Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3481/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. ISAÍAS PÁDUA
Descritores: RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL
DESMORONAMENTO DE UM PRÉDIO DEVIDO A OBRAS REALIZADAS NO PRÉDIO VIZINHO
Data do Acordão: 12/09/2003
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: SOURE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: CONFIRMADA
Área Temática: CÓDIGO CIVIL
Legislação Nacional: ART. 1348º DO C. C.
Sumário:
I- O conceito de actividade perigosa referido no nº 2 do artº 493 do CC deve ser aferido em cada caso e segundo as circunstâncias concretas, muito embora se deva partir do conceito abstracto de perigosidade.
II- É de considerar perigosa a actividade da construção civil que envolve o prévio desmoronamento de prédios urbanos contíguos a outros, e onde ainda são empregues máquina retroescavadoras.
III- O regime especial de indemnização previsto no artigo 1348, nº 2, do CC só é aplicável aos proprietários dos prédios vizinhos danificados com as obras (e já não, por ex., aos arrendatários que neles vivam).
IV- Para efeitos de cálculo do início de mora, a correcta interpretação e aplicação da al. b) do nº 2 do artº 805 do CC exige que o princípio nela consignado seja conjugado com a regra contida no nº 3 desse mesmo preceito legal.
V- Por força da actual redacção do nº 3 do artº 805 do CC, em matéria de responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos ou pelo risco, o crédito de juros, por efeitos de mora, apenas se constitui, como regra, com a citação do devedor, quer diga respeito a indemnização por danos patrimoniais, quer se refira a danos não patrimoniais (e salvo se a respectiva indemnização tiver sido objecto de actualização, caso em então em que o vencimento dos juros só ocorrerá a partir da decisão actualizadora).
Decisão Texto Integral: Acordam na 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
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I- Relatório
1- A autora, Maria Joana Dolores, instaurou contra os réus, António Narciso, Fernando João Aires de Freitas Rolo e Arlindo de Sousa Travassos, todos com os demais sinais dos autos, a presente acção declarativa condenatória, com forma de processo sumário, alegando para o efeito, e em síntese, o seguinte:
A autora, na qualidade de arrendatária, vivia num prédio urbano contíguo a um outro prédio propriedade do réu Narciso.
No ano de 1994, o referido réu iniciou a construção de um novo edifício no lugar ocupado por aquele, sem que para efeito dispusesse do necessário alvará camarário de licença para essa construção.
Para o efeito celebrou com o réu Arlindo um contrato de empreitada, no qual se incluía a demolição do antigo edifício.
Porém, para a execução da demolição das paredes antigas e abertura de fundações foram realizados trabalhos de escavações, tendo para o efeito aqueles dois réus contratado o réu Fernando, para que este executasse tais trabalhos com a sua rectroescavadora, sendo que réu Arlindo não dispunha também da necessária autorização municipal para a realização desses trabalhos, sem que, inclusivé, existisse qualquer projecto, por parte dos réus, e nomeadamente para não privar o prédio, habitado pela autora, do apoio necessário para evitar o seu desmoronamento.
Acontece que, na sequência da realização de tais trabalhos, no dia 23/03/95, o prédio habitado pela autora veio a ruír ou desmoronar-se parcialmente.
Desmoronamento esse que a autora responsabiliza devido à conduta dos três aludidos réus, por terem actuado, todos eles, com manifesta imprevidência, falta de cuidado e desrespeito das mais elementares regras de construção e a que estavam obrigados.
Devido a tal desmoronamento a autora sofreu, além do mais, vários danos de natureza não patrimonial, nomeadamente por ter corrido perigo de vida quando o mesmo ocorreu e por ter sido obrigada a abandonar o locado, com todos os inconvenientes que daí advieram para si.
Pelo que terminou pedindo que os réus sejam condenados solidariamente a pagarem-lhe, a título de danos não patrimoniais, uma indemnização no valor de esc. 1.400.000$00, acrescida dos juros moratórios vencidos, à taxa legal, desde a data da prática do ilícito em causa.

2- Citados para o efeito, todos os réus vieram contestar, nos termos das suas contestações apresentadas, a fls. 27/29 (do réu Narciso), 37/45 (do réu Fernando) e 50/54 (do réu Arlindo).
Nessas contestações, todos os réus se defenderam por excepção e por impugnação, negando cada um deles qualquer responsabilidade no desmoronamento do prédio em causa, tendo ainda o Réu Fernando, à cautela, considerado exagerado o montante indemnizatório pedido pela autora e que os juros de mora por ela pedidos só poderiam ser devidos após a sua citação. No que concerne àquela 1ª defesa, enquanto o réu Narciso começou por invocar a prescrição do direito da autora, cada um dos restantes dois réus invocou a sua iligitimidade para serem demandados na presente acção.
No final daqueles seus articulados todos os réus acabaram por pedir, inicialmente, a sua absolvição da instância ou, caso assim não se entendesse, a improcedência da acção em relação a cada um deles, com a sua absolvição do pedido.

3- No seu articulado de resposta, a autora pugnou pela improcedência das excepções aduzidas por cada um dos aludidos réus, acabando ainda por pedir que cada deles fosse condenado no pagamento de uma quantia no valor de esc. 10.000$00 por cada dia de atraso no cumprimento da decisão da 1ª instância, e bem assim ainda que cada um deles fosse, igualmente, condenado, como litigante de má fé, a pagar-lhe uma indemnização nunca inferior de esc. 50.000$00.

4- Através do seu requerimento de fls. 86/88, o réu Fernando veio opôr-se aquela ampliação do pedido, pugnando, por falta dos respectivos pressupostos legais, pela sua improcedência, e pedindo antes que fosse a autora a ser condenada como litigante de má fé.

5- Foi então proferido o despacho saneador, no qual foram julgadas improcedentes a excepções supra referidas aduzidas pelos réus, tendo sido julgada, igualmente, improcedente a ampliação do pedido da autora traduzido na condenação dos reús na sanção pecuniária prevista no artº 829-A do CC.
5-1 No mais, afirmou-se aí a validade e a regularidade da instância, passando-se, de seguida, à elaboração da selecção da matéria facto, sem que tivesse, todavia, sido objecto de qualquer censura.

6- Após a instrução do processo, teve lugar a realização do julgamento, com a gravação da audiência.
6-1 A resposta aos diversos pontos da base instrutória teve lugar, sem que tivesse sido objecto de qualquer reclamação.

7- Mais tarde, teve lugar a prolação da sentença de fls. 233/237, na qual, e através, dos fundamentos aí aduzidos, julgando-se parcialmente a acção e, em consequência se absolveu o réu Fernando do pedido contra si formulado nestes autos pela autora, condenando-se, por sua vez, os réus Narciso e Arlindo a pagar à última, a título de indemnização por danos não patrimoniais, a quantia de euros 6.983,17 (seis mil novecentos e oitenta e três euros e dezassete cêntimos), acrescida de juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, contados desde 21/03/1995, até ao seu integral pagamento.
Aí considerou-se ainda não se vislumbrarem motivos para condenar alguma das partes como litigante de má fé.

8- Não se conformando com a aludida sentença, os reús, Narciso e Arlindo, dela interpuseram recurso, o quais foram recebidos como apelação, e com efeito meramente devolutivo.

9-1 Nas suas alegações de recurso, apresentadas a fls. 275/279, o réu Arlindo concluiu nos seguintes termos:
1ª- O objecto do processo é um pedido de indemnização pelos danos que a demolição de uma casa antiga do R. Narciso, contígua com uma da autora, causaram à autora;
2ª- O R. Arlindo – o empreiteiro – apenas aqui aparece pelo facto de ter celebrado um contrato de empreitada com o R. Narciso – o dono da obra – para a construção de uma casa no sítio daquela;
3ª- A conjugação da base instrutória com os factos dados como provados conduz à obscuridade do respectivo conjunto e do inciso decisório em que se exara que o R. Arlindo deverá ser condenado, a título de indemnização, pelos danos não patrimoniais sofridos pela A.;
4ª- Está sobejamente provado que o R. Arlindo, aqui alegante, celebrou um contrato de empreitada com o R. Narciso;
5ª- O direito a indemnização, como pedido da presente acção, surge no âmbito e em consequência da demolição de uma vivenda antiga, para no mesmo local ser construída uma nova obra, propriedade do R. Narciso, e para cuja construção este celebrou um contrato de empreitada com o aqui alegante, R. Arlindo;
6ª- Não se provou – nem tinha, necessariamente, de se provar – que o Réu Arlindo tenha actuado com culpa, com ilicitude e muito menos que tenha havido um nexo de causalidade entre o facto e os danos sofridos pelo lesado.
7ª- No caso concreto admitimos estar no âmbito da responsabilidade independente de culpa, nos termos do art. 1348º, nº 2 do CC.
8ª- A 1ª Instância violou, por erro de interpretação e/ou aplicação, os arts. 349º, 483º e 1348º, todos do Código Civil.
8ª- A sentença posta em crise deve ... ser revogada, decidindo-se pela Absolvição do R. Arlindo e, consequentemente, julgando-se a acção improcedente relativamente ao R. Arlindo de Sousa Travassos.
9ª- Quando não, deve anular-se o julgamento em face da supra alegada deficiência e obscuridade da matéria de facto apurada...

9-2 Por sua vez, nas sua alegações de recurso, apresentadas a fls. 288 a 300, o réu Narciso concluiu também nos termos seguintes:
1- Para a construção de uma casa, o Réu Narciso, em Novembro de 1994, iniciou obras que envolviam a demolição de uma casa antiga existente na mesma área, o que fez, deixando, apenas, em pé duas paredes que serviam aos prédios confinantes, entre as quais a da casa habitada pela Autora.
2- Para essa construção, o Réu Narciso celebrou um contrato de empreitada – e não um contrato de construção de prédio em regime de administração directa que juridicamente a distinção é relevante, na medida em que o que classifica este último (o contrato de construção de prédio em regime de administração directa) é a falta de risco, agindo o construtor como empregado do dono da obra, qualquer que seja a autonomia técnica de disfrute ...,enquanto que, no contrato de empreitada, o empreiteiro age com autonomia na execução da obra, sendo responsável pelos danos que dela sobrevierem, excepto se os mesmos forem devidos a defeitos de projecto ou do terreno, o que na presente situação não se verificou – com o Réu Arlindo de Sousa Travassos, empreiteiro de profissão, ficando o segundo obrigado a fornecer mão de obra e materiais a levantar as paredes exteriores e interiores.
3- Para executar a remoção de entulho proveniente de demolição parcial, a fim de se proceder à abertura de alicerces, o Réu Narciso contratou previamente o Réu Fernando Rolo que com uma máquina retroescavadora procedeu à remoção desse entulho.
4- Para proceder à limpeza do terreno e, pelo menos, para proceder à abertura do alicerce, junto da parede da casa habitada pela Autora, o empreiteiro previamente procedeu ás indispensáveis medições, localização e profundidade das sapatas e alicerces, tendo colocado empregados seus no local.
5- O empreiteiro – porque era o único que tinha conhecimentos técnicos para saber qual a profundidade dos alicerces e sapatas, tendo em consideração o tipo de terreno e a própria construção – deu ordens ao manobrador da máquina para proceder à abertura de sapatas e aos seus empregados para efectuarem, pelo menos, a abertura do alicerce junto à parede da casa habitada pela Autora, traduzindo-se tais ordens na marcação com cal dos locais de abertura.
6- Não foram os trabalhos de demolição, executados em Novembro de 1994, que afectaram as fundações da parede da casa habitada pela Autora, tanto mais que a parede em causa e a que servia o outro prédio confinante ficaram de pé naquela data, mas sim os trabalhos de escavação, levados a cabo no dia 21 de Março de 1995, para a construção de uma sapata para um pilar.
7- Não parece que, no caso em apreço, o Réu Narciso seja corresponsabilizado nos termos do art. 1348º do CC, uma vez que, para além da existência do contrato de empreitada, e atenta a demais factualidade dada como provada, na altura em que se deu o desmoronamento da parede, o dono da obra não tinha conhecimentos técnicos para fiscalizar os trabalhos que estavam a ser executados pelo autor da obra.
8- Contudo, não repugnaria que o dono da obra – o Réu Narciso – fosse considerado responsável pelos danos causados à Autora provocados com a abertura das sapatas e alicerce, se o autor da obra – o Réu Arlindo Travassos – não fosse parte na causa, situação que não se verifica, pois que ele é também Réu.
9- Para a Autora, como lesada, seria até irrelevante que a obra fosse levada a cabo pessoalmente pelo dono do prédio (ou através de pessoal que dele dependesse por vínculo laboral) ou antes por empreiteiro contratado (sob direcção do próprio empreiteiro e sem vínculo de subordinação ao dono da obra).
10- Mas a Autora propôs a acção também contra o empreiteiro, por considerar que ele seria responsável pelos danos que lhe foram causados.
11- Na verdade o que a Autora pretende é ser ressarcida, através de indemnização por danos não patrimoniais sofridos como resultado do desmoronamento da parede e parte do telhado da casa por si habitada, em consequência da abertura de sapatas e alicerce, independentemente da indemnização ser liquidada por ambos (autor da obra ou dono da mesma) ou por apenas um deles.
12- No caso de insolvência de um ou outro Réu, a Autora poderá exigir a indemnização apenas do Réu não insolvente, situação que, na circunstância, tanto quanto se presume, não se verifica, porque nenhum dos Réus, António Narciso e Arlindo Travassos, está insolvente, podendo a Autora exigi-la de um ou de ambos.
13- Estando em causa a salvaguarda do interesse da Autora, e devendo considerar-se o empreiteiro como o único responsável pelos danos que lhe foram causados, nos termos dos arts. 483º, 1207º e 1208º, todos do CC, nunca o Réu Narciso deveria Ter sido condenado conjuntamente com o Réu Arlindo Travassos a pagar à Autora, a título de indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos, a quantia de 6.983,17 euros, acrescida de juros moratórios.
14- Mas, no caso de se vir a confirmar a douta sentença do Tribunal “a quo”, o que se aceita apenas por mera cautela, deverá o autor da obra (o Réu Arlindo Travassos), na circunstância, ser considerado como devedor principal e o dono da obra (o Réu António Narciso) como devedor subsidiário, com as legais consequências.
15- A indemnização fixada pelo Tribunal “a quo” é desproporcional (por pecar por excesso) aos danos não patrimoniais sofridos pela Autora, pelo que, não obstante os factos dados como assentes nas alíneas 30 e seguintes, o montante de uma justa indemnização não deverá ir além dos 2.500 euros.
16- Considerando que à indemnização em causa, por danos não patrimoniais, não se aplicam os ditames dos arts. 562º, 563º, 564º, nº 1, e 566º, nº 2, todos do CC, face ao que dispõe a 1ª parte do nº 3 do art. 805º, do mesmo diploma, a mora só existe a partir do momento em que o crédito se tornar líquido, o que só aconteceu a partir da sentença, pelo que os juros só devem ser contados a partir dessa data.
17- O recorrente não está constituído na obrigação de indemnizar a recorrida pelos danos não patrimoniais que lhe advieram do desmoronamento da parede da casa por si habitada e cujo ressarcimento pede na acção, pelo que foram violados, pelo menos, os arts. 483º, 406, nº 1, 762º, nº 1, 799º, nº 1, 805º, nº 3 (1ª parte), 1207º, e 1208º, todos do CC.
Termos em que.... deve revogar-se a sentença recorrida, no sentido acima exposto, com a consequente absolvição do réu António Narciso.”
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10- Por sua vez, a autora apresentou, a fls. 312/317 e 325/330 contra-alegações, pugnando pela improcedência total de tais recursos.

11- Colhidos que foram os vistos legais, cumpre-nos, agora, apreciar e decidir.
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II- Fundamentação de Facto
Na sequência da discussão da causa, pelo tribunal da 1ª instância foram dados como assentes, por provados, os seguintes factos:
1. Por sentença de 19 de Janeiro de 1998 - cuja cópia certificada figura a fls. 65 a 70 e que aqui se dá por reproduzida – proferida nos autos de processo comum singular nº 87/96 que correram os seus termos pelo tribunal judicial da comarca de Soure, o ora R. António Narciso foi absolvido do ilícito por que foi pronunciado e condenado no pagamento à ora A. da quantia de 15.000$00 e da quantia a liquidar em execução de sentença no respeitante às mobílias danificadas em consequência do desmoronamento da parede.
2. Por transmissão legal mortis causa, a A. assumiu a posição de arrendatária no contrato de arrendamento para habitação de um prédio sito na Rua de Baixo, Granja do Ulmeiro, Soure, celebrado em 1 de Março de 1946, entre o marido da A., entretanto falecido, e o anteproprietário Joaquim Semião e que actualmente é propriedade do senhorio José Manuel Rolim Redondo.
3. Desde a referida data a A. sempre habitou no referido prédio, dele fazendo a sua única residência.
4. O prédio arrendado pela A. é contíguo com outro prédio de propriedade do R. António Narciso.
5. Em Novembro de 1994 o R. António Narciso iniciou as obras necessárias para construção de um edifício nesse prédio contíguo.
6. Tal construção envolvia a demolição de uma casa antiga existente na mesma área.
7. Para essa construção o R. Narciso celebrou com um contrato de empreitada com o R. Arlindo de Sousa Tavares, empreiteiro de profissão.
8. Por contrato de empreitada celebrado entre os RR. Narciso e Arlindo o segundo ficava obrigado a fornecer mão de obra e materiais e a levantar as paredes exteriores e interiores.
9. Para executar a remoção de entulho proveniente de demolição parcial a fim de proceder à abertura de alicerces o R. Narciso contratou previamente o R. Fernando Rolo que com uma máquina retroescavadora procedeu à remoção desse entulho.
10. Feita a demolição da casa preexistente, apenas ficaram em pé duas paredes que serviam aos prédios confinantes, entre as quais a da casa habitada pela A.
11. Para proceder à limpeza do terreno e, pelo menos, para proceder à abertura do alicerce junto da parede da casa habitada pela A., o empreiteiro colocou empregados seus no local.
12. Para execução da demolição de paredes antigas e abertura de fundações, foram realizados trabalhos de escavações e o R. António Narciso, sob indicação do R. Arlindo de Sousa Travassos, fazendo-se acompanhar por este, solicitou ao R. Fernando João Aires de Freitas Rolo que os efectuasse com a sua máquina retroescavadora, mediante retribuição monetária efectuada à hora.
13. Entre o A. Fernando Rolo e o R. António Narciso foi acordado, mediante retribuição, que o primeiro colocaria à disposição do segundo uma máquina retroescavadora assegurando a sua condução.
14. O empreiteiro procedeu previamente às indispensáveis medições, localização e profundidade das sapatas e alicerces.
15. O empreiteiro deu ordens ao manobrador da máquina para proceder à abertura de sapatas e aos seus empregados para efectuarem, pelo menos, a abertura do alicerce junto à parede em referência, traduzindo-se tais ordens na marcação com cal dos locais de abertura.
16. O empreiteiro tinha conhecimentos técnicos para saber qual a profundidade desses alicerces e sapatas, tendo em consideração o tipo de terreno e a própria construção.
17. O R. Narciso não dispunha de autorização municipal para a realização da referida escavação.
18. Aquando da realização dos trabalhos de escavação, os RR. não tinham qualquer projecto regular, inteligível, público e legítimo de contenção periférica, designadamente para não privar o prédio habitado pela A. do apoio necessário para evitar o seu desmoronamento.
19. As paredes da casa habitada pela A. eram constituídas por alvenaria de pedras e terra e com ripas de madeira, o que os RR, “ ex officio “ não ignoraram pela manifesta visibilidade desses sinais.
20. Os RR. não procederam ao apoio necessário da casa habitada pela A. para evitar o seu desmoronamento, designadamente escorando a parede e a cobertura da mesma.
21. No dia 21 de Março de 1995, durante a realização dos trabalhos de escavação para a construção de uma sapata para um pilar, o R. João Rolo utilizou a indicada retroescavadora, o que fez com a concordância e na presença do R. Narciso.
22. Essa operação causou um impacto de percussão e compressão do solo e na parede da casa habitada pela A..
23. O R. António Narciso foi alertado pela filha da A. – Maria Amélia Barão – que tal operação estava a produzir uma rachadura junto ao tecto interior da casa habitada pela A. .
24. A demolição afectou as fundações da parede da casa habitada pela A., o que, associado à trepidação da máquina retroescavadora, impingiu a ruína parcial da casa habitada pela A., mormente da parede e do telhado.
25. O R. Fernando Rolo executou a obra em referência sob as ordens e indicações dos restantes RR.
26. Os conhecimentos técnicos do R. Fernando Rolo prendem-se essencialmente com o funcionamento da máquina retroescavadora e maneira de a manobrar.
27. Os trabalhos efectuados pela máquina retroescavadora tiveram sempre de ser completados à mão junto da parede da A., por falta de ângulo suficiente da máquina.
28. Quando a parede caiu a retroescavadora executava trabalho a cerca de 3 metros de distância da parede em questão.
29. No momento do desabamento a A. encontrava-se dentro da citada habitação.
30. Aquando do desabamento a A. foi atingida por pedras nos seus pés, tendo ocorrido um perigo concreto para a sua vida.
31. A A., que contava então com oitenta anos, teve um grande susto, sofreu a angústia, tristeza e amargura de ver perdidos alguns objectos pessoais.
32. A A. ficou privada de utilizar normalmente a sua residência em condições mínimas de dignidade, conforto e higiene, nomeadamente sem cozinha e casa-de-banho.
33. Naquela residência a A. ficou privada de receber amigos e acolher a filha quando esta a visita.
34. A A. teve de limpar e reorganizar o recheio não destruído pelo desabamento.
35. Cerca de 15 dias após o desabamento, a A. passou a viver de favor em casa de uns amigos.
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III- Fundamentação de Direito
1- Como é sabido, é pelas conclusões das alegações dos recorrentes que se que se define objecto e delimita o âmbito dos recursos, isto é, a apreciação e a decisão dos recursos são delimitados pelas conclusões das alegações dos recorrentes, pelo que o tribunal de recurso não poderá conhecer de matérias ou questões nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso (cfr. disposições conjugadas dos artºs 664, 684, nº 3, e 690, nºs 1 e 4, todos do CPC, bem ainda, a esse propósito, entre muitos outros, Acs da RC de 5/11/2002; do STJ de 27/9/94, de 13/3/91, de 25/6/80, e da RP de 25/11/93, respectivamente, in “CJ, Ano XXVII, T5, pág 15; CJ, Acs. do STJ, Ano II, T3 – 77; Act. Jur. Ano III, nº 17, pag. 3; BMJ nº 359-522 e CJ, Ano XVIII, T5 –232).

2- Ora, face ao teor das conclusões (algumas delas pouco claras e outras demasiado extensas) das alegações dos recursos daqueles dois apelantes, as questões que importa aqui decidir, são fundamentalmente, as seguintes:
1ª - Saber se as respostas aos pontos da base instrutória, nomeadamente no que concerne aos pontos 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 21º, 22º e 24º, são deficientes ou obscuras, e a que tal ponto isso possa determinar a anulação do julgamento (questão essa colocada no recurso do apelante Arlindo).
2ª- Saber se algum dos réus, o Arlindo (enquanto empreiteiro) e o Narciso (enquanto dono da obra para cuja execução aquele foi contratado), deve ser desresponsabilizado pelo desmoronamento (parcial) do prédio onde vivia a autora (questão comum a ambos os recursos).
- No caso de resposta negativa à questão anterior, saber o réu Arlindo, deve ser considerado como devedor principal e o réu Narciso somente a título de devedor subsidiário (questão essa colocada no recurso do apelante Narciso).
4ª- Saber se é desproporcionado o montante do “quantum” indemnizatório fixado na sentença recorrida (questão essa colocada no recurso do apelante Narciso).
5ª- E, por fim, saber desde quando ou de que data se devem vencer os juros de mora (questão essa colocada no recurso do apelante Narciso).

2-1 Apreciemos então aquela 1ª questão
Começaremos por afirmar, e tal como já resulta do atrás exarado, que aquando da leitura da decisão sobre a matéria de facto, e nomeadamente no que concerne às respostas dadas sobre os pontos da base instrutória, não foi então, à luz do disposto no artº 653, nº 4, do CPC, apresentada qualquer reclamação pelas partes, e muito especialmente sobre qualquer deficiência ou obscuridade.
Posto isto, e calcorreando as decisão proferida sobre a matéria de facto, e muito particularmente as respostas que foram dadas aos pontos 6º, 7º, 8º, 9º, 10º, 11º, 12º, 13º, 21º, 22º e 24º, não vislumbramos, salvo o devido respeito, que a mesma ou as mesmas enfermem do apontado vício de deficiência ou obscuridade, e nomeadamente em termos de poder levar à anulação do julgamento, tal como pugna o apelante Arlindo, à luz do disposto no nº 4 do artº 712 do CPC.
Como bem, a nosso ver, defende a apelada, a deficiência, obscuridade ou contradição serão vícios que terão de resultar de decisão da matéria de facto em si mesma, proferida sobre determinados pontos dessa matéria, e não da conjugação desta com o inciso decisório.
Ora afigura-se-nos que as respostas dadas sobre os pontos em causa se mostram suficientemente claras, por forma a permitir uma decisão final sobre as diversas questões controvertidas aqui em apreço e segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito (muito embora reconheçamos que não em termos daquilo que seria o ideal, sendo certo, todavia, que o resultado dessas respostas, face à matéria alegada, terá de ser aquele que, na convicção do julgador, resulta, na exacta medida, daquilo que efectivamente foi a prova produzida sobre os correspectivos factos).
Saber depois se da matéria factual dada como apurada é ou não possível chegar a uma conclusão sobre a responsabilidade dos réus, e neste caso do réu Arlindo, nos danos alegadamente provocados à autora, será já outra questão, e que terá já mais a ver com o fundo ou o mérito da causa propriamente dito.
Nesses termos julga-se, quanto a essa parte, improcedente o recurso (do réu Arlindo).

2-2 Apreciação da 2ª questão
É nela, como grande questão, que se centraliza, essencialmente, o objecto ou o âmbito de qualquer dos dois recursos em apreciação, e que se traduz na questão de saber se face aos factos dados como assentes é ou não possível responsabilizar os réus Narciso e Arlindo (os dois ou só um deles, sendo certo que o terceiro réu, o Fernando, foi absolvido na 1ª instância, tendo-se a apelada conformada com essa absolvição) pelos factos que levaram ao desmoronamento (parcial) do prédio urbano onde vivia a autora e, consequentemente, pelos danos (neste caso apenas de natureza não patrimonial) que a mesma alega terem para si daí advindo?
É o que passaremos a analisar.
Considerando a matéria factual que foi dada como assente, por provada, e tal como se descreveu na sentença recorrida, poder-se-á expôr, grosso modo e no que para o efeito agora nos interessa, a situação “sub iudice” como tendo ocorrido da seguinte forma:
O réu Narciso tinha como objectivo a construção de um edifício num prédio contíguo à casa habitada pela autora.
Tal construção envolvia a demolição de uma casa antiga existente na mesma área.
Celebrou então com o réu Arlindo um contrato de empreitada, ficando este obrigado a fornecer mão de obra e materiais e a levantar as paredes exteriores e interiores.
Com vista à execução da demolição e da remoção do entulho proveniente dessa demolição, o réu Narciso contratou o réu Fernando para que efectuasse tais trabalhos com a sua máquina retroescavadora, o qual, mediante pagamento “à hora”, assegurava a disponibilidade da máquina retroescavadora e a sua condução.
As obras foram iniciadas, tendo sido efectuada a demolição da casa preexistente, apenas tendo ficado de pé duas paredes que serviam aos prédios confinantes, entre as quais a da casa habitada pela autora.
Seguiram-se, depois, os trabalhos de escavação com vista à abertura de alicerce junto à parede de que a casa da autora era servida e colocação de sapatas para os pilares, executados pelo réu Fernando, com a sua máquina retroescavadora, na presença do réu Narciso, com a sua concordância e sob as ordens quer do mesmo, quer do réu Arlindo.
Porém, tal operação causou um impacto de percussão e compressão do solo e na parede da casa habitada pela autora, afectando (conjuntamente com a anterior operação de demolição) as fundações desta parede, o que, tudo, determinou o seu desabamento com a ruína parcial da parede e do telhado.

No que concerne à caracterização da relação contratual efectivamente existente entre o réu Narciso e o ré Arlindo - e tendo presente que o juíz não está vinculado às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (artº 664 do CPC), embora, em princípio só possa servir-se dos factos articulados pelas partes – comungamos das preocupações manifestadas, a esse propósito, pelo sr. juíz do tribunal a quo quando escreveu:
“Não fora a classificação jurídica que resulta da decisão da matéria de facto, poder-se-ia discutir se no tocante ao contrato celebrado entre os RR. António Narciso e Arlindo Travassos estamos efectivamente na presença de um contrato de empreitada ou antes perante contrato de construção de prédio em regime de administração directa.
Juridicamente a distinção não é irrelevante na medida em que o que classifica este último é a falta de risco, agindo o construtor como empregado do dono da obra, qualquer que seja a autonomia técnica de que disfrute ( Ac. do STJ de 10 de Dezembro de 1971; BMJ, 212º, 233 ).
Ao contrário, no contrato de empreitada, o empreiteiro age com autonomia na execução da obra, sendo responsável pelos danos que dela sobrevierem, excepto se os mesmos forem devidos s defeitos do projecto ou do terreno (Ac. da R.P de 21 de Janeiro de 1977, BMJ, 265º, 280 )”.
Porém, e face até à falta de mais e melhores elementos de facto que nos permitissem uma melhor caracterização (sendo certo que as partes aceitam a caracterização dessa relação como sendo de verdadeiro contrato de empreitada) e como também ali se escreveu, independentemente da verdadeira natureza do contrato celebrado, a verdade é que, tal como resulta da matéria factual apurada, pelo menos na sua fase inicial (incluindo as escavações) - sendo esta que, para o efeito, aqui nos interessa, por ora, considerar, já que foi nela que tiveram lugar os acontecimentos aqui em apreço - a responsabilidade pela execução dos trabalhos foi sempre partilhada por ambos, ou seja, pelo réu Narciso e pelo réu Arlindo.
Dispõe o artigo o 483, nº 1, do C.C. que “aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem ou qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação” .
Da leitura deste preceito resulta desde logo que vários pressupostos condicionam a existência da obrigação de indemnizar imposta ao lesante.
É necessário que haja um facto voluntário do agente, pois só o homem é capaz de violar direitos alheios ou de agir contra disposições legais; que o facto do agente seja ilícito; que exista um nexo de imputação do facto ao lesante; que se produza um dano; e que haja um nexo de causalidade entre o facto praticado pelo lesante e o dano sofrido pelo lesado.
Para além do que atrás já se deixou exarado, convém ainda deixar aqui bem realçado os seguintes factos, nos termos em que efectivamente foram dados como provados :
- O empreiteiro (referindo-se, sempre ao réu Arlindo) procedeu previamente às indispensáveis medições, localização e profundidade das sapatas e alicerces (nº 14 do ponto II).
- O empreiteiro deu ordens ao manobrador (referindo-se ao réu Fernando) da máquina para proceder à abertura de sapatas e aos seus empregados para efectuarem, pelo menos, a abertura do alicerce junto à parede em referência, traduzindo-se tais ordens na marcação com cal dos locais de abertura (nº 15 do ponto II).
- O empreiteiro tinha conhecimentos técnicos para saber qual a profundidade desses alicerces e sapatas, tendo em consideração o tipo de terreno e a própria construção (nº 16 do ponto II).
- O R. Narciso não dispunha de autorização municipal para a realização da referida escavação (nº 17 do ponto II) - sublinhado nosso.
Aquando da realização dos trabalhos de escavação, os RR. não tinham qualquer projecto regular, inteligível, público e legítimo de contenção periférica, designadamente para não privar o prédio habitado pela A. do apoio necessário para evitar o seu desmoronamento (nº 18 do ponto II) - sublinhado nosso.
- As paredes da casa habitada pela A. eram constituídas por alvenaria de pedras e terra e com ripas de madeira, o que os RR, “ex officio” não ignoraram pela manifesta visibilidade desses sinais (nº 19 do ponto II). - sublinhado nosso.
- Os RR. não procederam ao apoio necessário da casa habitada pela A. para evitar o seu desmoronamento, designadamente escorando a parede e a cobertura da mesma (nº 20 do ponto II). - sublinhado nosso.
- No dia 21 de Março de 1995, durante a realização dos trabalhos de escavação para a construção de uma sapata para um pilar, o R. João Rolo utilizou a indicada retroescavadora, o que fez com a concordância e na presença do R. Narciso (nº 21 do ponto II).
- Essa operação causou um impacto de percussão e compressão do solo e na parede da casa habitada pela A. (nº 22 do ponto II).
- O R. António Narciso foi alertado pela filha da A. – Maria Amélia Barão – que tal operação estava a produzir uma rachadura junto ao tecto interior da casa habitada pela A. (nº 23 do ponto II).
- A demolição afectou as fundações da parede da casa habitada pela A., o que, associado à trepidação da máquina retroescavadora, impingiu a ruína parcial da casa habitada pela A., mormente da parede e do telhado (nº 24 do ponto II). - sublinhado nosso
- O R. Fernando Rolo executou a obra em referência sob as ordens e indicações dos restantes RR (nº 25 do ponto II).
- Os conhecimentos técnicos do R. Fernando Rolo prendem-se essencialmente com o funcionamento da máquina retroescavadora e maneira de a manobrar (nº 26 do ponto II).
- Os trabalhos efectuados pela máquina retroescavadora tiveram sempre de ser completados à mão junto da parede da A., por falta de ângulo suficiente da máquina (nº 27 do ponto II).
Ora sopesando toda essa matéria factual, ter-se-á de concluir, tal como se fez na 1ª instância, que o réu Fernando actuou no caso, como mero “comissário” dos restantes réus, e sem o controlo técnico de execução dos trabalhos e nem a assunção do risco inerente, tendo-se limitado a seguir as ordens e as indicações daqueles outros.
Como resulta do disposto no nº 2 do artº 487 do CC a culpa deve ser apreciada, na falta de outro critério legal, pela diligência de um bom pai de família, em face das circunstâncias de cada caso.
Ora da matéria factual apurada e que acima foi dada com descrita é possível, a nosso ver, concluir que, no caso em apreço, quer o réu Narciso, quer o réu Arlindo, actuaram de forma negligente e imprevidente e contra ou em desrespeito das mais elementares regras de arte, de técnica, de segurança e de cuidado que no caso se impunham e a que estavam obrigados, e que se tivessem tomado teriam evitado o desmoronamento do prédio onde vivia a autora, em clara violação, nomeadamente, do disposto nos artºs 1º, 2º, 4º, 5º, 6º, 15º, 22º e 162º do RGEU, aprovado pelo DL nº 445/91 de 20/11 (então em vigor na altura da ocorrência dos factos aqui em discussão), sendo certo que, nos termos do disposto no artº 164 desse diploma, a negligência é sempre punida.

Aliás, caso assim não se entendesse, essa responsabilidade sempre seria de lhes ser assacada, e face à matéria factual acima descrita como assente e às conclusões a que atrás chegámos, à luz do disposto no artº 70 do DL nº 445/91 de 20/11 (então em vigor na altura da ocorrência dos factos aqui em discussão). Na verdade, e sob a epígrafe “Responsabilidade Civil”, dispunha esse preceito legal que “o proprietário...os autores do projecto e os empreiteiros são responsáveis, nos termos da lei civil, por danos causados a terceiros que sejam provocados por erros, acções ou omissões decorrentes da sua intervenção no projecto (que já vimos que não existia) ou na obra ou por factos emergentes da qualidade ou forma de actuação sobre os terrenos”.
Por sua vez, dispunha ainda o nº 2 desse normativo que “a obrigação de indemnizar decorrente da responsabilidade civil contratual e extracontratual de todas as entidades envolvidas na realização da obra deve ser garantida, nomeadamente por seguro....”. Seguro esse cuja existência, no caso, não foi sequer alegada, e muito menos provada.

Por outro lado ainda, e caso assim se continuasse a não entender, sempre seria possível, face à matéria factual acima descrita como assente, responsabilizar os dois réus, agora, à luz do disposto no artigo 493, nº 2, do CC.
Na verdade, estipula-se aí que “quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade perigosa por sua própria natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pelas circunstâncias com o fim de os prevenir”.
Nada se diz, em tal normativo, o que deve entender-se por “actividades perigosas”, a não ser a admissão, genérica, que a perigosidade derive da própria natureza da actividade ou da natureza dos meios utilizados.
Pelo que se nos afigura que a melhor doutrina é que defende que tal matéria terá que ser apreciada em cada caso e segundo as circunstâncias concretas, muito embora se deva partir do conceito abstracto de perigosidade (vidé, os profs. Pires de Lima e Antunes Varela in “ Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., nota 3ª, pág. 469”).
Ora vem constituindo – segundo crêmos – entendimento dominante, que o exercício da actividade da construção civil de prédios urbanos é de per si uma actividade perigosa, quer pela sua própria natureza, quer pelos meios empregues (vidé, por todos, Ac. da RP de 22/2/1990, in “BM J394 – 538”; Ac. da RP de 30/04/1981, in “CJ, Ano VI, T2 – 128”; Ac. da RC de 9/2/1993 in “CJ Ano XVIII, T1 – 41”; Ac. da RC de 15/3/94 in “BMJ 435 – 908”; Ac. do STJ de 6/4/95 in “BMJ 446 – 217” e Ac. do STJ de 18/1/2000, in “CJ, Acs do STJ, Ano VIII, T1- 39” ).
Ora se assim é, mais ainda se deve considerar perigosa a actividade, como sucedeu no caso em apreço, da construção civil que envolve o prévio desmoronamento de prédios, no lugar dos quais vai ser realizada a nova construção, contíguos a outros e onde são empregues máquinas retroescavadoras.
Estabelece-se em tal normativo uma presunção legal de culpa contra o utilizador de tais actividades, com a correspondente inversão do ónus de prova, tendo apenas a parte a favor de quem é estabelecida tal presunção que provar o facto que serve de base à mesma (vidé, Ac. do STJ de 18/1/2000, in “CJ, Acs do STJ, Ano VIII, T1- 39” e os profs. Pires de Lima e Antunes Varela in “ Código Civil Anotado, vol. I, 3ª ed., nota 1ª, pág. 468”).
Ora já acima se viu, pela matéria factual dada com assente, que a autora logrou fazer prova da actividade perigosa desenvolvida pelos dois arguidos, da qual resultou o desmoronamento do prédio onde vivia, e sem que estes últimos tenham logrado provar, antes pelo contrário - como já também se deixou expresso -, terem empregue as providência exigidas pelas circunstâncias com o fim de prevenir tal situação.

Diremos, por fim, e em jeito de remate, e ao contrário da tese defendida pela apelada e bem assim na própria sentença recorrida, que não era possível igualmente, “in casu”, responsabilizar também os réus-apelantes à luz do disposto no artº 1348 do CC, em virtude de faltar, desde logo, um pressuposto ou requisito fundamental ali exigido: ser a autora a proprietária do prédio vizinho que foi desmoronado – já que era apenas sua arrendatária (vidé, a propósito, Ac. RLx de 19/03/1998, in “CJ, Ano XXIII, T2- 98”).
Ora por tudo o que acima deixamos expresso em termos de conclusões jurídicas, extraídas da matéria factual dada como assente, teremos de concluir ser solidária a responsabilidade dos réus, Narciso e Arlindo, pelos danos sofridos pela autora, em consequência, do desmoronamento do prédio em que vivia (cfr. artº s 497, nº 1, e 512 do CC); assim se respondendo não só à questão 2ª mas também à questão 3ª acima enunciadas, pelo que os recursos terão igualmente que ser julgados improcedentes nessas partes.

2-3 Apreciação da 4ª questão
Questão essa que consiste em saber se o montante da indemnização, a título de danos não patrimoniais, que foi arbitrado à autora na sentença recorrida é desproporcionado em relação danos efectivamente sofridos pela mesma.
Estão aqui em causa apenas danos não patrimoniais.
Como é sabido a indemnização pelos danos não patrimoniais não visa reconstituir a situação que existiria se não ocorresse o evento danoso, mas sim compensar o lesado, tendo também uma função sancionatória.
E se a indemnização de tais danos não tem o propósito de enriquecer injustificadamente o lesado, deve, no entanto, proporcionar-lhe a obtenção de “satisfações equivalentes ao que perdeu”, como bem, a nosso ver, lembra Mazeaud et Mazeaud (in “Responsabilité Civile, vol. pág. 313”).
Na indemnização de tais danos apenas serão de considerar aqueles que pela sua gravidade mereçam a tutela do direito, sendo essa gravidade medida por um padrão objectivo e não por factores subjectivos (cfr. artº 496, nº 1, do CC).
Caberá ao Tribunal, assim, em cada caso concreto, dizer se o dano é ou não merecedor de tutela jurídica.
Quanto ao cálculo do montante da indemnização por danos não patrimoniais é sempre feito com base em critérios de equidade, atendendo ao grau de culpabilidade do responsável, à sua situação económica e à do lesado, deve ser proporcional à gravidade do dano, tomando em conta na sua fixação todas as regras da justa medida das coisas e de criteriosa ponderação das realidades da vida (vidé, Profs. Pires Lima e Antunes Varela in «Código Civil Anotado, Vol. I, 4ª ed., pág. 501»).
Por fim, devemos salientar ainda que, desde alguns anos a esta parte, se tem vindo a acentuar jurisprudencialmente que os padrões de indemnização são tradicionalmente muito baixos, chegando enfaticamente a acentuar-se que esta tradição miserabilista não pode continuar a manter-se, sob pena de os tribunais não acompanharem a realidade e a evolução da vida.
Tudo isto para dizer que tais danos, não patrimoniais, devem serem dignamente compensados, muito embora tendo sempre presente, na sua avaliação, as circunstâncias atrás descritas e perante cada caso concreto.
Posto isto vejamos então os factos e danos a considerar para o efeito:
- No momento do desabamento a A. encontrava-se dentro da citada habitação.
- Aquando do desabamento a A. foi atingida por pedras nos seus pés, tendo ocorrido um perigo concreto para a sua vida.
- A A., que contava então com oitenta anos, teve um grande susto, sofreu a angústia, tristeza e amargura de ver perdidos alguns objectos pessoais.
- A A. ficou privada de utilizar normalmente a sua residência em condições mínimas de dignidade, conforto e higiene, nomeadamente sem cozinha e casa-de-banho.
- Naquela residência a A. ficou privada de receber amigos e acolher a filha quando esta a visita.
- A A. teve de limpar e reorganizar o recheio não destruído pelo desabamento.
- Cerca de 15 dias após o desabamento, a A. passou a viver de favor em casa de uns amigos.

Na sentença da 1ª instância concluiu-se – e a nosso ver bem – que todos os danos atrás referidos – com excepção dos referentes à parte ligada a necessidade de limpar e organizar o recheio da casa – tinham gravidade suficiente para merecerem a tutela do direito.
Ora face à natureza de tais danos, e face aos considerandos que atrás tecemos a esse propósito, e mesmo sem resultar da matéria factual apurada qual o tempo de privação do uso da aludida casa pela autora, afigura-se-nos ajustado o montante de euros 6.983,17 (seis mil novecentos e oitenta e três euros e dezassete cêntimos) que foi fixado na sentença recorrida para indemnizar a autora por tais danos, e que corresponde ao montante que pela mesma foi peticionado. Montante esse que, tal como se referiu na sentença, e face à natureza e gravidade dos danos, a pecar só será por defeito.
Pelo que, também quanto a essa parte improcede o recurso (do réu Narciso)

2-4 Apreciação da 5ª Questão
Como acima se deixou exarado, tal questão tem a ver com o facto de saber desde quando se vencem os juros de mora.
Na sentença recorrida considerou-se que eles eram devidos desde 21/03/1995 (data em que ocorreu, nas circunstâncias supra descritas, o desmoronamento da casa habitada pela autora). Porém, no recurso do apelante Narciso defende-se que eles só são devidos a partir da data da sentença.
Quid iuris?
Não se discute aqui a mora, mas tão somente a data do início da mesma.
Preceitua o nº 1 do artº 805 do CC que “o devedor só fica constituído em mora depois de ter sido judicial ou extrajudicialmente interpelado para cumprir”.
Por sua vez, estabelece o nº 2 al. b) daquele mesmo preceito legal que “há, porém, mora do devedor, independentemente de interpelação se a obrigação provier de facto ilícito”.
Por fim, dispõe o nº 3 do mesmo artigo, na redacção que lhe foi dada pelo DL nº 262/83de 16/6, que “se o crédito for ilíquido não há lugar a mora enquanto não se tornar líquido, salvo se a falta de liquidez for imputável ao devedor, tratando-se, porém, de responsabilidade por facto ilícito ou por risco, o devedor constitui-se em mora desde a citação, a menos que haja já então mora, nos termos da 1ª parte deste número” (sublinhado nosso).
Como escreve o prof. A. Varela (in “Obrigações, 2ª ed., 2º vol., págs. 113 e ss”) a correcta interpretação e aplicação da al. b) do nº 2 do artº 805 do CC exige que o princípio nela consignado seja conjugado com a regra contida no nº 3 desse mesmo preceito legal. (sublinhado nosso)
Hoje, por força da redacção do nº 3 do citado artº 805, é praticamente consensual que, no domínio da responsabilidade civil extracontratual por factos ilícitos ou pelo risco (como sucede no caso sub iudice), o crédito de juros apenas se constitui com a citação do devedor (vidé, ainda propósito e por todos, Ac. RC de 26/10/1999, in “CJ, T4 – 50” e Ac. do STJ de 4/06/1998, in “BMJ nº 478 – 344”), e o mesmo sucedendo quando estão em causa juros de mora relativos a indemnização por danos não patrimoniais (vidé Ac. do STJ de 24/02/1999, in BMJ nº 484 – 359”).
Ou seja, nesse tipo de situações ou casos a regra, por força da estatuído no referido nº 3 do artº 805 do CC, é de que os juros de mora só se começam a vencer e poder ser contabilizados a partir da data da citação do devedor, a não ser que o montante do capital indemnizatório encontrado e atribuído ao credor tenha entretanto sido actualizado à luz do disposto no artº 566, nº 2, do CC, caso esse em que então o vencimento dos juros de mora – e para evitar, uma duplicação ou oneração de capital – apenas deverá ocorrer após a decisão actualizadora, e já não, portanto a partir da citação (cfr., a tal propósito, acordão de jurisprudência nº 4/2002 proferido pelo STJ em 9/5/2002, publicado no DR, Iª S, de 27/6, e já antes, entre outros, Ac. RLx de 4/10/90, in “CJ, Ano XV, T4-137” e Ac. RC de 21/1/86, in “CJ, Ano XI, T1-33”).
Ora posto isto e considerando, por um lado, que no caso em apreço estamos no dominio de responsabilidade extracontratual por factos ilícitos (ou mesmo pelo risco) e, por outro, que não ocorre, no caso em apreço, a excepção prevista na parte final do nº 3 do citado artº 803 do CC, e, por fim ainda, dado que o montante capital indemnizatório atribuído à autora na sentença proferida na 1ª instância não foi objecto de qualquer actualização (sendo que tal montante correspondeu àquele que foi pedido pela mesma, considerando-se inclusivé ali que o mesmo poderia mesmo pecar por defeito), teremos, assim, de concluir que apenas serão devidos juros de mora a partir da data da citação dos réus apelantes (cfr. fls. 15 e 22 e 23), e às taxas legais desde então em vigor, pois, como é sabido, a lei que altera a taxa de juros durante o período de mora é aplicável aos juros que se vençam depois da sua entrada em vigor (vidé a propósito acordão do STJ de 15/11/83, in “ BMJ, nº 331-575”, acordão da RP de 1/3/84, in “CJ, 1984, T 2-199”, Vaz Serra, in “RLJ, 102-188”, Rodrigues Bastos, in “Notas ao Código Civil, vol. 3-28” e Simões Patrício in “BMJ, nº 305-13, e a própria filosofia do assento nº 13/94 do STJ proferido em 15/06/94, publicado no DR, Iª S, de 19/06/94 – muito embora abrangendo a previsão de uma situação diferente da destes autos).
***
IV- Decisão
Assim, em face de tudo o atrás exposto, acorda-se em negar provimento ao recurso interposto pelo réu-apelante Arlindo e em conceder apenas parcial provimento ao recurso interposto pela réu-apelante Narciso e, em consequência, decide manter-se a sentença proferida na 1ª instância, com a alteração efectuada no nº 2-4 do ponto III deste acordão (quanto à data do início do vencimento dos juros de mora), assim se revogando, nessa parte e medida, a aludida sentença.
Custas pelo réu-apelante Arlindo, no que concerne ao recurso por si interposto.
No que concerne ao recurso interposto pelo réu-apelante Narciso, custas pelo mesmo e pela autora-apelada, na proporção do decaímento e que para o efeito fixo em 3/4 para o primeiro e 1/4 para segunda – muito embora se tenha em consideração que a mesma goza, até ao momento, do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa total de pagamento de custas -, sendo que em relação às custas da acção não se vê necessidade de alterar a proporção de responsabilidade fixada na sentença recorrida.