Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
328/07.9TBTCS.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: REGINA ROSA
Descritores: COMPETÊNCIA MATERIAL
TRIBUNAL ADMINISTRATIVO
TRIBUNAL COMUM
Data do Acordão: 09/16/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TRIBUNAL JUDICIAL DE TRANCOSO
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Decisão: CONFIRMADA
Legislação Nacional: ARTºS 4º, Nº 1, AL. G), E 5º DO ETAF (LEI Nº 13/2002, DE 19/02
Sumário: I – Segundo o artº 4º, nº 1, al. g), do ETAF (Lei nº 13/02, de 19/02), compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham por objecto nomeadamente a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício da função política e legislativa.

II – Abrangem-se aí, pois, todos os actos de responsabilidade civil extracontratual da administração pública, independentemente de se tratar de danos resultantes de actos de gestão pública ou actos de gestão privada.

III – O legislador confiou à jurisdição administrativa os litígios emergentes da referida responsabilidade, arredando a velha dicotomia gestão pública/gestão privada, de difícil caracterização.

IV – Para a determinação da competência jurisdicional, a actual lei seguiu o critério objectivo da natureza da entidade demandada, ou seja, sempre que o litígio envolva uma entidade pública, em quadro de imputação à mesma de facto gerador de um dano, o conhecimento do litígio compete aos tribunais da ordem administrativa, independentemente da natureza do direito substantivo aplicável.

V – Envolvendo a questão a dirimir uma situação de responsabilidade civil extracontratual conectada com uma relação jurídica de direito privado relativa a um contrato de fornecimento de água, em que a fornecedora é uma autarquia, são materialmente competentes para tal conhecimento os Tribunais Administrativos.
Decisão Texto Integral: ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA

I- RELATÓRIO
I.1- Os AA., apresentando-se como familiares do falecido A...., instauraram em 8.11.07 contra o «Município de B...», acção sob a forma ordinária, pedindo a condenação deste réu a indemnizá-los pelos danos não patrimoniais que descrevem, no montante global de 510.000,00 €, e bem assim os danos patrimoniais sofridos que se irão apurar em execução de sentença, decorrentes da morte desse familiar ocorrida em Março de 2007.
Em síntese, alegam que o referido familiar faleceu ma sequência de um quadro clínico grave causado pela intoxicação por arsénico da água ingerida nos anos de 2005 e 2006, fornecida com destino ao consumo humano pelo réu, e que este, apesar de conhecedor da situação e do perigo que os elevados níveis de arsénico representavam para a saúde pública, não suspendeu, como devia ter feito, o abastecimento.
Contestou o R. excepcionando a incompetência do tribunal comum em razão da matéria, sustentando serem hoje da competência dos tribunais administrativos as “tradicionais” acções de responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito público e demais entidades públicas, designadamente das autarquias locais.
Houve réplica.
No despacho saneador, o tribunal conheceu da excepção dilatória de incompetência absoluta do tribunal, declarando incompetente em razão da matéria o Tribunal de Trancoso, e competentes para dirimir o litígio trazido a juízo, os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal.
I.2- Inconformados, agravaram os AA..
Nas alegações de recurso, concluiram, assim, em síntese nossa:
1ª- Está nesta acção em causa o cumprimento defeituoso de um contrato de fornecimento de água, uma vez que a água fornecida não respeitava os parâmetros de qualidade obrigatórios por lei;
2ª- E a responsabilidade de fiscalização e alerta cabia ao recorrido;
3ª- Os municípios estão obrigados ao controlo da qualidade da água de que são fornecedores, tal como outra qualquer pessoa que se dedique a esta actividade;
4ª- Não se trata aqui, pois, de uma responsabilidade extracontratual, mas sim contratual, não se integrando por isso na disposição do art.4º/1-f) do ETAF;
5º- Os factos em causa neste processo não se enquadram no âmbito da jurisdição administrativa, sendo por isso competente para julgar a causa os tribunais judiciais;
I.3- Contra-alegou o R. defendendo a manutenção do despacho recorrido.
Foi mantido o despacho agravado.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II – FUNDAMENTOS
É questão a decidir no recurso, se, tal como entendeu a 1ª instância, a presente acção deve ser julgada na jurisdição administrativa, sendo uma das partes um município.
Adiantando a nossa posição, julgamos que se decidiu bem, sob sólida fundamentação, pelo que pouco mais adiantaremos.
É consabido que a competência se determina pela ponderação do pedido e da causa de pedir. Resolve-se com os termos da pretensão do autor, compreendidos aí os respectivos fundamentos.
Em consonância com o disposto no art.5º do ETAF (Lei nº13/02, de 19.2 – de que serão as normas a citar sem menção expressa), a competência dos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal fixa-se no momento em que a acção se propõe.
É, pois, à luz deste diploma que a questão decidenda deve ser apreciada.
Segundo o art.1º-g), compete aos tribunais da jurisdição administrativa e fiscal a apreciação de litígios que tenham nomeadamente por objecto, a responsabilidade civil extracontratual das pessoas colectivas de direito público, incluindo por danos resultantes do exercício da função política e legislativa.
Abrange-se, assim, todos os actos de responsabilidade civil extracontratual da administração, independentemente de se tratar de danos resultantes de actos de gestão pública ou de gestão privada.
O legislador confiou à jurisdição administrativa os litígios emergentes da referida responsabilidade, arredando de vez a velha dicotomia, gestão pública/gestão privada, de difícil caracterização. [1]
Conforme se decidiu em recente acórdão do Supremo citado pelo recorrido, para determinação da competência jurisdicional, a lei seguiu o critério objectivo da natureza da entidade demandada, ou seja, sempre que o litígio envolva uma entidade pública, em quadro de imputação à mesma de facto gerador de um dano, o conhecimento do litígio compete aos tribunais da ordem administrativa, independentemente da natureza do direito substantivo aplicável. [2]
Neste sentido se escreveu no preâmbulo do diploma que aprovou o actual ETAF: “A jurisdição administrativa passa, assim, a ser competente para a apreciação de todas as questões de responsabilidade civil que envolvam pessoas colectivas de direito público, independentemente da questão de saber se tais questões se regem por um regime de direito público ou por um regime de direito privado (…)”.
Portanto, não relevando a distinção entre regime de direito público e regime de direito privado, como critério de determinação da competência judiciária (administrativa ou comum), para conhecer da responsabilidade extracontratual das pessoas colectivas de direito público, importa então saber se no caso em apreço a questão a dirimir cai ou não no âmbito dessa espécie de responsabilidade.
Os recorrentes colocam o assento tónico da sua motivação, justamente na não ocorrência nos autos de uma situação de responsabilidade extracontratual, mas sim contratual, assim afastando a aplicação da norma do art.4º/1-g).
A questão da competência material deve ser resolvida, como se referiu, atentando na materialidade de que integra a causa de pedir, e outrossim, no pedido formulado, sem entrar na apreciação do seu mérito.
Ora, os AA./recorrentes pretendem a condenação do Município de B..., pessoa colectiva de direito público, no pagamento de determinada importância a título de indemnização, por danos decorrentes da morte de um familiar. Na causa de pedir em que baseiam o pedido, alegam que entre esse familiar e o réu foi estabelecido um contrato de fornecimento de água potável para consumo doméstico; que nos anos de 2005 e 2006 os valores paramétricos para o arsénio de 10 microgramas por litro legalmente estabelecidos, foi em muito alargado chegando a atingir mais de 110 microgramas por litro, mas não obstante isso o R. continuou a fornecer água envenenada sabendo das consequências de tal actuação; o marido e pai dos AA. foi então apresentando uma sintomatologia de debilidade física por intoxicação com arsénico, e já em 2007 sofreu um enfarte de miocárdio e de seguida um AVC, falecendo um mês depois, imputando-se estas ocorrências ao facto da sua debilidade e intoxicação orgânica como causa directa.
Extrai-se daqui que a responsabilidade assacada ao réu tem origem num contrato de fornecimento de água por uma autarquia a um particular, que tem natureza civil embora relacionado com a actividade administrativa desenvolvida pela autarquia, regendo-se, portanto, pelas normas dos contratos civis.
Porém, não está em causa a responsabilidade contratual nos termos dos arts.798º e segs. do C.C., qualquer violação do vínculo negocial como seja o cumprimento defeituoso que pode ocasionar prejuízos. Como bem se ponderou na sentença, o facto de ter ocorrido uma lesão do direito à saúde e à integridade física do familiar dos AA., na fase de cumprimento do contrato de fornecimento de água, não é suficiente para descaracterizar o tipo de responsabilidade civil que recai sobre o réu, nem impede a aplicação das regras da responsabilidade civil extracontratutal por factos ilícitos.
Na verdade, esta forma de responsabilidade (também aquiliana ou delitual), nos termos dos arts.483º e segs. do C.C., resulta da violação de um dever ou vínculo jurídico geral, isto é, de um daqueles deveres gerais de abstenção impostos a todas as pessoas e que correspondem aos direitos absolutos, como são os direitos de personalidade.
E assim, se do incumprimento das obrigações contratuais decorreram danos em direitos de personalidade (direito à saúde e à integridade física), e se só vem pedida indemnização por tais danos, verificam-se os pressupostos da responsabilidade extracontratual.
No caso, foram alegados danos pessoais sofridos pelo particular a quem a autarquia fornecia água para consumo humano, em razão da elevada concentração de arsénio na água, de que o réu era sabedor. A sua responsabilidade, tal como vem retratada pelos AA., é, assim, delitual. De resto, na petição inicial eles mesmos invocam a norma do art.483º reguladora da responsabilidade extracontratual, para obter a indemnização dos danos sofridos.
Em suma, a questão a dirimir envolve uma situação de responsabilidade civil extracontratual conectada com uma relação jurídica de direito privado relativa a um contrato de fornecimento de água, em que a fornecedora é uma pessoa colectiva de direito público.
Pretendendo efectivar-se a responsabilidade delitual de uma autarquia, o tribunal comum é incompetente em razão da matéria para dela conhecer.
Tal como resulta do art.4º/1-g), são competentes os tribunais da ordem administrativa.
Dito isto, improcedem as conclusões, soçobrando o recurso.
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III - DECISÃO
Acorda-se, pelo exposto, em julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença apelada.
Custas pelos apelantes.
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COIMBRA,
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[1] Cfr. Ac.STJ de 8.5.07 (CJstj II/07-51)
[2] Ac.de 10.4.08. Relator: Salvador da Costa. Processo 08B845 in www.dgsi.pt/jstj.