Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
3480/03
Nº Convencional: JTRC
Relator: DR. JORGE ARCANJO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
Data do Acordão: 05/25/2004
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Tribunal Recurso: GUARDA
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO DE APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Legislação Nacional: ARTS. 496, 503, 508, 566 DO CC, ART.6° DO DL 522/85, DL 59/2004 DE 19/3.
Sumário:

1) Configura uma situação de “manobra de recurso ou de salvamento” inserida no mecanismo do estado de necessidade, sendo suficiente para afastar a presunção legal de culpa o art. 503.º n.º3 do Código Civil, a circunstância da Ré, que transportava crianças numa carrinha, perante uma falha súbita no travão de serviço, numa descida muito acentuada, haver guinado para a direita, desviando o veículo de encontro a um monte de areia, situado a berma direita, com o propósito de evitar um acidente de maior gravidade, mas porque este obstáculo não foi suficiente para o mobilizar, acabou por embater numa betoneira, que, por seu turno, foi embater contra o Autor, fora da faixa de rodagem, que na altura se encontrava a cerca de 3 metros da porta do prédio que andava a construir. 2 )- Nesta situação, o acidente verificou-se por causa não imputável à Ré, condutora do veículo, mas não estranha à circulação do referido veículo automóvel, pelo que apenas pode haver lugar à responsabilidade objectiva ou pelo risco.
3) O art. 508° n.º 1 do Código Civil, foi tacitamente revogado pelo artigo 6° do Decreto-Lei n.º 522/85, e 31 de Dezembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 3/96, de 25 de Janeiro.
4) O Decreto-Lei n.º 59/2004 de 19 de Março, que alterou a redacção do art. 508 do Código Civil, tem natureza de “Lei interpretativa”, pelo que os limites máximos da indemnização pelo risco são os do limite mínimo do seguro obrigatório, em vigor à data do acidente.
5) Considerando que a vítima tinha 27 de idade, à data do acidente, trabalhava na construção civil, por conta de outrem, auferindo um rendimento anula de 1.728.000$00, e ficou com uma incapacidade total para o trabalho, deve fixar-se equitativamente o dano patrimonial futuro em € 249.398,95.
6) Comprovando-se que - a vítima, jovem de 27 anos de idade, esteve cerca de um mês em coma, para além de vários períodos de internamento hospitalar, ficou com descoordenação motora dos membros superiores e inferiores (tetraparésia), resultando uma incapacidade total e absoluta para o trabalho que exercia e tarefas similares, ficando impossibilitado de, por si só, se bastar nas tarefas correntes da vida comum, não sendo capaz, por exemplo, de escrever ou desenhar, assegurar qualquer tarefa doméstica, vestir-se sem ajuda de um terceiro, ou realizar qualquer outra tarefa em que se exija um mínimo de precisão, que apenas se desloca com a ajuda de duas canadianas e com grandes dificuldades e apenas durante curtos trajectos, tendo ficado com problemas na fala, exprimindo-se com muita dificuldade, revela dificuldade em seguir ou apresentar um raciocínio mais longo ou complexo, vendo-se muitas vezes incapaz de raciocinar normalmente, como fazia até à data do acidente, para além de ter ficado sexualmente impotente, era um jovem cheio de vida, força e saúde, formando com esposa e os dois filhos do casal uma família alegre e feliz, cheia de projectos para o futuro, que ficaram destruídos com o acidente, de tal forma que se sente um fardo inútil, perdeu toda a alegria de viver, sofrendo, perturbações psicogénicas e emocionais, com períodos de grande instabilidade e insónias, que continuam a exigir tratamento, - deve atribuir-se equitativamente a indemnização pelo dano não patrimonial no valor de € 175.000,00.
7) O art. 496 n.º 2 do Código Civil é susceptível de interpretação extensiva, de modo a abranger os danos não patrimoniais indirectos da esposa da vítima, por ter ficado gravemente prejudicada a sua relação com o lesado.
8) Comprovando-se que esposa da vítima viu também os seus sonhos serem desfeitos, tornando-se, em permanência a enfermeira do seu marido; ficou impedida de exercer a vida normal de um casal que tinha tudo para ser feliz, condenada a um estado de viuvez, sem ser viúva, para o resto da sua vida; passou a suportar a responsabilidade de cuidar em permanência de um doente e de duas crianças; sofreu profundamente, sendo grande a aflição, angústia, sobretudo durante o período de um mês em que o seu marido esteve em coma, sem saber se ia viver ou morrer ficou impossibilitada de ter relações sexuais com o marido, por este ficar impotente, é de arbitrar a indemnização pelo dano não patrimonial em € 40.000,00.
Decisão Texto Integral:
APELAÇÃO nº3480/03
( 3ª Secção Cível )
Relator – Jorge Arcanjo
Adjuntos – Isaías Pádua
Cardoso Albuquerque

Acordam no Tribunal da RELAÇÃO DE COIMBRA
I – RELATÓRIO

1.1. - Os Autores
1) – AA e esposa BB;
2) - CC ( por intervenção principal );
– instauraram, no Tribunal Judicial da Comarca da GUARDA, a presente acção declarativa, com forma de processo sumário, - contra os Réus:
1) - DD, com sede em Lisboa;
2) - CENTRO DE ASSISTÊNCIA SOCIAL DA GUARDA, com sede na Guarda;
3) - EE.
Os 1ºs Autores alegaram, em resumo:
No dia 04 de Novembro de 1993, pelas 17 horas, o Autor encontrava-se no seu local de trabalho, na Estrada de Alfarazes na Cidade da Guarda, altura em que foi embatido pelo veículo de matrícula KK, conduzido pela Ré EE, por conta, no interesse e sob a direcção do seu proprietário, o Réu Centro de Assistência Social da Guarda.
O acidente ocorreu por culpa exclusiva da condutora do veículo, que circulava a grande velocidade, numa descida acentuada e por falta de destreza e perícia deixou que as rodas do veículo invadissem a berma, atrapalhando-se, pelo que acelerou ainda mais e, incapaz de dominar o veículo, guinou para a sua direita indo embater contra um monte de areia de aproximadamente 1 metro de altura, não tendo conseguido parar o veículo, atenta a velocidade que levava, indo embater numa betoneira que se encontrava à frente da areia, arrastando-a cerca de seis metros e indo embater, violentamente, com tal betoneira contra o Autor.
Em consequência do acidente, do acidente resultaram danos patrimoniais e não patrimoniais para o Autor e sua esposa.
Pediram a condenação dos Réus a pagar aos Autores a quantia global de 898.227,27 € (180.078.400$00), acrescida de juros à taxa legal desde a data da citação até integral pagamento.

A 2ª Autora alegou, em síntese:
No momento do acidente, o 1º Autor trabalhava para FF que celebrou com a interveniente contrato de seguro do ramo acidentes de trabalho.
Na qualidade de seguradora do trabalho, para reparação dos danos que o Autor sofreu, pagou a quantia de 7 454, 43 € (1.494.479$00), de tratamentos e assistência no Hospital da requerente, 10 056,91 € (2.016.230$00) de tratamentos e assistência em Hospitais externos, 4 119, 06 € (825.795$00) em transportes, 5 318, 65 € (1.066.293$00) de indemnização por Incap. Total Absoluta de 05/11/93 a 30/01/95.
Por outro lado tendo sido atribuída ao Autor, em resultado do acidente dos autos, uma ITA para a profissão e uma ITP de 0,7084, ficou sob o encargo da mesma o pagamento de uma pensão vitalícia de 369, 64 € (74.106$00.)
Com tal pagamento ficou a requerente sub-rogada nos direitos do sinistrado contra os responsáveis pelo acidente dos autos.
Pediu a condenação dos Réus a pagarem-lhe a quantia de 34.341,84 € (6.884.920$00), que posteriormente ampliou para 44.691,73 € (8.959.888$00) e, posteriormente, em audiência de julgamento de 8/03/02 para 61.368,57 € (12 303 294$00).

Contestou apenas a Ré DD, sustentando a responsabilidade pelo risco na produção do acidente e impugnou os danos reclamados.
No saneador afirmou-se a validade e regularidade da instância.

1.2. - Realizado o julgamento, foi proferida sentença que, na parcial procedência da acção, decidiu:
a) - Absolver os Réus Centro de Assistência social da Guarda e EE dos pedidos contra eles formulados.
b) - Absolver a Ré DD, S.A do pedido contra ela formulado pela Autora BB.
c) - Condenar a Ré a pagar:
- Ao autor Aa a quantia de 3.903,64 €, a título de danos não patrimoniais, acrescida de juros à taxa legal que neste momento é de 7%, contados desde esta data, até efectivo e integral pagamento.
- À interveniente CC, S.A a quantia 26.903,24 €, acrescida de juros à taxa legal de 10% desde a citação e até 17/04/99 e à taxa 7 %, desde essa data e até efectivo e integral pagamento.
d) - Absolver a Ré dos restantes pedidos contra ela formulados.
e) - Custas pelos Autores, interveniente e Ré na proporção do decaimento, sem prejuízo do apoio judiciário de que os Autores beneficiam.

1.3. - Os Autores JOAQUIM QUELHAS e esposa, e a Ré DD interpuseram recurso de apelação.

1.3.1. - Recurso dos AUTORES – conclusões:
1º) - De acordo com a prova produzida em juízo e a experiência e o senso comum, conforme acima exposto, deve ser alterada a resposta aos quesitos 60, 61 e 62°, dando--se os mesmos como não provados.

2º) - Do mesmo modo, deve ser alterada a resposta dada aos quesitos 5°, 60, 27°, 28°, 30° e 40° (este último provado documentalmente, sem oposição a esses documentos) dando-se os mesmos por provados.

3º) - Sempre com o mesmo fundamento deve ser alterada a resposta aos quesitos 31° a 39°, à excepção dos montantes neles referidos, que deverão ser calculados segundo um prudente juízo de equidade.

4º) - Assim sendo, não há dúvidas que a culpa do acidente coube inteiramente à sua condutora que se despistou e em consequência foi atingir o recorrente que se encontrava no passeio.

5º) - A admitir-se que os Réus conseguiram provar que o acidente se ficou a dever à falta de travões sempre será de considerar que a condutora do veículo foi a única culpada do acidente.

6º) - Desde logo não há qualquer prova (nem se encontra alegado) que a co-Ré Armandina tenha primeiro tentado, como lhe impunham as regras, travar com o travão de estacionamento, que, nos termos da lei (e dos depoimentos prestados, mesmo pelas testemunhas arroladas pela Ré), deveria estar em bom estado.

7º) - Do mesmo modo os Réus não alegaram (e consequentemente também não provaram) que alguma vez a condutora tenha tomado precauções para a descida, designadamente travando com o motor, ou seja através das mudanças.

8º) - E isto não obstante, como se disse na al. B) da especificação, a estrada ter uma descida muito acentuada e o veículo em causa ser um veículo ligeiro com quase 20 anos e ir em claro excesso de lotação, violando todas as regras de prudência.

9º) – Com efeito, era da mais elementar prudência que, perante as circunstâncias, a condutora do veículo tivesse reduzido a velocidade com o auxílio do motor, engrenando uma mudança mais baixa, para, assim, ter a certeza de mais facilmente controlar o veículo.

10º) - Isto é, estamos, claramente, perante a falta de um cuidado, de uma precaução, que o dever geral de previdência aconselha e que, sem dúvida, a condutora do veículo poderia e deveria ter.

11º) - Acresce que, havendo, como há, no caso em apreço um presunção de culpa, o simples facto de se provar (o que se admite sem conceder) que os travões (e logo os dois?) deixaram de funcionar, não é suficiente para excluir a presunção de culpa.

12º) - Não foi alegado, nem demonstrado, que, como estipulava expressamente a lei na altura do acidente, o veículo em causa circulava com os sistemas de travagem (que deviam ser dois) em perfeito estado de conservação.

13º) - Aliás os Réus, embora pedido expressamente, foram incapazes de juntar aos autos a documentação referente à inspecção obrigatória a que estava sujeito o veículo.

14º) - A presunção contida no art° 503° n° 3 do C. Civil, para além das regras atinentes à condução de veículo, visa ainda e fundamentalmente, assegurar que estes circulem em condições de segurança e funcionamento.

15º) - Ora, não há dúvidas que os réus não conseguiram, quanto às condições de segurança e funcionamento do veículo, designadamente no respeitante aos seus órgãos de travagem, fazer qualquer prova de que este se encontrava nas devidas condições, não tendo, deste modo, afastado a presunção de culpa que sobre eles pendia.

16º) - A simples existência de “força maior”, não é suficiente para afastar a presunção de culpa vertida no art° 503°, n° 3 do Cód. Civil, é necessário que essa “força maior” se mostre estranha ao funcionamento do veículo.

17º) - Sendo que, a manutenção do veículo em condições de segurança para poder circular na via pública é da responsabilidade quer do comissário, quer do comitente.

18º) -- A falta de travões, por razão que se desconhece em absoluto, nunca poderá ser entendida como estranha ao funcionamento do veículo.

19º) - Existe uma contradição entre o art° 6° do DL 522/85 (no caso em apreço com a redacção do DL 18/93) e o art° 508 nº1 do Código Civil.

20º) - Salvo o devido respeito, perante a contradição existente entre aquele preceito e o art° 508°, do Código Civil, é de considerar, segundo a melhor interpretação, de com recurso ao próprio texto da Directiva 84/05/CEE do Conselho, de 30/12/83, que aquele Diploma visa aplicar, que o art° 508°, n° 1 do Código Civil, se encontra revogado.

21º) - O valor dessa indemnização deve ser estabelecido próximo do montante peticionado de Esc,: 109.564.000$00 (actualmente 546.502,93 €).

22º) - Os danos morais sofridos pelo Autor marido, sujeito a um estado de facto de tretaperésia, com incapacidade quase total, são elevadíssimos, devendo ser computados, segundo um prudente juízo de equidade, perto do montante peticionado de 60.000 000$00 (actualmente 299.278,73 €).

23º) - Salvo melhor opinião, é claro que, no caso em apreço, que a apelante mulher, em consequência do acidente, sofreu evidentes danos de natureza patrimonial e danos resultantes da violação de direitos próprios, e não meramente reflexos dos danos e lesões sofridas pelo autor marido, que, portanto, são indemnizáveis, nos termos do art° 483° do Código Civil.

24º) - Desde logo como se deu por provado como acompanhante (“em permanência a enfermeira do seu marido”), para o resto da sua vida.

25º) - Deixou de exercer uma vida sexual normal, “condenada a um estado de viuvez sem ser viúva “, e impediu-a de “constituir família mediante uma plena comunhão de vida “.

26º) - Pelo que, por todo o exposto, sempre com o devido e merecido respeito, é de entender que a indemnização pedida de Esc.: 10 000 000$00 (actualmente 49 879,79 €), para a apelante mulher, considerando os danos patrimoniais e não patrimoniais directamente sofridos, presentes e futuros, é inteiramente devida.

27º) - Valor esse a que deverá acrescer o montante de Esc.: 4.900$00 (actualmente 24,44 €), conforme resulta da resposta ao quesito 40°, bem como o dos montantes que vierem a ser definidos em conformidade com a resposta dos quesitos 31º a 39° (despesas emergentes do acidente), comuns ao casal.

28º) - No caso em apreço a decisão recorrida limita-se a remeter para o art° 566°, n° 2, do Código Civil, sem justificar onde e como operou a actualização, designadamente não faz qualquer apelo, ou qualquer aplicação, dos cálculos de correcção monetária.

29º) - Por outro lado, conforme decidido, a possível indemnização resultante dessa acção tem um limite: desde logo aquele que lhe é dado pela douta sentença, o da responsabilidade pelo risco, ou seja, à época 4 000 000$00, ou pelo menos o montante garantido pela Ré seguradora.

30º) - Ora, não se “actualizando”, o limite imposto pela responsabilidade pelo risco, nem se actualizando o limite do capital seguro, como pretendem os Autores, reduzindo este aos valores à data do acidente, a actualização do capital devido, em oposto aos outros dois valores,

31º) - Traduz-se, em clara perda para o recorrente, já que, quer pelo risco, quer pela culpa, será sempre utilizado como limite do capital, um valor manifestamente desactualizado à data da sentença.

32º) - Por outro lado, acresce ainda dizer que os Autores não pedem, qualquer actualização, quando tal “escolha” lhes pertence.

33º) - Sendo o montante indemnizatório calculado (não só) com recurso a tabelas financeiras, e pressupondo tais tabelas a contagem de juros durante um certo número de anos,

34º) - Não se podendo, por força de lei, retroagir os juros à data do acidente, haverá que, no mínimo, calculá-los a partir da sentença, sob pena de, não obstante qualquer hipotética actualização, se prejudicar o lesado, impossibilitando a aplicação dessas mesmas tabelas.

35º) - Por todo o exposto, e de acordo com a maioria da Jurisprudência não há qualquer razão para que os juros não sejam considerados, conforme peticionado, isto é, desde a citação, sendo que o Acórdão de Jurisprudência 4/2002 do STJ não tem aqui aplicação.

36º) - A sentença em causa fez uma incorrecta aplicação das regras de rateio entre os montantes devidos aos Autores e aquele devido à chamada.

37º) - Ao assim não decidir a sentença recorrida, além de interpretar erradamente a prova produzida em juízo, violou ou/e aplicou erradamente, designadamente, o disposto nos a 343º, 344º, 496°, 500°, 507°, 508°, 562°, 564°, 566°, 805° e 806° do Código Civil e art° 661º do Código de Processo Civil e 6° do DL 522/85 de 25/01, com a redacção dada pelo DL 18/93 de 23/01.


1.3.2. - Contra-alegou a Ré DD, preconizando a improcedência do recurso dos Autores.
Requereu, ao abrigo do art.684-A do CPC, que, em caso de procedência da apelação dos Autores, a indemnização fixada na sentença pela perda da capacidade aquisitiva ( 50.000.000$00 ), deve ser reduzida para a quantia de 25.000.0000$00.

1.3.3. - Recurso da Ré DD – conclusões:
1º) - A. A sentença recorrida, ao optar pela aplicação ao caso sub judice do disposto no artigo 508° n.° 1 do CC, por entender que a responsabilidade civil transferida para a recorrente não assenta na culpa, deveria ter considerado a alçada do tribunal da relação vigente na data do acidente, a qual era de 2.000.000$00.

2º) - Não o tendo feito, a sentença violou o disposto naquele artigo 508° bem como o disposto no artigo 12° do CC, pelo que deverá ser revogada e substituída por decisão que aplique in casu o limite de 4.000.000$00, correspondente ao dobro do valor da alçada do tribunal da relação, na data do acidente de viação.


1.3.4. - Contra-alegaram os Autores, concluindo assistir razão à Ré quanto ao limite estabelecido para a indemnização pelo risco, devendo, contudo ( sem abdicar da sua pretensão recursal ) sobre esse montante acrescerem juros de mora desde a citação.

II - FUNDAMENTAÇÃO

2.1. – Delimitação do objecto dos recursos:

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões dos recorrentes ( arts.684 nº3 e 690 nº1 do CPC ), impondo-se decidir as questões nelas colocadas, bem como as que forem de conhecimento oficioso, exceptuando-se aquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras ( art.660 nº2 do CPC ).

Considerando as conclusões que os apelantes extraíram das respectivas motivações, as questões essenciais que importa decidir são as seguintes:
a) – A impugnação da matéria de facto ( quesitos 5º, 6º, 27º a 40º, 60º a 62º da base instrutória );
b) - A responsabilidade do acidente ( culpa ou risco );
c) - Sendo a responsabilidade pelo risco, os limites do art.508 do Código Civil;
d) - A indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais do Autor;
e) - A indemnização pelos danos patrimoniais e não patrimoniais da Autora;
f) - Os juros de mora;
g) – O rateio.

2.2. - 1ª QUESTÃO / a impugnação da matéria de facto:

2.2.1. – Considerações gerais:
A revisão do Código de Processo Civil, operada pelo DL 329-A/95 de 12/2, instituiu, de forma mais efectiva, a garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto.
Porém, o poder de cognição do Tribunal da Relação sobre a matéria de facto não assume uma amplitude tal que implique um novo julgamento de facto.
Desde logo, a possibilidade de conhecimento está confinada aos pontos de facto que o recorrente considere incorrectamente julgados, com os pressupostos adrede estatuídos no art.690-A nº1 e 2 do CPC.
Por outro lado, o controlo de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação e/ou transcrição dos depoimentos prestados em audiência, não pode aniquilar ( até pela própria natureza das coisas ) a livre apreciação da prova do julgador, construída dialecticamente na base da imediação e da oralidade.
A garantia do duplo grau de jurisdição da matéria de facto não subverte, por isso, o princípio da livre apreciação da prova ( art.655 do CPC ) que está deferido ao tribunal da 1ª instância, sendo que na formação da convicção do julgador não intervém apenas elementos racionalmente demonstráveis, mas também factores não materializados, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente imperceptível na gravação/transcrição.
Na verdade, o depoimento oral de uma testemunha é formado por um complexo de situações e factos em que sobressai o seu porte, as suas reacções imediatas, o sentido dado à palavra e à frase, o contexto em que é prestado o depoimento, o ambiente gerando em torno da testemunha, o modo como é feito o interrogatório e surge a resposta, tudo contribuindo para a formação da convicção do julgador.
A convicção do tribunal é construída dialecticamente, para além dos dados objectivos fornecidos pelos documentos e outras provas constituídas, também pela análise conjugada das declarações e depoimentos, em função das razões de ciência, das certezas e ainda das lacunas, contradições, hesitações, inflexões de voz, (im)parcialidade, serenidade, “olhares de súplica” para alguns dos presentes, "linguagem silenciosa e do comportamento", coerência de raciocínio e de atitude, seriedade e sentido de responsabilidade manifestados, coincidências e inverosimilhanças que, por ventura, transpareçam em audiência, das mesmas declarações e depoimentos ( sobre a comunicação interpessoal, RICCI BITTI/BRUNA ZANI, " A Comunicação Como Processo Social", editorial Estampa, Lisboa, 1997).
Por isso, já ENRICO ALTAVILLA escrevia que " o interrogatório como qualquer testemunho, está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras" (" Psicologia Judiciária", vol. II, Coimbra, 3ª ed., pág. 12 ).
Contrariamente ao que sucede no sistema da prova legal, em que a conclusão probatória é prefixada legalmente, no sistema da livre apreciação da prova, o julgador detém a liberdade de formar a sua convicção sobre os factos, objecto do julgamento, com base apenas no juízo que fundamenta no mérito objectivamente concreto do caso, na sua individualidade histórica, adquirido representativamente no processo.
O que se torna necessário é que no seu livre exercício da convicção, o tribunal indique os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção do facto como provado ou não provado, possibilitando, assim, um controle sobre a racionalidade da própria decisão ( cf. MICHEL TARUFFO, “La Prueba De Los Hechos”, Editorial Trotta, 2002, pág.435 e segs. ).
De resto, a lei determina a exigência de objectivação, através da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador ( art.653 nº2 do CPC ).
Nesta perspectiva, se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis, segundo as regras da experiência, ela será inatacável, visto ser proferida em obediência à lei que impõe o julgamento segundo a livre convicção.
Conforme orientação jurisprudencial prevalecente, o controle da Relação sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1ª instância deve restringir aos casos de flagrante desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, sendo certo que a prova testemunhal é, notoriamente, mais falível do que qualquer outra, e na avaliação da respectiva credibilidade tem que reconhecer-se que o tribunal a quo, pelas razões já enunciadas, está em melhor posição.
Como se refere no Ac da RC de 3/10/2000 ( C.J. ano XXV, tomo IV, pág.27 ), “ o tribunal de segunda jurisdição não vai à procura de uma nova convicção ( que lhe está de todo em todo vedada exactamente pela falta desses elementos intraduzíveis na gravação da prova ), mas à procura de saber se a convicção expressa pelo tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova ( com os mais elementos existentes nos autos ) pode exibir perante si “.
Pois bem, é com base nestes princípios que se passa a aquilatar do recurso de facto.

2.2.2. - Alteração das respostas aos quesitos 5º, 6º, 60º, 61º e 62º da base instrutória ( relacionados com a dinâmica do acidente ):

Ao quesito 5º - ( “ Por falta de perícia, destreza e atenção da condutora do NN, o referido veículo veio a despistar-se ? “ ) – o tribunal respondeu “ Provado apenas o que consta das alíneas F) e G) “.

Ao quesito 6º - ( “ Não obstante a acentuada descida, o NN seguia sem ir devidamente travado com a ajuda do motor, ou seja, através das mudanças, tal como o local, a prudência e o senso comum aconselhariam, sobretudo com um veículo já com muitos anos ?”) – o tribunal respondeu “ Não provado “.

Ao quesito 60º - ( “ Logo que retomou a marcha e imediatamente após tentar servir do travão para controlar a marcha descendente, nunca superior a 50 km/h, que imprimia ao veículo, a co-ré Armandina apercebeu-se de que os travões do veículo não funcionavam? “) – o tribunal respondeu “ Provado “.

Ao quesito 61º - ( “ Em consequência do facto mencionado mo quesito anterior, imediatamente após ter alertado o adulto que a acompanhava, no sentido deste acautelar as demais crianças que seguiam no interior do veículo, tentou imediatamente imobilizar o NN e evitar a todo o custo que o mesmo ganhasse velocidade provocando um acidente de consequências catastróficas para as diversas crianças que transportava? “ ) – o tribunal respondeu “ Provado “.

Ao quesito 62º - ( “ Para o efeito, dirigiu o mesmo veículo de encontro a um monte de areia que encontrava na sua berma direita, embora invadindo parcialmente a estrada? “) – o tribunal respondeu “ Provado “.

Na respectiva fundamentação, o tribunal baseou essencialmente as respostas nos depoimentos das testemunhas Susana Antunes e Joaquim Félix, por haverem prestado os seus depoimentos de “ forma clara e coerente “, convencendo da “ veracidade dos seus depoimentos “, e não valorou o depoimento contrário da testemunha António Pires ( cf. motivação de fls.763 ).

Pretendem os Autores que se considerem provados os quesitos 5º e 6º e não provados os quesitos 60º, 61º e 62º, com fundamento em erro de julgamento, com a alegação de que tais depoimentos foram contraditados por outras testemunhas, “ pelo mesmo tão idóneas “, designadamente, as testemunhas José Joaquim Soares, António Gil Correia Pires e António Martins Gonçalves, devendo valorar-se também a não comparência a julgamento da Ré Arminda, impondo-se, assim, uma decisão diversa.

Segundo os Autores, a prova testemunhal não é suficiente e idónea para sustentar a decisão do tribunal, no sentido de que o despiste ocorreu por falta de travões do veículo, pelo que o mesmo se deu por falta de perícia e destreza da sua condutora.

Desde logo, a circunstância da Ré Armandina não ter comparecido ao julgamento, apesar de requerido o seu depoimento de parte, não pode significar, sem mais, uma recusa deliberada na cooperação para a descoberta da verdade que legitime a valoração de tal comportamento nos termos do art.519 nº2 do CPC, até porque tais faltas foram justificadas e de qualquer das formas sempre seria de livre apreciação.

Por conseguinte, o tribunal não estava a adstrito a valorar negativamente a ausência da co-Ré, contrariamente ao alegado pelos recorrentes e muito menos no sentido preconizado por estes, ou seja, de que a versão apresentada pela Ré Seguradora “ não é confirmada pela própria interveniente no acidente “.

Quanto à prova testemunhal, naturalmente que o tribunal valorou sobremaneira o depoimento da Susana Antunes, visto que a mesma seguia no veículo, tendo confirmado que a causa do despiste foi a falta de travões, tal como resulta claramente do respectivo depoimento.

Por outro lado, assume relevância o depoimento de Joaquim Félix, mecânico, visto ter inspeccionado o veículo, ainda no local do acidente, constatando a falha do travão de serviço ( travão de pé ), em virtude do rebentamento do tubo de óleo, esclarecendo a respectiva função no sistema de travagem, sendo que tal rebentamento não foi provocado pelo próprio embate, designadamente por umas vigas existentes no local.

Salientou, no entanto, que o travão de estacionamento ( travão de mão ) estava funcional e a trabalhar, havendo, assim, que corrigir a matéria de facto, no sentido de que a falha se deu apenas no travão de serviço.

Segundo o resultado da inspecção, o veículo ia engatado, mas dada a inclinação acentuada da estrada, o mesmo não se segurava só com o motor, dado que deslizaria.

É certo que a testemunha António Gonçalves, que não seguia no veículo, deu uma outra explicação, mas apenas baseada numa mera impressão, como o próprio expressamente o afirmou ( “ (…) dá impressão que a pessoa se atrapalhou e em vez de carregar no travão, carregou na embraiagem e o carro foi livre (…) “ ), o que de forma alguma pode infirmar o depoimento daquela.

Por conseguinte, não houve erro de julgamento na apreciação da prova, impondo-se precisar apenas que a falha de travões ocorreu no travão de serviço, vulgarmente designado por “travão de pé “, explicitando-se, assim, a resposta ao quesito 60º, que passa a ter a seguinte redacção:

“ Logo que retomou a marcha e imediatamente após tentar servir do travão de serviço ( travão de pé ) para controlar a marcha descendente, nunca superior a 50 km/h, que imprimia ao veículo, a co-ré Armandina apercebeu-se de que esses travões não funcionavam ”.

2.2.3. - Alteração das respostas aos quesitos 27º, 28º, 29º, 30º, 31º a 40º ( relacionados com os danos ):

Ao quesito 27º ( “ O Autor ganhava, na altura do acidente, a quantia de 7.000$00/dia, 26 dias por mês ( incluindo sábados ), catorze meses no ano? “ ) – o tribunal respondeu “ Provado o que consta da resposta ao quesito 65º, ou seja, “ Na altura em que se deu o acidente, o Autor, nos termos daquilo que o próprio declarou perante o tribunal de trabalho, auferia a remuneração de 4.500$00, durante 332 dias ao ano, mais 52 dias de férias e respectivo subsídio “.

O tribunal fundamentou a resposta no auto de conciliação junto a fls.51 a 52.

Pretendem os recorrentes que se considere provado o quesito 27º, com base nos depoimentos das testemunhas António Gonçalves e Fernando Quelhas, só que estas nem sequer referiram qual o vencimento que o Autor recebia efectivamente como pedreiro da construção civil.

Na motivação do recurso, alegam os recorrentes existir uma sociedade irregular e que, por isso, “havia dividendos”, questão que o tribunal de trabalho não tinha que apreciar, mas os Autores nem sequer alegaram tal facto na petição inicial.

Aos quesitos 28º, 29º e 30º, o tribunal respondeu “ Não provado “, pretendendo os Recorrentes que se considerem “provados”, indicando as mesmas testemunhas, mas para além dos seus depoimentos estarem sujeitos à livre apreciação, deles não resulta, como um mínimo de segurança, a preconizada alteração.

Aos quesitos 31º a 40º ( sobre despesas feitas em consequência do acidente ), o tribunal respondeu “ Não provado “, fundamentando não ter sido feita prova sobre as concretas despesas efectuadas pela Autora, na medida em que as testemunhas referiram nada saber sobre os factos concretos.

Entendem os recorrentes que a prova testemunhal ( Joaquim Umbelina, Olímpia Duarte, José Gonçalves Umbelina e Fernando Quelhas ) impõe que se considerem provados os quesitos, com excepção dos montantes neles mencionados.

Uma vez que o tribunal a quo não pôs em causa a credibilidade destas testemunhas, nem a razão de ciência, a verdade é que, da conjugação dos seus depoimentos e das regras da experiência comum, resulta que a Autora teve despesas nas deslocações que efectuou para visitar o Autor marido, nos períodos de internamento, muito embora não soubessem precisar todas as despesas, nem os respectivos montantes.

Porque houve desconformidade entre a prova testemunhal e a decisão, procede-se à alteração das respostas aos quesitos, nos seguintes termos:

Quesito 31º - Provado apenas que, pelo menos, as calças e a camisola, de valores não apurados, que o Autor vestia, na altura do acidente, ficaram inutilizadas.

Quesito 32º - Provado apenas que durante o tempo em que o Autor esteve internado em Coimbra, a Autora esposa o visitou várias vezes, deslocando-se, para o efeito, do local da sua residência.

Quesito 33º e 34º - Provado apenas que nessas deslocações, em viagens e alimentação, a Autora despendeu uma quantia não concretamente apurada.

Quesitos 35º e 36º - Provado apenas que durante o tempo em que o Autor esteve internado na Guarda, a Autora esposa o visitava diariamente, despendendo em deslocações uma quantia não concretamente apurada.

Quesitos 37º, 38º, 39ºe 40º - Provado apenas que durante os meses em que o Autor esteve internado no Porto, a Autora esposa visitou-o várias vezes, gastando em deslocações e alimentação uma quantia concretamente não apurada.

Em resumo, procede parcialmente o recurso da matéria de facto, passando-se a discriminar os factos provados, por ordem lógica e cronológica, com as referidas alterações.

2.2.4. - OS FACTOS PROVADOS:

1) - No dia 04 de Novembro de 1993, pelas 17 horas, o autor encontrava-se no seu local de trabalho, na Estrada de Alfarazes, na cidade da Guarda, local de trabalho esse que consistia num prédio que ali se estava a construir.
2) - Essa Estrada tem uma descida muito acentuada no sentido Norte/Sul.
3) - A mesma estrada encontrava-se, na altura, e em virtude das obras, parte dela ocupada.
4) - O local é uma recta de cerca de 100 metros de comprimento, com boa visibilidade
5) - A estrada tinha cerca de 10 metros de largura e estava livre pelo menos 5,30 metros do lado esquerdo, em sentido descendente.
6) - O piso da referida estrada encontrava-se na altura, seco e limpo.
7) - Nessa mesma hora e local, sentido descendente, pela mesma estrada, circulava o veículo ligeiro misto, com a matrícula KK, marca Peugeot, modelo 404, conduzido pela co-ré irmã Maria de Armandina de Lacerda, que o conduzia por conta do seu proprietário, o co-réu Centro de Assistência Social da Guarda, a mando e com autorização deste.
8) - O veículo NN era velho e muito usado.
9) - Cerca de 100 metros antes do local onde se veio a dar o acidente, a Ré Armandina imobilizou o NN a fim de permitir a saída de uma criança.
10) - A Ré Armandina, na companhia de um outro adulto, procedia ao transporte de diversas crianças.
11) - Logo que retomou a marcha e imediatamente após tentar servir do travão de serviço ( travão de pé ) para controlar a marcha descendente, nunca superior a 50 km/h, que imprimia ao veículo, a co-ré Armandina apercebeu-se de que esses travões não funcionavam.

12) - Em consequência do facto mencionado no n° anterior, imediatamente após ter do facto alertado o adulto que a acompanhava, no sentido de este acautelar as demais crianças que seguiam no interior do veículo, tentou de imediato imobilizar o NN e evitar a todo o custo que o mesmo ganhasse velocidade, provocando um acidente de consequências catastróficas para as diversas crianças que transportava.
13) - Para o efeito, dirigiu o mesmo veículo de encontro a um monte de areia que encontrava na sua berma direita, embora invadindo parcialmente a estrada.
14) - Porque o veículo não se imobilizasse completamente na areia, acabou ainda por embater numa betoneira que se encontrava junto, que entretanto tombou de encontro ao Autor.
15) - Quando encetou a manobra, a irmã Armandina não avistava o Autor nem admitia, por isso mesmo, que lhe pudesse vir a embater.
16) - A determinada altura a condutora do NN guinou o veículo para a sua direita indo embater contra um monte de areia de aproximadamente um metro de altura que aí se encontrava.
17) - A condutora do NN não conseguiu parar o veículo, indo em bater numa betoneira que se encontrava à frente dessa areia.
18) - Por sua vez, tal betoneira foi embater contra o Autor marido, fora da faixa de rodagem, que na altura se encontrava a cerca de 3 metros da porta do prédio que andava a construir.
19) - Em consequência do acidente dos autos, o Autor marido ficou gravemente ferido, politraumatizado, tendo, designadamente, traumatismo torácico e crâneoencefálico grave, consubstanciado numa fractura craniana com hematoma epidural parietal esquerdo e compromisso neurológico de lateralização com edema cerebral difuso.
20) - Pelo que foi de imediato transportado ao Hospital Distrital da Guarda, donde, também de imediato e devido ao seu estado grave, seguiu para os Hospitais da Universidade de Coimbra.
21) - Onde esteve internado, em coma, desde a data do acidente até 03/12/93.
22) - Altura em que foi de novo transferido para o hospital da Guarda.
23) - Onde esteve internado desde 03/12/93 a 04/03/94.
24) - Tendo, seguidamente sido internado, desde 04/03/94 até 09/06/94 num hospital particular; indicado pela Seguradora Mundial Confiança, S.A, na cidade do Porto.
25) - Seguindo depois para casa, mas continuando durante largos meses com tratamento ambulatório, designadamente com exercícios de fisioterapia que regularmente continua a seguir.
26) - Em resultado dos vários ferimentos e traumatismos sofridos pelo Autor marido, em consequência do acidente, nomeadamente a nível crâneo-encefálico, este ficou com descoordenação motora dos membros superiores e inferiores, equivalente, sob o ponto de vista funcional, e de facto, a uma tetraparésia.
27) - Em consequência do acidente dos autos ficou com uma impossibilidade total e absoluta para o trabalho que exercia e tarefas similares, ficando impossibilitado de, por si só, se bastar nas tarefas correntes da vida comum.
28) - Não sendo, v.g., capaz de escrever ou desenhar, assegurar qualquer tarefa doméstica, vestir-se sem ajuda de um terceiro, ou realizar qualquer outra tarefa em que se exija um mínimo de precisão.
29) - Podendo apenas deslocar-se com a ajuda de duas canadianas e com grandes dificuldades e apenas durante curtos trajectos.
30) - Tendo, inclusive, ficado com problemas na fala pelo que se exprime com muita dificuldade.
31) - Apresentando, também, sempre em consequência dos traumatismos de que foi vítima, dificuldade em seguir ou apresentar um raciocínio mais longo ou complexo, vendo-se muitas vezes incapaz de raciocinar normalmente, como fazia até à data do acidente.
32) - Ficou ainda impossibilitado de exercer uma vida sexual normal, nomeadamente deixando de ter relações sexuais com a esposa, pois que ficou sem qualquer controle dessas funções ficando a sofrer de impotência, e isto sendo ambos os Autores muito jovens.
33) - O Autor marido, na altura do acidente, era pedreiro, profissão essa de que gostava e que exercia com competência, sendo por todos reconhecido como um bem mestre na sua arte.
34) - Na data do acidente o Autor marido era um jovem cheio de vida, força e saúde, formando com a esposa e os dois filhos do casal uma família alegre e feliz, cheia de projectos para o futuro.
35) - O brutal acidente de que foi vítima veio todavia destruir essa felicidade e projectos.
36) - O Autor marido, que até à data do mesmo assegurava o sustento da família, passou a depender desta.
37) - Sente-se um fardo inútil, situação que muito o penaliza e entristece.
38) - O Autor perdeu toda a alegria de viver.
39) - O Autor não pode praticar qualquer outra actividade das muitas que lhe davam prazer, designadamente a caça.
40) - Em consequência do acidente, após este e ainda actualmente, o Autor sofreu e continua a sofrer perturbações psicogénicas e emocionais, com períodos de grande instabilidade e insónias, que continuam a exigir tratamento.
41) - O autor, por diversas vezes, enquanto esteve internado sentiu que ia morrer, sendo grande o seu temor e sofrimento.
42) - Os tratamentos a que se submeteu foi e continua a ser particularmente doloroso, designadamente os exercícios de fisioterapia.
43) - O Autor marido continua a viver em permanente angústia e sofrimento, fechando-se sobre si próprio.
44) - Os danos morais são extensíveis à autora esposa, que com esse acidente, viu também os seus sonhos serem desfeitos, tornando-se, em permanência a enfermeira do seu marido.
45) - Vendo-se impedida de exercer a vida normal de um casal que tinha tudo para ser feliz, condenada a um estado de viuvez, sem ser viúva, para o resto da sua vida.
46) - Passando a suportar a responsabilidade de cuidar em permanência de um doente e de duas crianças.
47) - Em consequência do acidente também a Autora esposa sofreu profundamente, sendo grande a aflição, angústia; e sofrimento.
48) - Sobretudo durante o período de um mês em que o seu marido esteve em coma, sem saber se ia viver ou morrer.
49) - Pelo menos, as calças e a camisola, de valores não apurados, que o Autor vestia, na altura do acidente, ficaram inutilizadas.

50) - Durante o tempo em que o Autor esteve internado em Coimbra, a Autora esposa o visitou várias vezes, deslocando-se, para o efeito, do local da sua residência.

51) - Nessas deslocações, em viagens e alimentação, a Autora despendeu uma quantia não concretamente apurada.

52) - Durante o tempo em que o Autor esteve internado na Guarda, a Autora esposa o visitava diariamente, despendendo em deslocações uma quantia não concretamente apurada.

53) - Durante os meses em que o Autor esteve internado no Porto, a Autora esposa visitou-o várias vezes, gastando em deslocações e alimentação uma quantia concretamente não apurada.

54) - O Autor marido nasceu em 21/04/1966 e a Autora mulher nasceu em 23/07/1968.
55) - O Autor marido, na data do acidente dos autos, era funcionário de FF, e encontrava-se naquele momento ao seu serviço.
56) - Através da apólice n° 2.733.186 o mencionado António Gonçalves transferiu para a interveniente CC, S.A a responsabilidade pelos encargos obrigatórios provenientes de acidentes de trabalho, bem como pelos acidentes ocorridos no percurso normal de e para o local de trabalho.
57) - No Tribunal de Trabalho do Círculo da Covilhã foi atribuída ao Autor, em resultado do acidente dos autos uma I.T.A para a profissão e uma ITA de 0,7084, tendo ficado sob o encargo da interveniente CC S.A o pagamento de uma pensão vitalícia de 369, 64 € (74.106$00.).
58) - Na altura em que se deu o acidente, o Autor, nos termos daquilo que o próprio declarou perante o Tribunal do trabalho, auferia a remuneração de 22, 45 € (4.500$00) durante 332 dias ao ano mais 52 dias de férias e respectivo subsídio.
59) - Para reparação das lesões sofridas pelo Autor, em consequência do Acidente dos autos, a interveniente CC, S.A despendeu as seguintes quantias:
a) Tratamentos e assistência no Hospital da mesma 7 454,43 € (Esc. 1.494.479$00);
b) Tratamentos e assistência em Hospitais externos10 056, 91 € ( Esc. 2.016.230$00);
c) Transportes Esc. 4 119, 05 € (825.795$00);
d) Indemnização por Incap. Total Absoluta de 05/11/93 a 30/01/95 5 318, 65 € (Esc. 1.066.293$00)
60) - Em consequência do facto mencionado no n° 13 a mencionada interveniente pagou a título da referida pensão, e até 31/08/96 a quantia de 7 392, 80 € (1.482.123$00), em consequência do acidente de viação a que se referem os presentes autos.
61) - A mesma interveniente continua a pagar a pensão referida e vencidas a partir de 01/09/96.
62) - Por contrato de seguro titulado pela apólice n° 09-40-876135, a responsabilidade civil por danos causados a terceiros, emergentes da circulação do veículo com a matrícula KK, mostra-se transferida para a Ré Aliança UAP- Companhia de Seguros, S.A, até ao montante de Esc. 50.000.000$00, com o limite mínimo por lesado de Esc. 35.000.000$00.

2.3. - 2ª QUESTÃO / A responsabilidade pelo acidente:

Como regra geral, incumbe ao autor a prova da culpa do autor da lesão, salvo havendo presunção legal de culpa ( art.487 do CC ).
O art.503 nº3 do CC, na interpretação do Assento do STJ de 14/4/83 ( BMJ 326, pág.302 ) estabelece uma presunção legal de culpa do condutor do veículo por conta de outrem, aplicável nas relações entre ele como lesante e o titular do direito à indemnização.
Muito embora tenha sido questionada a inconstitucionalidade da norma, na interpretação do Assento, o certo é que o Tribunal Constitucional, tem rejeitado sistemática esta tese, afirmando a sua conformação constitucional ( cf., por ex., Ac TC de 7/6/94, BMJ 438, pág.71 ).
O funcionamento da presunção de culpa pressupõe uma relação de comissão ( art.500 CC ), que se caracteriza pelos seguintes elementos: um vínculo entre o comitente e o comissário; uma relação de subordinação ou de dependência do comissário perante o comitente, que autorize este a dar ordens ou autorizações àquele; O facto haja sido praticado pelo comissário no exercício das funções que lhe foram confiadas, embora seja suficiente que o acto se integre no quadro geral da competência ou dos poderes confiados ao comissário ( cf. Assento do STJ de 30/4/96, BMJ 456, pág.19 ).
A comissão do art.500 não tem aqui o sentido preciso que reveste no art.266 e segs, do Código Comercial, mas o sentido amplo de serviço ou actividade realizado por conta e sob a direcção de outrem, podendo traduzir-se num acto isolado ou numa actuação duradoura.
Deste modo, a relação comissário/comitente é distinta do mero interesse ( económico ou moral ) na utilização do veículo, cuja direcção efectiva ( traduzida no poder de facto sobre o veículo ) pode coexistir entre o proprietário do veículo e o seu condutor, bastando recordar, entre outras, as figuras do comodato, mantendo, assim, a direcção efectiva do veículo.
Comprovando-se que a co-ré irmã EE de Lacerda conduzia o veículo ligeiro misto, com a matrícula KK, marca Peugeot, modelo 404, por conta do seu proprietário, Centro de Assistência Social da Guarda, a mando e com autorização deste, no transporte de crianças, está demonstrada a relação de comissão.
A sentença recorrida considerando inexistir culpa por parte da condutora do veículo NN, em virtude de não se provar a culpa efectiva e por haver elidido a presunção legal de culpa ( art.503 nº3 do CC ), concluiu pela responsabilidade objectiva.
Argumentou-se, no essencial, que, perante os elementos de facto disponíveis, naquela situação concreta, não era exigível à condutora do veículo outro comportamento, dada a falha de travões.
Em contrapartida, objectam os apelantes que os factos não são suficientes para ilidir a culpa, designadamente, porque poderia travar com o motor e com o travão de estacionamento, o que não fez, revelando imperícia.
Da conjugação dos factos apurados, resulta que, depois de haver parado para sair uma criança, a Ré Armandina, quando retomou a circulação ficou sem travões de serviço, e ao aperceber-se, a sua preocupação foi de imediato imobilizar o veículo, para evitar, a todo o custo, que ganhasse velocidade, dado tratar-se de uma descida muito acentuada, e, dessa forma, provocar um acidente catastrófico para as crianças que transportava.
Por isso, guinou para a sua direita, desviando o veículo de encontro a um monte de areia, situado na berma direita, mas este obstáculo não foi suficiente para o imobilizar, o qual acabou por embater numa batoneira, que, por seu turno, foi embater contra o Autor marido, fora da faixa de rodagem, que na altura se encontrava a cerca de 3 metros da porta do prédio que andava a construir.
Assim, perante uma falha súbita nos travões, numa descida muito acentuada, a Ré Armandina efectuou uma “ manobra de recurso “, para evitar um mal maior, como de resto, se sublinhou na sentença recorrida.
Perante a peculiaridade do caso concreto, não se pode afirmar, tal como pretendem os apelantes, que tivesse agido com imperícia, pelo simples facto de não travar com o motor, ou usar o travão de estacionamento.
Com efeito, é das regras da experiência comum que qualquer acidente tem uma dinâmica própria, e tudo se passa em fracções de segundo, e, nas circunstâncias concretas, o objectivo imediato foi o de evitar que o veículo ganhasse velocidade, numa descida com uma inclinação muito acentuada, pondo em perigo a vida das crianças que transportava.
Estamos, assim, perante uma clara situação de “ manobra de recurso ou de salvamento “, inserida no mecanismo do estado de necessidade, como causa de justificação do facto.
Ao caracterizar a figura da “ manobra de salvamento “, DARIO DE ALMEIDA descreve-a como sendo “ toda a manobra pelo qual um condutor a quem é imposta uma situação de perigo para a vida, manifesto e iminente, cede in extremis a um impulso de auto-defesa para minimizar um prejuízo já inevitável ou para se furtar a ele, preferindo por isso entrar em transgressão às regras de trânsito ou causar porventura um dano a outrém, desde que instintivamente tenha esse dano por coisa menos grave “ ( Manual de Acidentes de Viação, pág.460 ).
Estando em causa o princípio da ponderação dos valores conflituantes na situação concreta, não era razoavelmente exigível que a condutora do veículo adoptasse outra atitude naquelas circunstâncias.
Neste contexto, é legítimo concluir, tal como se justificou na sentença recorrida, que o acidente se verificou por causa não imputável à Ré Armandina, mas não estranha à circulação do referido veículo automóvel, pelo que apenas pode haver lugar à responsabilidade objectiva ou pelo risco.

2.4. – 3ª QUESTÃO / Os limites máximos da responsabilidade objectiva:

No caso da responsabilidade pelo risco, o artº 508º nº1 do Código Civil ( vigente à data do acidente ) prescrevia que a indemnização está limitada ao dobro da alçada da Relação.
Porém, o Dec. Lei nº59/2004 de 19 de Março alterou o art.508 do CC, passando o nº1 a ter a seguinte redacção:
“ A indemnização fundada em acidente de viação, quando não haja culpa do responsável, tem como limite máximo o capital mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil “.

2.4.1. – Posição dogmática antes da alteração legislativa:
O artigo 508.º do Código Civil consagra, para os casos de responsabilidade objectiva, limites máximos de indemnização inferiores aos limites mínimos do seguro obrigatório.
Uma vez que o regime jurídico do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel tanto se aplica às situações de constituição em responsabilidade subjectiva, como objectiva, e vigora em todos os acidentes de viação, quer haja ou não seguro, dada a instituição do Fundo de Garantia Automóvel – todos estão de acordo que existe uma incompatibilidade entre o art.508 nº1 do CC e o art.6º do DL 522/85.
Com efeito, o Estado Português ainda não adaptara, então, a redacção do artigo à Directiva 84/5/CEE, mais concretamente, aos artº1º, nº2, e 5º, nº3, na redacção que lhes foi dada pelo Anexo I, Parte IX, F, do Acto Relativo às Condições de Adesão do Reino de Espanha e da República Portuguesa e às Adaptações dos Tratados, artigos aqueles que, segundo o entendimento do TJCE, expresso no acórdão de 14.09.2000, no processo C-348/98, publicado na CJ do TJCE, ano 2000, pág. I-6711, "obstam à existência de limites máximos de indemnização inferiores aos montantes mínimos do seguro obrigatório neles fixados".
Como a directiva 84/5/CEE, ( arts. 1º, nº2, e 5º, nº3 ) não tem força jurídica para se substituir ao art.508 do CC CC, na parte em que este fixa o montante dos limites indemnizatórios, coloca-se a questão de saber se a derrogação não terá sido levada a cabo, não directamente pela directiva, mas tacitamente pelo artº6º, DL 522/85, de 31/12.
Esta polémica questão originou duas correntes jurisprudenciais.

a) - Tese da não revogação tácita dos limites do art.508 do CC – assente nos seguintes tópicos argumentativos:
A Segunda Directiva 84/5/CEE não foi transposta para o direito interno ( quanto à responsabilidade pelo risco );
A Directiva pode ser invocada contra qualquer entidade pública ( efeito vertical ), mas já não pode ser invocada contra um particular, pessoa singular ou colectiva ( efeito horizontal );
O enquadramento legal da determinação do valor da indemnização insere-se na regulamentação do instituto da responsabilidade civil e não no regime do seguro;
O legislador interno, através do DL 423/91 de 30/10, alterou o nº2 do art. 508 elevando os valores da indemnização sob a forma de renda o que, a aceitar-se a tese da revogação tácita, equivaleria a ter de admitir-se que o legislador revogou normas já anteriormente revogadas.
Neste sentido, por ex., Ac do STJ de 19/9/2002, C.J. ano X, tomo III, pág.46, Ac do STJ de 9/5/2002, C.J. ano X, tomo II, pág.55, Ac RG de 29/9/2002, C.J. ano XXVIII, tomo IV, pág.288; NUNO OLIVEIRA, A Revogação Tácita do artigo 508 do Código Civil, Scientia Iuridica, tomo LI nº292, 2002, pág.97 e segs. ).

b) - Tese da revogação tácita do art.508 CC pelo artº 6º do DL 522/85.
Segundo esta tese, os limites máximos de indemnização estabelecidos pelo art.508 nº1 do CC foram substituídos pelos montantes mínimos do capital seguro, previstos no art.6º do DL 522/85, fundamentando-se em dois argumentos essenciais:
A interpretação do direito nacional em conformidade com as normas do direito comunitário;
As normas que fixam os montantes mínimos do seguro obrigatório têm também natureza de regras de direito material da responsabilidade civil, revogatória, nessa parte, do art.508 do CC.
Neste sentido, cf., por ex., Ac do STJ de 13/3/2003 ( Quirino Soares ), com anotação concordante de CALVÃO DA SILVA na RLJ ano 134, pág.197 e segs. , Ac STJ de 27/3/2003 ( Sousa Inês), www dgsi ).
Escreveu-se no Ac do STJ de 13/3/2003 ( QUIRINO SOARES ):
“ Se a ideia, quer do legislador comunitário (na interpretação do TJCE), quer do legislador nacional (expressa no relatório do próprio DL 522/85), é a de uma íntima ligação entre os limites máximos de responsabilidade civil e o capital do seguro obrigatório, então a existência de limites máximos de indemnização inferiores ao do capital obrigatoriamente seguro seria um contra-senso do legislador, na medida em que aquilo que é considerado como "uma medida de alcance social(…) uma resposta cabal aos legítimos interesses dos lesados" (cfr. relatório do DL 522/85) acabaria por se revelar, em muitos casos, uma garantia sem objecto (na parte em que excede os limites máximos de responsabilidade).
“ Como o capital obrigatoriamente seguro tem o sentido e o alcance de uma medida de protecção dos lesados em acidente de viação, de mínimo garantido às vítimas (suposta, naturalmente, a responsabilidade de terceiro), tal como resulta do DL 522/85 e, também, da directiva 84/5/CEE, em harmonia com a qual deverá, na medida do permitido pelas regras internas de hermenêutica, ser interpretado o correspondente direito nacional, deverá concluir-se, então, que os sucessivos aumentos do capital do seguro obrigatório foram sendo, também, a correspondente elevação dos limites máximos de responsabilidade civil, porque, nessa medida, isto é, na medida em que vão além dos anquilosados limites previstos no artº508º, CC, as normas que fixam os montantes mínimos do seguro obrigatório têm também a natureza de regras de direito material da responsabilidade civil, revogatórias, nessa parte, do artº508 CC.
“ Assim, o impõe uma compreensão unitária e articulada dos sistemas de responsabilidade civil automóvel e do correspondente seguro obrigatório, assim o impõe, afinal, a unidade do sistema jurídico, que constitui uma das preocupações fundamentais da tarefa de interpretação das leis (artº9º,nº1 CC).
“ Esta concepção deixa, do artº508º, CC, o pensamento legislativo fundamental subjacente: o de que a responsabilidade pelo risco em matéria de acidentes causados por veículos é limitada e dá das normas que fixam os limites mínimos do seguro automóvel, uma surpreendente mas exacta perspectiva de normas materiais do direito da responsabilidade civil, que acresce à sua natural condição de regras do direito dos seguros, harmonizando, assim, de forma perfeita as duas perspectivas, tal como o que supomos ser o pensamento legislativo.
“ A matéria do artº508º CC, na parte em que fixa os limites máximos da responsabilidade, foi sendo regulada noutro local do sistema legislativo, e deve, por isso, considerar-se revogada pelo artº6º, DL 522/85 “.

2.4.2. – Posição dogmática após a alteração legislativa:
Com a alteração do art.508 do CC pelo Decreto-Lei nº59/2004 de 19 de Março, a querela jurisprudencial ficou, assim, resolvida ou clarificada por via legislativa, ao repor-se expressamente a compatibilidade entre o art.508 e a Directiva 84/5/CEE de 30/12/83 ( Segunda Directiva ), acolhendo o legislador nacional a interpretação dada pelo Tribunal da Justiça das Comunidades no acórdão de 14/9/2000.
Sendo assim, importa saber se estamos em face de uma lei interpretativa ou de uma lei inovadora.
Caso se considere uma lei inovadora, só tem aplicação aos acidentes ocorridos após a sua vigência, já se for qualificada como lei interpretativa, os limites máximos aplicam-se aos acidentes anteriores.
É ponto assente que o direito à indemnização por acidente de viação constitui-se no momento do acidente e por efeito deste, e rege-se pela lei nele em vigor ( art.12 do CC ).
Aquando da alteração do art.508 do CC pelo Decreto-Lei nº190/85 de 24 de Junho ( alterou os limites por referência ao valor da alçada da Relação ) a Jurisprudência, seguindo esse critério da aplicação das leis no tempo, decidiu uniformemente no sentido de que a alteração só se aplica aos acidentes ocorridos depois da sua entrada em vigor ( 1 de Janeiro de 1986 ) ( cf., por ex., Ac da RP de 30/10/86, C.J. ano XI, tomo IV, pág.242, Ac do STJ de 8/6/89, BMJ 388, pág.492, Ac RL de 17/12/92, C.J. ano XVII, tomo V, pág.164, Ac STJ de 7/6/88, de 7/1/92 de 19/5/92, www dgsi ).
Porém, o contexto em que surgiu a alteração legislativa pelo recente Decreto-Lei nº59/2004 de 19 de Março, é diferente, como de resto se afirma no próprio preâmbulo.
“ Com efeito, ainda que as directivas comunitárias sobre seguro automóvel não estabeleçam distinção entre responsabilidade com culpa e responsabilidade pelo risco, dizendo respeito ao seguro obrigatório e não à responsabilidade civil, tem-se entendido que os montantes mínimos do capital seguro fixados pelo nº2 do art.1º da Segunda Directiva têm de ser respeitados independentemente da espécie de responsabilidade em jogo” (…)
“ Procurando obviar esta discrepância, fixou-se um novo critério de determinação dos limites máximos de indemnização, tendo nomeadamente em conta a evolução previsível ao nível comunitário dos montantes mínimos de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e a criação de um mecanismo de actualizações periódicas e regulares daqueles montantes “ ( sublinhados nossos ).
Sobre as leis interpretativas, escreveu BAPTISTA MACHADO:
“ É de considerar como lei interpretativa ( por natureza ) aquela que, com o fim de pôr cobro à controvérsia ( ou pelo menos à incerteza ) sobre o sentido de certa regra jurídica, vem consagrar uma solução que os tribunais poderiam ter adoptado: não necessariamente uma das correntes jurisprudenciais anteriores ou uma forte corrente jurisprudencial anterior – que, até pode não existir -, mas um sentido que os operadores jurídicos podiam ter extraído da norma “ ( Introdução ao Direito e Discurso Legitimador, 1983, pág.246 ).
Na mesma obra, estabelece os requisitos necessários para a qualificação da lei nova como lei interpretativa, referindo-se, a dado passo:
“Para que uma LN possa ser realmente interpretativa são necessários, portanto, dois requisitos: que a solução do direito anterior seja controvertida ou pelo menos incerta; e que a solução definida pela nova lei se situe dentro dos quadros da controvérsia e seja tal que o julgador ou intérprete a ela poderiam chegar sem ultrapassar os limites normalmente impostos à interpretação e aplicação da lei. Se o julgador ou intérprete, em face dos textos antigos, não podiam sentir-se autorizados a adoptar a solução que a LN vem consagrar, então esta é decididamente inovadora ( pág.247 ).
A solução do direito anterior ( saber se o art.508 foi revogado tacitamente pelo art.6º do DL 522/85 ) é claramente controvertida, de tal forma que foi já suscitado um Assento ( acórdão de uniformização de jurisprudência ).
A solução definida pela nova lei situa-se dentro dos quadros da controvérsia ( como resulta do próprio preâmbulo ) e o julgador ou intérprete, em face dos textos antigos, estava autorizado a adoptar a solução consagrada na lei nova ( veja-se a tese da revogação tácita ).
Uma vez que “ a matéria do artº508º CC, na parte em que fixa os limites máximos da responsabilidade, foi sendo regulada noutro local do sistema legislativo, e deve, por isso, considerar-se revogada pelo artº6º do DL 522/85 “ – como regra de direito material da responsabilidade civil – então a redacção dada ao art.508 pelo Dec.Lei nº59/2004 adquire a natureza de lei interpretativa.

Já depois da alteração legislativa, o STJ no Acórdão nº3/2004 de 25/3/2004 ( publicado no DR I-A de 13 de Maio de 2004 ) fixou a seguinte jurisprudência uniformizadora:

“ O segmento do art.508º nº1 do Código Civil, em que se fixam os limites máximos de indemnização a pagar aos lesados em acidentes de viação causados por veículos sujeitos ao regime do seguro obrigatório automóvel, nos casos em que não haja culpa do responsável, foi tacitamente revogado pelo artigo 6º do Decreto-Lei nº522/85, de 31 de Dezembro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº3/96, de 25 de Janeiro “.

O Supremo Tribunal de Justiça acolheu, e a nosso ver bem, a tese da revogação tácita, também com o fundamento de que o DL 59/2004 tem natureza interpretativa.
Consequentemente, os limites máximos da indemnização pelo risco são os do limite mínimo do seguro obrigatório, em vigor à data do acidente ( 4/11/93 ), ou seja, os estabelecidos pelo DL 18/93 de 23/1 – 35.000 contos por lesado e 50.000 contos por sinistro.
Mas contrariamente ao preconizado pelos Autores, estes valores não são susceptíveis de actualização, devido à inflação, por se reportarem imperativamente à responsabilidade do agente ( cf., por ex., VAZ SERRA, RLJ ano 107, pág.296, Ac STJ de 17/5/90, BMJ 397, pág.484, Ac RP de 29/10/85, C.J. ano X, tomo IV, pág.83 ).



2.5. – 4ª QUESTÃO / A indemnização pelos danos do Autor:

2.5.1. – Os danos patrimoniais:
Como dano emergente, a inutilização das calças e camisola que o Autor vestia, na altura do acidente, de valor não apurado.

Em princípio, impor-se-ia relegar para execução de sentença a respectiva liquidação, mas nada obstará a que, até pela pouca expressão monetária se quantifique, desde já, evitando-se, assim, um novo impulso processual, recorrendo às regras da experiência comum e à normalidade das coisas, se estabeleça equitativamente o valor em € 80,00, já actualizado.

Como dano patrimonial futuro ( perda da capacidade de ganho ), a sentença fixou a indemnização em 50.000.000$00, mas a Ré Seguradora pretende que se reduza para 25.000.000$00.

A indemnização pela perda da capacidade aquisitiva deve ser calculada em atenção ao tempo provável de vida activa da vítima, de forma a representar um capital produtor de rendimento que cubra a diferença entre a situação anterior e a actual até final desse período.
Para tanto, serão convocadas as normas dos arts.564 e 566 nº3 do Código Civil, onde se extrai a legitimação do recurso à equidade ( art.4 do Código Civil ) e a desvinculação relativamente a puros critérios de legalidade estrita.
Nesta medida, o direito equitativo não se compadece com uma construção apriorística, emergindo, porém, do “ facto concreto ”, como elemento da própria compreensão do direito, rectius, um direito de resultado, em que releva a força criativa da jurisprudência, verdadeira law in action, com o imprescindível recurso ao “ pensamento tópico” que irá presidir à solução dos concretos problemas da vida ( CLAUS CANARIS , O Pensamento Sistemático e o Conceito de Sistema na Ciência do Direito. ).
Reportado especificamente à quantificação da indemnização através de juízos de equidade, LARENZ afirma que se exige do juiz a formulação de “ juízos de valor “, devendo orientar-se “ em primeiro lugar por casos singulares e sua apreciação na jurisprudência, mas seguindo para além disso, a sua própria intuição axiológica ( Metodologia da Ciência do Direito, pág.335 ).
A equidade, nas judiciosas considerações feitas no Ac STJ de 10/2/98, C.J. ano VI, tomo I, pág.65, “ é a justiça do caso concreto, flexível, humana, independente de critérios normativos fixados na lei “, devendo o julgador “ ter em conta as regras da boa prudência, do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida “.
Daí que quaisquer tabelas financeiras para o cálculo indemnizatório não sejam vinculativas, apenas servindo como critério geral de orientação para a determinação equitativa do dano (art.566 nº3 Código Civil) ( cf., por ex., Ac do STJ de 8/3/79, com anotação favorável de VAZ SERRA na RLJ ano 112, pág.263, de 8/6/93, C.J. ano I, tomo II, pág.130 ).
Por isso, é de repudiar a utilização pura e simples de critérios mais positivistas, assentes em equações de complexidade variável, como determinadas fórmulas matemáticas utilizadas em alguns arestos ( cf., por ex., Ac do STJ de 4/2/93, C.J. ano I, tomo I, pág.129, e de 6/7/2000, C.J. ano X, tomo II, pág.144 ), encontrando-se criticamente comentadas no estudo do Cons. SOUSA DINIS, “ Dano Corporal em Acidente de Viação “, publicado na C.J. do STJ ano V, tomo II, pág.11, e mais recentemente na C.J. ano IX, tomo I, pág.6 e segs.
Sem embargo da utilização de critérios pautados por um maior grau de objectividade, a solução baseada na equidade postula uma razoável ponderação dos elementos estruturais que emergem do quadro fáctico, sendo que o uso paralelo da aritmética apenas pode servir como factor adjuvante e auxiliar do percurso decisório.
Note-se que, ao contrário de alguns países, não se instituiu ainda em Portugal um sistema semelhante à “ baremación “, vigente em Espanha com a Ley nº30/1995 de 8/11, vinculativo para os tribunais, e, ainda que sem pendor vinculativo, semelhante modelo assente em “ barèmes “ foi também implantado em França, integrado numa Convenção destinada a regularizar os sinistros de circulação rodoviária, adoptada depois da publicação da “ Loi nº85-677 “ de 5/7/1985, apelidada de “ Loi Badinter “.
Neste contexto, tendo por base os princípios gerais exposto, para a determinação equitativa do dano patrimonial futuro do lesado, relevam, designadamente, os seguintes tópicos:
O período provável da vida activa, bem como a esperança média de vida, que, segundo as estatísticas, no nosso país se situa em 71,40 anos para os homens e 78,65 anos para as mulheres.
Como tem acentuado a jurisprudência do STJ, finda a vida activa do lesado por incapacidade permanente, não é razoável ficcionar que a vida física desaparece nesse momento ou com elas todas as necessidades, é que atingida a idade da reforma, isso não significa que a pessoa não continue a trabalhar ou simplesmente a viver ainda por muitos anos, como, aliás, é das regras da experiência comum ( cf. Ac do STJ de 28/9/95, C.J. ano III, tomo III, pág.36, de 25/7/2002, C.J. ano X, tomo II, pág.128 ).
A evolução profissional e os reflexos a nível remuneratório, quer se trabalhe por conta própria ou de outrem, ou até as duas actividades em simultâneo.
A taxa de inflação nas próximas décadas e a taxa de rentabilidade do capital, baseadas num juízo de previsibilidade.
Quanto às taxas de capitalização, devem corresponder à previsível remuneração do dinheiro no período a considerar, tendo a jurisprudência oscilado desde 9% a 3% ( cf. Ac do STJ de 4/2/93, C.J. ano I, tomo I, pág.128, de 5/5/94, C.J. ano II, tomo II tomo II, pág.86, de 16/3/99, C.J. ano IX, tomo I, pág.167 , parecendo actualmente mais curial trabalhar-se com uma taxa à volta dos 3% a 4%, tendo em conta as praticadas no mercado financeiro ( taxas de remuneração dos depósitos a prazo ou as dos certificados de aforro ).
A percentagem de incapacidade, que pode traduzir-se em incapacidade total no ofício, sem possibilidade de reconversão ou ser possível com ou sem diminuição salarial, ou corresponder sensivelmente igual percentagem na capacidade de ganho.
Considerando que o Autor tinha 27 anos de idade, à data do acidente, a esperança média de vida se prolonga até ao 71 anos, o que para o lesado se traduz em 44 anos, ficou com uma incapacidade total para o trabalho e o rendimento anual era de 1.728.000$00, o que permite alcançar ao fim dos 44 anos de vida activa o valor de 76.032.000$00.
Porém, esta importância, não vinculativa, sempre teria de sofrer um ajustamento, já que o lesado vai receber de uma só vez, aquilo, que em princípio deveria receber em fracções anuais, para se evitar uma situação de injustificado enriquecimento à custa alheia, sendo razoável a dedução de 1/3 ( Cons. SOUSA DINIS, C.J. ano X, tomo I, pág.9 ).
Acrescem outros factores que, sendo projectados no futuro, não é possível quantificar, como, por exemplo, a evolução profissional, a inflação e variabilidade das taxas de capitalização.
Neste contexto, mostra-se perfeitamente equilibrada a indemnização de 50.000.000$00, arbitrada na sentença, que se mantém.


2.5.2. – Os danos não patrimoniais:
A sentença recorrida valorou os danos não patrimoniais sofridos pelo Autor marido na quantia de 34.409,84 € ( 7.500.000$00 ), mas os recorrentes pretendem que seja fixado o montante reclamado de 60.000.000$00.
A indemnização pelos danos não patrimoniais não visa reconstituir a situação que existiria se não ocorresse o evento, mas sim compensar o lesado, tendo também uma função sancionatória sobre o lesante.
A doutrina e a jurisprudência têm teorizado sobre os modos de expressão do dano não patrimonial, distinguindo-se, como mais significativos, o chamado “ quantum doloris “, ou seja, as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária; o “ dano estético “, o “ prejuízo de afirmação pessoal “, dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes, o prejuízo da “ saúde geral e longevidade, que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem estar, o “ pretium juventutis “.
Pois bem, segundo os elementos factuais disponíveis, a natureza e intensidade dos danos é por demais ostensiva.
Desde logo, o facto de estar cerca de um mês em coma, para além de vários períodos de internamento hospitalar.
Em consequência dos vários ferimentos e traumatismos, nomeadamente a nível crâneo-encefálico, ficou com descoordenação motora dos membros superiores e inferiores, equivalente, sob o ponto de vista funcional, e de facto, a uma tetraparésia.
Daí resultou uma incapacidade total e absoluta para o trabalho que exercia e tarefas similares, ficando impossibilitado de, por si só, se bastar nas tarefas correntes da vida comum, não sendo capaz, por exemplo, de escrever ou desenhar, assegurar qualquer tarefa doméstica, vestir-se sem ajuda de um terceiro, ou realizar qualquer outra tarefa em que se exija um mínimo de precisão.
Apenas se desloca com a ajuda de duas canadianas e com grandes dificuldades e apenas durante curtos trajectos, tendo ficado com problemas na fala, exprimindo-se com muita dificuldade.
Revela dificuldade em seguir ou apresentar um raciocínio mais longo ou complexo, vendo-se muitas vezes incapaz de raciocinar normalmente, como fazia até à data do acidente, para além de ter ficado sexualmente impotente.
Era um jovem de 27 anos de idade, cheio de vida, força e saúde, formando com a esposa e os dois filhos do casal uma família alegre e feliz, cheia de projectos para o futuro, que ficaram destruídos com o acidente.
De tal forma que se sente um fardo inútil, perdeu toda a alegria de viver, sofrendo, perturbações psicogénicas e emocionais, com períodos de grande instabilidade e insónias, que continuam a exigir tratamento.
Em matéria de acidentes de viação, não pode olvidar-se que, desde a alguns anos a esta parte, a jurisprudência tem enfatizado que os padrões de indemnização são tradicionalmente muito baixos, chegando a acentuar-se que esta tradição miserabilista não pode continuar a manter-se, sob pena dos tribunais não estarem a acompanhar a evolução da vida, causando prejuízos irreparáveis aos lesados ( cf., por ex., Ac STJ de 16/12/93, C.J. ano I, tomo III, pág.181, Ac RC de 13/4/89, C.J. ano XIV, tomo II, pág.221, Ac RL de 15/12/94, C.J. ano XIX, tomo V, pág.135 ).
De resto, nesta linha de evolução, entre outros tópicos, apela-se, por exemplo, aos critérios da convergência real das economias no seio da União Europeia, facto notório, na carecido de alegação ou prova ( art.514 do CPC ), aos montantes mínimos do seguro automóvel obrigatório fixados pelo DL 3/96 de 25/1, em aplicação da Directiva do Conselho, 84/5 de 30/12/83 ( Segunda Directiva-Seguros ), aos seus constantes aumentos e dos respectivos prémios, como índices emergentes da preocupação legal de protecção dos lesados em matéria de acidentes de viação ( cf. por ex., Ac STJ de 1/3/2001, anotado por CALVÃO DA SILVA, na RLJ ano 134, pág.112 e segs.).
Nesta perspectiva, e porque os danos não patrimoniais devem ser dignamente compensados, a indemnização, adrede fixada na 1ª instância, não se mostra proporcional à gravidade do dano, pelo que, em juízo de equidade, estima-se o equivalente económica em € 175.000,00, actualizado à data da prolação da sentença ( 24/2/2003 ).
É certo que direito à vida é o mais importante dos direitos fundamentais e o dano morte, no plano dos interesses da ordem jurídica, o prejuízo supremo, de tal forma que há mesmo quem sustente que o respectivo montante indemnizatório deve ser superior ao correspondente a todos os outros danos imagináveis ( cf., por ex., LEITE CAMPOS, "A Vida, a Morte e a sua Indemnização", BMJ 365, pág.15 ).
Ora, como o dano morte tem vindo a ser quantificado por algum sector da jurisprudência em € 50.000,00, a indemnização atinente aos danos não patrimoniais não poderia se fixada em quantia superior.
Porém, este entendimento implicaria um claro desvirtuamento da legitimação do recurso à equidade, que obedece a imperativos de justiça material, em face das circunstâncias peculiares de cada caso, além de que a indemnização pelo dano morte não se destina a compensar o lesado, mas as pessoas a quem a lei atribui semelhante direito.
Daí que as duas situações não possam ser comparáveis ( Ac do STJ de 13/1/2000, BMJ 493, pág.356, Ac da RP de 7/4/97, C.J. ano XXII, tomo II, pág.206 ), pelo que as quantias usualmente atribuídas para compensação pela perda do direito à vida não podem constituir limite a fixar aqui.

2.6. – 5ª QUESTÃO / A indemnização pelos danos da Autora, Antília Gonçalves:

2.6.1. – Os danos patrimoniais:
Como danos patrimoniais, as despesas efectuadas para assistência ao marido ( art.495 nº2 CC ), ou seja, as deslocações nas visitas durante os períodos de internamento, bem assim os gastos com a alimentação.
Não se apurando os respectivos montantes, importa relegar para execução de sentença a liquidação dos danos ( art.661 nº2 do CPC ).
Ainda que o art.566 nº3 do CC prescreva que, no caso de não ser possível averiguar o valor exacto dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados, tem-se entendido que a contradição entre esta norma e a do art.564 nº2 do CC se resolve no sentido de que a fixação da indemnização segundo o critério da equidade só se impõe quando se hajam esgotadas as possibilidades de apuramento com base nas quais o seu montante haja de ser determinado, mesmo em sede de liquidação em execução de sentença, já que a contradição entre o art.661 nº2 do CPC e o art.566 nº3 do CC é meramente aparente ( cf., por ex., VAZ SERRA, RLJ ano 113, pág.326, e ano 114, pág.288 ).

2.6.2. – Os danos não patrimoniais:
A Autora reclamou, a título de danos não patrimoniais, a quantia de 49.879,79 € (10.000.000$00).
Comprovou-se que:
A Autora esposa, viu também os seus sonhos serem desfeitos, tornando-se, em permanência a enfermeira do seu marido;
Ficou impedida de exercer a vida normal de um casal que tinha tudo para ser feliz, condenada a um estado de viuvez, sem ser viúva, para o resto da sua vida;
Passou a suportar a responsabilidade de cuidar em permanência de um doente e de duas crianças;
Em consequência do acidente também a Autora esposa sofreu profundamente, sendo grande a aflição, angústia, sobretudo durante o período de um mês em que o seu marido esteve em coma, sem saber se ia viver ou morrer;
Ficou impossibilitada de ter relações sexuais com o marido, por este ficar impotente.

A sentença recorrida considerou tratar-se de danos indirectos, sem cobertura legal, por o art.496 nº2 do CC só abranger directamente o lesado.
Segundo a doutrina clássica, adoptada na sentença, em princípio, apenas tem direito à indemnização o titular dos bens ou interesses violados pelo facto danoso e não os terceiros que só reflexa ou indirectamente sejam prejudicados com a violação desse direito, rejeitando categoricamente a indemnização dos danos não patrimoniais indirectos ou reflexos, como por exemplo, o sofrimento dos pais de um menor vítima de acidente de viação, ou o sofrimento de um dos cônjuges por grave lesão do outro.
Argumenta-se, em síntese, que só o titular do direito violado tem direito à indemnização ( art.496 nº1 CC ), pelo que não estão incluídos na obrigação de indemnização os danos sofridos directa ou reflexamente por terceiros, salvo no caso de morte, a natureza excepcional da norma do nº2 do art.496 do CC; a impossibilidade de interpretação analógica das normas excepcionais e a impossibilidade de interpretação extensiva, por o legislador apenas ter querido abranger as pessoas indicadas no preceito, como decorre do argumento histórico ( Neste sentido, DARIO DE ALMEIDA, Manual, pág.165, ANTUNES VARELA, RLJ ano 103, pág.250, nota 1, Revista dos Tribunais, ano 82, pág.409; Ac RP de 4/4/91, C.J. ano XVI, tomo I, pág.255; Ac RC de 20/9/94, C.J. ano XIX, tomo IV, pág.35, Ac RC de 26/10/93, C.J. ano XVIII, tomo IV, pág.69, Ac RL de 6/5/99, C.J. ano XXIV, tomo III, pág.88, Ac STJ de 21/3/2000, C.J. ano VIII, tomo I, pág.138 ).
No Ac da RP de 4/4/91 ( C.J. ano XVI, tomo II, pág.254 ), desatendeu-se a indemnização pedida por um dos cônjuges em virtude das lesões sofridas pelo outro, argumentando-se que a lei não inclui os familiares das vítimas do leque dos beneficiários, fora dos casos expressamente previstos no art.496 nº2 do CC.
Contra a posição clássica, tanto VAZ SERRA ( RLJ ano 104, pág.14 ), como RIBEIRO DE FARIA ( Direito das Obrigações, vol.1º, pág.491, nota 2 ) e AMERICO MARCELINO ( Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil, 6ª ed., pág.380 ) sustentam a possibilidade de uma interpretação extensiva da norma do art.496 nº2 do CC.
Não parecem existir obstáculos de natureza hermenêutica que impeçam uma tal interpretação, à luz do critério postulado no art.9º do Código Civil, tendo em conta a semelhante gravidade quando se comparam os danos decorrentes da morte e os que de outras situações podem derivar para os familiares próximos da vítima directa.
Neste sentido, pela pertinente lucidez e adequação do direito à realidade, vale a pena transcrever a argumentação aduzida por VAZ SERRA, em anotação ao Ac STJ de 13/1/70, para justificar a possibilidade de interpretação extensiva:
“ Ora, o dano não patrimonial pode ser causado a parentes do lesado imediato, não somente no caso de morte deste, mas também em casos diversos desse e, pode ser em tais casos tão justificado o direito de reparação do dano não patrimonial dos parentes como no de morte do lesado imediato.
“ Se, por ex., como na hipótese sobre que o acórdão incidiu, um filho menor é vítima de um acidente de viação, ficando aleijado gravemente, a dor assim causada a seus pais pode ser tão forte como o seria se o filho tivesse morrido em consequência do acidente ou mais forte ainda.
“ Seria, pois, incongruente a lei que, reconhecendo aos pais o direito a satisfação pela dor sofrida põe eles no caso de morte do filho, lhes recusasse esse direito pela dor por eles sofrida no caso de lesão corporal ou da saúde do filho.
“ Para se admitir tal direito, bastará dar à al.3 do nº1 do artigo 56 do Código da Estrada uma interpretação extensiva, considerando-a aplicável também a outros casos em que os parentes nela indicados sejam causados danos em consequência da lesão do lesado imediato, ao menos quando esses danos forem tão graves como os que podem resultar da morte deste.
“ A lei refere-se expressamente só ao caso de morte por ser aquele em que, em regra, maiores danos existem, não excluindo, portanto, que os parentes da vítima imediata tenham também direito de reparação dos seus danos em outros casos. A razão de ser é a mesma “ ( loc.cit., pág.15 ).
Conclui VAZ SERRA que, embora sejam excepcionais as normas dos artigos 56 nº1 al.3 do CE/56, 495 e 496 nº2 do Código Civil, elas são susceptíveis de interpretação extensiva e, por conseguinte, de extensão a outros casos compreendidos no espírito da lei ( loc.cit., pág.16 ).
Mas o reconhecimento do direito de indemnização por danos não patrimoniais de terceiros pode assentar directamente na norma do art. 496 nº1 do Código Civil que, ao plasmar o princípio geral da ressarcibilidade dos danos de natureza não patrimonial, impõe como única condição que os danos, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito, logo, o princípio geral assim estabelecido, não se limita a tutelar apenas os prejuízos do lesado directo.
Ora, o nº2 e 3 do art.496 do CC não posterga o princípio geral, pois limitado o círculo de pessoas com direito de indemnização em caso de morte do lesado, por maioria de razão deve ser no caso em que este não vem a falecer.
Há casos em que essa imputação se verifica de forma directa, designadamente, hipóteses em que as lesões corporais na pessoa do sinistrado se repercutem imediatamente noutras pessoas, que, por isso, são simultaneamente afectadas.
O exemplo mais flagrante é aquele em que, por virtude de um acidente de viação, o lesado ficou numa situação de impotência sexual, prejudicando o relacionamento sexual no casamento.
Nesta situação, trata-se de um dano directo, e não reflexo, cuja obrigação radica na violação do direito da personalidade, o direito à sexualidade sexual ( art.70 do CC ) ( cf., Cons. SOUSA DINIS, Dano Corporal em acidentes de viação, C.J. ano IX, tomo I, pág.11 e 12, Ac RP de 26/6/2003, C.J. ano XXVIII, tomo III, pág.200).
O Desembargador ANTÓNIO GERALDES, num excelente artigo sobre a “ Ressarcibilidade dos danos não patrimoniais de terceiros “, publicado nos Estudos de Homenagem ao Prof. INOCÊNCIO GALVÃO TELES, vol.IV, pág.263 e segs. ), analisou com profundidade esta temática, designadamente com contributos do direito comparado, chegando à seguinte conclusão:
“ São ressarcíveis os danos não patrimoniais suportados por pessoas diversas daquela que é directamente atingida por lesões de natureza física ou psíquica graves, nos termos gerais do art.496 nº1 do CC, designadamente quando fique gravemente prejudicada a sua relação com o lesado ou quando as lesões causem neste grave dependência ou perda de autonomia do lesado;
“ Tal direito de indemnização deve ser circunscrito às pessoas indicadas no nº2 do art.496 “.
Conclui-se, por isso, ser de rejeitar a doutrina clássica, eivada de uma lógica demasiado formal, sem atentar que o direito deve servir para a vida e a jurisprudência, que tem desempenhado um papel preponderante na reelaboração do direito da responsabilidade civil, designadamente no âmbito dos acidentes de viação, não pode deixar de utilizar todo o arsenal metodológico que possibilite adequar eficazmente o direito à realidade social dos tempos modernos, o que implica, no dizer do grande pensador do século XX, que foi MICHEL FOUCAUL, transformar o direito civil numa “ jurisdição de tipo sociológico “ ( FRANÇOIS EWALD, Foucault, A Norma e o Direito, pág.153 e 154 ).
Deste modo, reconhece-se à Autora o direito à indemnização pelos danos não patrimoniais, cuja gravidade é inquestionável, como resulta da factualidade provada, já que não só a sua qualidade de vida ficou profundamente afectada, como se desvaneceu o projecto de vida futura.
Em juízo de equidade, estimam-se os danos no valor de 40.000,00 €, actualizado por referência à data da prolação da sentença ( 24/2/2003 ).

2.7. – 6ª QUESTÃO / Os juros de mora:

A sentença recorrida condenou a Ré a pagar ao Autor os juros de mora, à taxa legal, desde a data da sua prolação ( 24/2/2003) e até efectivo pagamento.
Consideram os Autores/apelantes que os juros moratórios são devidos desde a citação.
A imposição do limite máximo de indemnização na responsabilidade objectiva ou pelo risco ( art.508 do CC ) não obsta a que sejam devidos juros de mora.
O STJ, através do Assento nº4/2002 de 9/5/2002, publicado no DR I-A série de 27/6/2002, fixou a seguinte jurisprudência:
“ Sempre que a indemnização pecuniária por facto ilícito ou pelo risco tiver sido objecto de cálculo actualizado, nos termos do nº2 do art.566 do Código Civil, vence juros de mora, por efeito do disposto nos artigos 805 nº3 ( interpretado restritivamente ), e 806 nº1, também do Código Civil, a partir da decisão actualizadora, e não a partir da citação”.
Resultando da sentença que a indemnização de 50.000.000$00, correspondente ao dano patrimonial futuro do Autor, foi actualizada à data da sua prolação, e sucedendo o mesmo com os danos não patrimoniais, cujos valores aqui se alteraram, os juros de mora contam-se a partir daquele momento, com excepção dos danos a liquidar em execução de sentença, que se vencem desde a citação.

2.8. – 7ª QUESTÃO / O rateio:

O montante global dos danos ( patrimoniais e não patrimoniais ) para o Autor marido ascende a € 424.478,95 ( € 80,00 + € 249.398,95 + € 175.000,00) e para a Autora a importância de € 40.000,00, a título de danos não patrimoniais.
Por seu turno, a quantia paga pela interveniente MUNDIAL CONFIANÇA é de 12.303.294$00 ( € 61.368,57 ).
Considerando o limite máximo da responsabilidade objectiva ( 35.000 contos por lesado e 50.000 contos por sinistro ), dever-se-á proceder ao rateio, na respectiva proporção ( art.16 do DL 522/85 ).
Isto significa que o direito dos lesados, na acepção abrangente, ou seja, todos aqueles que sofreram danos em consequência do acidente, se traduz no direito a uma quota-parte do limite máximo ( 50.000 contos ).
Os Autores/apelantes questionaram o rateio feito na sentença, por não respeitar a proporção devida, pondo logicamente em causa o montante atribuído à interveniente, e com razão.
Porém, não estando ainda liquidados todos os danos, não é possível saber-se com rigor qual a respectiva proporção ou quota-parte a que cada um dos Autores tem direito.
Daí que o rateio só possa ser efectuado em sede de liquidação em execução de sentença ( art.661 nº2 do CPC ), à semelhança do que sucede quando existem outros lesados com acções pendentes ( cf., por ex., Ac STJ de 4/11/92, BMJ 421, pág.407 ).

III – DECISÃO

Pelo exposto, decidem:
1)
Julgar improcedente a apelação da Ré DD.
2)
Julgar parcialmente procedente a apelação dos AUTORES e alterar a sentença recorrida, nos seguintes termos:
2.1.) - Condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de € 80,00 ( oitenta euros ), correspondente ao dano patrimonial constituído pela inutilização das calças e da camisola, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a prolação da sentença da 1ª instância ( 24/2/2003 ).
2.2.) - Condenar a Ré a pagar à Autora a quantia que se liquidar em execução de sentença, correspondente ao danos patrimoniais constantes dos factos descritos nos nºs 50 a 53, acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a citação.
2.3.) - Fixar a indemnização pelos danos não patrimoniais do Autor na quantia de 175.000,00 € ( cento e setenta e cinco mil euros ), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a prolação da sentença da 1ª instância ( 24/2/2003 ).
2.4.) - Fixar a indemnização pelos danos não patrimoniais da Autora na quantia de 40.000,00 € ( quarenta mil euros ), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde 24/2/3003.
2.5.) - Declarar que os limites máximos da indemnização da responsabilidade da Ré ( responsabilidade pelo risco ) são os do limite mínimo do seguro obrigatório, em vigor à data do acidente ( 4/11/93 ), ou seja, os estabelecidos pelo DL 18/93 de 23/1 – 35.000 contos por lesado e 50.000 contos por sinistro ( convertidos para euros ), com excepção dos juros de mora.
2.6.) – Condenar a Ré a pagar a cada um dos Autores a quantia que será rateada, na proporção a liquidar em execução de sentença.


3)
Confirmar, quanto ao mais, a sentença recorrida.
4)
Condenar a Ré nas custas da sua apelação.
5)
Condenar Autores/apelantes e Ré/apelada, nas custas da apelação daqueles, na proporção 30% e 70%, respectivamente, sem prejuízo do apoio judiciário concedido aos Autores.
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COIMBRA, 25 de Maio de 2004 ( processado por computador e revisto ).