Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
4894/07.0TVLSB.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: ARLINDO OLIVEIRA
Descritores: LEGITIMIDADE ACTIVA
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
RESERVA DE PROPRIEDADE
APREENSÃO DE VEÍCULO
Data do Acordão: 06/03/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: 1.º JUÍZO CÍVEL DE VISEU
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Legislação Nacional: ARTIGOS 15.º E 16.º DO DEC.LEI N.º 54/75, DE 12/02; ARTIGO 409.º, N.º 1; 886.º; 934.º; 434.º DO CÓDIGO CIVIL
Sumário: 1. A reserva de propriedade é apenas prevista para os contratos de alienação, funcionando como condição suspensiva do efeito translativo desta, pelo que só se poderá estipular no âmbito de contratos de alienação e não de quaisquer outros, designadamente de mútuo.
2. Só é possível a apreensão do bem vendido a prestações, com reserva de propriedade registada a favor do vendedor, e desde que este seja o requerente, estando tal faculdade vedada à entidade financiadora, dado que a apreensão do bem, nos termos de tal DL 54/75 de 12/02, constitui uma providência que, no que concerne ao contrato de compra e venda com reserva de propriedade, visa antecipar o efeito da resolução do contrato de compra e venda, sendo dependente e instrumental da competente acção de resolução do contrato de alienação (no que não cabe o mútuo).
A interpretação do artigo 18.º, n.º 1 DL 54/75 de 12/02, por mais actualista que seja, tem de partir sempre do texto da lei e sem esquecer a sua compatibilidade ou incompatibilidade com o sistema jurídico unitariamente considerado
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra


A....intentou o presente procedimento cautelar de apreensão de veículo automóvel, contra B...., já identificados nos autos, com o fundamento em, no desenvolvimento da actividade de financiamento de aquisições a crédito, nomeadamente de veículos automóveis, ter celebrado com a requerida, em 06 de Março de 2007, o contrato que teve por objecto o financiamento da quantia de 11.587,78 €, que esta destinou à aquisição de um veículo automóvel, de marca Ford, modelo Focus, com a matrícula 86-97-NN, de que se acha junta cópia a fl.s 25 e 26, aqui dado por reproduzido.
Como condição da celebração de tal contrato e como garantia do seu bom cumprimento, exigiu a ora requerente a constituição de reserva de propriedade, a seu favor, sobre o mencionado veículo, o que, assim, veio a verificar-se, mediante a venda da mencionada viatura à ora requerida, com tal reserva de propriedade, a qual se acha registada a seu favor, cf. certidão de fl.s 27, aqui, igualmente, dada por reproduzida.
De tal contrato decorria para a requerida a obrigação de pagar à requerente uma prestação mensal no montante de 238,86 €, por um período de 48 meses, sendo que aquela não efectuou o pagamento das prestações vencidas em 08/04; 08/05 e 08/06/2007, no montante de 237,35 €, cada, que, ainda, não pagou.
Em face do que, através de carta registada com aviso de recepção, datada de 02/07/2007, concedeu à requerida um prazo suplementar de 8 dias úteis para pagamento de tais quantias, findos os quais a mora se converteria em incumprimento definitivo, carta que a requerida não recebeu, apesar de enviada para a sua morada e sem que esta tenha pago as quantias em dívida ou procedido à entrega da viatura em causa.
Fundamenta o pedido de entrega da viatura na reserva de propriedade de que beneficia.

Inicialmente, os presentes autos deram entrada nas Varas Cíveis de Lisboa e distribuídos à 3.ª Secção da 5.ª Vara, foi proferido o despacho de fl.s 32 a 35, no qual se julgou aquele tribunal incompetente, em razão do território, atribuindo-a ao Tribunal da Comarca de Viseu.
Interposto recurso de agravo desta decisão, a mesma foi confirmada cf. Acórdão proferido no Tribunal da Relação de Lisboa, junto de fl.s 73 a 86, pelo que, a final, foram os autos remetidos ao Tribunal da Comarca de Viseu.

Conclusos os autos à M.ma Juiz, esta, conforme despacho de fl.s 100 a 103, indeferiu liminarmente o procedimento cautelar requerido, por falta de legitimidade activa da requerente, com o fundamento em que, nos termos do disposto nos artigos 15.º e 16.º do DL 54/75, de 12/02, a procedência da providência cautelar requerida, impõe que o titular da reserva de propriedade coincida na mesma pessoa jurídica do vendedor, sendo que só este tem legitimidade para a propositura definitiva da acção de resolução do contrato de compra e venda, para além de que, dado o carácter especial da providência requerida, não se pode recorrer a interpretação analógica, nos termos do disposto no artigo 11.º CC, no sentido de aqui abarcar outras figuras negociais que não a alienação, designadamente, o mútuo.

Inconformada, interpôs a requerente, o presente recurso de agravo, concluindo a sua motivação do seguinte modo (resumidamente):
1. Entendeu o M.mo Juiz a quo que não se encontravam reunidos os pressupostos para o decretamento da providência, nomeadamente não se verificava um dos pressupostos que é a resolução de um contrato de compra e venda.
2. Ou seja, para o M.mo Juiz a quo não basta que se verifique a existência de reserva de propriedade inscrita a favor da requerente, nem que se verifique o incumprimento das obrigações que originaram a mesma, é necessário, também, que a referida reserva de propriedade seja garantia do cumprimento de um contrato de compra e venda resolvido, e não de qualquer outro.
3. Ora, salvo o devido respeito, discordamos deste entendimento que, em nossa opinião, não faz a correcta interpretação da lei.
4. A reserva de propriedade, tradicionalmente uma garantia dos contratos de compra e venda, tem vindo, face à evolução verificada nas modalidades de contratação, a ser constituída como garantia dos contratos de mútuo, sobretudo, daqueles cuja finalidade e objecto é financiar um determinado bem, ou seja, quando existe uma interdependência entre o contrato de mútuo e o contrato de compra e venda.
5. Nestas situações tem-se verificado uma sub-rogação do mutuante na posição jurídica do vendedor, isto é, o mutuante ao permitir que o comprador pague o preço ao vendedor, sub-roga-se no risco que este correria caso tivesse celebrado um contrato de compra e venda a prestações, bem como, nas garantias de que este poderia dispor, no caso, a reserva de propriedade.
6. Este entendimento encontra pleno acolhimento no artigo 591.º CC, bem como, no princípio da liberdade contratual estabelecido no artigo 405.º CC, uma vez que, não se vislumbram quaisquer objecções de natureza jurídica, moral ou de ordem pública relativamente ao facto de a reserva de propriedade ser constituída a favor do mutuante e não do vendedor.
7. A própria lei que regula o crédito ao consumo o admite no n.º 3 do seu artigo 6.º quando refere que “o contrato de crédito que tenha por objecto o financiamento da aquisição de bens ou serviços mediante pagamento em prestações deve indicar ainda:
f) O acordo sobre a reserva de propriedade”.
8. Entendimento, este, que também tem sido sufragado em diversos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa, designadamente, o de 27/06/2002 e o de 13/05/2003, ambos disponíveis na respectiva base de dados da dsgi.
9. Por outro lado, o direito que a requerente tem de reaver a viatura não decorre das cláusulas do contrato de mútuo, mas sim da propriedade que tem sobre ela, condicionada é certo, mas ao não se verificar a condição que implicaria a transmissão da mesma para a requerida, então a propriedade permanece na sua esfera jurídica e é com base nesse direito de propriedade que lhe assiste o direito de reaver a viatura ao abrigo do artigo 15.º do DL 54/75.
10. Posto isto, e encontrando-se inscrita a favor da recorrente reserva de propriedade sobre a viatura que se requereu a apreensão, bem como, estando indiciariamente provado que a requerida não cumpriu as obrigações que originou a constituição da reserva de propriedade, julgamos que se encontram reunidos os pressupostos para o decretamento da requerida providência cautelar de apreensão de veículos, nos termos do citado artigo 15.º do DL 54/75, pelo que entende ser manifesta a procedência do presente recurso.
Termina, peticionando a procedência do presente recurso, anulando-se ou revogando-se a decisão recorrida.

Não foram apresentadas contra-alegações.

O recurso foi admitido, cf. despacho de fl.s 107, como sendo de agravo, com subida imediata, nos próprios autos e a que foi atribuído efeito suspensivo.
Conforme despacho de fl.s 145, a M.ma Juiz a quo, sustentou, tabelarmente, a sua decisão.

Colhidos os vistos legais, há que decidir.
Tendo em linha de conta que nos termos do preceituado nos artigos 684, n.º 3 e 690, n.º 1, ambos do CPC, as conclusões da alegação de recurso delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir é a de saber se a providência cautelar de apreensão de veículos automóveis pode ser requerida pela entidade financiadora da aquisição, a favor de quem foi estabelecida reserva de propriedade, com fundamento no incumprimento, por parte da requerida, do contrato de mútuo que ambas celebraram.

Os factos a ter em conta para a decisão da questão sub judice, são os descritos no relatório que antecede

Passando à análise da questão de saber se a ora recorrente pode requerer a apreensão da viatura em causa, por a seu favor se achar registada reserva de propriedade e com o fundamento no incumprimento do contrato de mútuo que celebrou com a requerida, importa ter presente a natureza de tal providência cautelar e as normas que a regulam.
A providência em apreço encontra-se regulamentada no DL 54/75, de 12/2, com as alterações que lhe foram introduzidas pelo DL 178-A/2005, de 28/10.
Como tem vindo a ser sublinhado, este diploma legal surgiu no nosso ordenamento jurídico logo após o 25 de Abril de 1974 e procurou dar uma resposta ao aumento da procura da aquisição de viaturas automóveis, por parte de uma grande camada da população que, até aí, por razões económicas, não podia aceder a tal bem. Como que se procurou “democratizar” a possibilidade de aquisição de viaturas automóveis, através do recurso à venda a prestações, mediante a constituição de reserva de propriedade a favor do vendedor, de molde a, de uma forma mais célere e menos dispendiosa, ficarem salvaguardados os direitos destes, no caso de não pagamento das prestações devidas e atenta a elevada desvalorização a que estão sujeitos os automóveis, com o decurso do tempo e, também, como forma de evitar que as viaturas continuassem no domínio do comprador relapso, durante muito mais tempo, dado que tal situação propiciaria um ainda maior grau de potencial mau uso da viatura, com a inerente desvalorização acelerada.
Assim, mediante a demonstração do incumprimento de crédito hipotecário ou das obrigações que originaram a reserva de propriedade, concedeu-se ao titular dos respectivos registos a possibilidade de requerer em juízo a apreensão do veículo e dos seus documentos, nos termos ali previstos.
Em conformidade com o estabelecido no artigo 15.º, n.º 1 do DL citado:
“Vencido e não pago o crédito hipotecário ou não cumpridas as obrigações que originaram a reserva de propriedade, o titular dos respectivos registos pode requerer em juízo a apreensão do veículo e do certificado de matrícula”.
E, de acordo com o seu artigo 16.º, n.º 1:
“Provados os registos e o vencimento do crédito ou, quando se trate de reserva de propriedade, o não cumprimento do contrato por parte do adquirente, o juiz ordenará a imediata apreensão do veículo”.
Preceituando o seu artigo 18.º, n.º 1 que:
“Dentro de quinze dias a contar da data da apreensão, o credor deve promover a venda do veículo apreendido, pelo processo de execução ou de venda de penhor, regulado na lei de processo civil, conforme haja ou não lugar a concurso de credores; dentro do mesmo prazo, o titular do registo de reserva de propriedade deve propor acção de resolução do contrato de alienação”.

Face ao teor dos preceitos ora transcritos, dúvidas inexistem de que o mesmo foi pensado para regular as relações entre o vendedor de automóveis e o respectivo comprador, uma vez que se reporta às situações de não pagamento de crédito hipotecário ou de incumprimento das obrigações que originaram a reserva de propriedade, desde que verificados os requisitos de que depende a resolução do contrato de compra e venda, atento a que, à época, o esquema tradicional de compra e venda de automóveis, apenas envolvia as pessoas do vendedor e do comprador.
Com o aumento do consumo, potenciado e explorado de forma constante, aliciante e, por vezes, agressiva, por parte de quem pretende vender os mais variados produtos, designadamente automóveis, passou-se da tradicional venda a prestações para vendas financiadas, através de crédito ao consumo, com vista a facilitar a aquisição de bens ou serviços, por entidades financeiras, cujo escopo é o de conceder crédito ao consumo, ligadas ou não ao vendedor.
E o incremento de tais actividades foi de tal ordem que o legislador, através do DL 339/91, de 21/9, sentiu necessidade de regular o que apelida (cf. preâmbulo deste DL) de “… significativo desenvolvimento do fenómeno do crédito ao consumo, a que correspondem um crescimento notório da oferta e a adopção de novas formas de crédito.”.
Ou seja, o aparecimento de mecanismos de financiamento ao consumo, através de novas formas de crédito, alterou o relacionamento comercial entre o vendedor e o comprador de automóveis, que passou de ser bipolar a tripolar, por envolver estes e o financiador da aquisição de tais bens, de forma a que o vendedor deixou de passar a ter qualquer crédito sobre o comprador a prestações (dado que recebe o preço do financiador), ficando este a ser o titular dos direitos creditórios que anteriormente eram da titularidade do vendedor.
Daí a que o financiador se passasse a comportar (em termos contratuais) como o anterior vendedor, foi um pequeno passo.
Isto é, o financiador, com vista à salvaguarda, por meios mais expeditos e menos onerosos, dos seus direitos, passou a contratar em termos semelhantes aqueles em que anteriormente o fazia o vendedor, designadamente, passou a exigir que a seu favor fosse constituída a reserva de propriedade, como forma de garantia da boa execução do contrato.

É o que se verifica no caso em apreço, uma vez que compulsado o contrato junto a fl.s 25 e 26, consta da cláusula 9.ª das respectivas condições gerais que:
“a) Em garantia do bom pagamento do capital emprestado, respectivos juros e demais obrigações decorrentes do presente contrato, o cliente presta as garantias que venham referidas nas condições particulares do mesmo”

e) Até ao integral cumprimento deste contrato, a C...., poderá constituir, no seu interesse, reserva de propriedade sobre o bem objecto deste contrato, salvo se a C.... dela prescindir”.
Por outro lado e como resulta das condições particulares do contrato em referência, as garantias nela previstas constam de “Livrança em branco subscrita p/ cliente, avalizada e reserva de propriedade”, ali constando a identificação do avalista, o qual assinou uma declaração de aceitação da prestação de aval à compradora.
Do mesmo contrato figura como vendedora D....inexistindo qualquer ligação entre esta e a ora requerente, na qualidade de financiadora da aquisição do automóvel já acima identificado.
Ainda de acordo com a certidão de fl.s 27, verifica-se que a ora requerente, na aludida qualidade, tem registada a seu favor a reserva de propriedade sobre o aludido veículo, no seguimento da aludida prática de o vendedor ceder à entidade financiadora a aquisição da sua posição contratual, em termos de possibilitar que a reserva de propriedade seja constituída a favor desta.

O problema que se coloca é o de saber da eficácia ou relevância desta cessão da posição contratual, uma vez que, como acima referido, o DL 54/75, foi pensado apenas para regular a relação entre o vendedor e o comprador, até porque a cláusula de reserva de propriedade, nos termos do disposto no artigo 409.º, n.º 1 do CC, tem sido entendida como condição suspensiva dos contratos de alienação, no sentido do que apenas com o pagamento integral a propriedade do bem transaccionado passa para a titularidade plena do comprador e sem esquecer que a entrega definitiva do mesmo pressupõe a resolução do contrato de compra e venda a prestações com reserva de propriedade, em conformidade com o disposto nos artigos 886.º, 934.º e 434.º, todos do CC – neste sentido, veja-se P. de Lima e A. Varela, CC, Anotado, Vol. I, 3.ª Edição Revista E Actualizada, Coimbra Editora, 1982, a pág. 357 e Luís Lima Pinheiro, A Cláusula de Reserva de Propriedade, Coimbra, 1988, pág.s 62 e 63.
Questão esta que não tem vindo a ser decidida de forma unânime pela jurisprudência (do que se pode ver uma resenha exaustiva no Acórdão da Relação do Porto, de 15/01/2007, Processo 0651966, disponível in http://www.dgsi.pt/jtrp), optando uns por limitar a validade da cláusula de reserva de propriedade apenas aos casos em que a mesma é estabelecida a favor do vendedor e outros estendendo a possibilidade de recurso à providência aqui requerida à entidade financiadora que resolveu o contrato de mútuo que celebrou com o comprador
Resumidamente, a fundamentação para uma e outra de tais teses é a de que, respectivamente, no DL 54/75, apenas se prevê a possibilidade de recurso à providência de apreensão do veículo automóvel, no caso de alienação, beneficiando o vendedor de crédito hipotecário ou de reserva de propriedade; ao passo que, para os defensores da segunda, dada a alteração verificada no comportamento dos agentes comerciais, a que o direito deve dar resposta, importa fazer uma interpretação actualista do artigo 18.º, n.º 1 do DL 54/75, de forma a nele incluir os casos de resolução do contrato de mútuo celebrado entre a entidade financiadora e o comprador, sob pena de aquela ficar prejudicada na defesa dos seus direitos e expectativas, por lhe ser vedada a possibilidade de recorrer ao processo, célere, expedito e menos dispendioso, previsto no DL 54/75.

Os argumentos em abono de uma e outra tese já se encontram esmiuçados e objecto de profunda análise pelo que, agora, apenas se trata de uma questão de opção entre uma delas.
A segunda das teses ora enunciadas encontra-se mais difundida no Tribunal da Relação de Lisboa, não obstante aí, igualmente, se encontrem inúmeros Arestos que propugnam pela primeira das teses em confronto (veja-se o Acórdão da Relação do Porto acima referido).
Por nós, e salvo o devido respeito por opinião em contrário, entendemos que por força das especificidades da providência em causa, a mesma só é possível, desde que o requerente seja o vendedor de um veículo automóvel a prestações, com reserva de propriedade registada a seu favor, estando o recurso à mesma vedada à entidade financiadora, dado que a apreensão do veículo automóvel, nos termos de tal DL 54/75, constitui uma providência que, no que concerne ao contrato de compra e venda com reserva de propriedade, visa antecipar o efeito da resolução do contrato de compra e venda, sendo dependente e instrumental da competente acção de resolução do contrato de alienação (no que não cabe o mútuo), para além de que uma interpretação, por mais actualista que seja, tem de partir sempre do texto da lei e sem esquecer a sua compatibilidade ou incompatibilidade com o sistema jurídico unitariamente considerado.
Neste sentido, entre outros e por último, os Acórdãos do STJ, de 12 de Maio de 2005, in CJ, STJ, ano XIII, tomo 2, pág. 94 e seg.s (com voto de vencido do Ex.mo Conselheiro Salvador da Costa) e o de 02/10/2007, Processo 07A2680, disponível in http://www.dgsi.pt/jstj; o do Tribunal da Relação do Porto, já acima referido e os da Relação de Lisboa, de 16/12/2003, Processo 7023/2003-7, de 22/05/2007, Processo 4139/2007-7 (com voto de vencido) e de 14/12/2007 (este, também, com um voto de vencido), Processo 8993/2007-7, todos disponíveis in http://www.dgsi.pt/jtrl.
Isto porque, na situação dos autos, existem dois contratos: um de compra e venda, em que intervieram o vendedor e o comprador, e um de mútuo, celebrado entre a entidade financiadora e o comprador.
Ora, para além da questão da validade da cláusula de reserva de propriedade estabelecida a favor da entidade financiadora (no sentido da sua nulidade se pronunciaram Gravato Morais, União de contratos de crédito e de venda para o consumo, Almedina, 2004, pág. 307, nota 572 e in Cadernos de Direito Privado, n.º 6, Abril- Junho de 2004, pág.s 49 – 53 e Paulo Duarte, in Contratos de concessão de crédito ao consumidor: em particular as relações trilaterais, resultantes da intervenção de um terceiro financiador, dissertação de mestrado, Coimbra 2000, pág. 193), não se pode olvidar que, como acima já referido, a reserva de propriedade se encontra prevista para os contratos de alienação, funcionando como condição suspensiva do efeito translativo da alienação, pelo que só se poderá estipular no âmbito de contratos de alienação e não de quaisquer outros.
Só faz sentido estipular uma cláusula de reserva de propriedade a favor de quem detém a propriedade sobre um certo e determinado bem, ficando suspensa a favor do respectivo beneficiário a transmissão do bem, o que só se pode verificar em relação ao alienante e não em relação ao mutuário e nem a tal obsta o disposto no artigo 6.º, n.º 3 do já citado DL 359/91, porquanto este se aplica aos casos em que o beneficiário de tal reserva é o próprio vendedor e não um terceiro, financiador.

Por outro lado, de acordo com o disposto no artigo 9.º CC, a interpretação da lei não deve cingir-se apenas à sua letra, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada, mas sempre fazendo-o corresponder, ainda que minimamente, à letra da lei.
Ou seja, como refere Batista Machado, in Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Coimbra, 1990, pág. 182, devem eliminar-se os sentidos que não tenham qualquer apoio, ou pelo menos uma qualquer correspondência ou ressonância nas palavras da lei.
Ora, como acima referido, ao tempo da elaboração do DL 54/75, apenas se teve em vista a relação vendedor – comprador, não sendo despiciendo, que aquando da recente alteração deste diploma (a que acima já se aludiu), tal matéria não foi alterada pelo legislador.
Por último, no que a tal matéria tange, não obstante se vedar à entidade financiadora o recurso à requerida providência de apreensão, nem por isso, a mesma fica impedida de fazer valer os seus direitos, podendo optar pela sub-rogação nos direitos do vendedor; constituir hipoteca sobre a viatura, locação financeira ou o recurso ao procedimento cautelar comum.
Não optou a ora requerente por nenhuma de tais vias, certamente, por questões de facilidade e menores custos. Mas, agora, não poderá, por isso e em face do exposto, recorrer à providência de apreensão de veículos prevista no DL 54/75, a qual como acima já referido, nos termos do disposto no seu artigo 18.º, n.º 1, é instrumental relativamente à acção definitiva de resolução do contrato de compra e venda e não de um contrato de mútuo.
No sentido de que tal possibilidade está vedada à entidade financiadora, também, Moitinho de Almeida, O Processo Cautelar de Apreensão de Veículos Automóveis, 5.ª edição, 1999, pág.s 18 e 44, cf. nota 6 do Acórdão do STJ, de 12/05/2005, acima já referido.

Alega, ainda a recorrente que em virtude de se achar estabelecida a seu favor a cláusula de reserva de propriedade relativamente ao veículo cuja compra financiou, se verificou a sua sub-rogação na posição jurídica da vendedora.
No entanto, assim não se pode considerar uma vez que, conforme artigo 591.º CC, para que tal sub-rogação se pudesse constituir, seria necessário que constasse, no documento de empréstimo, uma declaração expressa, de que a coisa se destina ao cumprimento da obrigação e de que o mutuante fica sub-rogado nos direitos do credor.
Ora, uma vez que tal declaração não consta no contrato de fl.s 25 e 26, não se pode ter por verificada a alegada sub-rogação.
Consequentemente, improcede o recurso em análise, impondo-se a manutenção da decisão recorrida.

Nestes termos se decide:
Julgar por não provido o presente recurso de agravo, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela agravante.
Coimbra, 03 de Junho de 2008.