ao n.º2 daquele artigo 9º não consente o sentido pretendido. É, como vimos, um sentido que não tem qualquer apoio, correspondência ou ressonância no texto da lei. Reiteramos que a clara alusão do artigo 409º, 1, aos contratos de alienação e ao alienante afastam a inclusão do contrato de mútuo, ainda que conexo com o contrato de compra e venda do bem financiado. O mútuo, estabelecido entre o comprador e o financiador, não é um contrato de alienação. Contrato de alienação que, sendo translativo de um direito real, tem uma natureza completamente distinta do contrato de mútuo.

            A esta proposição contrapõe o apelante que a letra do artigo 409º, 1, ao aludir ou até à verificação de qualquer outro evento contempla qualquer outro acontecimento conexionado com a compra e venda, como seja o incumprimento do contrato de financiamento que garantiu o pagamento do preço da alienação do veículo. Consideramos que este outro evento, a que se reporta o preceito, só pode referir-se a acontecimento que tenha ligação directa com o contrato de alienação e que se contenha dentro das finalidades particulares desse contrato. Vale dizer que a estipulação da reserva de propriedade até ao cumprimento ou à verificação de outro evento se insere apenas no âmbito da relação contratual protegida pela cláusula de reserva de propriedade celebrada e nunca fora dela.  E na economia do contrato de compra e venda só o vendedor beneficia de reserva de propriedade, sendo absurdo fazê-la depender de um evento que apenas indirectamente tem correlação com o contrato de alienação e que se situa fora da relação contratual protegida. A restituição do veículo automóvel não pode, pois, decorrer da resolução do contrato de mútuo, por o terceiro financiador não beneficiar dos direitos inerentes à cláusula de reserva de propriedade.

            Acresce que esse empenho de interpretação actualista não casa com as sucessivas alterações legislativas introduzidas ao Decreto-Lei 54/75, designadamente aos preditos artigos 15º, 16º e 18º, pelo Decreto-Lei 178-A/05, de 28 de Outubro, data em que esta questão estava já jurisprudencialmente debatida e em que o mercado automóvel se movia na tal relação tripolar a que vimos aludindo. Outrossim, também a recente alteração veiculada ao mesmo diploma pela Lei n.º 39/2008, de 11 de Agosto, deixou incólume o regime do procedimento cautelar de apreensão de veículo, a fazer crer tratar-se de uma assumida opção do legislador sobre a matéria.

         Aplaudimos o esforço argumentativo dos defensores da tese da admissibilidade da reserva de propriedade no contrato de mútuo que, louvando-se na prática comum da cedência pelo vendedor ao financiador da sua posição contratual e do seu crédito (artigos 424º e 577º) ou da sub-rogação deste nos direitos daquele (artigo 589º), têm sustentado na transmissão das obrigações a legalidade da cláusula de reserva de propriedade a favor do financiador. Nesta linha de pensamento, atendo-se a que o vendedor já recebeu o preço (em função da quantia  mutuada), a  reserva  de propriedade transmite-se ao mutuante e destina-se a garantir o cumprimento do contrato de mútuo, dado os contratos se encontrarem em estreita conexão[16].

            Parece-nos defensável que, atenta a sua qualidade de financiador, através da sub-rogação, poderia o requerente adquirir os direitos que para o vendedor decorriam do contrato de compra e venda. Instrumento que, à luz do artigo  591º, facultaria ao devedor, mutuário, que, na compra e venda, cumpriu a obrigação do pagamento do preço com dinheiro emprestado pelo mutuante, o sub-rogasse nos direitos do credor, prescindindo do  consentimento do credor mas exigindo declaração expressa  de sub-rogação feita pelo devedor ao mutuante, no documento de empréstimo com a menção de que a coisa emprestada se destina ao cumprimento da obrigação[17].  Esses requisitos não se encontram assinalados no documento que titula o empréstimo (fls. 9), que não contém sequer qualquer referência à transmissão para o mutuante das eventuais obrigações do mutuário para com o vendedor. Só a cláusula 5ª referencia “A A... reserva para si a propriedade do bem alienado, até ao integral cumprimento por parte do comprador de todas as suas obrigações estabelecidas no presente contrato, ao que este dá o seu expresso acordo, sendo por conta do comprador  todos os custos e despesas correntes do respectivo registo”. Pretender que a menção “reserva para si a propriedade do bem alienado” lhe confira uma propriedade que não tem (desconhecemos até a identidade do vendedor, mas sabemos, perante as alegações recursivas do requerente, ser diverso do mutuante) contraria o instituto jurídico em jogo. Rematamos com Abrantes Geraldes[18] “Nenhuma perspectiva, formal ou substancial, consente que se confunda um contrato de alienação, que implica a transferência, ainda que sob condição suspensiva, da propriedade de um veículo, com um contrato de mútuo que teve como mutuante uma entidade terceira e de cuja resolução resulta o vencimento das prestações convencionadas e não a obrigação de restituição do veículo vendido”.

            O apelante cita profusamente diversa jurisprudência que defende o seu posicionamento, toda ela com os considerandos que procurámos escalpelizar e que, a nosso ver, salvaguardando o respeito devido por diferenciada opinião, carecem de consistência jurídica bastante para sufragar esse entendimento.

            Opõe o apelante que o entendimento da decisão recorrida acarreta a inutilidade da cláusula de reserva de propriedade contida no contrato de mútuo. Não se trata, porém, de mera inutilidade, mas de nulidade da própria cláusula por impossibilidade legal, resultante de acto jurídico que a lei não consente e que fere de invalidade (artigos 280º, 1, e 294º)[19]. Dito doutro modo, a cláusula é ilícita porque, ao ser aposta num contrato de mútuo, traduz uma prestação contrária a uma estatuição normativa injuntiva[20]. A esse respeito Gravato Morais[21] propugna que “A cláusula em que o financiador reserva para si a propriedade de uma coisa vendida pelo fornecedor é, pois, contrária a uma disposição de natureza imperativa. A estipulação é, desta sorte, nula, ao abrigo do art. 294º CC, não produzindo qualquer efeito”. A nulidade da cláusula de reserva de propriedade do veículo automóvel, cuja apreensão vem requerida a favor do financiador, veda-lhe o recurso ao procedimento cautelar de apreensão de veículo.

            Cremos tratar-se de inexistência da materialidade substantiva que subjaz à providência cautelar, conducente à improcedência da pretensão do requerente, e não de mera ilegitimidade activa, advogada por alguma jurisprudência[22], que leva à absolvição da instância do requerido.

            Ainda no domínio da exegese e das tentativas de interpretação actualista, vemos construída uma tese que se nos afigura de maior consistência jurídica[23]. Sustenta que os pressupostos da apreensão do veículo se traduzem na inscrição no registo automóvel da reserva de propriedade na titularidade do vendedor e do incumprimento das obrigações que a motivaram. E é irrelevante que seja o mutuante a intentar a acção declarativa de resolução do contrato de mútuo ou o vendedor a acção declarativa tendente à referida resolução, porque a reserva de propriedade é estabelecida a favor da vendedora mas até ao pagamento integral das prestações relativas ao contrato de mútuo. Logo, desde que seja o vendedor, em coligação com o mutuante, a impulsionar o procedimento cautelar de apreensão de veículo automóvel está legitimado a fazê-lo, face à coligação dos dois contratos e à aceitação da parte do mutuário/comprador do estabelecimento da reserva de propriedade  a favor do vendedor mas no interesse do mutuante. Portanto, o vendedor do veículo automóvel, titular de reserva de propriedade, não obstante haver recebido do mutuante o preço da venda, pode requerer a sua apreensão com fundamento na omissão de cumprimento pelo comprador da obrigação de pagamento das prestações relativas ao contrato de crédito. No fundo trata-se de manter a defesa da cláusula de reserva de propriedade a favor do vendedor, mas fazer depender essa condição suspensiva do pagamento integral pelo comprador do financiamento que lhe foi concedido pelo mutuante, condição suspensiva lícita à luz do segmento final do nº 1 do predito artigo 409º (ou até à verificação de qualquer outro evento). As partes contratantes (vendedor, comprador e financiador) ajustam o efeito diferido da transferência do direito de propriedade do vendedor para o comprador e fazem, depender tal transferência, não do pagamento do preço ao vendedor, que o recebeu integralmente por força do mútuo, mas da verificação daquela condição suspensiva – o cumprimento pelo comprador das condições contratuais do mútuo. Nessa medida, como titular do registo de reserva de propriedade, o vendedor, em coligação com o mutuante, pode requerer a apreensão do veículo e propor acção de resolução do contrato de alienação, dentro do prazo de quinze dias a contar da data da apreensão.

            Pesem embora estes considerandos, a verdade é que os factos elencados pelo requerente não quadram com esta construção.

            Não discutimos a faculdade de o financiador lançar mão das providências cautelares comuns, o que, em tese geral, é admissível, por essa matéria não estar sujeita a apreciação recursiva.

            Assim concluímos:

            1. A reserva de propriedade apenas pode ser clausulada em contrato de alienação e a favor do vendedor.        

            2. É nula a cláusula de reserva de propriedade que, inserida em contrato de mútuo, é estabelecida a favor do financiador da aquisição do bem, que não cumula a qualidade de vendedor.

            3. Carece de legitimidade substantiva para lançar mão do procedimento cautelar de apreensão de veículo a entidade que somente financiou a sua aquisição.


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            IV. Decisão

            Perante o expendido, acordam no Tribunal da Relação de Coimbra em julgar a apelação improcedente e, consequentemente, em confirmar a decisão recorrida.

            Custas da apelação a cargo do apelante (artigo 446º do Código de Processo Civil).


[1] Joaquim de Sousa Ribeiro, “Direitos dos Contratos”, 2007, pág. 53.
[2] Ac. STJ de 10.07.2008, in www.dgsi.pt, ref. 08B1480, acórdão que seguiremos de perto.
[3] Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, I, 3ª ed., pág. 249.
[4] Júlio de Almeida Costa, “Direito das Obrigações”, 4ª ed., pág. 197.
[5] Acs. STJ 16.09.2008, 27.09.2007, 12.05.2005 e14.12.2004, in www.dgsi.pt, ref. 08B2181, 07B2212, 05B993  e 05B538, respectivamente; Acs. R.L. 30.04.2009, 31.03.2009, 12.03.2009, 12.03.2009, 10.05.2007, 03.07.2007, 31.05.2007, 14.12.2004 e de 27.05.2003, in www.dgsi.pt, ref. 1320/08-2, 10306/2008-1, 3184/08-2, 10084/2008-6, 380/2007-2, 6118/2007-1, 3901/2007-2, 9857/2004-7 e 4667/2003-7, respectivamente; Ac. R.P. 15.01.2007, in CJ, tomo I, pág. 161; Ac. R.C. 12.05.2009, in CJ on-line, ref. 5589/2009.
[6] Ac. R.C. 12.05.2009, in CJ on-line, ref. 5589/2009.
[7] Ac. STJ de 10.07.2008, in www.dgsi.pt, ref. 08B1480.
[8] Fernando de Gravato Morais, “Cadernos de Direito Privado”, Universidade do Minho, n.º 6, Abril/Junho de 2004, pág. 50.

[9] Ac. STJ de 12.09.2006, in www.dgsi.pt, ref. 06A1901; Acs. R.L. de 3.12.2009, 12.02.2009, 29.01.2009, 26.01.2009 , 14.07.2008,   4.05.2007, in www.dgsi.pt, ref. 6212/06.6TVLSB.L1-8, 10927/2008-6, 668/08.0TJLSB-8,  11279/2008-1, 5176/2008-1  e 3928/07-7 (avocado pelo apelante), respectivamente.
[10] Fernando de Gravato Morais, in Cadernos cit., pág. 51.
[11] Fernando de Gravato Morais, in Cadernos cit., pág.52.
[12] Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil Anotado”, I, 4ª ed., pág. 58.
[13] Ac. STJ de 2.10.2007, in www.dgsi.pt, ref. 07A2680.

[14] Baptista Machado, “Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador”, pág. 191.
[15] Castro Mendes, “Introdução ao Estudo do Direito”, pág. 221.

[16] Luís Lima Pinheiro, “A Cláusula de Reserva de Propriedade”, págs. 3 e 34.
[17] Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 607; Ac. R.L. de 10-01-2008, in www.dgsi.pt, processo 10958/2007-7.
[18] Temas da Reforma do Processo Civil – IV vol, 3ª ed.,  pág. 308 (posição que parece ter abandonado, vide Ac. Ac. R.L. de 10-01-2008, in www.dgsi.pt, processo 10958/2007-7).

[19] Galvão Telles, “Manual dos Contratos em Geral”, 2002, pág. 416; Pires de Lima e Antunes Varela, ibidem, pág. 258.
[20] António Menezes Cordeiro, “Tratado de Direito Civil Português, II,  Direito das Obrigações”, tomo 1, 2009, pág. 498.
[21] “Contratos de Crédito ao Consumo”, 2007, pág. 308.
[22] Moitinho de Almeida, “O Processo Cautelar de Apreensão de Veículos”, 5ª ed., pág. 44; Ac. R. L. de 11-12-1997, in CJ, tomo V, pág. 120;

[23] Salvador da Costa, voto de vencido expresso no Ac. STJ. de 12.05.2005, in www.dgsi.pt, ref. 05B538; Ac. STJ de 12-09-2006, in www.dgsi.pt, ref. 06A1901.