Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra | |||
Processo: |
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Nº Convencional: | JTRC | ||
Relator: | JOSÉ EUSÉBIO ALMEIDA | ||
Descritores: | CONCURSO DE CREDORES HIPOTECA JUROS | ||
Data do Acordão: | 12/21/2010 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Tribunal Recurso: | SANTA COMBA DÃO – 1º JUÍZO | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | REVOGADA | ||
Legislação Nacional: | ARTºS 693º, Nº 2, E 824º, Nº 2, DO C. CIVIL | ||
Sumário: | I – O concurso de credores visa permitir a todos os credores que gozem de alguma preferência a reclamação dos seus créditos, mas visa igualmente, ou até visa especialmente, que os bens objecto de execução sejam expurgados dos direitos reais de garantia que os oneram, evitando-se, no interesse do exequente, mas igualmente no do executado e no dos adquirentes, a sua desvalorização. II - A limitação temporal de três anos, prevista no nº 2 do artº 693º do C. Civil, é aplicável quer aos juros moratórios quer aos remuneratórios. III – Uma vez que a lei não estabeleceu qualquer termo (inicial ou final) para a contagem dos juros garantidos pela hipoteca e porque deve ser afastado o entendimento de se contarem desde o registo, se outra não for a liquidação do credor eles serão devidos desde que (e desde quando) exigíveis, ou seja desde o incumprimento, a partir daí se contando o período máximo de três anos. IV – Revogada a isenção prevista no artº 2º, nº 1, al. g), do CCJ, o reclamado (recorrido) é responsável pelo pagamento das custas do recurso procedente, tenha ou não contra-alegado. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra
1. Relatório 1.1 Os autos na 1.ª instância A A..., SA, por apenso à execução que a B..., CRL, moveu aos executados C... e outros, veio reclamar créditos decorrentes de um contrato de mútuo com hipoteca, nos termos do qual emprestou a quantia de 72.500,00€ aos executados C.... e D....
A reclamante justificou a origem e o regime do empréstimo concedido, bem como os juros convencionados, remuneratórios e moratórios; identificou o bem imóvel hipotecado, penhorado nos autos principais e, juntando também os documentos pertinentes (contrato de mutuo e registo da hipoteca) liquidou o valor em dívida em 1.03.2010, onde contabilizou os juros devidos desde 11.08.2009 e acrescentou que a dívida agravar-se-á, quanto a juros vincendos, à razão de 20,30€ por dia.
Não tendo havido impugnação do crédito reclamado foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a reclamação, graduando o crédito da A... em primeiro lugar, mas apenas, no que respeita a juros, aos vencidos nos três anos subsequentes ao registo da hipoteca, ou seja, desde 19.09.2007.
A reclamante, além de interpor recurso, invocou o erro material da sentença e pediu a sua rectificação: entendeu que a decisão padece de manifesto lapso ao referir os juros vencidos como correspondentes aos três anos subsequentes ao registo da hipoteca e não desde 11.08.2009, ocasião em que os executados deixaram de cumprir.
Na 1.ª instância foi indeferida a reclamação, salientando-se que os juros remuneratórios não se encontram ligados a qualquer forma de incumprimento, mas são mera contrapartida da cedência do capital, devidos desde a sua disponibilização, e esclarecendo que a decisão não padece de qualquer erro, antes traduz uma interpretação divergente do artigo 693.º, n.º 2 do CC. Em despacho seguinte foi admitido o recurso.
1.2 O recurso A recorrente fundamenta a sua discordância com as seguintes conclusões [………………………..]
1.3 Objecto da apelação Delimitada pelas alegações do recorrente, e com a clareza que resulta da própria impugnação parcial do decidido, a única questão a resolver (sem embargo do seu eventual reflexo na condenação em custas) traduz-se em saber se o período de garantia de três relativo aos juros reclamados pelo credor hipotecário tem o seu termo inicial no vencimento ou incumprimento do devedor ou, como se entendeu na decisão em recurso, na ocasião da inscrição da garantia.
Foi proferido despacho a considerar legais os termos e os efeitos do recurso e, ao abrigo do disposto no artigo 707.º, n.º 4 do CPC (atenta a natureza da questão a decidir), com a concordância dos Exmos. Desembargadores adjuntos, foram dispensados os vistos.
2. Fundamentação 2.1 Fundamentação de facto A matéria de facto considerada na decisão sob censura não foi impugnada nem justifica qualquer alteração. Em conformidade, remete-se para os termos da decisão em 1.º instância (artigo 713.º, n.º 6 do CPC) com os seguintes esclarecimentos: [……………………….] 2.2 Apreciação jurídica Como se antecipou em 1.3, o objecto desta apelação é claro: interpretando o disposto no artigo 693.º, n.º 2 do Código Civil (CC) a 1.ª instância decidiu que os juros reclamados só estão garantidos pela hipoteca nos três anos subsequentes ao seu registo (feito a 19.09.2007); a recorrente, por seu turno, entende que aquele período se inicia apenas com o incumprimento ou vencimento exigível (ocorrido a 11.08.2009).
A hipoteca é um direito real de garantia[1], conferindo ao credor a possibilidade de assegurar o cumprimento da obrigação pela realização do valor dos bens imóveis (ou equipados) sobre os quais aquela incide; como diz o artigo 686.º, n.º 1 do CC, que a define, “confere ao credor o direito de ser pago pelo valor de certas coisas imóveis ou equiparadas, pertencentes ao devedor a terceiro, com preferência sobre os demais credores que não gozem de privilégio especial ou prioridade de registo”[2]. A sua eficácia[3], efectivamente, só opera (mesmo que se tratasse de hipoteca de título geral) em relação aos bens sobre os quais foi registada e a especificação deve igualmente abranger os elementos relativos ao crédito, incluindo o montante máximo que pode atingir.
A satisfação do credor ocorrerá sempre num processos judicial[4] e, não estando em causa a expurgação da garantia (artigos 998.º a 1006.º do CPC), acontece, depois da revogação do processo especial e autónomo de execução hipotecária (com o CPC/1939), numa execução comum[5], uma acção executiva comum iniciada pelo credor hipotecário (e, naturalmente, portador de um título executivo) ou aquela outra à qual é chamado no concurso de credores (igualmente, além do mais, munido de título executivo)
Com relevo à compreensão do caso presente, se bem pensamos, importará acentuar que o concurso de credores visa permitir a todos os credores que gozem de alguma preferência a reclamação dos seus créditos, mas visa igualmente, ou até visa especialmente, que os bens objecto de execução sejam expurgados dos direitos reais de garantia que os oneram, evitando – no interesse do exequente, mas igualmente no do executado e no dos adquirentes – a sua desvalorização[6]. É que, por um lado, o artigo 824.º, n.º 2 do CC impõe que os bens sejam transmitidos livres, além do mais, dos direitos de garantia que os oneram[7][8] e, por outro, mesmo que o crédito admitido a concurso não esteja vencido, daí não decorre que fique por graduar: há sim que, na conta final para pagamento, efectuar o desconto correspondente ao benefício da antecipação[9] (868.º, n.º 3 do CPC).[10]
Depois das considerações pretéritas, e tendo em mente a natureza do direito real de garantia que é a hipoteca[11], a razão de ser e finalidade do concurso de credores[12] e a possibilidade de graduação do crédito independentemente do vencimento, regressamos, agora, à questão objecto de apelação. Esse objecto é, no fundo, a (adequada) interpretação do artigo 693.º, n.º 2 do CC.
A hipoteca assegura os acessórios do crédito que constem do registo, diz-nos o n.º 1 do preceito. Esclarece o n.º 2 que “Tratando-se de juros, a hipoteca nunca abrange, não obstante convenção em contrário, mais do que os relativos a três anos”; e finaliza o n.º 3: “O disposto no número anterior não impede o registo de nova hipoteca em relação a juros em dívida”.
Ainda que o não esclareça com nitidez na sentença sob censura, resulta do despacho da 1.ª instância onde se indefere o erro rectificável invocado (indeferimento, acrescentamos, que nos parece manifestamente lógico e coerente, atenta a inexistência de qualquer erro ou lapso, mas de uma nítida divergência de interpretação jurídica) que a distinção entre juros moratórios e remuneratórios seria o fundamento - por estarem em causa os segundos, desligados de qualquer forma de incumprimento -, para a interpretação seguida, colocando o termo inicial da contagem dos juros garantidos na ocasião da inscrição da hipoteca no registo.
Com todo o respeito, não nos parece o mais correcto. Por um lado, parece pacífico que a previsão se refere quer a juros moratórios quer a remuneratórios[13]; por outro, estamos perante uma restrição, ou seja, se os juros remuneratórios não estivessem abrangidos no n.º 2, mantinham a garantia (ao invés do que parece pressupor-se) consoante constassem do registo e não apenas por três anos[14]; finalmente, se a liquidação dos juros é feita, como sucedeu, a partir do incumprimento… não estão reclamados os anteriores: foram pagos.
De todo o modo, e admitindo que a razão que fundou o decidido não foi a distinção dos juros, ou mesmo independentemente de o ter sido, não pode ignorar-se que a sentença interpreta o n.º 2 do artigo 693.º no sentido da hipoteca conferir garantia aos “juros vencidos nos três anos subsequentes ao registo”, importando apurar se, ainda assim, a interpretação é de sufragar.
Entendemos, com todo o respeito, que assim não é. Em primeiro lugar, a lei não fixou um termo inicial para a contagem dos juros e diz apenas “os relativos a três anos”; depois a doutrina refere “os juros dos últimos três anos”[15], pergunta-se se o tempo não abrangido pela hipoteca é “o que excede três anos a contar do vencimento” ou a contar – para trás – “da venda judicial[16]” ou diz mesmo “independentemente do período a que respeitem”[17], nunca colocando a hipótese, que se conheça, de o termo inicial da contagem dos juros ter de coincidir com a inscrição da garantia no registo.
Se assim é na doutrina, queremos dizer, se o é sem que se considere como relevante a ocasião do registo, parece-nos que igualmente assim o tem interpretado, pelo menos em sentido dominante, a jurisprudência dos tribunais superiores.
Entre outros que podem citar-se[18], concluiu-se neste Relação de Coimbra (acórdão de 13.11.2007[19]) que (1) por força do disposto no artigo 693.º, n.º 2, a garantia hipotecária não cobre juros superiores a três anos, e abrange tanto os juros remuneratórios, como os moratórios, vencidos e vincendos; (2) o início do período de três anos é o do dia do vencimento e consequente exigibilidade dos juros; (3) os juros devem ser contados até ao momento da liquidação do julgado pela secretaria, desde que respeite o prazo imperativo dos três anos e (4) tendo o credor hipotecário reclamado, na acção executiva, o capital e juros vincendos (e não os vencidos), o prazo dos três anos da garantia hipotecária, relativamente aos juros, conta-se, não da data da reclamação do crédito, mas a partir do dia em que se venceram os primeiros juros.
Relevantemente, em acórdão acabado de publicar[20], o Supremo Tribunal veio afastar a possibilidade de o período de garantia de três anos poder ser contado com termo inicial na data do registo[21] da hipoteca[22], e esclareceu que os juros remuneratórios e os moratórios têm o mesmo regime, ou seja, a mesma garantia, expressamente acrescentando que “temos, assim, por mais consentânea com os princípios que regem o cumprimento das obrigações e a finalidade da garantia hipotecária, que o período de três nos do n.º 2 do art. 693.º do Código Civil se inicia com o incumprimento do devedor.[23]”
Assim, e com todo o respeito por diferente opinião, seguindo o entendimento da doutrina e da jurisprudência citadas, ponderando o disposto no artigo 693.º, n.º 2 do CC,[24] a sua razão de ser e finalidade, concluímos que a lei não estabeleceu qualquer termo (inicial ou final) para a contagem dos juros garantidos e que, depois de afastada a possibilidade de se começarem a contar desde o registo da hipoteca, não sendo outra a liquidação do credor, eles serão devidos desde que (e desde quando) exigíveis, a partir daí se contando o período máximo de três anos.
O recorrente, no caso em apreço, liquidou os juros desde o tempo do incumprimento até ao momento em que deduziu a pretensão (a reclamação do crédito) e mostra-se clara a ocasião em que – conforme o reclamante alega e não foi impugnado – o devedor deixou de cumprir. Assim, afastada a interpretação feita na primeira instância, deve dizer-se que o período de garantia dos juros (moratórios e remuneratórios) tem termo inicial nessa ocasião (do início de incumprimento) como pretende o recorrente.
Por tudo, entendemos que a apelação procede: a garantia hipotecária, no que aos juros respeita, abrange o período de três anos, contado a partir de 11.08.2009 e não de data anterior – a do registo da hipoteca – como se tinha decidido e que, nessa parte, deve ser alterado.
Em sede de custas, a presente decisão reflecte-se na anterior condenação na 1.ª instância, onde, devidas pelos reclamados, devem sair precípuas do produto da venda. Mas igualmente as custas do recurso devem ficar a cargo dos reclamados, mesmo que estes não tenham contra-alegado. Poderá parecer estranho que assim seja, isto é, que alguém que não deu causa ao recurso nem sustentou a posição revogada seja tributariamente responsável; no entanto, tendo desaparecido a isenção que constava do artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do CCJ, e não sendo o recurso isento, é o que decorre do artigo 446.º, n.º 2 do CPC, tanto mais que o artigo 7.º, n.º 2 do RCP se refere a realidade diferente, concretamente – e apenas – à taxa de justiça[25].
Assim, em ambas as instâncias, as custas são devidas pelos reclamados.
3. Sumário[26]: I – O concurso de credores visa permitir a todos os credores que gozem de alguma preferência a reclamação dos seus créditos, mas visa igualmente, ou até visa especialmente, que os bens objecto de execução sejam expurgados dos direitos reais de garantia que os oneram, evitando – no interesse do exequente, mas igualmente no do executado e no dos adquirentes – a sua desvalorização. II - A limitação temporal de três anos, prevista no n.º 2 do artigo 693.º do Código Civil é aplicável, quer ao juros moratórios quer aos remuneratórios. III – Uma vez que a lei não estabeleceu qualquer termo (inicial ou final) para a contagem dos juros garantidos pela hipoteca e porque deve ser afastado o entendimento de se contarem desde o registo, se outra não for a liquidação do credor, eles serão devidos desde que (e desde quando) exigíveis, ou seja, desde o incumprimento, a partir daí se contando o período máximo de três anos. IV – Revogada a isenção prevista no artigo 2.º, n.º 1, alínea g) do CCJ, o reclamado (recorrido) é responsável pelo pagamento das custas do recurso procedente, tenha ou não contra-alegado.
4. Decisão: Pelas razões ditas, acorda-se neste Tribunal da Relação de Coimbra em julgar totalmente procedente o recurso de apelação interposto pela A..., SA na Reclamação de Créditos em que são reclamados C... e D... e, em conformidade, revogar, na parte em crise, a decisão da 1.ª instância e incluir na graduação operada, relativa à reclamação da recorrente, os juros reclamados, e conforme o foram, ou seja, desde 11.08.2009 e pelo período temporal de três anos, contados a partir desta data.
Custas pelos reclamados em ambas as instâncias e com a garantia prevista no artigo 455.º do CPC.
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