Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
7191/06.5TBLRA-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: JORGE ARCANJO
Descritores: AVAL CAMBIÁRIO
RELAÇÃO DOS CO-AVALISTAS COM O PORTADOR DO TÍTULO E ENTRE SI
TÍTULO EXECUTIVO
Data do Acordão: 06/24/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE LEIRIA - 5º JUÍZO CÍVEL
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 45º E 46º, AL. C), DO CPC; 30º, 32º, 43º E 77º DA LULL
Sumário: I – No aval colectivo ao mesmo devedor configuram-se dois níveis de relações jurídicas: a relação dos co-avalistas com o portador e a relação dos avalistas entre si.

II – Nas relações dos co-avalistas com o portador ou nas relações com o avalizado e obrigados precedentes os direitos, obrigações e pressupostos da acção são os definidos para o aval singular, sendo a obrigação da natureza estritamente cambiária. Caso um dos co-avalistas pague a letra ou livrança, pode exercer acção cambiária contra o avalizado e obrigados precedentes – artºs 32º, §3, e 43º, da LULL.

III – Na relação dos co-avalistas entre si não há nexo cambiário e a obrigação é regulada pelo direito comum, podendo aplicar-se o regime da fiança – artº 650º do C. Civ.

IV – Se um dos co-avalistas pagar a letra ou livrança, não pode executar os demais co-avalistas, erigindo como título executivo a letra ou livrança avalizadas, quer como título de crédito quer como quirógrafo.

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

I - RELATÓRIO

1.1. - Os exequentes - A... e B... – instauraram na Comarca de Leiria acção executiva, para pagamento de quantia certa, com forma de processo comum, contra os executados - C... e D....
Com fundamento em duas livranças ( fls.177 e 178 ), que erigiram como títulos executivos, reclamaram o pagamento da quantia de € 81.460,04.

1.2. – Os executados deduziram oposição à execução, alegando, em resumo, a inexequibilidade dos títulos, visto que os exequentes sendo co-avalista não podem socorrer-se da acção cambiária, mas apenas da acção comum, e a inexigibilidade parcial do crédito, por somente lhes assistir o direito na medida da quota da responsabilidade de cada um.

1.3. – Contestaram os exequentes/opoídos dizendo que os títulos executivos dados à execução são condição bastante e suficiente da acção executiva intentada contra os executados/opoentes e reduziram o pedido para a quantia de €40.730,02.

1.4. – No saneador-sentença julgou-se procedente a oposição à execução, declarando-se a extinção da instância executiva.

1.5. – Inconformados, os exequentes recorreram de apelação, com as seguintes conclusões:
[…]
II – FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – O Objecto do recurso:
As questões submetidas a recurso, cujo objecto é delimitado pelas conclusões ( arts.684 nº2 e 690 nº1 do CPC,) são as seguintes:
(1ª) Ampliação da matéria de facto;
(2ª) Saber se tendo um dos co-avalistas pago as livranças, pode executar os demais co-avalistas, com base nas livranças avalizadas.

2.2. - 1ª QUESTÃO
[…]
2.4. – 2ª QUESTÃO

2.4.1. - Nos termos do art.45 do CPC, toda a execução tem por base um título, pelo qual se determinam os fins e os limites da acção executiva.
Os exequentes erigiram como títulos executivos, duas livranças de crédito ( fls.177 e 178 ) subscritas pela sociedade E..., uma em 8/9/06, no valor de € 30.859,58, e outra em 20/10/06 , no valor de € 50.000,00, e ambas avalizadas por eles ( exequentes) e pelos executados.
Alegando terem pago a totalidade das livranças ao BPI, beneficiário, reclamam dos executados, enquanto co-avalistas, o montante de €40.730,02.
Ao pagamento coercivo, opuseram-se os executados através de oposição à execução, funcionando como uma contra-acção do devedor contra o credor para impedir a execução ou destruir os efeitos do título executivo.
Dado o disposto no art.816 CPC, se a execução se não baseia em sentença condenatória, além dos fundamentos de oposição especificados no art.814, na parte em que sejam aplicáveis ( e não o são os fundamentos das alíneas b), d), f) e g) ), pode invocar-se quaisquer outros que seria lícito deduzirem-se como defesa no processo de declaração.
Os executados invocaram, desde logo, a inexequibilidade dos títulos ( art.814 a) do CPC ), porquanto entre co-avalistas inexiste acção cambiária, mas sim relações de direito comum, e, por outro lado, as livranças não podem valer como quirógrafos, pela ausência de obrigação ou reconhecimento da dívida.
A sentença julgou procedente a oposição, sufragando a tese dos executados/opoentes.
Em contrapartida, insistem os exequentes/apelantes na exequibilidade, com fundamento nos arts.32, 47 e 77 da LULL e art.46 nº1 c) do CPC, sendo que as relações entre co-avalistas só deve regular-se pelo direito comum enquanto um deles não se tornar o legítimo portador da letra pelo seu pagamento.
Coloca-se, pois, a questão de saber se tendo um dos co-avalistas pago uma letra de câmbio ou livrança, pode reclamar dos demais co-avalistas o pagamento, com base nas letras ou livranças avalizadas.

2.4.2. -Segundo o art.30 da LULL, o pagamento de uma letra de câmbio ou de uma livrança ( art.77 ) pode ser em todo ou em parte garantido por aval, configurando-se a obrigação do avalista como uma obrigação de garantia autónoma, cuja extensão e conteúdo se afere pela obrigação do avalizado (arts.7 e 32 LULL).
Com efeito, dada a natureza jurídica do aval, quer o mesmo seja havido como uma “ fiança com regime jurídico especial ”, quer se lhe atribua o carácter de uma “ garantia objectiva ”, sempre se trata de uma garantia autónoma, distinta de qualquer outra obrigação cambiária. E o facto do avalista responder da mesma maneira que o avalizado ( art.32 LULL), apenas pretende significar que o conteúdo da obrigação do avalista é o mesmo que a da obrigação do avalizado. Daqui resulta que muito embora a obrigação do avalista seja igual à do avalizado, não assume a mesma figura cambiária deste.
Por outro lado, a autonomia da obrigação do avalista mantém-se mesmo que seja nula a obrigação do avalizado, salvo se a nulidade proceder de vício de forma (art.32 §2º LULL), respeitante aos requisitos externos da obrigação cambiária do aceitante ou subscritor da livrança.
Pelo aval constituem-se dois grupos de relações: os do portador com o avalista e as do avalista com o avalizado e obrigados precedentes.
A lei não proíbe a pluralidade de avales, designadamente o aval colectivo, também designado de co-aval.
Como já se expendeu no Ac RC de 19/2/04, proc. nº 401903 ( do mesmo relator), e disponível na base de dados em www dgsi.pt, na situação de aval colectivo ao mesmo devedor, configuram-se dois níveis de relações jurídicas: por um lado, a relação dos co-avalistas com o portador e, por outro, a relação dos avalistas entre si.

Nas relações dos co-avalistas com o portador ou nas relações com o avalizado e obrigados precedentes, os direitos, obrigações e pressupostos da acção, são os definidos para o aval singular, como garantia autónoma, não subsidiária ou acessória, mas cumulativa.

A obrigação é de natureza estritamente cambiária, logo o co-avalista que pague a letra tem acção cambiária ( arts.32 §3º, 43 da LULL) contra o avalizado e obrigados precedentes.

Na relação dos co-avalistas entre si, não há nexo cambiário, a obrigação é regulada pelo direito comum.

Com efeito, no aval colectivo ao mesmo devedor não existe qualquer nexo cambiário entre os avalistas, tal como propusera a delegação italiana à Conferência de Genebra e que ficou a constar do relatório da LU a explicitar os arts.31 e 47 a seguinte consideração ( nº75 ):
“ Acerca deste preceito ( do art.47 ), a Conferência emitiu a opinião de que, quando haja obrigados do mesmo grau ( hipótese de concurso de vários avalistas que garantem o mesmo devedor ), embora tenham assinado sucessivamente, ele não podem exercer uns contra os outros a acção cambiária que resulta da letra.
Salvo acordo em contrário, as suas mútuas relações devem ser reguladas pelas disposições de direito comum, aplicáveis às obrigações solidárias “.
Por isso, o avalista que paga não tem uma acção cambiária contra os avalistas do mesmo grau para realizar parte da soma que lhe cabe na divisão da responsabilidade, já que a acção cambiária só a tem contra o avalizado, a favor de quem deu o co-aval e contra os obrigados precedentes.
Nas relações entre os co-avalistas não se aplica o art.32 §3º – “ Se o dador de aval paga a letra, fica sub-rogado nos direitos emergentes da letra contra a pessoa a favor de quem foi dado o aval e contra os obrigados para com esta em virtude da letra”.
Ora, os executados não são pessoas a favor de quem foi dado o aval e não são obrigados a favor da mesma pessoa, pois é obrigado a favor do beneficiário da livrança. Também não tem aplicação o art.43 da LULL, porquanto ainda que sejam portadores do título, em virtude do pagamento, a verdade é que não perderam a qualidade de co-avalistas ( cf., neste sentido, Ac do STJ de 29/4/08, proc. nº08A1103, em www dgsi.pt ).
Assim, as relações internas entre os co-avalistas, se nada for convencionado, são reguladas pelo direito comum, ou seja, o regime da fiança, cujo art.650 nº1 do CC remete para as obrigações solidárias.
( Sobre a natureza não cambiária das acções entre co-avalistas cf., por ex., GONSALVES DIAS, Da Letra e da Livrança,.vol.VII, pág.588 e 589, Ac do STJ de 22/4/53, BMJ 43, pág.536, de 16/3/56, BMJ 55, pág.299, de 21/2/67, BMJ 164, pág.335, de 24/10/02, C.J. ano X, tomo III, pág. 121, de 15/11/07, proc. nº07B1296, em www dgsi.pt.).
A este propósito, refere G. DIAS:
“ De certeza, podemos pois deduzir que entre os co-avalistas não existe um nexo cambiário, isto é, o avalista que paga não tem uma acção cambiária contra os avalistas do mesmo grau, para realizar parte da soma que possa caber-lhe na divisão da responsabilidade. Acção cambiária só a tem contra o avalizado, a favor de quem deu o co-aval e contra os obrigados precedentes, como vem na alínea III do art.32º”.
“ O modo de regularas relações internas depende da convenção entre os co-avalistas. Se nada convencionarem, opera a regra da divisão proporcional, como vem estabelecido no artigo 845º do Código Civil para a fiança comum”( loc. cit., pág.588).
Ao dissertar recentemente sobre esta temática, também PEDRO PAIS VASCONCELOS (“ Pluralidade de avales por um mesmo avalizado e “regresso” do avalista que pagou sobre aqueles que não pagaram “, Nos 20 Anos do Código das Sociedades Comerciais, Coimbra Editora, 2007, pág.947 e segs. ) sustenta que o avalista que paga tem acção cambiária de regresso, conforme art.32 da LUL, contra o avalizado e ainda contra todos aqueles intervenientes cambiários contra quem o avalizado tenha acção cambiária, mas já não a tem contra os demais avalistas que não pagaram.
Diverge, porém, da opinião dominante, mas de forma consistente, ao defender que só extracambiariamente o avalista que pagou pode accionar os demais avalistas do mesmo avalizado que não tiverem pago, mas desde que alegue e prove a convenção nesse sentido, por não ser de aplicar directa, analógica ou presuntivamente o regime da fiança.
Uma vez que as relações entre os co-avalistas não têm natureza cambiária, é por demais evidente que as livranças não constituem títulos executivos, enquanto títulos cambiários.

2.4.3. - Vejamos, no entanto, se as livranças podem servir de títulos executivos, nos termos do art.46 alínea c) do CPC, agora como documento particular, assinado pelo devedor, desprovido das características específicas dos títulos de crédito.
Como se sabe, esta problemática tem sido objecto de duas correntes jurisprudenciais:
a) - Uma, no sentido de que a letra, livrança ou cheque que não reúnam condições para valer como título de crédito, não podem ser constitutivos ou certificativos de uma obrigação, logo, não podem servir de título executivo.
Argumenta-se, em síntese, que as livranças, letras e cheques já eram títulos executivos antes da reforma processual de 1995/96, pelo que nunca esteve na mente nem nos propósitos do legislador alterar a LULL e LUC, nem bulir no regime aí consagrado, ou sequer modificar os requisitos de exequibilidade desses títulos ( cf., por ex., do STJ de 29/2/00, C.J., ano VIII, tomo I, pág. 124, de 16/10/01, C.J., ano IX, tomo III, pág. 89, de STJ de 20/11/03, C.J. ano XI, tomo III, pág. 154 , Ac RC de 6/2/01, C.J., ano XXVI, tomo I, pág. 28 ).
b) – Outra, partindo da ampliação dos títulos executivos resultante a nova redacção do art.46 alínea c) do CPC, defende que extinta a obrigação cartular incorporada na letra, livrança ou cheque, mantém a sua natureza de título executivo, por se tratar de documento particular assinado pelo devedor, desde que neles se mencione a causa da relação jurídica subjacente ou que tal causa de pedir seja invocada no requerimento executivo ( cf., por ex., Ac do STJ de 18/1/01, C.J. ano IX, tomo I, pág.71, de 29/1/02, C.J. ano X, tomo I, pág.64, de 30/10/03, de 16/12/04, www dgsi.pt/jstj ).
Muito embora seja de adoptar esta segunda orientação (aliás, prevalecente), o certo é que a exequibilidade do documento ( título de crédito), como quirógrafo, fica “ limitada às situações em que do respectivo texto resulte a assunção de uma obrigação de pagamento da quantia nela inscrita de que seja beneficiária a pessoa nele indicada” ( ABRANTES GERALDES, Títulos Executivos, Themis ano IV, nº1 ( 2003), pág.64 ).
Pois bem, tal não sucede aqui. Desde logo, porque os documentos dados à execução não importam a constituição ou o reconhecimento de obrigação pecuniária dos avalistas entre si.
Depois, porque os documentos nem sequer podem conter a determinação da responsabilidade de cada um dos co-obrigados ( cf. Ac RL de 11/10/07, proc. nº81792007, www dgsi.pt ).
Por isso, se um dos co-avalistas pagar a livrança, não pode executar os demais co-avalistas, erigindo como título executivo a livrança avalizada, quer como título de crédito, quer como quirógrafo.
Improcede a apelação, confirmando-se a douta sentença recorrida.

2.5. – Síntese conclusiva:
1. - No aval colectivo ao mesmo devedor, configuram-se dois níveis de relações jurídicas: a relação dos co-avalistas com o portador e a relação dos avalistas entre si.

2. – Nas relações dos co-avalistas com o portador ou nas relações com o avalizado e obrigados precedentes, os direitos, obrigações e pressupostos da acção, são os definidos para o aval singular, sendo a obrigação de natureza estritamente cambiária. Caso um dos co-avalistas pague a letra ou livrança, pode exercer acção cambiária contra o avalizado e obrigados precedentes ( arts.32 §3º, 43 da LULL)

3. - Na relação dos co-avalistas entre si, não há nexo cambiário e a obrigação é regulada pelo direito comum, podendo aplicar-se o regime da fiança ( art.650 do CC ).

4. - Se um dos co-avalistas pagar a letra ou livrança, não pode executar os demais co-avalistas, erigindo como título executivo a letra ou livrança avalizadas.

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.
2)
Condenar os apelantes nas custas.
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Coimbra, 24 de Junho de 2008.