Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
820/04.7TBCBR-C.C1.
Nº Convencional: JTRC
Relator: GONÇALVES FERREIRA
Descritores: DEPOSITÁRIO
ARRESTO
OPOSIÇÃO
LITIGÂNCIA DE MÁ FÉ
Data do Acordão: 01/12/2010
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: COIMBRA
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: ANULADA
Legislação Nacional: ARTS.201, 388 Nº1 B), 456, 854 Nº2 CPC
Sumário: I – O arresto decretado contra depositário que não apresenta os bens, nem justifica a falta, não admite a dedução de oposição a que alude a alínea b) do nº1 do art.388 do CPC.

II – O conhecimento oficioso de nulidades secundárias pode resultar tanto de lei expressa, como de disposição implícita.

III – É de conhecimento oficioso a nulidade decorrente da prática pelo solicitador de execução de acto não admitido por lei, quando o mesmo prejudique gravemente as partes.

IV – Para haver litigância de má fé é preciso que a matéria alegada releve para a decisão a proferir.

Decisão Texto Integral:             Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:

            I. Relatório:

           A...., com sede na ...., intentou execução comum contra B.... e mulher, C...., residentes na ......., D....., com sede na...., e E...., com sede na ...., tendente a obter pagamento da quantia de € 16.405,72, acrescida de juros vencidos, no montante de € 414,30, e vincendos até efectivo pagamento, alegando que, por as ter descontado no exercício da sua actividade comercial bancária, é dono e legítimo portador de duas letras de câmbio, nos valores de € 12.407,32 e de € 3.998,40, vencidas em 15.07.03 e em 15.10.03, respectivamente, mas não pagas nessas datas, sacadas pela executada D...., aceites pela executada E.... e avalizadas a favor da sacadora pelos executados B.... e mulher.

            Oportunamente, procedeu-se à penhora sete verbas pertencentes à executada E....., assim discriminadas:

Verba 1 – 8 (oito) computadores ... 512 MG/RAM;

Verba 2 – 1 (um) vídeo projector ... TDP – S20;

Verba 3 – 10 (dez) computadores .... 4 com 250 MG/RAM;

Verba 4 – 1 (um) vídeo gravador projector .... TLP – S30;

Verba 5 – 9 (nove) computadores...3, com 256 MG/RAM;

Verba 6 – 1 (um) vídeo projector ...TLP – 260;

Verba 7 – 100 (cem) cadeiras de escritório (salas de aulas).

Foi nomeado depositário dos bens penhorados F...., residente na ....

            Sob requerimento do exequente, foi proferido despacho judicial, datado de 14.09.2007), a ordenar a notificação do depositário para, no prazo de dez dias, proceder à entrega dos bens penhorados à empresa encarregada da venda, sob pena de incorrer em responsabilidade criminal.

            Notificado o depositário de tal despacho, apresentou requerimento nos termos seguintes:

            1) Os bens compreendidos nas verbas 1, 3 e 5 eram alugados, pelo que a sua penhora é incompreensível; de qualquer modo, terminada a relação com a respectiva proprietária, tais bens foram-lhe devolvidos, por exigência dela, razão por que os não possui e, consequentemente, os não pode entregar;

            2) Os bens integrados nas verbas 2, 4 e 6 encontram-se salvaguardados e poderão ser entregues, por determinação do tribunal, à empresa encarregada da venda;

            3) Os bens referidos na verba 7 dispersaram-se e deterioraram-se, devido à sua utilização durante cerca de dois anos, após a cessação da actividade da executada, não sendo possível, por isso, proceder à sua entrega; compromete-se, no entanto, a pagar o seu valor se o tribunal assim o entender.

            Perante o teor do alegado, solicitou o exequente se ordenasse o arresto em bens do depositário e se iniciasse procedimento criminal, de acordo com o disposto no artigo 854.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

            Por despacho de 16.11.07, considerando-se que o depositário tinha incumprido as obrigações que sobre ele recaíam, determinou-se a extracção e entrega ao MP de certidão para os fins tidos por convenientes. Paralelamente, foi-lhe concedido o prazo de dez dias para depositar à ordem do processo o valor correspondente ao dos bens compreendidos nas verbas 1, 3, 5 e 7 do auto de penhora e para proceder à entrega dos bens referentes às verbas 2, 4 e 6.

            Em 31.01.08, porque o depositário não tivesse depositado o valor das verbas 1, 3, 5 e 7, decretou-se, ao abrigo do disposto no artigo 854.º do Código de Processo Civil, o arresto de bens que lhe pertencessem e se mostrassem suficientes para garantir o pagamento de tais verbas e despesas acrescidas.

            E, em 28.03.08, verificado que o depositário não entregara ao encarregado da venda os bens das verbas 2, 4 e 6 nem procedera ao depósito do valor correspondente, ordenou-se, nos mesmos termos, o arresto de bens que lhe pertencessem.

            Cumprido o determinado, com a penhora de uma fracção predial urbana pertencente ao depositário, veio este deduzir oposição ao arresto, em conformidade com o preceituado na alínea b) do n.º 1 do artigo 388.º do citado diploma, alegando, em resumo, o seguinte:

            O inquérito instaurado pelo MP na sequência da certidão extraída foi arquivado, por falta de indícios da prática do crime previsto no artigo 355.º do Código Penal.

            O oponente saiu da empresa e da cidade de Coimbra no ano de 2006, indo viver para Évora, tendo os bens ficado naquela, à responsabilidade do outro sócio-gerente da mesma, o advogado G.... .

            Antes de sair de Coimbra, questionou esse sócio sobre a sua situação relativamente aos bens de que era depositário, tendo-lhe ele respondido que se não preocupasse, porque a constituição de fiel depositário era uma mera formalidade.

            Acreditou sem reservas na informação, dada a qualificação profissional do informador.

            Independentemente disso, a natureza e o volume dos bens integrantes das verbas 1, 3, 5 e 7 tornavam impossível a sua deslocação para Évora.

            O outro sócio-gerente, como advogado, deveria tê-lo informado de que, por ir viver e trabalhar para Évora, teria de solicitar a sua substituição na qualidade de fiel depositário dos bens.

            A oposição foi indeferida, com o argumento de não ser admissível nos casos em que o arresto é decretado ao abrigo do artigo 854.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.

            Inconformado, o depositário interpôs recurso, com vista à revogação da decisão impugnada e à sua substituição por outra que admita a oposição deduzida, e apresentou, em tempo, a sua alegação, que concluiu assim:

            1) Recebeu nota de notificação, sob a forma de citação, a notificá-lo da decisão que decretou o arresto e, simultaneamente, de que tinha o prazo de dez dias para recorrer, nos termos gerais, dessa decisão ou para deduzir oposição;

            2) Assim, não foi notificado/citado nos termos do n.º 2 do artigo 854.º do CPC, como se diz no despacho recorrido, mas, antes, nos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 385.º do mesmo diploma;

            3) Nunca foi notificado para entregar os bens ou justificar a sua falta;

            4) E não tendo sido ouvido antes de ser decretado o arresto, tem de o ser depois, como determina o n.º 1 do artigo 388.º do CPC;

            5) Se o arresto foi decretado ao abrigo do n.º 2 do artigo 854.º do CPC, a decisão é ilegal, por não ter sido notificado previamente para apresentar os bens ou justificar a falta;

            6) O único momento que teve para justificar a falta dos bens foi na oposição ao arresto;

            7) Foram violados os artigos 388.º, n.º 2, e 854.º, ambos do Código de Processo Civil.

           

            O exequente respondeu à alegação do recorrente pela forma que segue:

            1) Ao contrário do que alega, o recorrente foi notificado, antes de ser decretado o arresto, para proceder à entrega dos bens à empresa encarregada da venda;

            2) E tomou conhecimento efectivo da notificação, uma vez que veio aos autos “pronunciar-se sobre a ordenada apresentação dos bens que tinham sido confiados à sua guarda”;

            3) Demonstrada a sua audição prévia, não foi violada qualquer das normas que invoca;

            4) O agravante litiga de má fé, já que altera a verdade dos factos e deduz pretensão cuja falta de fundamento não pode ignorar, pelo que deve ser condenado em multa e em indemnização, a fixar de acordo com prudente arbítrio do tribunal.

            Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

            Em conformidade com as conclusões da alegação do agravante, que balizam o objecto do recurso, é uma só a questão a requerer resolução: saber se o arresto decretado admite oposição, nos termos da alínea b) do n.º 2 do artigo 388.º do Código de Processo Civil.

            No entanto, haverá que apreciar, também, a questão da litigância de má fé por parte do agravante, colocada pelo agravado na sua contra-alegação.

            II. Os factos com relevo para a decisão do recurso são os que constam do relatório e, ainda, os seguintes:

            Depois de decretado e efectuado o arresto, que incidiu sobre fracção imobiliária urbana, o recorrente recebeu nota de notificação sob a forma de citação, enviada por solicitadora de execução, da qual consta, além do mais:

            “Nos termos e para efeito do disposto nos n.º 5 e 6 do artigo 385.º do Código de Processo Civil (CPC), fica V. Exa. notificada da decisão proferida nos autos de arresto em epígrafe, com a menção de que foi decretada a providência de arresto nos termos constantes da decisão ora notificada. Consequentemente fica também V. Exa. notificado que, nos termos do artigo 388.º, n.º 1 do Código de Processo Civil, tem o prazo de DEZ DIAS para:

a) Recorrer, nos termos gerais, do despacho que a decretou, quando entenda que, face aos elementos apurados, ela não devia ter sido deferida;

b) Deduzir oposição, quando pretenda alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal e que possam afastar os fundamentos da providência ou determinar a sua redução”.

             

            III. O direito:

             

            Como se disse, a questão base trazida aos autos é a da admissibilidade da oposição deduzida pelo recorrente ao arresto decretado sobre uma fracção predial de que é titular.

            Na decisão recorrida perfilhou-se o entendimento de não ser legalmente possível a oposição, com fundamento na circunstância de o arresto ter sido decretado ao abrigo do n.º 2 do artigo 854.º do Código de Processo Civil e não em procedimento cautelar.

            Diferente é, como se compreende, a posição do recorrente, para quem o que está em causa é o procedimento cautelar de arresto previsto no artigo 406.º e nos seguintes do mesmo diploma, que admite oposição, e não o arresto a que alude o artigo 854.º do mesmo diploma, uma vez que nunca foi notificado para apresentar quaisquer bens ou para justificar a respectiva falta, o que não poderia deixar de suceder se fosse caso do arresto decretado contra depositário. De resto, acrescenta, até foi notificado para deduzir oposição, nos termos do artigo 388.º daquele Código, o que só pode querer dizer que se está perante um procedimento cautelar verdadeiro e próprio.

            Mas é, por demais, evidente que não tem razão, excepção feita ao facto de ter sido notificado para deduzir oposição ao arresto.

            Uma simples passagem de olhos pelo processo de execução deixa claro que o recorrente foi nomeado depositário dos bens penhorados (todos móveis), que foi notificado para os apresentar à empresa encarregada da respectiva venda, sob pena de procedimento criminal, que respondeu à notificação, informando ter na sua posse alguns dos bens e que os demais, ou haviam sido devolvidos à sua proprietária, findo o prazo de locação, ou se tinham extraviado, que foi intimado a, em prazo certo, entregar os bens que tinha em seu poder e a proceder ao depósito do valor dos restantes, que o não fez no prazo fixado e que, em função disso, foi decretado o arresto de bens seus, nos termos do estabelecido no mencionado artigo 854.º, n.º 2.

            Não se compreende, portanto, que venha, agora, alegar não haver recebido ordem para apresentar os bens de que era depositário, quando ele próprio respondeu à notificação. O que verdadeiramente importa, no entanto, pelo menos, para já, é que o arresto foi decretado em conformidade com o disposto no último preceito citado, na sequência da falta de apresentação dos bens pelo recorrente, e não em função do procedimento cautelar especificado de arresto.

            E, assim sendo, é manifesta a inaplicabilidade do meio de reacção estatuído na alínea b) do n.º 1 do artigo 388.º do Código de Processo Civil, cujo campo de actuação se restringe aos procedimentos cautelares.

            O ataque às decisões para as quais a lei não preveja outro modo de impugnação específico é o recurso, se o valor da causa e o da sucumbência o admitirem (artigos 676.º e 678.º do mesmo diploma).

            A lógica argumentativa do recorrente de que, não tendo sido notificado antes de ser decretado o arresto (o que, como se disse, não corresponde à verdade), deveria sê-lo depois, com vista à dedução de oposição, parte da premissa, errada, de se estar ante um procedimento cautelar.

            Ainda que não tivesse sido dada a possibilidade ao depositário de apresentar os bens ou de justificar a falta de apresentação – e foi-o –, nem assim a oposição seria admissível; o que, então, se verificaria era a omissão de um acto prescrito por lei, com as consequências estabelecidas no artigo 201.º do Código a que nos vimos referindo.

            O recurso, nos termos em que foi desenhado, não tem possibilidades de sucesso.

            Num aspecto, porém, tem o recorrente razão, embora o resultado prático seja diferente do que reclama: no de ter sido notificado, ao abrigo do disposto no n.º 1 do falado artigo 388.º, para recorrer, nos termos gerais, do despacho que decretou o arresto, ou para deduzir oposição, caso pretendesse alegar factos ou produzir meios de prova não tidos em conta pelo tribunal.

            A entidade que procedeu ao arresto (solicitador de execução), interpretando incorrectamente as disposições processuais aplicáveis (por confusão, é evidente, entre a providência tipificada nos artigos 406.º e seguintes do Código de Processo Civil e a sanção estabelecida para o depositário que não entrega os bens nem justifica a falta), informou o depositário/arrestado de que podia reagir contra a decisão que decretou o arresto através de um dos meios previstos no artigo 388.º, quando se deveria ter limitado a notificá-lo da decisão em si.

            É fora de toda a dúvida que uma indicação processual errada não tem o condão de atribuir ao notificado um direito que a lei não consente (a não ser nos casos expressamente previstos, como acontece, por exemplo, com o n.º 3 do artigo 198.º do Código de Processo Civil, que admite a defesa no prazo superior que, porventura, seja concedido, a menos que a citação se repita em termos regulares).

            Mas, em homenagem ao princípio da confiança, que deve presidir a qualquer relação jurídica, seja substantiva, seja processual, também se não há-de ter a indicação por inócua, se, induzindo o notificado em erro, o puder prejudicar no exercício correcto dos seus direitos.

            E é isso o que, inequivocamente, sucede no caso que nos ocupa. Por seguir a indicação que lhe foi dada, o recorrente desperdiçou a possibilidade de reagir contra a decisão que decretou o arresto pelo modo processualmente adequado, que era a interposição de recurso.

            Não é justo e nem, sequer, aceitável que as partes ou terceiros afectados pelo processo tenham de pagar pelos erros do tribunal (ou dos seus auxiliares, o que vem a dar no mesmo).

            Resta saber como ultrapassar a situação.

            Julga-se que por via do regime da nulidade dos actos; não das chamadas nulidades principais, como impropriamente lhes chama o artigo 204.º do Código de Processo Civil, mas das conhecidas por secundárias, genericamente previstas no artigo 201.º do mesmo Código.

            De acordo com o n.º 1 deste preceito, a prática de uma acto que a lei não admita, bem como a omissão de um acto ou de uma formalidade que a lei prescreva, só produzem nulidade quando a lei o declare ou quando a irregularidade possa influir no exame ou na decisão da causa.

            A notificação do recorrente de que lhe era permitido deduzir oposição ao arresto em conformidade com o disposto no artigo 388.º, n.º 1, alínea b), traduz-se na prática de um acto que a lei não admite, dado que, como se disse, a figura da oposição rege, tão-só, para os procedimentos cautelares e não para o arresto decretado com base no n.º 2 do artigo 854.º.

            A questão é que, por princípio, o conhecimento das nulidades secundárias depende de reclamação dos interessados (2.ª parte do artigo 202.º) e o recorrente não arguiu a nulidade da notificação.

            O princípio é, no entanto, objecto de uma ressalva, reportada aos casos especiais em que a lei permite o conhecimento oficioso.

            É o que se passa, por exemplo, com as hipóteses do n.º 2 do artigo 205.º – nulidade praticada durante acto a que o juiz presida – e do artigo 483.º – nulidade da citação de réu revel (Prof. Lebre de Freitas e outros, Código de Processo Civil Anotado, volume 1.º, página 352).

            Mas, como bem observou o Tribunal da Relação de Lisboa, a possibilidade do conhecimento oficioso pode decorrer não apenas de uma disposição expressa, mas, também, de forma implícita, de outras disposições legais (acórdão de 25.11.2003, CJ, Ano XXVIII, Tomo V, página 90).

            E aponta, a título de exemplo, os casos de inobservância pelas partes dos prazos peremptórios e de apresentação de articulados não consentidos, relativamente aos quais se tem vindo a entender ser permitido o conhecimento oficioso da irregularidade da junção fora de tempo ou à margem dos articulados admissíveis, com base no disposto no n.º 2 do artigo 166.º, na medida em que manda que a secretaria submeta a despacho os requerimentos, respostas, articulados e alegações apresentados fora de prazo ou cuja junção seja ilegal, para que o juiz ordene a sua junção ou os recuse, não obstante tais actos se reconduzirem, em última análise, à previsão do n.º 1 do artigo 201.º (porque praticados ao arrepio de regras imperativas sobre os prazos e sobre os articulados permitidos) e não existir disposição expressa a impor o desentranhamento das peças apresentadas nessa situação. 

            A hipótese que se nos depara enquadra-se, com perfeição, nestes exemplos (e, também, no caso tratado no acórdão, que considerou ser de conhecimento oficioso a omissão pela secretaria da junção da contestação tempestivamente apresentada, que teve como consequência a condenação do réu, nos termos do artigo 784.º do Código de Processo Civil).

            Disse-se, já, que o solicitador de execução errou na forma como efectuou a notificação que decretou o arresto, já que informou o recorrente de ter um direito que, na verdade, lhe não assistia: o de deduzir oposição; e, por seguir a informação prestada, o recorrente desperdiçou a única possibilidade de reacção que a lei lhe conferia: a interposição de recurso. O seu prejuízo é mais do que evidente.

            Ora, conforme prescreve o n.º 6 do artigo 161.º daquele diploma, os erros e omissões dos actos praticados pela secretaria judicial não podem, em qualquer caso, prejudicar as partes.

            Os erros do solicitador de execução não podem deixar de ser equiparados aos da secretaria, quando lhes incumba a prática de actos de natureza processual, até porque a redacção do preceito data de altura em que não existia, ainda, a figura do solicitador de execução e em que os actos que, agora, a estes cabem, eram da competência dos funcionários judiciais.

            Se a actuação da secretaria não pode prejudicar as partes, também o não pode, por igualdade de razão, a actividade de quem, por força de lei, se substitui à secretaria.

            Praticado acto errado, a consequência é a sua nulidade, da qual o tribunal deve conhecer oficiosamente, sempre que houver prejuízo para os interessados (exceptuados os casos em que a lei atribua ao erro consequência diversa, como acontece com o n.º 3 do artigo 198.º, antes citado, em que a indicação de prazo superior para a defesa tem de ser aceite, em nome da garantia dos direitos dos cidadãos e da realização da justiça).

            Assim o inculca a expressão “em qualquer caso”, utilizada no falado n.º 6 do artigo 161.º, e, em sede mais geral, a disposição do n.º 1 do artigo 265.º do mesmo diploma, na medida em que impõe ao juiz que providencie pelo andamento regular do processo, promovendo, para tanto, e de modo oficioso, as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção.

            E só dessa forma se dá corpo ao princípio do processo equitativo, proclamado no artigo 20.º, n.º 4, da Constituição, como muito bem se escreveu no aresto antes mencionado.

            E convenhamos que não é equitativo    que se perca o direito de defesa, por erros imputáveis a quem tinha a obrigação de pautar a sua conduta pela estrita observância das regras legais aplicáveis.

            Em conclusão, a notificação efectuada ao recorrente da decisão que decretou o arresto terá de ser anulada, por ilegal, e deverá ser repetida, por forma a que dela se retire a possibilidade de deduzir oposição e a referência ao artigo 388.º do Código de Processo Civil.

            A anulação do acto implica, igualmente, a anulação dos termos subsequentes do processo, nos termos do n.º 2 do citado artigo 201.º.

            b) A litigância de má fé

            O exequente/recorrido requereu a condenação do recorrente em multa e indemnização, a fixar de acordo com o prudente arbítrio do tribunal, afirmando que este litigou de má fé, por ter alegado factos que sabia serem falsos, concretamente, que não foi notificado, antes de ser decretado o arresto, para proceder à entrega dos bens à empresa encarregada da venda.

            O recorrente não se pronunciou sobre o requerido.

            Para se configurar a litigância de má fé é necessário, conforme o n.º 2 do artigo 456.º do Código de Processo Civil, que, com dolo ou negligência grave:

            a) Se tenha deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento se não devesse ignorar;

            b) Se tenha alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa;

            c) Se tenha praticado omissão grave do dever de cooperação;

            d) Se tenha feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão.

            Esta disposição, cuja redacção deriva do Decreto-lei n.º 180/96, de 25 de Setembro, corresponde, no essencial, à primitiva redacção do preceito e, também, à do artigo 465.º do Código de 1939, com pequenas alterações quanto às situações tipificadoras da litigância de má fé (a introdução da omissão grave do dever de cooperação e uma abrangência maior dos casos de uso manifestamente reprovável do processo) e uma grande alteração quanto à intenção (enquanto antes se exigia o dolo, agora releva, também, a negligência grave).

            Contempla o artigo, como ensina o Prof. Alberto dos Reis, tanto a má fé substancial – a que respeita ao fundo da causa –, como a instrumental – a que diz respeito à relação jurídica processual, acrescentando que, no primeiro caso, se usa de má fé para obter decisão de mérito que não corresponde à verdade e à justiça e, no segundo, a parte procura sobretudo cansar e moer o seu adversário, ou somente pelo espírito de fazer mal, ou na expectativa condenável de o desmoralizar, de o enfraquecer, de o levar a uma transacção injusta (Código de Processo Civil Anotado, volume II, páginas 263 e 264).

            Em causa está, continua o mesmo autor, o dever de probidade processual, ditado no artigo 264.º (esta disposição, referente ao Código de 1939, não teve correspondência na versão inicial do Código de 1961, mas foi reposta, conquanto com diferente redacção, pelo decreto-lei n.º 329-/A95, de 12 de Dezembro, através do artigo 266.º-A), que é como quem diz, o dever de não formular pedidos injustos, não articular factos contrários à verdade, não requerer diligências meramente dilatórias (local citado).

            Não obstante a ampliação do dever de boa fé, com a colocação da negligência grave a par do dolo, o certo é que a nossa jurisprudência, nomeadamente a do Supremo Tribunal de Justiça, tem vindo a entender que se deve ser muito prudente no juízo que a tal respeito se faça, em homenagem à garantia de um amplo direito de acesso aos tribunais e ao exercício do contraditório, próprias do estado de direito, concluindo, por isso, pela ilegitimidade de interpretações apertadas do referido artigo 456.º, no âmbito das quais pudesse caber, sem mais, a condenação de má fé da parte que não logrou fazer prova da sua versão dos factos e viu provada a da parte contrária (Acórdão do STJ de 11.12.2003, pesquisado na Internet).

            É à luz destas considerações que haverá de ser apreciada a questão ora colocada.

            Como deflui da respectiva alegação, é muito clara a pretensão do recorrente: a de que lhe assiste o direito de deduzir oposição ao arresto decretado na execução.

            Para a sustentar, construiu uma teoria algo equívoca, que se pode sintetizar assim: a decretação do arresto nos termos do artigo 854.º, n.º 2, do Código de Processo Civil pressupõe a audição prévia do depositário; se não for ouvido antes de decretado o arresto, tem de o ser depois, em face do que dispõe o artigo 388.º, n.º 1, do mesmo diploma; ora, tendo visto os seus bens arrestados sem antes ter sido ouvido, não se pode estar perante a hipótese do artigo 854.º, o que implica que lhe assista a possibilidade legal de deduzir oposição.

            É evidente que não soube estabelecer a diferença entre arresto/providência, regulado no capítulo dos procedimentos cautelares, e arresto/sanção, aplicável ao depositário que não entrega os bens.

            Enquanto o primeiro admite, como meios de reacção alternativos, a interposição de recurso ou a dedução de oposição, o segundo só admite o recurso, tenha, ou não, o depositário sido notificado para apresentar os bens; como acima se esclareceu, a falta de audição prévia do depositário não acarreta a sua audição posterior, mas, apenas, a nulidade do processado, decorrente da omissão de um acto que a lei prescreve.

            Arrumadas, assim, as coisas no lugar que lhes cabe, pode concluir-se com satisfatório grau de segurança que o recorrente não incorreu em litigância de má fé.

            E isto, porque a sua alegação é absolutamente indiferente para a decisão da causa. É exacto que alterou a verdade dos factos por si conhecidos, já que afirmou não ter sido notificado para apresentar os bens, quando, na realidade, o foi. A questão é que a matéria aduzida é irrelevante para a pretensão formulada e insusceptível, portanto, de conduzir a uma decisão de mérito contrária à verdade e à justiça; mas, ainda que alguma relevância pudesse ter, nem assim o resultado se alterava, na exacta medida em que os elementos constantes do processo logo desmentiam a tese factual carreada.

            Não é toda e qualquer alteração da verdade dos factos que tem virtualidade para gerar a litigância de má fé, mas só aquela que incida sobre factualidade relevante para o objecto do pleito, capaz, por conseguinte, de induzir o tribunal e erro e, por essa via, o levar a proferir uma decisão de mérito que a lei pretende evitar.

            No condicionalismo apontado era impossível o recorrente obter o que pretendia, pelo que é de arredar a litigância de má fé.

            IV. Em resumo:

            1) O arresto decretado contra o depositário que não apresenta os bens nem justifica a falta não admite a dedução de oposição a que alude a alínea b) do n.º 1 do artigo 388.º do Código de Processo Civil.

            2) O conhecimento oficioso das nulidades secundárias pode resultar, tanto de lei expressa, como de disposição implícita.

            3) É de conhecimento oficioso a nulidade decorrente da prática pelo solicitador de execução de acto não admitido por lei, quando o mesmo prejudique gravemente as partes.

            4) Para haver litigância de má fé é preciso que a matéria alegada releve para a decisão a proferir.

            V. Decisão:

            Em face do exposto, acorda-se em anular a notificação efectuada ao recorrente da decisão que decretou o arresto e, bem assim, os termos posteriores do processo que de tal acto dependam, para que a mesma seja repetida em conformidade com o que acima se explicitou.

            As custas ficarão a cargo de quem tiver de as suportar a final.