Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1489/17.4T8GRD-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: DECLARAÇÕES DE PARTE
REQUERIMENTO
DISCRIMINAÇÃO DE FACTO
ÓNUS
Data do Acordão: 12/11/2018
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DA COMARCA DA GUARDA - GUARDA - JL CÍVEL 
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS.452º Nº2, 466º Nº2CPC
Sumário: A imposição da indicação discriminada dos factos sobre que há-de recair a prestação de declarações de parte (nos termos conjugados dos arts. 466º, nº 2, e 452º, nº 2, do NCPC) não impede que a parte requeira que tais declarações incidam sobre toda a matéria de facto alegada na p.i. (ou réplica).
Decisão Texto Integral:


I - Relatório

1. I (…), Lda, com sede em (...) , intentou contra B (…) Lda, com sede na (...) , acção declarativa, pedindo a condenação desta a pagar-lhe determinada quantia e juros, com base em contrato de transporte internacional (CMR).

A terminar a p.i. requereu que lhe fossem tomadas declarações de parte a toda a matéria alegada em tal peça processual.

A R. contestou, impugnando o alegado, e reconveio.

A A. replicou. E mais uma vez terminou requerendo declarações de parte a toda a matéria de facto alegada em tal articulado.  

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Na audiência prévia foi proferido despacho sobre os requerimentos probatórios das partes, no qual se indeferiu a tomada de declarações de parte à A. 

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2. A A. recorreu, concluindo (em 13 extensas e repetitivas conclusões) que:

1ª.) – Tendo a Autora requerido, no segmento probatório da petição inicial que integra o requerimento probatório, que lhe sejam tomadas declarações de parte a toda a matéria de facto alegada na petição inicial, nos termos do art.º 466º., do Cód. Proc. Civil, tal atitude processual, muito embora se não conforme com o estatuído no art. 452.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, aplicável por força do disposto no art. 466º., n.º 2 do mesmo Código, não manifesta deficiência processual insuprível na marcha subsequente do processado. Nem tem, só por isso, eficácia preclusiva da possibilidade de produção de prova por meio de declarações de parte.

2ª.) - Tendo a Autora requerido, no segmento probatório da réplica que integra o requerimento probatório, que lhe sejam tomadas declarações de parte a toda a matéria de facto alegada na réplica, nos termos do art.º 466º., do Cód. Proc. Civil, tal atitude processual, muito embora se não conforme com o estatuído no art.º 452.º, n.º 2 do Cód. Proc. Civil, aplicável por força do disposto no art. 466º. do mesmo Código, não manifesta deficiência processual insuprível na marcha subsequente do processado .

3ª.) - A omissão, em tais requerimentos probatórios, da enunciação, de forma discriminada, dos factos sobre que há-de recair tal depoimento não tem, só por isso, eficácia preclusiva da possibilidade de produção de prova por meio de declarações de parte.

4ª.) - A infracção das regras probatórias processuais que tal tipo de requerimento corporiza não deve acarretar o indeferimento da sua pretensão.

5ª.) - Na verdade, da aplicação conjugada das disposições dos arts. 6º., 7º. e 590º., nº. 4 do Cód. Proc. Civil, considerados em si mesmos, ou conjugados com o princípio processual do aproveitamento dos actos – princípio geral de direito processual cujo âmbito de aplicação envolve, tanto os actos processuais das Partes, como os actos processuais do Ex.mo Julgador – resulta que, face a requerimentos de produção de prova por meio de declarações de parte que não indiquem logo, de forma discriminada, os factos sobre que hão -de recair, a única solução processualmente admissível é admissão das declarações de parte. Admitindo o Ex.mo Tribunal tais requerimentos. E restringindo os respectivos objectos aos factos enunciados na petição inicial e na réplica em que o declarante de parte tenha intervindo processualmente ou de que tenha tido conhecimento directo.

6ª.) – Mesmo que assim se não entenda, a verificação de hipotética infracção processual da actividade da parte que pede a prestação de tais declarações tem por consequência a reacção do Ex.mo Julgador que se corporiza no convite à Parte, impetrante da produção de tais meios de prova, para que indique o mais concretamente possível os factos que devem ser objecto das declarações de parte.

7ª.) – Nas circunstâncias do caso vertente, o Meritíssimo Juiz recorrido não poderia, de forma processualmente válida, indeferir o requerimento de prestação de declarações de parte.

8ª.) – Em face de tais requerimentos probatórios, de produção de prova por meio de prestação de declarações de parte, integrantes da petição inicial e da réplica, o Ex.mo Tribunal recorrido deveria ter admitido sem objecções a prestação de tais declarações de parte. As quais, no momento processual da produção daquele meio de prova, seriam restringidas aos factos em que a Parte tenha intervindo pessoalmente ou de que revela ter conhecimento directo.

9ª.)- Ou, quando assim se não entenda – e sem prescindir - o Ex.mo Tribunal recorrido deveria ter-se decidido pelo convite à Parte requerente das declarações de parte para dar cumprimento mais concretizado ao disposto no art. 452º., nº. 2 do Cód. Proc. Civil. Após o que, uma vez cumprido esse ónus processual, deveria vir a proferir douto despacho de admissão de tais declarações de parte sobre os factos enunciados pela Parte em satisfação de tal convite, em que a Parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo.

1Oª.) – No Ordenamento Processual Português vigente, e por aplicação de um argumento interpretativo de identidade ou de maioria de razão, extraído da circunstância de o Réu não ser obrigado a formular uma contestação per positionem – isto é, não ser o Réu obrigado a tomar na contestação uma posição definida perante cada um dos factos articulados na petição – também em matéria de proposição e admissão de prova por declarações de parte, a omissão de enunciação discriminada dos factos sobre que deve recair o depoimento de parte, tem por consequência: ou a imediata admissão de tal requerimento, enunciando o Ex.mo Julgador como limite do objecto de tais declarações de parte os factos em que a Parte tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo; ou o convite à Parte que requereu a prestação de tais declarações de parte para dar cumprimento mais concretizado ao disposto no art.º 452º., nº. 2 do Cód. Proc. Civil. Após o que, uma vez cumprido esse ónus processual, deveria vir a proferir douto despacho de admissão de tais declarações de parte, nos limites dentro dos quais a Lei Processual restringe o respectivo objecto.

11ª.) - Tendo decidido que a omissão do cumprimento do ónus de enunciação dos factos objecto da proposição de declarações de parte tem como consequência processual a não admissão das declarações de parte, o douto despacho recorrido incorreu em erro de julgamento, por violação, entre outras, das disposições dos arts . 6º., 7º. 590º., nº. 4, 466º., nºs. 1, 2 e 3, 452º.,nº. 2 e 454º. do Cód. Proc. Civil, do art. 9º. Do Cód. Civil e do art. 20º. da Constituição.

12ª.) - O douto despacho recorrido deve ser revogado e substituído por outro que admita o pedido de produção de prova por meio de declarações de parte. Ou, quando assim se não entenda, por outro que corporize o convite ao requerente das declarações de parte, a Autora, aqui Recorrente, para dar cumprimento mais concretizado ao disposto no art. 452º., nº. 2 do Cód. Proc. Civil. Indicando a Autora, aqui Recorrente, na sequência desse convite, de forma discriminada, os factos sobre que tais declarações devem recair, e seguindo-se douto despacho final de admissão, dentro dos limites dos factos em que a Autora tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo.

13ª.) - O douto despacho recorrido violou, entre outras, as disposições dos arts. 6º., 7º., 146º., nº. 2, 590º., nº. 4, 466º., nº s. 1, 2 e 3, 452º., nº. 2 e 454º. do Cód. Proc. Civil, do art. 9º. do Cód. Civil e do art. 20º. Da Constituição, pelo que deve ser revogado.

Termos em que deve ser concedido provimento à presente apelação e, por via disso, ser revogado o douto despacho recorrido, proferido em audiência prévia de 14 de Junho de 2018, na parte em que indeferiu o pedido de tomada de declarações de parte à autora/reconvinda, substituindo-se o mesmo por outro, que admita a prova por declarações de parte da Autora, aqui Apelante, por ela requerida na petição inicial e na réplica, tendo tal meio de prova por objecto os factos em que a Autora tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha tido conhecimento directo;

ou, caso assim não se entenda, substituído, no provimento deste recurso, o douto despacho recorrido por outro que ordene a notificação da autora /recorrente e reconvinda para em prazo a fixar pelo Tribunal, indicar os factos sobre os quais deve recair a prestação de declarações de parte requerida, seguindo-se os ulteriores termos do processo.

Fazendo-se JUSTIÇA!

3. Inexistem contra-alegações.

II – Factos Provados

A factualidade a considerar é a que resulta do relatório supra.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é delimitado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes (arts. 639º, nº 1, e 635º, nº 4, do NCPC), apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas.

Nesta conformidade, as questões a resolver são as seguintes.

- Admissão das declarações de parte.

- Em caso negativo, prolação de despacho de aperfeiçoamento.

 

2. Na decisão recorrida escreveu-se que:

“… No que tange ao requerimento para prestação de declarações de parte pelo legal representante da A./reconvinda, a Lei, a exemplo do que faz com a prestação do depoimento de parte, impõe à parte requerente um ónus de indicação “logo, de forma discriminada, [d]os factos sobre que há-de recair” – art.º452.º, n.º2, aqui aplicável por remissão do art.º466.º, n.º2, ambos do Código de Processo Civil (versão 2013) – o que a parte em causa não fez, limitando-se a requerer, de forma genérica, a prestação deste meio probatório a toda a matéria alegada na p.i., o que a Lei expressamente proíbe;

Assim sendo, e na falta de cominação expressa, e não podendo deixar de haver consequências processuais para o desrespeito por tal imposição legal, outra solução não poderá haver senão o seu indeferimento;

Nem, tão-pouco, se diga que o Tribunal terá (ou, na n/ perspectiva, sequer poderá!) convidar a parte a fazê-lo agora pois, fazendo-o, tal equivaleria a violar o princípio da auto-responsabilização das partes, tão presente nesta jurisdição Cível, especialmente, como é o caso, quanto a parte está patrocinada por profissional do Foro.

Ademais, criaria na tramitação algo que não existe (pois o que existe são convites ao aperfeiçoamento factual e não de procedimentos processuais incumpridos) e faria com que o Juiz se substituísse à parte e/ou ao Advogado, o que, certamente, o legislador não quis;”.

Não se acompanha este discurso jurídico.

Dispõe o art. 466º, nº 1, do NCPC que “as partes podem requerer, até ao início das alegações orais em 1ª instância, a prestação de declarações sobre factos em que tenham intervindo pessoalmente ou de que tenham conhecimento directo”.

Por sua vez, o nº 2 do mesmo artigo manda aplicar às declarações das partes, com as necessárias adaptações, o estabelecido quanto ao depoimento de parte. E dispondo o art. 452º, nº 2, do mesmo código, que quando o depoimento seja requerido por alguma das partes, devem indicar-se logo, de forma discriminada, os factos sobre que há de recair. Esta expressão “discriminada” tem de ser interpretada cum grano salis.

Relembremos que a A. requereu as suas declarações de parte, no final da p.i., nos seguintes termos “A autora requer que lhe sejam tomadas declarações de parte a toda a matéria de facto alegada na petição inicial”.

O mesmo fez na réplica, quando terminou tal articulado dizendo que “A reconvinda requer que lhe sejam tomadas declarações de parte a toda a matéria de facto alegada na presente peça processual”. – ambos os sublinhados são da nossa autoria.

E compulsados tais articulados notamos que a matéria de facto está alegada desde o art. 1º ao 21º da p.i. e desde o art. 1º ao 6º da réplica. No nosso caso, acaba, por isso, e de modo indirecto por se verificar a falada discriminação.

De qualquer maneira, o ónus que recai sobre a parte de discriminar os factos, não impede que a parte peça a prestação de declarações sobre toda a matéria factual por si alegada (no mesmo sentido podem ver-se os Acds. da Rel. Guimarães, de 26.9.2013, Proc.106/12.3TBPTB, de 3.4.2014, citado pela recorrente, Proc.3310/13.3TBBRG, em www.dgsi.pt., e L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 2º, 2ª Ed., nota 4. ao anterior art. 552º do CPC = ao actual art. 452º, nº 2, do NCPC, pág. 500).
De outra parte, constata-se que discutindo-se um contrato de transporte internacional celebrado entre a A e a R., os factos são quase todos pessoais ou de conhecimento directo e estão controvertidos.  
A circunstância de se requerer a prestação de declarações a toda a matéria e de eventualmente alguns factos não serem pessoais ou de conhecimento directo não conduz, contudo, ao indeferimento do requerido, mas sim ao indeferimento parcial, restringindo-se as declarações à matéria controvertida, constante dos temas da prova que a 1ª instância entretanto já seleccionou na audiência prévia.
Não é, aliás, acto judicial processual anómalo, pois isso já acontece regular e correntemente nos tribunais, quando alguém requer depoimento de parte sobre factos discriminados pessoais ou de conhecimento directo, nos termos do aludido art. 452º, nº 2, e art. 454º, nº 1, do NCPC, e o juiz, depois, profere eventual despacho a restringir o mesmo a tais tipo de factos.
Em ambos os casos a razão de decidir é a mesma, pelo que ambos os casos devem merecer igual tratamento. Procede o recurso, pois.  
3. Face ao exposto e ao que se vai decidir, fica prejudicado o conhecimento da questão suscitada subsidiariamente pela apelante, sobre se deveria ou não ter sido proferido despacho de aperfeiçoamento.

De todo o modo sempre se dirá, só em nota muito sumária, que caso entrássemos no conhecimento da questão, o recurso seria de proceder, com a consequente prolação de tal despacho (vide os Acds. da Rel. Lisboa, de 24.3.2011, Proc.167/10.0TTLRS-A. e de 27.9.2012, Proc.12051/05.4TMSNT, e o Ac. desta Relação de Coimbra, de 17.1.2017, Proc.143713.0TBCDN, no qual o actual relator e 1º adjunto foram adjuntos, todos in www.dgsi.pt, e L. Freitas, ob. e loc. citado).

4. Sumariando (art. 663º, nº 7, do NCPC):

i) A imposição da indicação discriminada dos factos sobre que há-de recair a prestação de declarações de parte (nos termos conjugados dos arts. 466º, nº 2, e 452º, nº 2, do NCPC) não impede que a parte requeira que tais declarações incidam sobre toda a matéria de facto alegada na p.i. (ou réplica).

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o recurso, assim se revogando o despacho recorrido, e, em consequência, admitem-se as declarações de parte da A. aos factos em que a A. tenha intervindo pessoalmente ou de que tenha conhecimento directo.  

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Sem custas.

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                                                                     Coimbra, 11.12.2018

                                                                     Moreira do Carmo ( Relator )

                                                                     Fonte Ramos

                                                                     Maria João Areias