Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
448/10.2TBCBR-F.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: MOREIRA DO CARMO
Descritores: INSOLVÊNCIA
SEPARAÇÃO DE BENS
CITAÇÃO
Data do Acordão: 03/02/2011
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: REVOGADA
Legislação Nacional: ARTS. 128, 141, 144, 146 CIRE, 825, 198 CPC
Sumário: 1. Nos termos do art. 144º, nº 1, do CIRE, no caso de serem apreendidos bens para a massa, depois de findo o prazo para as reclamações, é ainda permitido exercer o direito de separação desses bens nos cinco dias posteriores à apreensão, por meio de requerimento.

2. A lei não prevê qualquer citação pessoal do cônjuge do insolvente para reclamar a separação da massa insolvente da sua meação nos bens comuns;

3. Mas se tal citação for ordenada e efectuada a coberto de um despacho judicial, mesmo que implícito, já não se está perante a prática de um acto nulo, mas sim perante a prática de um acto judicial errado, sujeito a impugnação, por meio de recurso.

4. Se em tal citação se indicar um prazo de 20 dias, deve o mesmo ser respeitado, podendo o cônjuge apresentar a sua reclamação, por aplicação analógica do disposto no art. 198º, nº 3, do CPC.

Decisão Texto Integral: I – Relatório

1. A (…) apresentou reclamação para separação da sua meação dos bens comuns da massa insolvente de B (…).

Alegou ser casada com o mesmo sob o regime da comunhão geral de adquiridos, que por todos os meios ao seu alcance tem salvaguardado a integridade do património objecto dos autos, nomeadamente assegurando o cumprimento escrupuloso dos créditos da Caixa ... S.A., sendo, atento o regime de casamento, detentora de uma quota ideal de metade dos bens constantes das verbas nº 1, 2, 7 e 8 da relação de bens, elaborada pelo administrador de insolvência.

Pede que se determine a separação da massa insolvente da sua meação nos aludidos bens.    

O administrador da insolvência, em representação da massa insolvente, contestou arguindo a intempestividade ou caducidade da reclamação apresentada, alegando para tanto que o auto de apreensão do qual a requerente pretende ver separados os bens foi elaborado em 21.5.2010 e que o requerimento da reclamante deu entrada em 6.8.2010, pelo que, atento o disposto no art. 144.º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, se verifica que esta reclamação é intempestiva.

Impugnou ainda a factualidade invocada pela reclamante, e concluiu pela improcedência do pedido de restituição.

A reclamante não respondeu à contestação.

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Foi de seguida proferida sentença que julgou improcedente a reclamação, por intempestividade da mesma.

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2. A Reclamante interpôs recurso, formulando as seguintes conclusões que se sintetizam:

a) Na sequência da assembleia de credores foi a apelante citada pessoalmente, na qualidade de cônjuge do insolvente, para requerer a separação da sua meação nos bens comuns da massa insolvente, citação na qual se concedia o prazo de 20 dias para actuar em obediência à alínea b), do art. 141º, nº 1, do C.I.R.E.;

b) Ao ser citada não se mencionou o art. 825º, do CPC, que por erro de julgamento assumido pela Mº Juíza a quo o estipulou como sustentação legal possível para o agir da ora apelante;

c) A apelante actuou judicialmente, por envio postal registado de 5.8.2010, em consonância com o prazo concedido pela secretaria judicial;

d) Este erro da secretaria não pode prejudicar o direito da apelante, nos termos do art. 161º, nº 5 e 6, do CPC;

d) Acresce que, analogicamente aplicado o art. 198º, nº 3, do CPC, impõe-se a aceitação da apresentação da reclamação no prazo estipulado na citação;

e) De igual modo deve haver aceitação da reclamação, atendendo ao disposto no nº 2, do art. 146º, do C.I.R.E., que permite o exercício do direito “a todo o tempo”;

f) A decisão recorrida deve ser revogada, por violação dos mencionados dispositivos legais e proferido acórdão que contemple a posição defendida pela apelante.

3. O mencionado administrador da insolvência contra-alegou, pugnando pela manutenção do decidido.

II – Factos Provados

1. B (…) foi declarado insolvente por decisão proferida nos autos apensos no dia 6 de Abril de 2010, na qual foi fixado em 20 dias o prazo para a reclamação de créditos.

2. A sentença foi publicada no Diário da República, II Série, de 26 de Abril de 2010.

3. O insolvente é casado com a requerente, A (…) com quem casou no dia 29 de Julho de 1990, sem convenção antenupcial.

4. No dia 12 de Abril de 2010 foi elaborado auto de apreensão de bens imóveis da massa insolvente, no qual foram descritos, sob as verbas n.ºs 1 e 2, respectivamente, os seguintes imóveis: metade indivisa da fracção autónoma designada pela letra “D” do prédio urbano denominado Edifício 1, sito na Rua ..., n.º ..., da freguesia de ..., descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de ...sob o n.º .../19880317, e metade indivisa da fracção autónoma designada pela letra “AL” do mesmo prédio.

5. A aquisição destas fracções, por compra, foi inscrita no registo a favor do insolvente em 4 de Agosto de 1996.

6. No dia 21 de Maio de 2010 foi elaborado auto de apreensão de bens móveis da massa insolvente, no qual foram descritos diversos bens móveis.

7. No dia 18 de Junho de 2010 foi realizada a assembleia de apreciação do relatório, no âmbito da qual se deliberou que o administrador deveria apresentar novo auto de apreensão no qual os imóveis fossem descritos pela totalidade, dando-se conhecimento ao cônjuge do insolvente, para que este pudesse exercer os direitos processuais que entendesse competir-lhe.

8. No dia 18 de Junho de 2010 foi elaborado auto de apreensão de bens imóveis rectificativo do primeiro auto junto aos autos, no qual foram descritas, como verbas n.ºs 1 e 2, as fracções autónoma designada pelas letras “D” e “AL” do prédio urbano denominado Edifício 1, sito na Rua ..., n.º ..., da freguesia de ..., descrito na 1.ª Conservatória do Registo Predial de ...sob o n.º .../19880317.

9. No dia 16 de Julho de 2010 foi a requerente citada para, em 20 dias, reclamar, querendo, o direito de separar da massa insolvente a sua meação nos bens comuns, ou exercer os direitos que entendesse competir-lhe.

10. A reclamação foi apresentada no dia 6 de Agosto de 2010.

III – Do Direito

1. Uma vez que o âmbito objectivo dos recursos é balizado pelas conclusões apresentadas pelos recorrentes, apreciaremos, apenas, as questões que ali foram enunciadas (arts. 684º, nº 3 e 685º-A, do CPC).

Nesta conformidade a única questão a decidir é a seguinte.

- Intempestividade da reclamação.


2.1. Decorre dos arts. 141º, nº 1, b), e 128º, nº 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, que a reclamação e verificação do direito que tenha o cônjuge a separar da massa insolvente os seus bens próprios e a sua meação nos bens comuns deve ser exercida dentro do prazo de reclamação de créditos fixada na sentença declaratória da insolvência, por meio de requerimento.
No caso concreto dos autos, como o prazo fixado foi o de 20 dias e a sentença declaratória de insolvência foi publicada no DR em 26.4.2010, o termo do prazo para o cônjuge apresentar reclamação para separação da sua meação nos bens comuns terminava em 17.5.2010 (dia 16 era Domingo).
Nos autos de insolvência, sob as verbas nº1 e 2, foram apreendidos dois imóveis, em 18.6.2010 (que rectificou, por deliberação da assembleia de credores, um primeiro auto de apreensão de 12.4.2010). Ou seja, em data posterior àquela indicada.   
Ora, dispõe por seu turno o art. 144º, nº 1, do CIRE, que no caso de serem apreendidos bens para a massa, depois de findo o prazo para as reclamações, é ainda permitido exercer o direito de separação desses bens nos cinco dias posteriores à apreensão, por meio de requerimento, apensado ao processo principal.
Do que resulta, que o cônjuge do insolvente podia requerer a separação da massa insolvente da sua meação nos bens comuns nos cinco dias posteriores à apreensão, ou seja até 23.6.2010.
Contudo a reclamante só o fez, por simples requerimento, em 5.8.2010 (e não em 6.8.2010, como por lapso se diz na decisão recorrida) atento que a reclamação é dessa data, conforme registo postal comprovativo, junto com o aludido requerimento de reclamação a fls.8.
Há ainda uma terceira possibilidade de reclamar a separação de bens, como decorre do art. 146º, nº1 e 2, do CIRE, separação que pode ser exercida a todo o tempo, mas que implica a proposição de uma acção judicial contra a massa insolvente, os credores e o devedor, forma que, todavia, a reclamante não utilizou, quedando-se pela simples utilização de requerimento. O que afasta a aplicabilidade desse art. 146º, nº 2, ao contrário do que a apelante defende nas suas conclusões de recurso.
Revertendo, então, à questão que nos ocupava, parece que a dita reclamação está fora de prazo. Assim o entendeu a decisão recorrida que na sua fundamentação deixou dito o seguinte: “Quanto aos imóveis, constata-se que a relação rectificada foi elaborada depois de findo este prazo, mais precisamente no dia 18 de Junho de 2010, pelo que, atento o disposto no art. 144.º, n.º 1, do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, deveria a reclamação ter sido deduzida nos cinco dias subsequentes, quando apenas o foi a 6 de Agosto.
É certo que a requerente foi citada em 16 de Julho para, em 20 dias, requerer a separação, citação que se determinou tendo em vista a analogia da situação com a prevista no art. 825.º do Código de Processo Civil.
No entanto, melhor analisado o regime legal aplicável, constata-se que inexiste no Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas lacuna a preencher por via da aplicação do art. 825.º do Código de Processo Civil, pelo que a citação do cônjuge do insolvente, ao abrigo daquele normativo, foi indevidamente determinada.
Assim, e sendo certo que este acto, que não deveria ter tido lugar, não faz renascer um direito que já então se havia extinto, cumpre concluir que o requerimento para separação de meações foi deduzido depois de esgotado o respectivo prazo”.
Não concordamos. Vejamos as razões.
Como resulta do facto 7., realizada a assembleia de apreciação do relatório, foi deliberado pelos credores ser dado conhecimento ao cônjuge do insolvente do novo auto de apreensão de bens imóveis, para que este pudesse exercer os respectivos direitos processuais. Compulsada a acta (junta a este recurso a fls. 127/129), verifica-se que foi discutido na mesma, por iniciativa da Sra. Juíza, a necessidade de elaborar novo auto de apreensão de bens e facultar ao cônjuge do insolvente a possibilidade de requerer a separação da meação dos bens comuns, nos termos do citado art. 141º, nº 1, b), do CIRE ou, eventualmente do art. 825º, do CPC. Após discussão, a assembleia deliberou, por unanimidade, que o administrador apresentasse novo auto de apreensão de bens imóveis e que de seguida se desse conhecimento do mesmo ao cônjuge do insolvente a fim de o mesmo poder exercer os respectivos poderes processuais.
De modo que esse conhecimento da ora apelante, levado a cabo através da aludida citação de 16.7.2010, resultou, em primeira linha, de vontade expressa da assembleia de credores.
Mais importante, porém, foi o despacho judicial proferido no final da dita assembleia, onde a Sra. Juíza ordenou a apresentação do referido novo auto de apreensão de bens imóveis, e determinou fosse dado conhecimento do seu teor à ora apelante para a mesma poder exercer os respectivos poderes processuais.
Do exposto, resulta que foi a coberto de um despacho judicial que a reclamante foi citada pessoalmente para exercer o seu direito à separação de bens, à sombra do citado art. 141º, nº 1, b), do CIRE, artigo que não tem tal previsão. Citação pessoal que, afinal de contas, não tinha que ocorrer, porque a lei nem sequer a prevê, mas que ocorreu, porque, como a própria decisão recorrida reconhece, se teve “em vista a analogia da situação com a prevista no art. 825.º do Código de Processo Civil”. Aliás, na referida citação (conforme seu teor a fls. 130, deste recurso) mencionou-se unicamente o art. 141º, nº1, b), do CIRE, mas não o indicado art. 825º, do CPC.
Certo, no entanto, é que a citação foi efectuada, e não tinha que ocorrer, porque a lei nem sequer a prevê, como acabámos de dizer, o que em princípio redundaria na prática de um acto nulo (art. 201º, nº 1, do CPC). Acontece que tal citação ocorreu a coberto de um despacho judicial, o que retira a tal acto a sua qualidade de nulo. Na verdade, se for praticado um acto que a lei não admita, mas que esteja coberto por decisão judicial nesse sentido, mesmo que implícita, já não estaremos perante a prática de um acto nulo, mas sim perante a prática de um acto judicial errado, sujeito a impugnação, por meio de recurso (vide L. Freitas, CPC Anotado, Vol. 1º, 2ª Ed., nota 7. ao referido art. 201º, pág. 373, e Ac. Rel. Lisboa, de 30.11.95, C. J., T. 5, pág. 129).
Recurso, que no caso em apreço não ocorreu, pelo que é forçoso concluir que a citação foi perfeitamente válida. Não podendo, desta sorte, a julgadora arrepender-se e dar o dito por não dito na decisão recorrida.
Prosseguindo, há agora, somente que defrontar a questão do prazo de 20 dias fixado pela secretaria na citação.
Em boa verdade, uma vez que a lei não prevê a citação pessoal do cônjuge para reclamar a separação de bens, não é possível afirmar que há prazo para exercitar tal direito. E como o aludido despacho judicial para citação da recorrente, também não fixou qualquer prazo, fosse qual fosse o prazo fixado na citação pela secretaria o mesmo não teria qualquer fundamento legal. Tanto poderia ser o de 5 dias como o fixado de 20 dias. Certo é que neste contexto não se pode falar propriamente em erro da secretaria, nos termos do art. 161º, nº 6, do CPC, como invoca a apelante nas conclusões de recurso, já que qualquer prazo que fosse fixado pela mesma era arbitrário e não em contrariedade do fixado em adequado preceito legal.
Compreende-se, no entanto, que tenha sido o de 20 dias, pois da acta, como salientado, equacionou-se a eventual aplicabilidade, por analogia, do art. 825º, do CPC, e o prazo previsto neste preceito é exactamente de 20 dias. Embora a lei não preceitue qualquer prazo, porque não prevê a situação em apreço, certo é que ele foi fixado, 20 dias.
E deve ser respeitado, permitindo pois à parte, a reclamante, que praticasse o acto que lhe foi facultado nesse mesmo prazo. É o que retiramos da aplicação analógica (art. 10º, nº 2, do CC) do estatuído no art. 198º, nº 3, do CPC, como expressão de um princípio geral.
Na verdade, dispõe aquele normativo que se a irregularidade consistir em se ter indicado para a defesa prazo superior ao que a lei concede, deve a defesa ser admitida dentro do prazo indicado. A ideia do legislador é simples e adequada, é respeitar o prazo mais longo indicado à parte para esta exercitar o seu direito de se defender, não prejudicando a mesma por via de uma errada indicação do prazo excessivo para tal. O que se compreende dado o princípio constitucional da confiança e segurança jurídica dos cidadãos, ínsito num Estado de direito democrático (art. 2º, da CRP).
Se a razão de ser é esta por igualdade de razão o mesmo raciocínio ou juízo deve ser feito para qualquer parte poder exercer os seus direitos ou faculdades legais no prazo fixado pela secretaria judicial.         
Pelo que podemos concluir que tendo a apelante sido citada na referida data e dispondo de 20 dias para reclamar a separação da meação dos seus bens comuns da massa insolvente, tendo-o feito em 5.8.2010, último dia do termo daquele prazo, fê-lo tempestivamente.
Por isso, a decisão recorrida não pode manter-se.
2.2. Como a reclamante é casada com o insolvente no regime da comunhão de adquiridos (art. 1717º do Código Civil), e o casamento é anterior à aquisição dos dois imóveis referidos, tais bens são comuns do casal formado pela mesma e pelo insolvente, pelo que a ora apelante tem direito a separar da massa insolvente a sua meação nos bens comuns do casal.
O que se determinará (pois são desconhecidos nos autos as verbas nº 7 e 8 indicadas pela reclamante, que nem sequer as identificou, ou identificou auto onde elas tivessem sido apreendidas).
3. Sumariando (art. 713º, nº 7, do CPC):
i) Nos termos do art. 144º, nº 1, do CIRE, no caso de serem apreendidos bens para a massa, depois de findo o prazo para as reclamações, é ainda permitido exercer o direito de separação desses bens nos cinco dias posteriores à apreensão, por meio de requerimento;
ii) A lei não prevê qualquer citação pessoal do cônjuge do insolvente para reclamar a separação da massa insolvente da sua meação nos bens comuns;
iii) Mas se tal citação for ordenada e efectuada a coberto de um despacho judicial, mesmo que implícito, já não estaremos perante a prática de um acto nulo, mas sim perante a prática de um acto judicial errado, sujeito a impugnação, por meio de recurso.
iv) Se em tal citação se indicar um prazo de 20 dias, deve o mesmo ser respeitado, podendo o cônjuge apresentar a sua reclamação, por aplicação analógica do disposto no art. 198º, nº 3, do CPC.

IV – Decisão

Pelo exposto, julga-se procedente o presente recurso, revogando-se a decisão recorrida, e consequentemente determina-se a separação da massa insolvente da meação da apelante nos bens comuns, correspondente aos dois imóveis identificados nas verbas nº 1 e 2 do auto de apreensão.
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Custas pela apelada (sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia).
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João Moreira do Carmo ( Relator )
Alberto Ruço
Judite Pires