Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
Processo:
1628/05.8TBTNV-A.C1
Nº Convencional: JTRC
Relator: HÉLDER ROQUE
Descritores: CONFLITO DE COMPETÊNCIA
TRIBUNAL DO TRABALHO
TRIBUNAL COMUM
Data do Acordão: 02/19/2008
Votação: UNANIMIDADE
Tribunal Recurso: TORRES NOVAS
Texto Integral: S
Meio Processual: AGRAVO
Legislação Nacional: ARTIGOS 494º, Nº 1, A), 493º, Nº 2 E 288º, Nº 1, A), DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL; ARTIGO 85º, B), C) E F), DA LOFTJ
Sumário: 1. Invocando a autora a existência de danos próprios, patrimoniais e não patrimoniais, derivados de acidente de trabalho, imputável a negligência na recolha de um cão, que a mordeu, pertencente à entidade patronal para quem trabalhava, no domicílio desta, no âmbito da prestação de trabalhos domésticos, são esses os factos que constituem o elemento essencial e determinante da causa de pedir.
2. Por isso, o tribunal competente, em razão da matéria, para conhecer as questões de indemnização, por responsabilidade civil proveniente dos danos emergentes de acidente de trabalho, no âmbito do serviço doméstico, é o Tribunal do Trabalho, e não o Tribunal comum de comarca.
Decisão Texto Integral: ACORDAM OS JUÍZES QUE CONSTITUEM O TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE COIMBRA:


M…. e esposa, F….., residentes em Casa da Ponte, Estrada de Paialvo, Soudos, Vila do Paço, interpuseram recurso de agravo da decisão que, na acção com processo ordinário que lhes é movida pela autora, G…., casada, residente na Rua de ……… Vila do Paço, com vista ao pagamento de uma indemnização, no montante de 22750,63€, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, devido às sequelas resultantes do ataque de um cão, propriedade dos recorrentes, no local da residência destes, onde prestava trabalho doméstico, julgou improcedente a excepção dilatória da incompetência material do Tribunal da Comarca de Torres Novas, declarando que o mesmo é o competente para dirimir o litígio e não o Tribunal do Trabalho, conforme vinha sustentado por aqueles, terminando as alegações, onde sustentam a sua revogação, ou, em alternativa, que se relegue para momento posterior a decisão da aludida excepção, formulando as seguintes conclusões:
1ª – A decisão proferida ao desprezar em absoluto o alegado pelos réus para a caracterização do acidente como de trabalho violou o princípio da igualdade.
2ª – Face aos factos carreados pela autora na petição inicial e pelos réus na contestação, em sede de excepção, e não impugnados pela autora, devia a Sª Drª Juíza considerar o acidente em questão como acidente de trabalho previsto no artigo 281º e seguintes do C. Trabalho, tendo o douto despacho recorrido violado o disposto na alínea c) do artigo 85º da Lei 3/99, de 13/1.
3ª – O despacho recorrido ao exigir a subordinação jurídica para a subsunção do caso às leis do trabalho violou o disposto no artigo 13º do Código do Trabalho que apenas exige a dependência económica do trabalhador face ao beneficiário da actividade.
4ª – E se os factos alegados pelos réus na deduzida excepção não se considerarem como assentes, então, a Srª Juíza devia ter relegado para momento posterior o conhecimento da excepção e deixado que os réus fizessem prova de tais factos, tendo com a douta decisão, de qualquer forma violado também o disposto no nº 1 do artigo 264º do CPC.
Nas suas contra-alegações, a autora alega que é prestadora de trabalho doméstico, desde Dezembro de 2003, não se encontrando, juridicamente, subordinada aos réus, nem deles dependia, em termos económicos, não consubstanciando os factos ocorridos qualquer acidente de trabalho.
A Exª Juiz sustentou a decisão questionada, por entender que não foi causado qualquer agravo aos recorrentes.
Este Tribunal da Relação entende que se devem considerar como demonstrados, com interesse relevante para a decisão do mérito do agravo, os seguintes factos:
A autora é prestadora de trabalhos domésticos remunerados, na residência dos réus, desde Dezembro de 2003 – A).
No dia 14 de Junho de 2004, a autora dirigiu-se, à residência dos réus, para realizar serviços de limpeza – B).
No momento em que a autora se preparava para atravessar o quintal da residência dos réus, o cão destes avançou sobre ela, atirou-a ao chão e mordeu-a no braço e cotovelo esquerdos e na barriga – C).
O cão era grande e arraçado de pastor alemão – D).
Em consequência do referido em C), a autora deu entrada, no serviço de urgência do Hospital de Torres Novas, tendo sido enviada para as urgências de cirurgia plástica do Hospital de Santa Maria – E).

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Tudo visto e analisado, atento o Direito aplicável, cumpre, finalmente, decidir.
As questões a decidir no presente agravo, em função das quais se fixa o objecto do recurso, considerando que o «thema decidendum» do mesmo é estabelecido pelas conclusões das respectivas alegações, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento oficioso se imponha, com base no preceituado pelas disposições conjugadas dos artigos 660º, nº 2, 661º, 664º, 684º, nº 3 e 690º, todos do Código de Processo Civil (CPC), são as seguintes:
I – A questão da qualificação jurídica do contrato celebrado entre as partes.
II – A questão da competência material proveniente de acidente de trabalho, no âmbito do contrato celebrado.

I. DA NATUREZA DO CONTRATO

Para que o Tribunal possa decidir sobre a procedência ou o mérito de um pedido, é, desde logo, indispensável que a acção seja proposta perante o Tribunal competente para a sua apreciação, o que significa que a competência é um pressuposto processual que se determina pelo modo como o autor configura o pedido e a respectiva causa de pedir, que importa analisar antes de se conhecer do fundo da causa, de que depende poder o Juiz proferir decisão de mérito sobre a mesma, condenando ou denegando a providência judiciária requerida pelo demandante Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 74 e 75; Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, 379., mas, também, que deve haver uma relação directa entre a competência e o pedido Castro Mendes, Direito Processual Civil, I, 557..
Com efeito, os pressupostos processuais constituem as condições mínimas de que depende o exercício da função jurisdicional e, no caso da competência, visam assegurar a justiça da decisão, a garantia de que a mesma é dimanada do Tribunal mais idóneo Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, II, 1970, 379 e 380..
Em consonância com o princípio da existência de um nexo jurídico directo entre a causa e o Tribunal, a competência afere-se pelo “quid disputatum” ou “quid decidendum”, em antítese com aquilo que, mais tarde, será o “quid decisum”, isto é, a competência determina-se pelo pedido do autor, o que não depende da legitimidade das partes, nem da procedência da acção, mas antes dos termos em que a mesma é proposta, seja quanto aos seus elementos objectivos, como acontece com a natureza da providência solicitada ou do direito para o qual se pretende a tutela judiciária, seja quanto aos seus elementos subjectivos Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 91; STJ, de 21-2-01, Acórdãos Doutrinais do STA, 479º, 1539; STJ, de 9-2-99, BMJ nº 484, 292; STJ, de 9-5-95, CJ (STJ), Ano III, T2, 68..
Por outro lado, a competência material dos tribunais civis é aferida, por critérios de atribuição positiva, segundo os quais pertencem à competência do tribunal civil todas as causas cujo objecto seja uma situação jurídica regulada pelo direito privado, nomeadamente, civil ou comercial, e por critérios de competência residual, nos termos dos quais se incluem na competência dos tribunais civis todas as causas que, apesar de não terem por objecto uma situação jurídica fundamentada no direito privado, não são, legalmente, atribuídas a nenhum outro tribunal Miguel Teixeira de Sousa, A Nova Competência dos Tribunais Civis, Lex, 1999, 31 e 32..
Por isso, os tribunais judiciais são os tribunais com competência material residual, a quem pertence o conhecimento das causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, princípio este que se encontra plasmado no texto dos artigos 66º, do CPC, e 18º, nº 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais (LOFTJ), quando estabelecem que "são da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional”.
Por seu turno, no âmbito dos tribunais judiciais, são os tribunais de competência especializada cível aqueles que possuem competência residual, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 34º, 57º e 94º, da LOFTJ, resultando do texto deste último normativo legal a concretização acabada do mesmo princípio, ao preceituar que "aos juízos de competência especializada cível compete a preparação e o julgamento dos processos de natureza cível não atribuídos a outros tribunais".
Ora, aos tribunais de competência genérica, que são todos os tribunais de primeira instância, cujos poderes não se encontram espartilhados em áreas de competência especializada ou de competência específica, «in casu», o Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas, pertenceria, segundo a autora, ao contrário do sustentado pelos réus, a competência material para o conhecimento do pleito.
Por seu turno, compete aos Tribunais do Trabalho, em matéria cível, designadamente, de acordo com o disposto pelo artigo 85º, da LOFTJ, conhecer “das questões emergentes de relações de trabalho subordinado…” [b], “das questões emergentes de acidentes de trabalho…” [c] e “das questões emergentes de contratos equiparados por lei aos de trabalho” [f].
O contrato de trabalho, segundo a definição constante do artigo 10º, do Código do Trabalho, é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, sob a autoridade e direcção destas.
A caracterização do contrato de trabalho vive muito da existência do vínculo da subordinação jurídica entre o trabalhador e a pessoa a quem é prestado o serviço, um dos principais factores integrantes daquele conceito, sendo certo que os restantes elementos qualificativos do contrato de trabalho não são questionados pelos réus.
Por outro lado, se os factos integradores do conceito de subordinação jurídica não se encontram, exuberantemente, alinhados na petição, estão-no, contudo, na contestação, em termos suficientes para deverem ser considerados adquiridos para o processo, com base no disposto pelo artigo 515º, do CPC.
A isto acresce que ficam ainda sujeitos aos princípios definidos no Código do Trabalho, nos termos do preceituado pelo artigo 13º, deste diploma legal, nomeadamente, quanto a direitos de personalidade, igualdade e não discriminação e segurança, higiene e saúde no trabalho, sem prejuízo de regulamentação em legislação especial, os contratos que tenham por objecto a prestação de trabalho, sem subordinação jurídica, sempre que o trabalhador deva considerar-se na dependência económica do beneficiário da actividade.
Por outro lado, estipula o artigo 2º, nº 1, do DL nº 235/92, de 24 de Outubro, com a última redacção introduzida pela Lei nº114/99, de 3 de Agosto, que “o contrato de serviço doméstico é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a outrem, com carácter regular, sob a sua direcção e autoridade, actividades destinadas à satisfação das necessidades próprias ou específicas de um agregado familiar, ou equiparado, e dos respectivos membros, nomeadamente, lavagem e tratamento de roupas [b] e limpeza e arrumo de casa [c].
Resulta, assim, desta definição legal, que a existência de um contrato de serviço doméstico, para além de uma actividade destinada a satisfazer necessidades próprias de um agregado familiar, ou equiparado, e dos respectivos membros, implica, também, como acontece no contrato individual de trabalho, a verificação cumulativa de dois elementos, ou seja, a subordinação económica do trabalhador ao dador de trabalho, que se revela pelo facto daquele receber deste certa remuneração, com a qual, em princípio, subsiste ou faz face às necessidades do seu agregado familiar, e a subordinação jurídica, que se traduz no facto de o trabalhador, na prestação da sua actividade, estar sujeito às ordens, direcção e fiscalização da pessoa servida, sendo irrelevante que essa sujeição seja efectiva, ou, meramente potencial.
Revertendo ao caso em apreço, importa destacar que a autora invoca, como causa de pedir, a prestação de trabalhos domésticos, na residência dos réus, onde, no dia 14 de Junho de 2004, quando aí se dirigiu para realizar serviços de limpeza, conforme o acordado, ao preparar-se para atravessar o quintal, foi mordida, no braço e cotovelo esquerdos e na barriga, por um cão daqueles.
Por seu turno, a autora alega ainda a existência de danos próprios, patrimoniais e não patrimoniais, derivados do acidente de trabalho, causados pelo facto de os réus, sua entidade patronal, terem negligenciado as normas de segurança no trabalho, que se prendiam com a recolha do animal no seu local de custódia, porquanto, ao contrário do que se haviam comprometido, apesar de bem saberem que a autora iria, naquele dia e hora, a sua casa, conforme o contratado, não o fecharam na sua casota.
Por isso, a subordinação jurídica estava, pelo menos, implicitamente, invocada na fundamentação desenvolvida na petição inicial.
A acção proposta pela autora provém, assim, de um acidente de trabalho, no âmbito da execução de um contrato de prestação de serviço doméstico, imputável a alegada culpa dos réus, entidade patronal da vítima, trabalhadora daqueles.

II. DA COMPETÊNCIA MATERIAL PROVENIENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO NO ÂMBITO DO CONTRATO CELEBRADO

Fixando-se a competência, no momento em que a acção é proposta, o que, no caso da competência em razão da matéria, se determina pelo pedido da autora e pela respectiva causa de pedir, importa reconhecer que, face aos termos como a acção está configurada, ponderado o pedido e seus fundamentos, de facto e de direito, se está perante uma questão emergente de uma relação de trabalho subordinado, situada no âmbito do contrato de serviço doméstico.
Ora, sendo da competência dos Tribunais do Trabalho conhecer, em matéria laboral, das “questões emergentes das relações de trabalho subordinado…”, considerando que a autora estruturou a acção como emergente de um contrato de serviço doméstico, o Tribunal do Trabalho é o competente, em razão da matéria, para conhecer as questões de indemnização respeitantes a danos patrimoniais e não patrimoniais provenientes do referido acidente laboral, atento o estatuído pelo artigo 85º, b), c) e f), da LOFTJ, citado STJ, de 20-5-98, BMJ nº 477, 389; de 16-12-83, BMJ nº 332, 418; e de 10-12-85, Ac. Dout. STA, Ano XXV, nº 292, 487; RL, de 28-4-1999, BMJ nº 486, 356..
Assim sendo, julga-se, materialmente, incompetente, para conhecer do mérito da acção, o Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas e, em contrapartida, procedente a excepção dilatória da incompetência material deste tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 494º, nº 1, a), 493º, nº 2 e 288º, nº 1, a), todos do CPC, em virtude de para a mesma ser competente o Tribunal do Trabalho, como já se referiu.

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CONCLUSÕES:

I – Invocando a autora a existência de danos próprios, patrimoniais e não patrimoniais, derivados de acidente de trabalho, imputável a negligência na recolha de um cão, que a mordeu, pertencente à entidade patronal para quem trabalhava, no domicílio desta, no âmbito da prestação de trabalhos domésticos, são esses os factos que constituem o elemento essencial e determinante da causa de pedir.
II – Por isso, o tribunal competente, em razão da matéria, para conhecer as questões de indemnização, por responsabilidade civil proveniente dos danos emergentes de acidente de trabalho, no âmbito do serviço doméstico, é o Tribunal do Trabalho, e não o Tribunal comum de comarca.

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DECISÃO:

Por tudo quanto exposto ficou, acordam os Juízes que compõem a 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Coimbra, em julgar provido o agravo e, em consequência, revogam a decisão recorrida, declarando a incompetência material do Tribunal Judicial da Comarca de Torres Novas, por ser, materialmente, competente, para os termos da acção, o Tribunal do Trabalho.

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Custas, a cargo da autora-agravada.