Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
357/05.7TBCDN-B.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: FRANCISCO CAETANO
Descritores: EMBARGOS DE TERCEIRO
PRESUNÇÃO
POSSE
PROVAS
Data do Acordão: 11/17/2009
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: CONDEIXA-A-NOVA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTIGOS 342.º, N.º 1; 1252, N.º 2 DO CÓDIGO CIVIL; 690.º-A, 1,B) DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL
Sumário: 1. Impugnada na contestação matéria de facto alegada na petição inicial e dada como não provada por ausência de concreto meio de prova que impusesse decisão diversa, não pode aquela decisão ser alterada pela Relação (n.º 1, alín. b), do artigo 690.º-A do Código de Processo Civil);

2. Sendo os embargos de terceiro meio de defesa, não só da posse, como também do direito de propriedade sobre os bens penhorados, não provado este, por parte da embargante, improcedem os embargos (artigo 342.º, n.º 1, do CC);

3. A presunção de posse decorrente do n.º 2 do artigo 1252.º do Código Civil não dispensa a embargante de alegar e provar o elemento material da posse (corpus), pelo que, não cumprindo o respectivo ónus, improcedem os embargos, também com esse fundamento (artigo 342.º, n. 1, do Código Civil).

Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra

            I. Relatório

A.... e mulher B.... e C...., por apenso à Execução Comum n.º 357/05.7TBCDN-A pendente no Tribunal Judicial de Condeixa-a-Nova, deduziram embargos de terceiro contra a aí exequente “D....com vista ao levantamento da penhora efectuada sobre os bens que constituíam as verbas n.ºs 10, 13, 14, 16 a 28 e 33 do respectivo auto de penhora, que foram removidos de casa dos embargantes em 16.11.06.

Alegaram, para tanto, os primeiros, terem o usufruto de um prédio urbano cuja nua propriedade doaram à 2.ª e a uma irmã, suas netas, por escritura pública de 27.9.00, juntamente com os móveis integrantes do seu recheio.

Parte dos móveis tinham sido adquiridos pelos 1.ºs embargantes à E....(verbas n.ºs 13, 14 e 17 a 27), enquanto outros, como a máquina de aquecimento central e equipamento de videovigilância (verbas n.ºs 10 e 16), já integravam o prédio aquando da sua aquisição aos anteriores proprietários, enquanto o da verba n.º 28 (cofre de marca “STOPLORK”), que pertencera aos executados, fora adquirido pela embargante C... em processo de execução anterior e o móvel da verba n.º 33 (aparelho de TV) é propriedade da mesma embargante, que o adquiriu em 27.12.04.

No despacho liminar foi ordenado fosse apresentada petição de embargos corrigida com vista a serem deduzidos não só contra o embargado, mas também contra os executados, o que foi feito relativamente a F.... e G....e “H....

Recebidos os embargos e notificadas as partes primitivas para os contestarem, apenas a exequente “D….” os contestou, excepcionando a ilegitimidade dos 1.ºs embargantes, com fundamento, por um lado, em serem usufrutuários do imóvel, que não foi objecto de penhora e, por outro, não terem a posse dos móveis que alegadamente doaram à 2.ª embargante e irmã, a extemporaneidade (caducidade) dos embargos, na medida em que os 1.ºs embargantes tomaram conhecimento da penhora em 27.10.06 e só os deduziram em 18.12.06, e impugnaram a demais matéria alegada, com fundamento em que os bens penhorados eram pertença dos executados G....e F.... (filho e nora daqueles), que se encontravam na residência do casal e por este, como tal, usados e fruídos, à vista de toda a gente, de boa fé e sem oposição de quem quer que fosse, há mais de 8 anos à data do auto de penhora, sendo que o bem das verbas n.º 28 (cofre) e 33 (TV) são bens diversos dos adquiridos pela embargante C..., sendo propriedade dos executados e não desta sua filha que, enquanto estudante universitária, não dispunha de rendimentos próprios para os adquirir.

Impugnou, finalmente, a doação dos móveis, de que não houve tradição, nem documento escrito, como o exige o n.º 2 do art.º 947.º do Cód. Civil, e concluiu pela litigância de má fé dos embargantes e consequente pedido indemnizatório de € 2.500,00, pela ilegitimidade dos 1.ºs embargantes e extemporaneidade dos embargos ou improcedência destes.

Proferido despacho saneador, foram os 1.ºs embargantes julgados parte ilegítima e julgado prejudicado o conhecimento da excepção de caducidade dos embargos e dispensada a fixação da base instrutória.

Instruídos os autos, veio a ter lugar a audiência de discussão e julgamento e, finda, foi lida a decisão sobre a matéria de facto, que não sofreu reclamação.

Proferida sentença, julgaram-se improcedentes os embargos e ordenou-se o prosseguimento da execução.

Inconformado, recorreu, de apelação, a embargante C...., em cujas alegações formulou as seguintes e relevantes conclusões, delimitadoras do objecto do recurso:

a) – A exequente “D….” na oposição aos embargos não contestou a posse da embargada sobre os móveis penhorados, limitando-se a questionar a sua propriedade sobre os mesmos, defendendo que eram propriedade dos executados G…. e esposa F….;

b) – Nenhuma prova se fez quanto à propriedade dos mesmos móveis, os quais se encontravam na casa doada à embargante;

c) – A embargante goza, por isso, da presunção de posse estabelecida no n.º 2 do art.º 1252.º do CC, pelo que não carecia de provar tal posse;

d) – A sentença recorrida atentou apenas na propriedade ignorando a questão da posse a cuja defesa se destinavam os embargos;

e) – A decisão recorrida violou o indicado n.º 2 do art.º 1252.º do Cód. Civil, pelo que deve ser revogada e substituída por outra que julgue procedentes os embargos.

Houve lugar a resposta por parte da embargada “ D...” no sentido da manutenção do decidido.

Cumpre apreciar, sendo que são questões a decidir:

            a) – Modificação da matéria de facto, no sentido de dar como provada a matéria do art.º 12.º da petição de embargos por falta de impugnação da embargante recorrida;

            b) – Presunção de posse do n.º 2 do art.º 1252.º do CC e possível procedência dos embargos.

*

            2. Fundamentos

            2.1. De facto

            Foi a seguinte a matéria de facto dada como provada pela 1.ª instância:

            a) – No dia 27.9.00 (e não 27.12.00, como por lapso se indica), por escritura de doação, A....e mulher B....declararam que, por força da quota disponível de seus bens e com reserva de usufruto doam em comum a suas netas I.... e J....o prédio urbano composto de casa de habitação de rés-do-chão, 1.º andar, sótão e logradouro, sito na vila e freguesia da Sertã, com a área total de 400 m2, descrito na Conservatória do Registo Predial da Sertã, sob o n.º 1535.º, com a inscrição de aquisição G3 a favor dos doadores, inscrito na matriz predial respectiva sob o art.º 4647;

            b) – O móvel descrito sob o n.º 28 do auto de penhora, ou seja, um cofre forte, não é o mesmo objecto que a embargante diz ter adquirido;

            c) – O bem apreendido sob o n.º 28 do auto de penhora é um cofre forte de marca “Ilco Unican”, de cor bege escuro, de marca “STOPLORK”;

            d) – O móvel descrito sob o n.º 33 ( e não 23 como por lapso se indica) do auto de penhora não corresponde ao aparelho que a embargante diz ter adquirido em 27.12.04.

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            a) - Pretende a recorrente se lhe adicione a matéria do art.º 12.º da petição enquanto reportada à embargante, ou seja, de que “a penhora ofendeu a posse dos embargantes, mormente a partir da data em que o Sr. Solicitador de Execução procedeu à sua remoção das casa dos embargantes (16.11.06)”.

            Contrariamente ao sustentado pela recorrente, a embargada ora recorrida “D….” cumpriu o ónus de impugnação especificada, a que tanto o obrigavam os artºs 357.º, n.º 1 e 490.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, relativamente a tal matéria, como se vê do art.º 38.º da sua contestação.

            Não é, portanto, com esse fundamento que esta Relação poderá modificar a resposta negativa que foi dada à matéria daquele art.º 12.º da petição de embargos, que é, aliás, conclusiva.

            E porque os depoimentos orais produzidos em audiência de julgamento não foram reduzidos a escrito e ainda porque não foi indicado nenhum meio probatório que impusesse alteração da decisão (n.º 1, alín. b) do art.º 690.º-A do CPC), outro fundamento não há para a modificar, nem aliás tal faz parte do objecto do recurso.

            Soçobra, assim, a 1.ª conclusão enunciada.

*

            b) – Dispõe o n.º 1 do art.º 351.º do CPC que “se a penhora, ou qualquer acto judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofender a posse ou qualquer direito incompatível com a realização ou âmbito da diligência, de que seja titular quem não é parte na causa, pode o lesado fazê-lo valer, deduzindo embargos de terceiro”.

            Este preceito, resultante da alteração do art.º 1.º do DL 38/03 de 8.3 (que lhe introduziu, apenas, o termo penhora) tem na sua base a redacção dada pelo DL n.º 329-A/95 de 12.12, na sequência do que os embargos de terceiro deixaram de se limitar à defesa da posse ofendida por qualquer diligência judicial, nomeadamente penhora, arresto, posse judicial avulsa ou despejo, para serem defesa, também, de qualquer direito incompatível com a subsistência da agressão patrimonial, v. g., o direito de propriedade ou outro direito real de gozo, menor.

            Daí que seja injusta, para a sentença recorrida, a crítica da recorrente de que a mesma assentou “num erro crasso ao cuidar da propriedade, mas ignorar a posse, que é o fundamento do instituto”.

            Sendo que o contrato de doação constitui um dos modos de aquisição do direito de propriedade (art.º 1316.º do Cód. Civil), quanto à doação de coisas móveis dispõe o n.º 2 do art.º 947.º do CC não depender a mesma de qualquer formalidade externa quando acompanhada de tradição da coisa doada e, não sendo acompanhada de tradição, só ser válida se for feita por escrito.

            Ora, tal como a recorrente expressa na conclusão 1.ª das suas alegações de recurso, desde logo por virtude da atitude dos avós, que se recusaram a depor, a embargante não logrou fazer prova de que com a doação da casa estes lhe fizeram igualmente doação dos móveis que integravam o seu recheio.

            Daí que, por tal se tratar de facto constitutivo do seu direito, sobre a recorrente incidia o ónus da prova (art.º 342.º, n.º 1, do CC).[1] [2]

            E, porque não cumprido esse ónus, acertada foi a improcedência dos embargos com tal fundamento.

            Mas, não obstante a falta de prova da propriedade, a procedência dos embargos poderia advir da prova da posse sobre os bens penhorados e essa é a pretensão da recorrente ao querer valer-se da presunção do n.º 2 do art.º 1252.º do CC.

            Dispõe esse preceito, ao regular a “posse por intermediário” que “em caso de dúvida, presume-se a posse naquele que exerce o poder de facto (…)”.

            Como salientam Pires de Lima e Antunes Varela[3], “o n.º 2 estabelece uma presunção de posse em nome próprio, por parte daquele que exerce o poder de facto, ou seja, daquele que tem a detenção da coisa (corpus)” e “justifica-se esta presunção, dado que é difícil, se não impossível, fazer a prova da posse em nome próprio, que não seja coincidente com a prova do direito aparente; e este pode inclusivamente não existir. Cabe, portanto, àquele que se arroga a posse provar que o detentor não é possuidor. E pode fazê-lo por qualquer meio”.

            Dito de outro modo, enquanto que, em princípio, qualquer embargante teria de alegar e provar que tem a posse, ou seja, que exerce poderes de facto sobre a coisa penhorada (corpus) com intenção de se comportar como titular do direito real correspondente aos poderes exercidos, v. g., do direito de propriedade (animus), no que respeita à prova do animus, aquele que exerce os poderes de facto sobre a coisa, beneficia da presunção da posse em  nome próprio, nos termos desse preceito.

            Em qualquer dos casos, porém, e em especial quanto a este último, que é o que está em apreciação, ao embargante compete fazer a prova do elemento material da posse (corpus), ou seja, detenção e/ou fruição com exercício de certos poderes, mormente de proprietário, sobre a coisa, para, então, beneficiar da presunção (art.º 342.º, n.º 1 do CC).[4]

            Ora, porque, também aqui, a embargante não cumpriu o ónus da prova que sobre si impendia, quanto à maioria dos bens e sendo que quanto a dois deles (cofre da verba n.º 28 e aparelho de TV da verba n.º 33) se fez prova de não corresponderem aos por si adquiridos, outro destino não poderiam os embargos ter que não a sua improcedência.

            Eis por que soçobram, também, as demais conclusões recursivas.

Em suma:

            a) – Porque a matéria do art.º 12.º da petição de embargos foi impugnada no art.º 38.º da contestação e porque se não indicou qualquer concreto meio de prova que impusesse decisão diversa, a resposta negativa que lhe foi dada não pode ser alterada por esta Relação (n.º 1, alín. b), do art.º 690.º-A do CPC);

            b) – Sendo os embargos de terceiro meio de defesa, não só da posse, como também do direito de propriedade sobre os bens penhorados, não provado este, por parte da embargante, improcedem os embargos (art.º 342.º, n.º 1, do CC);

            c) – A presunção de posse decorrente do n.º 2 do art.º 1252.º do CC não dispensa a embargante de alegar e provar o elemento material da posse (corpus), pelo que, não cumprindo o respectivo ónus, improcedem os embargos, também com esse fundamento (art.º 342.º, n. 1, do CC).

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            3. Decisão

            Face a todo o exposto, acordam em julgar improcedente a apelação e confirmar a sentença recorrida.

            Custas pela apelante.

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            Coimbra, 17/11/2009


[1] V. Ac. STJ de 11.7.06, Proc. 06B2373.
[2] Já quanto à falta de prova do direito de propriedade relativamente aos executados a resposta negativa dada aos respectivos pontos de facto nada permite concluir, tudo se passando como se tal matéria não tivesse sido articulada e submetida ao julgamento, que era, aliás, o que, em rigor, deveria ter acontecido, impertinente que era à causa de pedir dos presentes autos.
[3] “Cód. Civil, Anot.”, III, 2.ª ed., pág. 8
[4] V. Acs. STJ de 28.2.89, Proc. 002292, 20.10.98, Proc. 98A901 e 13.1.00, Proc. 99B1025, todos no ITIJ